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EXPERIÊNCIAS AGRESTINAS: PISTAS PARA A PESQUISA SOBRE GENTE E NEGÓCIOS EM CONTEXTO PERIFÉRICO

Experiencias del Agreste: Pistas para la investigación sobre gente y negocios en contexto periférico

RESUMO

Este ensaio epistemológico, que se ergue a partir de experiências ambientadas no Agreste pernambucano entre 2007 e 2016, tem como objetivo principal sistematizar pistas epistêmicas para pesquisa sobre gente e negócios em contexto periférico, no sentido de maiores esclarecimentos linguísticos. Após a introdução, alguns traços sócio-históricos que constituem o lugar e sua gente são apresentados e seguidos de um breve olhar retrospectivo para tais experiências. Na seção principal, são expostas as pistas que apontam para: (1) a necessidade de uma compreensão apropriada do contexto como periférico; (2) o avanço na construção de um modo de produção científico apropriado ao referido contexto; (3) a relevância de esclarecimentos sobre a linguagem como ação ordinária própria e dos pesquisados; e (4) a retórica argumentativa como meio para se alcançar a legitimidade em conformidade ao auditório ao qual se dirige. O texto termina com breves considerações finais.

PALAVRAS-CHAVE
Agreste; Bourdieu; epistemologia; prática linguística; negócios periféricos

RESUMEN

Este ensayo epistemológico, que surge a partir de experiencias ambientadas en el Agreste pernambucano entre 2007 y 2016, tiene como objetivo principal sistematizar pistas epistémicas para investigación sobre gente y negocios en contexto periférico, en el sentido de mayores aclaraciones lingüísticas. Después de la introducción, se presentan algunos rasgos sociohistóricos que constituyen el lugar y su gente, seguidos de una breve mirada retrospectiva a tales experiencias. En la sección principal se exponen pistas que apuntan: (1) la necesidad de una adecuada comprensión del contexto como periférico; (2) el avance en la construcción de un modo de producción científico apropiado a dicho contexto; (3) la relevancia de aclaraciones sobre el lenguaje como acción ordinaria propia y de los encuestados; y (4) la retórica argumentativa como medio para alcanzar la legitimidad en conformidad al auditorio al que se dirige. El texto termina con breves consideraciones finales.

PALABRAS CLAVE
Agreste; Bourdieu; epistemología; práctica lingüística; negocios periféricos

ABSTRACT

This epistemological essay, which emerges from experiences set in the Agreste of Pernambuco between 2007 and 2016, has the main objective to systematize epistemic clues for research on people and businesses in a peripheral context, in the sense of greater linguistic clarification. After the introduction, some socio-historical features that constitute a place and its people are presented, followed by a brief retrospective look at such experiences. In the main section, clues are exposed that point to: (1) the need for an appropriate understanding of the context as peripheral; (2) advancement in the construction of a scientific mode of production appropriate to that context; (3) the relevance of clarifications about language as an ordinary action of researchers and researched people; and (4) argumentative rhetoric in the sense to achieve legitimacy in accordance with the audience to which it is directed. The text ends with brief concluding remarks.

KEYWORDS
Agreste; Bourdieu; epistemology; linguistic practice; peripheral business

INTRODUÇÃO

Desde o século passado, as grandes narrativas (Lyotard, 2002Lyotard, J.-F. (2002). A condição pós-moderna (7ª ed.). Rio de Janeiro, RJ: José Olympio. (Obra original publicada em 1979)) passaram a receber questionamentos que colocaram em xeque suas hegemonias nas disputas por legitimidade científica. Visões e práticas modestas e circunstanciadas de produção de conhecimento conquistaram mais espaço e, com alguma recorrência, passaram a ser tidas como potencialmente válidas nas diversas comunidades abrigadas sob o manto das ciências humanas e sociais (Portocarrero, 1994Portocarrero, V. (1994). Introdução. In V. Portocarrero (Org.), Filosofia, história e sociologia das ciências (pp. 17-21). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.; Vessuri, 1991Vessuri, H. (1991). Perspectivas en el estudio de la ciencia. Interciencia, (16), 60-69.).

Nesse contexto, emergem abordagens teórico-epistêmicas em função de objetos de pesquisa localizados, com atenção às especificidades sócio-históricas que também condicionam os fenômenos de interesse, porém nutridas tanto pelos avanços consagrados do pensamento social ocidental, muitos decorrentes do que se convencionou denominar “virada linguística”, quanto pelo esclarecimento construtivista de que campo-personagens-fenômeno-pesquisador constituem relação única. Eis o escopo no qual se encaixam as experiências de pesquisa a partir das quais emergiram as pistas que aqui se partilham com os Estudos Organizacionais brasileiros.

