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Dois anos de política salarial

INFORME TRIMESTRAL

Dois anos de política salarial

Luciano S. Gaino

Professor e consultor de Política e Administração de Salários na EAESP/FGV e superintendente de recursos humanos na S.A. O Estado de São Paulo

A política salarial estabelecida em novembro de 1979 tornou-se polêmica desde que o projeto entrou em discussão, contrapondo-se os seus efeitos econômicos e o seu alcance social. Lastreada nos movimentos sindicais da época, a lei procurou incorporar características das conquistas que os sindicatos vinham obtendo, com o objetivo de neutralizar ou, pelo menos, diminuir a intensidade das campanhas salariais. Assim, tornou obrigatório o escalonamento do índice de correções salariais, expandindo-o até 3 e achatando-o acima de 10 salários mínimos. Ao mesmo tempo, a obrigatoriedade dos reajustes tornou-se semestral, permitindo-se a negociação anual apenas do índice denominado produtividade.

É difícil afirmar se o arrefecimento das campanhas salariais que se observou a partir do estabelecimento desta política deu-se como conseqüência da lei óu coincidência com a realidade conjuntural que se afigurou a partir de então. O fato constatado estatisticamente é dé que o número de greves diminuiu, mas o desemprego aumentou. Antes de extrair conclusões, é necessário analisar os efeitos da política salarial na economia do país e das empresas.

1 . EFEITOS DO ÍNDICE NACIONAL DE PREÇOS AO CONSUMIDOR (INPC)

O INPC foi questionado desde a sua criação, nem tanto pela sua qualidade técnica, mas muito mais por tratar-se de um índice nacional extraído de uma média ponderada dade técnica que ofereça sua elaboração, não tem condições de ser aplicado em qualquer região sem efeitos distorsivos. Os preços observados nas regiões desenvolvidas, altamente competitivas, têm diferenças substanciais em relação ao comportamento de preços de regiões pouco desenvolvidas e, principalmente, em relação a regiões em fase de desenvolvimento recente e acelerado nas quais os preços estão em fase de acomodação à nova realidade. Dessa forma, o INPC poderá repassar a inflação de uma região para outra, principalmente se as regiões mais desenvolvidas industrialmente estiverem incorporando aos custos dos seus produtos um INPC mais elevado do que aquele apurado regionalmente.

2. EFEITOS DO ESCALONAMENTO DO ÍNDICE

A redistribuição salarial pretendida pela expansão dos salários mais baixos, compensada pelo achatamento dos salários mais altos, é uma aritmética de fácil compreensão quando se analisa toda a massa salarial do país. Complica-se quando se analisa a distribuição salarial de uma só empresa, pois, raramente, o seu perfil de distribuição aproxima-se do perfil nacional. Em muitos casos, os salários estão concentrados nas faixas mais baixas, cujos aumentos não chegam a ser compensados pelo achatamento dos salários mais elevados, exercendo uma pressão sobre a economia da empresa que se torna dramática quando a folha de pagamentos tem participação relevante nos custos dos produtos ou serviços. A situação inversa, isto é, a concentração dos salários nas faixas mais altas, permitiria que o achatamento compensasse a expansão dos salários mais baixos, fazendo muitas vezes que a folha de pagamentos possa crescer abaixo do INPC. Nessa situação, ou a empresa opera com pessoal altamente especializado que não pode ser achatado indiscriminadamente ou simplesmente operará em vantagens de custos em relação às demais. Desgraçadamente, a probabilidade de concentração dos salários nas faixas mais baixas ocorre geralmente nas empresas de pequeno e médio porte que operam com tecnologia mais elementar, aplicando mão-de-obra de baixa especialização, mas com significativa participação nos custos dos produtos.

Do lado da demanda, esse escalonamento influi no perfil de consumo dos assalariados, pois aumenta relativamente o poder de compra das famílias carentes de produtos de consumo imediato, ao mesmo tempo que restringe as de consumo de bens duráveis. Dissemos relativamente porque o aumento do poder de compra gerado pela política salarial tem uma certa dose de artificialismo, pois não é obtido a partir de um aumento de produtividade. Ela pode, em certas circunstâncias, produzir pressão inflacionária, na medida em que o esfriamento da demanda gerado pelo achatamento dos salários mais altos não demonstrou contribuição significativa imediata no combate à inflação, mas influi para esfriar a oferta de empregos.

Além disso, a elevação do salário mínimo não acompanhou sistematicamente os índices aplicáveis aos salários mais baixos, abrindo espaço para o aviltamento salarial pela prática da rotatividade que acaba neutralizando parte do efeito da redistribuição esperada.

3. EFEITOS DA SEMESTRALIDADE

A recomposição semestral do poder aquisitivo tem um grande fundamento sócio-econômico quando visa a evitar que os assalariados sofram os efeitos de uma inflação elevada por tempo prolongado. Entretanto, a semestralidade tornou-se perversa à política salarial, e mais, à manutenção do nível de emprego, em conseqüência da realidade conjuntural. A obrigatoriedade de reajustar os salários semestralmente, com a aplicação de um índice decretado em caráter nacional, tirou das empresas a flexibilidade que tinham de programar as antecipações dos reajustes salariais de acordo com épocas e índices coerentes com a sazonalidade de sua economia. Muitas empresas já concediam, mesmo antes que a lei os tomasse obrigatórios, reajustes intermediários durante o ano, umas semestralmente, outras trimestralmente ou em qualquer outro período que melhor atendesse a sua capacidade econômica. De qualquer forma, as empresas não encontravam facilidade para repassar esses reajustes espontâneos aos preços dos produtos, inibindo a pressão inflacionária. A semestralidade obrigatória não só legitimou o repasse aos preços, como também gerou uma pressão sobre o capital de giro das empresas, demandando o aumento do seu endividamento para cumprir seus compromissos com a folha de pagamentos, quando a sazonalidade dos reajustes não coincide com a do faturamento. A esse fato junta-se a obrigatoriedade do recolhimento dos encargos sociais que acompanham a variação da folha de pagamentos, e não do faturamento. Dessa forma, se em determinados períodos a empresa acumula estoques para vender nas fases de maior procura, os salários, os encargos e os custos financeiros gerados pelos reajustes incorporam-se sistematicamente aos custos dos produtos, impedindo que um desaquecimento da demanda permita a estabilização de preços, propiciando condições mais favoráveis a urna estagnação do que a uma queda da inflação.

