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A sociedade estatal e a tecnoburocracia

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Roberto Venosa

Bresser Pereira, Luis Carlos. A sociedade estatal e a tecnoburocracia. São Paulo, Brasiliense, 1981.

Em maio de 1981, o Prof. Bresser Pereira me enviou um exemplar de seu livro A sociedade estatal e a tecnoburocracia. Até hoje, não tive a oportunidade de agradecer essa lembrança. Penso ser simpático iniciar esta resenha manifestando meu apreço pelo autor e expressando meu reconhecimento pelo seu gesto.

Em julho de 1981, após terminar a leitura do texto, comecei a preparar uma resenha que só ficou pronta agora. Minhas dúvidas e hesitações devem-se à ambigüidade com que experimento minhas relações com o autor. De um lado, aprendi, em breve convivência parisiense, a apreciar sua amabilidade. De outro lado, jamais consegui compreender integralmente as idéias que o Prof. Bresser defende, em parte por achar que o tratamento que ele concede ao tema da tecnoburocracia como modo de produção dominante talvez necessite de análises mais específicas, e não possa por isso mesmo ser visto globalmente.

Como entender a proposta do texto, mantendo um distanciamento adequado, foi o nó que amarrou esta resenha e que só foi possível desatar iniciando-a pelos parágrafos anteriores.

A rigor existem dois aspectos que não podem ser excluídos da resenha: o que caracteriza e individualiza a proposta do Prof. Bresser Pereira? Qual a legitimidade desta proposta entre seus pares?

Para entendê-los, além da leitura do livro, fiz três perguntas ao Prof. Bresser, as quais se encontram diluídas ao longo desta resenha.

Não é de hoje que o Prof. Bresser Pereira insiste numa mesma tecla: a tecnoburocracia como classe, mais ainda, como classe dominante. Seus artigos anteriores, bem como seus demais livros, mostram um "gosto que me enrosco" com esta proposta. Embora, como ele próprio salienta, não apresente a tecnoburocracia como vilã da história, fica claro que para ele esta tecnoburocracia não foi "concebida sem pecado".

O que a caracteriza? Que monopólio ela exerce? Qual a base do seu poder?

Para o autor, o que dá substância e legitimidade ao poder tecnoburocrata é o monopólio do recurso que se encontra escasso na margem; o conhecimento técnico-organizacional.

O que resta saber é por que o acesso à classe dominante por parte dos principais executivos - os quais são "letrados" - necessariamente desloca do poder, em sociedades capitalistas, os proprietários do capital, uma vez que esta tecnoburocracia detém um portfolio de ações, constrói uma agenda de relações sociais e cultiva relações no aparelho do Estado da mesma forma que os capitalistas. Onde começa um e onde termina o outro é que não dá para decifrar.

Para o autor, esse deslocamento dos capitalistas pelos tecnoburocratas deve ser visto como tendência que ocorre através de marchas e contramarchas. Para elucidar esta tendência, o autor propõe a seguinte analogia: "Há fundamentalmente uma associação da tecnoburocracia (subordinada) com a burguesia, como houve no passado uma associação da burguesia (subordinada) com a aristocracia feudal. A burguesia tenta (e consegue) de todas as formas cooptar e incorporar os elementos mais competentes ou agressivos da tecnoburocracia. (.. .) Em suma, este deslocamento deve ser visto como tendência."

A analogia pode elucidar, facilitar a compreensão, no entanto, não garante que a associação burguesia/aristocracia se reproduza na relação tecnocracia/burguesia. Em segundo lugar, não fica claro de onde vêm estes tecnoburocratas. Se aceitarmos que a maior parte deles vêm das extrações mais ajtas da sociedade fica mais difícil estabelecer um divisor claro entre tecnoburocracia e burguesia. Examinada como tendência, a proposta traduz uma mudança nos padrões de legitimidade acrescentando,

porém não necessariamente modificando e, portanto, não excluindo outros eixos de legitimidade, tais como o capital econômico, o capital de relações sociais, o cacife político. Em outras palavras, o conhecimento técníco-organizacional não exclui nem dispensa o hábito, ao contrário pode estar incluído dentro dele.

Em outras palavras, se o saber técnico-organizacional é necessário para o acesso às posições dominantes, não está claro que ele seja suficiente. Para Bresser Perejra, a passagem da necessidade à suficiência deve ser vista como tendência.

Um outro aspecto a ser salientado é a obrigatoriedade do recurso à teoria do modo de produção, para dar conta da complexidade da estrutura de classes nas sociedades modernas, urbanas e industriais.

Para o autor, não existe esta obrigatoriedade e ele utiliza o conceito de camada, uma vez que para ele, neste modo de produção, o tecnoburocrático, este conceito se faz mais importante.

Mais uma vez, somente a perspectiva de uma tendência pode nos levar a pactuar com a proposta de Bresser Pereira, pois camada nos sugere que, no presente, a tecnoburocracia seja fração dominada dentro de classe provavelmente dominante.

Como pode ser visto, a proposta do Prof. Bresser Pereira não pode ser considerada acabada, porém, nem por isso pode ser sumariamente rejeitada.

A esse respeito vale a pena entrar no segundo aspecto: qual a legitimidade desta proposta entre seus pares?

Bem, o próprio Prof. Bresser se considera um heterodoxo e acredita que alguns dos que se mantêm firmemente contrários a suas idéias são nada mais que ortodoxos.

Provavelmente, este também é um enigma sem solução. Inútil tomar partido. No entanto, os debates entre Bresser e Lima/Beluzzo e Bresser/Giannotti deixam entrever o modo como um campo sobrevive. Explico: são pelas lutas intestinas ampliadas e divulgadas que um tema se faz problema e o campo onde este tema é socialmente construído se torna legítimo, se autonomiza, coopta seguidores, cria correntes e subcorrentes assegurando sua permanência. Os debates, então, são muito mais sintomas da autonomia relativa da região do econômico no campo intelectual do que disputas que visem elucidar "a verdade". Como lembra Raymond Aron - autor que, por carregar o estigma do reacionarismo político (o que ele realmente é), está proibido de ser citado entre os intelectuais (não é da mesma safra): "o eremita, no deserto, divide com aqueles, dos quais fugiu, as crenças que o empurraram a uma solidão física, mas não espiritual".

Em conclusão, Bresser trata de um tema atual, mexe com quem que se não detém o poder, pelo menos pretende um dia detê-lo. Acompanhar o que se escreve sobre as lutas entre classes, partidos e idéias em nossa sociedade é sempre importante. Bresser fornece sua interpretação para o destino destas lutas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1982
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