O texto que se segue não deve ser lido como um artigo ou ensaio teórico convencional, afinal não há nele um problema de pesquisa, hipóteses, resultados ou mesmo um argumento teórico a ser exposto e defendido. Talvez o melhor modo de denominá-lo seja como um ensaio de natureza epistemológica, que tem a pretensão de se somar a tais abordagens alternativas emergentes nas últimas décadas. Aos olhos deste autor, um ensaio de tal natureza pode se dedicar a questões como as seguintes: Por meio de quais abordagens epistêmicas pesquisas sociais são estruturadas? Como tais abordagens são colocadas em prática? Quais tipos de aprendizados podem ser incorporados e partilhados a partir de tais experiências? Podem inspirar os demais membros de uma comunidade da qual se faz parte? De que modo podem servir de orientação para avanços epistêmicos no devir de um pesquisador?

A opção por tal forma de escrita deu-se em decorrência da necessidade de sistematizar desdobramentos epistêmicos de experiências investigativas, tomando como horizonte uma melhor orientação de futuras práticas. A síntese de traços que caracterizam um contexto específico, a recuperação de uma trajetória investigativa de longo prazo em tal ambiência e, principalmente, a sistematização de pistas a partir do confronto de tal trajetória com literatura contemporânea especializada são os elementos, materializados nas seções seguintes, que articulam tal forma e seu conteúdo.

Sua fonte constitutiva é um aprendizado acumulado ao longo de 10 anos (2007-2016) de experiências de pesquisa social vividas por um pesquisador atuante nos campos científicos da Sociologia, da Administração e dos Estudos Organizacionais, bem como ambientada no Agreste pernambucano, confrontado com alguns dos avanços epistemológicos supramencionados, em particular no que se refere aos seus impactos em termos linguísticos no modus operandi e no habitus científico (Bourdieu, 2014Bourdieu, P. (2014). Por uma sociologia da ciência. Lisboa, Portugal: Edições 70.). Seu objetivo principal é sistematizar pistas epistêmicas para pesquisa sobre gente e negócios em contexto periférico, no sentido de uma prática linguística mais bem esclarecida. Acredita-se que tais pistas podem ter serventia tanto para a continuidade da trajetória investigativa aqui problematizada como para inspirar outras iniciativas em contextos mais ou menos próximos ao agrestino.

Após esta introdução, são apresentados alguns traços sócio-históricos que constituem o lugar e sua gente, seguidos de breve resgate da trajetória de pesquisa em solo agrestino. Na seção principal, são expostas, uma a uma, as quatro pistas epistêmicas elaboradas. Por fim, uma síntese delas é oferecida junto às considerações finais.

TRAÇOS SÓCIO-HISTÓRICOS DO QUE AQUI SE CHAMA DE AGRESTE

Situada numa faixa entre a Zona da Mata e o Sertão, no interior do Nordeste brasileiro, há uma região que corta seus estados orientais como Pernambuco e Paraíba. Para Andrade (2005)Andrade, M. C. (2005). A terra e o homem do Nordeste (7ª ed. revista e aumentada). São Paulo, SP: Cortez. (Obra original publicada em 1963), trata-se de “uma zona de transição, com trechos quase tão úmidos como o da Mata e outros tão secos como o do Sertão, alternando-se constantemente e a pequena distância, que o povo chamou de Agreste” (p. 37). Ainda para o mesmo autor, o que caracteriza tal localismo “é a diversidade de paisagens que ele oferece em curtas distâncias, funcionando quase como uma miniatura do Nordeste, com suas áreas muito secas e muito úmidas” (p. 44).

Com o declínio da agricultura na região entre meados dos séculos 18 e 20, as necessidades e os projetos familiares de parte dos agrestinos direcionaram-se ao universo urbano. Os principais destinos dos que partiram foram as grandes cidades próximas, sobretudo Recife, e as metrópoles nacionais São Paulo e Rio de Janeiro (Andrade, 2005Andrade, M. C. (2005). A terra e o homem do Nordeste (7ª ed. revista e aumentada). São Paulo, SP: Cortez. (Obra original publicada em 1963); Oliveira, 2013Oliveira, R. V. de. (2013). O polo de confecções do Agreste de Pernambuco: Elementos para uma visão panorâmica. In R. Oliveira, & M. Santana (Orgs.), Trabalho em territórios produtivos reconfigurados no Brasil (pp. 233-78). João Pessoa, PB: Editora da UFPB.). Ao mesmo tempo, alternativas locais surgiram - como o uso do couro na produção de calçados, em Caruaru e Toritama, e o caso da costura com retalhos de tecidos em Santa Cruz do Capibaribe (SCC) (Lira, 2011Lira, S. (2011). Muito além das feiras da Sulanca: A produção de confecções no Agreste-PE. Recife, PE: Editora UFPE.) - para quem naquelas vilas e cidades já morava, bem como para os demais que lá chegavam advindos do entorno rural.