4. UM ÍNDICE CHAMADO PRODUTIVIDADE

Inspirado na teoria econômica, o índice de produtividade foi incorporado à política salarial na expectativa de que incrementos salariais acima do INPC não seriam inflacionários, desde que pudessem ser absorvidos por uma margem de aumento de produtividade.

Embora não faltem fórmulas para o cálculo da produtividade, este índice revelou apenas ser uma margem de flexibilidade para negociações, uma vez que a lei determinou que deveria ser estabelecido por categoria, e não por setor ou empresa, dificultando a sua formulação técnica. Por outro lado, não foram regulamentados os parâmetros para o seu cálculo, o que toma discutível qualquer índice elaborado com a finalidade de aplicação aos salários.

Como margem de negociação, o índice de produtividade tomou-se demasiadamente estreito, pois enquanto nas negociações anteriores à lei que o estabeleceu as partes vinham negociando um índice global, a partir daí ele restringiu-se a apenas alguns pontos percentuais que se aplicam aos salários reajustados com o INPC escalonado. Deu-se, então, um novo desvirtuamento, pois o índice de produtividade passou a ser aplicado sobre uma base reajustada com duas correções semestrais e, mais, passou a ser também escalonado nos acordos intersindicais, superdimensionando o seu efeito sobre a folha de pagamentos e produzindo todas as variações já mencionadas.

5. EFEITOS X CAUSAS

A eficácia da política salarial está comprometida por causas que fogem ao seu alcance, pois para redistribuir salários, ou redistribuir renda via salários, pressupõe-se que as causas de natureza estrutural ou conjuntural estejam sob controle.

Em primeiro lugar, é preciso que a massa salarial nacional tenha uma margem de expansão para absorver o crescimento da população economicamente ativa, através do crescimento da economia nacional em índices superiores ao da população. Entretanto, a própria lei prevê que esta margem seja absorvida em parte ou no todo pelo incremento salarial.

Em segundo lugar, é preciso que haja espaço para que as pessoas tenham não só um crescimento salarial vegetativo, mas possam também crescer profissionalmente, galgando posições mais elevadas em função da sua qualificação, aperfeiçoamento e maturidade para atender ao desenvolvimento sócio-técnico-cultural do país.

Considerando-se que ainda há escassez de qualificação para suprir todas as demandas do país (isto é, embora o sistema de ensino tenha saturado o mercado com diplomados em diversos níveis e especialidades), a quantidade de pessoal com maturidade adequada ao desempenho de atividades complexas numa conjuntura difícil ainda é insuficiente. Esse fato leva a uma superválorização dos poucos qualificados .e neutraliza parte do objetivo da política salarial.

Por outro lado, a pressão sobre os custos e as incertezas conjunturais levam a empresa a preferir preservar o seu quadro de pessoal qualificado e fazer oscilar o seu quadro de pessoal de baixa qualificação para ajustar-se com maior rapidez às variações conjunturais, neutralizando parte do efeito desejado pelo escalonamento salarial.

A opção perversa que decorre desse conflito de causas e efeitos é, na realidade atual da política salarial, a racionalização do processo produtivo. A pressão dé custos numa conjuntura adversa estimula a busca da maximização do potencial instalado com o mínimo custo, absorvendo as margens de ociosidade existentes ou, indo mais além, concentra atenções, nos projetos de futuras instalações, em tecnologia poupadora de mão-de-obra.

O descompasso que há entre o desenvolvimento tecnológico e a realidade demográfica nos países de desenvolvimento recente torna-se um dos maiores obstáculos à distribuição salarial. A necessidade de incorporar rapidamente novas tecnologias para prover o desenvolvimento do país amplia rapidamente o mercado de pessoal especializado, escasso e, portanto, super valoriza do. Ao mesmo tempo, as inovações tecnológicas aplicadas ao processo produtivo dificultam a absorção do pessoal de baixa qualificação, gerando um grande excedente que pesa como chumbo na base da pirâmide de distribuição salarial. Junte-se a essa realidade a inadequação do sistema educacional e está completa a receita para fermentar a eficácia da política salarial à temperatura da conjuntura econômica.

Os países já desenvolvidos geralmente não sofreram a seriedade desse descompasso porque o desenvolvimento tecnológico deu-se concomitantemente ao desenvolvimento sócio-cultural da população, pois eram interdependentes nos desenvolvimentos do processo produtivo. Eram poucas, ou nenhuma, as possibilidades de importar tecnologia, ou mesmo máquinas e equipamentos para acelerar o desenvolvimento como pode ser feito atualmente. £ preciso ver, também, que na realidade atual as opções de aplicação tecnológica podem ser programadas com muito mais flexibilidade, ajustadas ou não à realidade demográfica.

Tudo leva a crer que a política salarial deve sofrer modificações ou aperfeiçoamentos para moldar-se à realidade estrutural e conjuntural, de forma que os seus objetivos Sociais não sejam sufocados pelas pressões do crescimento demográfico ou pelo estrangulamento financeiro das empresas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1982
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