Nesse curso histórico, houve uma continuada conjugação local (1) da procura por produtos necessários à sobrevivência em meio rural, (2) da venda dos produtos agrícolas cultivados a partir do trabalho dos membros da família desde a mais tenra infância, (3) de um contexto de vida que tinha na missa e na feira dos “arruados” seus principais eventos, com (4) a necessidade dos habitantes desses pequenos vilarejos em formação de se abastecerem de itens produzidos no entorno rural e (5) o trânsito dos caixeiros-viajantes, que promoviam a circulação de mercadorias litoral-sertão (Andrade, 2005Andrade, M. C. (2005). A terra e o homem do Nordeste (7ª ed. revista e aumentada). São Paulo, SP: Cortez. (Obra original publicada em 1963); Ferreira, 2001Ferreira, J. (2001). Ocupação humana do agreste pernambucano: Uma abordagem antropológica para a história de Caruaru. João Pessoa, PB: Fafica/Ideia.; Oliveira, 2013Oliveira, R. V. de. (2013). O polo de confecções do Agreste de Pernambuco: Elementos para uma visão panorâmica. In R. Oliveira, & M. Santana (Orgs.), Trabalho em territórios produtivos reconfigurados no Brasil (pp. 233-78). João Pessoa, PB: Editora da UFPB.). Tudo isso se aglutina ao longo da trajetória coletiva local que conforma e é conformada pelo modo de estar e agir no comércio de feiras de rua que ali se engendrava (Sá, 2015aSá, M. (2015a). Os filhos das feiras e o campo de negócios agreste (Tese de doutorado). Recuperado de http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/35680
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, 2018aSá, M. (2018a). Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste. Recife, PE: Editora Massangana-Fundaj. Recuperado de https://www.fundaj.gov.br/images/stories/editora/livros/filhos_das_feiras_versao_portalpdf.pdf
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).

A origem de Caruaru, principal centro urbano da parcela pernambucana da região, está decisivamente vinculada à constituição de sua feira de rua (Ferreira, 2001Ferreira, J. (2001). Ocupação humana do agreste pernambucano: Uma abordagem antropológica para a história de Caruaru. João Pessoa, PB: Fafica/Ideia.). O modo como tal herança se entranhou nos rumos tomados por Caruaru é singular. Ainda nos dias de hoje, num município que se estima ter pouco mais de 350 mil habitantes (Intituto Brasileiro de Geografia e Estatítica, 2016Intituto Brasileiro de Geografia e Estatítica. (2016). Estimativa populacional. Recuperado de http://www.ibge.gov.br/home/mapa_site/mapa_site.php#populacao
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) como a autodenominada “capital do Agreste”, é difícil imaginar um indivíduo de suas camadas populares, e mesmo de outras não tão populares assim, que não tenha ao menos um parente, amigo ou vizinho que se ocupe de alguma atividade relacionada ao comércio ou à confecção. No caso dessa parte do Agreste pernambucano, a feira de rua pode ser vista como se fosse um ancestral presente e incorporado por parte significativa da população agrestina ainda hoje. A dinâmica e os hábitos inerentes às feiras de rua, à prática da costura doméstica familiar, às heranças rurais presentes na organização familiar, bem como à migração de alguns dos seus membros para grandes centros urbanos do País, em especial o eixo Rio-São Paulo, são comuns ao espectro mais amplo dessa região. São reminiscências históricas que ainda hoje constituem o tecido sociocultural local e encontram-se incorporados nos seus habitantes (Sá, 2015aSá, M. (2015a). Os filhos das feiras e o campo de negócios agreste (Tese de doutorado). Recuperado de http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/35680
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, 2018aSá, M. (2018a). Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste. Recife, PE: Editora Massangana-Fundaj. Recuperado de https://www.fundaj.gov.br/images/stories/editora/livros/filhos_das_feiras_versao_portalpdf.pdf
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).

Em síntese, a partir da segunda metade do século passado, o Agreste pernambucano deixou de ser simplesmente um meio rural interligado por pequeninos arruados, viu surgir e se consolidar uma atividade a partir de restos dos tecidos jogados no lixo pela indústria têxtil de Recife e depois de São Paulo, e em parte reverteu sua tendência histórica de fonte perene de mão de obra desqualificada para as principais metrópoles do País. Nas últimas décadas, milhares de pessoas voltaram para o “Agreste das confecções” e também chegaram dos mais diversos recônditos, principalmente nordestinos, para tentar a sorte por lá. Tudo isso sem a presença de grandes fábricas estrangeiras ou de outras regiões do País, a partir do seio dos lares e quintais das numerosas famílias agrestinas, explorando a mão de obra de seus filhos, agregados ou subcontratados em condições de trabalho precárias, criando uma paisagem urbana como Toritama, lugar que, segundo um informante, “parece uma grande fábrica disfarçada de cidade pelas fachadas das casas”.

Famílias que fabricam em seus quintais, jovens que montam um pequeno negócio (muitos com o afã de torná-lo uma próspera empresa) e pequenas e médias indústrias, que se constituíram ao longo das últimas décadas, são apenas algumas das possíveis configurações produtivas encontradas na região. A tradição do comércio de feira de rua em sua versão “para confecções”, a Feira da Sulanca, e a modernidade de centros de vendas como o Polo Comercial de Caruaru ou o Moda Center Santa Cruz (proclamado em sua publicidade como o maior da América Latina) coexistem em solo agrestino como espaços de comercialização da produção regional de confecções em pleno século 21.

UMA TRAJETÓRIA DE PESQUISA SOCIAL EM RETROSPECTIVA (2007-2016)

As experiências de pesquisa que nutrem a elaboração das pistas epistêmicas, escopo principal deste texto, emergiram de uma trajetória de pesquisa localizada naquele contexto socio-histórico específico. Seu ponto de partida está em 2007, quando o autor deste ensaio fixou morada em Caruaru e deu início a investigações direcionadas ao modo como as pessoas se projetam e conformam negócios característicos à condição periférica daquela região.

Inicialmente pareceu razoável direcionar questões à condição de pessoas que, portadoras daquela história coletiva local, lá viviam e atuavam como feirantes-proprietários de pequenos negócios de feira. Muitas delas ainda hoje possuem nesses negócios sua principal atividade ocupacional, fonte de renda e modo de inserção numa dinâmica econômica e sociocultural de modernização truncada. Para avançar nesse sentido, recorreu e passou a fazer uso da sociologia bourdieusiana e empreendeu inicialmente duas pesquisas em solo agrestino. A primeira delas teve como foco a condição de pessoas que lá viviam e atuavam como proprietários de pequenos negócios de feira. Mesmo que a atividade não seja incomum, tomou proporções muito particulares na urbanização, na constituição do tecido social, enfim, no habitus dos caruaruenses e agrestinos (Sá, 2018aSá, M. (2018a). Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste. Recife, PE: Editora Massangana-Fundaj. Recuperado de https://www.fundaj.gov.br/images/stories/editora/livros/filhos_das_feiras_versao_portalpdf.pdf
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).

Num primeiro período (2007-2010), investigações foram levadas adiante a partir de duas questões: Quem são os feirantes de Caruaru? Como levam adiante seus negócios? Recorreu-se a diversas técnicas (observações etnográficas, conversas, survey, entrevistas etc.) para caracterizar o conjunto de disposições de proprietários de pequenos negócios de feira, bem como o modo como as demandas do processo de modernização passavam a se fazer também presentes até mesmo em ambiente de negócios como aquele (Sá, 2013bSá, M. (2013b). Feirantes: Possíveis contribuições. In M. Sá et al. (Orgs.), Trabalho: Questões no Brasil e no Agreste pernambucano (pp. 101-117). Recife, PE: EdUFPE., 2018aSá, M. (2018a). Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste. Recife, PE: Editora Massangana-Fundaj. Recuperado de https://www.fundaj.gov.br/images/stories/editora/livros/filhos_das_feiras_versao_portalpdf.pdf
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, 2018bSá, M. (2018b). Feirantes: Quem são e como administram seus negócios (2ª ed.). Recife, PE: Editora UFPE.).

Paralelamente a essa, seguiu-se outra investigação de caráter exploratório sobre os modos de pensar, agir e sentir do homem de negócios contemporâneo. Por meio de uma série de iniciativas articuladas, chegou-se a uma análise preliminar, ao final do estudo, que apontou para três perfis de executivos e empresários recorrentes na região: o formado para os negócios, o ascendente social por meio dos negócios e o herdeiro da tradição do comércio (Sá, 2010Sá, M. (2010). O homem de negócios contemporâneo. Recife, PE: Editora UFPE., 2013aSá, M. (2013a). O homem de negócios contemporâneo: Três perfis em construção. In M. Sá et al. (Orgs.), Trabalho: Questões no Brasil e no Agreste pernambucano (pp. 65-86). Recife, PE: Editora UFPE.). Dessas duas experiências, surgiram dúvidas que foram problematizadas em termos metodológicos e epistêmicos, o que permitiu sedimentar algumas orientações, premissas e entendimentos de partida para a sistematização das pistas que constituem a seção seguinte (Sá & Mattos, 2016Sá, M. G., & de Mattos, P. L. C. L. (2016). De pequenos negócios de feira à metodologia científica: Dúvidas herdadas de experiências de pesquisa. Farol-Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 3(7), 628-669. doi: 10.25113/farol.v3i7.2528
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).

Ao longo dos últimos anos (2011-2016), a trajetória investigativa aqui resgatada voltou-se para a condição de personagens específicos entre os diversos proprietários que atuam no universo dos negócios. Em razão da proeminência que a atividade de confecções tomou no âmbito local, bem como da necessidade de delimitar o campo empírico nesses termos, o foco foi direcionado para os proprietários de negócios de produção e comercialização de confecções no Agreste pernambucano. Os resultados dessa última pesquisa foram apresentados numa tese de Sociologia que se propôs a compreender de que modo aquelas pessoas e seus negócios evoluíram a partir de uma história coletiva local comum, compartilhada por meio das feiras de rua e da dimensão que tal história tomou na dinâmica regional, e como hoje constituem um campo de negócios específico (Sá, 2015aSá, M. (2015a). Os filhos das feiras e o campo de negócios agreste (Tese de doutorado). Recuperado de http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/35680
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, 2017Sá, M. (2017). No Agreste com Bourdieu (2007-2016): Pistas para pesquisa sobre gente e negócios em contexto periférico. IV Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da Administração, Florianópolis, SC. Recuperado de http://coloquioepistemologia.com.br/site/wp-content/uploads/2017/04/ADE0549.pdf
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).

Se nos dois primeiros estudos são enfatizados os reflexos impostos pelo processo de modernização nos personagens investigados, no último destaca-se a história coletiva local incorporada nos indivíduos e o modo como isso também é marcante na configuração de um mercado periférico. Também nesse último acredita-se ter avançado na compreensão e no uso mais reflexivo da epistemologia bourdieusiana ao articulá-la com os impactos da filosofia do segundo Wittgenstein e das novas bases de racionalidade e argumentação a partir da obra de Habermas. Em síntese, foi principalmente a partir (a) dos avanços epistêmicos promovidos em função das dúvidas herdadas dos primeiros anos da trajetória de pesquisa aqui recuperada e (b) dessa última experiência, com incrementos teórico-epistêmicos em sua abordagem, no sentido de alcançar maior esclarecimento prático-linguístico, que a seção seguinte pôde ser elaborada.

PISTAS EPISTÊMICAS PARA A PESQUISA SOBRE GENTE E NEGÓCIOS EM CONTEXTO PERIFÉRICO

As pistas que se seguem são tentativas de sintetizar alguns aprendizados e convicções que foram se consolidando, progressivamente, ao longo daquela trajetória-prática de pesquisa com reflexividade epistêmica. Cada uma delas decorre de demandas oriundas dos desafios enfrentados por um tipo de prática construtivista na qual se entende que campo e pesquisador são singulares, constituem uma relação nesses termos, e, na medida em que se enfrentam novas situações, abordagens alternativas para a produção de conhecimento sob a medida local precisam ser (re)articuladas. É válido ainda registrar que os direcionamentos seguintes foram, também progressivamente, incorporados, praticados e somente agora, a posteriori, sistematizados nos termos que se seguem.

Primeira pista: elaborar progressivamente um entendimento apropriado daquele contexto como periférico (numa “rota de fuga” de dois extremismos, o totalitarismo do universal e o fundamentalismo local)

Um contexto particular como o agrestino precisa ser compreendido de modo devido, ou seja, realçando seus traços próprios, porém sem perder a noção de que pode ser comparado com outros. É justamente isso que pode propiciar a qualificação de sua condição como periférica. Por um lado, inserido na trama da “globalização”, por outro, com especificidades históricas ainda significativas na dinâmica da vida (cultura, sociedade e economia) e do trabalho (organização, relações e ocupações) de sua população.

Ideias como as de centro e periferia são aqui apropriadas e ressignificadas como noções, assim desempenhando o papel de situar relacionalmente na geopolítica mundial e nacional, e no simbolismo a isso associado, a importância do investimento na elaboração de entendimento sobre o local. Ou seja, não assumem significados próprios, essencialistas, mais sim são instrumentos de apoio para entender que o lócus de tais experiências investigativas, e das pistas aqui apresentadas, se constitui em referência a outros que servem de parâmetro ao julgamento do que é tomado como “mais desenvolvido” ou “legítimo” - por exemplo, Caruaru pode ser vista como periferia em relação a Recife, que pode ser vista do mesmo modo em relação a São Paulo. Em síntese, são os contextos vistos como centrais que oferecem os padrões pelos quais as periferias tendem a ser avaliadas.

Em particular no que se refere ao lugar do Agreste pernambucano em tal quadro, recupera-se que:

Em termos gerais, penso ser razoável dizer sobre tal parcela do Agreste que: (a) a trajetória das últimas décadas da microrregião se constitui por meio de um processo de modernização truncada, com diversas dinâmicas características das margens do capitalismo contemporâneo que, numa perspectiva relacional, pode ser visto como um processo periférico; (b) são marcantes as coexistências e associações às ideias de “moderno”, “tradicional” e hibridismos ainda hoje; (c) o tipo de “conhecimento” mais valorizado era (e ainda é) o que pode ser associado à ideia de “capital social” (Bourdieu), ou seja, conhecer pessoas e poder recorrer a elas quando necessário (é comum que a expressão “fulano tem conhecimento” seja usada nesse sentido, falar em “conhecimento científico” ainda não tem, localmente, significado e valoração razoavelmente definidos); (d) as relações sociais se apresentam com fortes traços de pessoalismo, patriarcalismo e informalidade, com pouca observância e reconhecimento de instâncias e relacionamentos institucionais. (Sá, 2019Sá, M. (2019). Em busca do impacto perdido? Experiências significativas com sentido local em pesquisa, ensino e extensão. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 6(15), 365-399. doi: 10.25113/farol.v6i15.5441
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, pp. 370-371)

Um entendimento apropriado de tal contexto não passa por dois extremismos que ainda insistem em persistir entre as narrativas que disputam legitimidade também científica. Numa ponta de um continuum imaginário, algo que pode ser denominado “totalitarismo do universal”. Neste são levadas ao extremo ideias generalizantes e generalizáveis, tais como as abordagens acerca do empreendedorismo (ou da ideologia “empreendedora”). Talvez em reação a esse extremismo totalizante, ganhou força outro, o “fundamentalismo local”. Neste dimensiona-se o local como algo tão único e diferente de tudo mais e de todos os demais que não pode ser comparado com outros contextos mundo afora. O regionalismo atávico e o bairrismo teórico são modos que podem servir para ilustrar essa outra atitude extrema.

Nos últimos anos, foi consolidada no autor deste texto, no sentido de construir o Agreste como um contexto periférico, a necessidade de uma rota de fuga desses dois extremismos. Chamá-lo assim é insinuar, por um lado, seu lugar geopolítico e cultural quando comparado com as principais regiões, cidades e atividades do Brasil e do mundo. Afinal, essas ocupam posição central não somente na economia, mas também nos padrões de consumo, estilos de vida, modos de pensar e compreender-se no mundo, e mesmo nos sonhos que se constituem em referência ao julgamento do que lhe é exterior, tomado como mais moderno, e que opera violências simbólicas muito íntimas na vida fora dos centros.

Com seus traços particulares e típicos, os negócios não deixam de ser também reflexo do contexto no qual estão inseridos. Se, por um lado, nestes podem ser vistas fortes singularidades, por outro, não deixam de apresentar similaridades a outros também situados na periferia do mundo-mercado contemporâneo. Vê-los assim pode ser útil em dois sentidos. No primeiro, para não repetir acriticamente um tipo de fé-prática de atavismo cultural que canta uma feira de rua como um patrimônio local sui generis, algo particular e distintivo à região - quando uma olhadela mundo afora nos permite encontrar feiras de rua que aconteceram por séculos e ainda hoje acontecem em pleno novo milênio. No segundo, para não simplesmente se esforçar em aceitar os ditames universalizados do mercado global. Se, por um lado, a história local não deve ser sobrevalorizada nos termos de se tornar fonte de extremismos identitários sem argumentos razoáveis, por outro, também não deve ser desvalorizada por olhares generalizantes que trazem explicações previamente articuladas para fenômenos localizados (Sá, 2018aSá, M. (2018a). Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste. Recife, PE: Editora Massangana-Fundaj. Recuperado de https://www.fundaj.gov.br/images/stories/editora/livros/filhos_das_feiras_versao_portalpdf.pdf
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).

Para pesquisar fenômenos sociais em ambiências periféricas, acredita-se ser necessário considerar tanto os traços da história coletiva local como os da modernização mundial, em particular no modo como ambos se misturam e se reconfiguram nas formas e dinâmicas produtivas e comerciais agrestinas. Não há fórmula analítica predefinida para fenômenos que emergem em tal ambiência, entretanto alguns exemplos de tais misturas e reconfigurações podem ser recuperados para explicitar tais desafios analíticos. Parte significativa das máquinas utilizadas na confecção é importada (da China e do Japão, por exemplo), mas é utilizada com improviso (como no caso do uso da tampa de garrafas tipo PET para marcar as calças jeans durante o processo de lavagem industrial), os usuários locais colocam em prática seu empirismo criativo para superar suas limitações ao domínio e uso pleno dos recursos de tais tipos de equipamentos. O hibridismo global-local também pode ser observado na produção clandestina de marcas mundiais (Lacoste, Nike etc.) ou na “modinha”, um tipo de produção específica que reproduz rapidamente (na semana seguinte) as tendências da moda vestidas pelos personagens que se destacam nas telenovelas nacionais. Tais exemplos indicam a necessidade de uma analítica sob medida local, uma vez que nesse escopo não se tem como separar os efeitos de tal simbiose.

Em síntese, por meio da construção do periférico como uma noção relacional, essa pista pode direcionar maior atenção para a inserção de um contexto, como o Agreste pernambucano, na trama do mundo global neste novo milênio, porém ao seu modo, em sua condição geopolítica. Isso pode permitir aprender a caracterizar do melhor modo possível - também por meio de comparativos com outros contextos mais ou menos semelhantes a ele, bem como para além da economia, ou seja, também em termos socioculturais, políticos e históricos - um contexto de negócios fincado nas margens do mercado “global”. A seção “Traços sócio-históricos do que aqui se chama de Agreste” também serve para ilustrar nuances da trajetória histórica, do presente da região e sugestionar que sua inserção na trama global configura um desafio à pesquisa social.

Segunda pista: avançar na construção de modo de produção científico sob medida local (neste caso, a partir do legado da epistemologia bourdieusiana)

Nesse sentido, parte-se de premissa anteriormente indicada - “entende-se que a prática da ciência social em contexto agreste é um produto histórico-cultural condicionado pelas circunstâncias e interações a partir das quais seu resultado é gerado; que a imersão social é condição necessária [...] à concepção de abordagens epistêmicas apropriadas” (Sá & Mattos, 2016Sá, M. G., & de Mattos, P. L. C. L. (2016). De pequenos negócios de feira à metodologia científica: Dúvidas herdadas de experiências de pesquisa. Farol-Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 3(7), 628-669. doi: 10.25113/farol.v3i7.2528
https://doi.org/10.25113/farol.v3i7.2528...
, p. 629) - no sentido da construção de um modo de produção científico sob medida local, que toma como referência e se inspira fortemente no legado da epistemologia bourdieusiana.

Se Pierre Bourdieu alcançou status diferenciado nas Ciências Sociais contemporâneas, isso também se deveu a sua habilidade no manuseio dos diversos autores e correntes dos quais se serviu. Em particular ao que se quer tratar aqui, a literatura especializada destaca a marcante inovação promovida por seu modus operandi (Baranger, 2012Baranger, D. (2012). Epistemología y metodologia en la obra de Pierre Bourdieu (2ª ed., 1ª. electrónica). Recuperado de http://sociologiac.net/2012/12/09/descarga-pierre-bourdieu-epistemologia-metodologia-denis-baranger
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; Brubaker, 1993Brubaker, R. (1993). Social theory as habitus. In C. Calhoun et al. (Orgs.), Bourdieu: Critical perspectives (pp. 212-234). Chicago, USA: University of Chicago Press.; Wacquant, 2006Wacquant, L. (2006). Seguindo Bourdieu no campo. Revista Sociologia e Política, (26), 13-29. doi: 10.1590/S0104-44782006000100003
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), ou seja, por seu modo de produzir conhecimento sobre o social - algo que foi mais ou menos compartilhado com seus seguidores e disseminado por meio de publicações e cursos. No entanto, o que há de especial e útil nesse legado para quem faz pesquisa em contextos (e sobre fenômenos) periféricos? Permite tal modus operandi reelaborações sob medida de localismos e da experiência de investigação científica geopoliticamente situados?

A relevância e a ênfase que a epistemologia bourdieusiana atribui à construção de um objeto de estudo é uma das suas mais distintivas contribuições nesse campo. Em sua perspectiva, tal processo não se dá por “ato fundacional” ou “de única vez”, e sim por aproximações sucessivas entre o pesquisador e o que se quer estudar (Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). Poder simbólico. Portugal/Brasil: Difel/Bertrand.; Sá, 2015bSá, M. (2015b). Construtivismo bourdieusiano como linguagem: Uma interpretação pragmática. Configurações, (16), 115-128. Recuperado de http://configuracoes.revues.org/2881
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, 2018aSá, M. (2018a). Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste. Recife, PE: Editora Massangana-Fundaj. Recuperado de https://www.fundaj.gov.br/images/stories/editora/livros/filhos_das_feiras_versao_portalpdf.pdf
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).

O que se constrói como objeto de estudo, que se pretende dizer científico, é revestido pelo contexto sócio-histórico, cultural, econômico e político no qual o fenômeno, ao qual se refere o tema em estudo (criado pelo pesquisador), se dá. Assim, não é razoável repetir fórmulas feitas em e para outras problematizações, mas sim avançar, a partir do que há de inspirador e fértil no saber prático da tradição científica, no sentido da construção de modus operandi próprio. É justamente aqui que entra a atenção à medida da contingência localizada, uma vez que “a prática é sempre subestimada e subanalisada, ao passo que, para a compreender, é necessária muita competência teórica, muito mais, paradoxalmente, do que para compreender uma teoria” (Bourdieu, 2014Bourdieu, P. (2014). Por uma sociologia da ciência. Lisboa, Portugal: Edições 70., p. 60).

É interessante observar que até mesmo sua metalinguagem teórica (os conceitos-noções que criou: habitus, campo, espaço social e capital simbólico, por exemplo) precisa ser utilizada pelo pesquisador, que a isso se propõe, como instrumentos, como um modo de organizar e dar sentido à prática de pesquisa. Essa seria a função da teoria em sua epistemologia (Bourdieu & Wacquant, 1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago, USA: The University of Chicago Press.; Robbins, 2000Robbins, D. (2004). The socio-genesis of the thinking instruments. In D. Robbins, Bourdieu and culture (pp. 25-41). London, UK: Sage.) e, consequentemente, na de quem desejar construir e elaborar argumentos sobre novos objetos a partir dela. Como salientou Brubaker (1993)Brubaker, R. (1993). Social theory as habitus. In C. Calhoun et al. (Orgs.), Bourdieu: Critical perspectives (pp. 212-234). Chicago, USA: University of Chicago Press., a teoria social de Bourdieu precisa ser observada como um habitus, um modo específico de elaborar estudos rigorosos e argumentação própria sobre fenômenos sociais, afinal “o verdadeiro princípio das práticas científicas é um sistema de disposições base [...] Este habitus assume formas específicas segundo as especialidades” (Bourdieu, 2014Bourdieu, P. (2014). Por uma sociologia da ciência. Lisboa, Portugal: Edições 70., p. 63).

O estudo mais aprofundado da epistemologia bourdieusiana (Baranguer, 2012; Bourdieu & Wacquant, 1992Bourdieu, P., & Wacquant, L. (1992). An invitation to reflexive sociology. Chicago, USA: The University of Chicago Press.) permite compreender que ela própria nos impele a pensar com e contra suas bases, ou seja, há nela uma genética construtivista. Os instrumentos teóricos e epistemológicos, desenvolvidos nesta abordagem original, podem ser ressignificados e assim servir de inspiração para outras criações em função de demandas por estenografias conceituais próprias, ou seja, pela elaboração de termos capazes de servir de bússola teórico-epistêmica ao trabalho localizado de pesquisa empírica (Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). Poder simbólico. Portugal/Brasil: Difel/Bertrand.; Sá, 2015bSá, M. (2015b). Construtivismo bourdieusiano como linguagem: Uma interpretação pragmática. Configurações, (16), 115-128. Recuperado de http://configuracoes.revues.org/2881
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, 2018aSá, M. (2018a). Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste. Recife, PE: Editora Massangana-Fundaj. Recuperado de https://www.fundaj.gov.br/images/stories/editora/livros/filhos_das_feiras_versao_portalpdf.pdf
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).

Duas soluções estenográficas podem servir para ilustrar o que se intenciona destacar com essa pista. Em função da necessidade de designar a matriz cultural do comércio de feira de rua socialmente incorporada por parte significativa da população agrestina, foi empreendida ressignificação de uma noção bourdieusiana, e “habitus feirante” foi o termo que passou a ser utilizado nesse sentido, possibilitando a caracterização de aspectos sociais incorporados por indivíduos que foram socializados em meio a tal tipo de atividade comercial.

Perante os modos de incorporação e desincorporação de disposições associadas ao referido habitus feirante, algo que pode ser observado ao longo da trajetória histórica agrestina das últimas décadas, emergiu a necessidade de um termo capaz de realçar as variações intra e interindividuais (Lahire, 2006Lahire, B. (2006). A cultura dos indivíduos. Porto Alegre, RS: Artmed.) daquela herança coletiva local, ou seja, um termo que permitisse orientar a pesquisa não somente das disposições herdadas, mas também das mudanças que tal habitus vem sofrendo em pleno século 21. O termo “filhos das feiras” foi a solução encontrada tanto para expressar o vínculo histórico de um dos públicos pesquisados (proprietários de negócios de produção e comercialização de confecções), com a referida matriz cultural e seu “habitus feirante”, quanto para apoiar a caracterização de distinções e similiaridades objetivas e simbólicas mais recentes entre alguns de seus perfis selecionados na investigação (Sá, 2015aSá, M. (2015a). Os filhos das feiras e o campo de negócios agreste (Tese de doutorado). Recuperado de http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/35680
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, 2018aSá, M. (2018a). Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste. Recife, PE: Editora Massangana-Fundaj. Recuperado de https://www.fundaj.gov.br/images/stories/editora/livros/filhos_das_feiras_versao_portalpdf.pdf
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).

Ambos os instrumentos teórico-epistêmicos não apresentam valor substantivo circunscrito numa definição conceitual, por exemplo, mas sim a utilidade prática de nortear o trabalho de pesquisa naquele campo empírico. Se, por um lado, a epistemologia bourdieusiana pode suportar a pesquisa social em contexto periférico, por outro, os fenômenos reelaborados como objetos-temas de pesquisa demandam linguagem própria desenvolvida por meio de um modus operandi progressivamente incorporado como habitus científico, entendendo que o opus operatum do seu trabalho é uma construção argumentativa indissociável de suas condições de produção, ou seja, do contexto e de um entendimento progressivo deste, justamente como indicado na pista anterior. Além disso, acredita-se que tais esclarecimentos podem ser devidamente nutridos pelas contribuições que se procura explicitar nas pistas seguintes mais direcionadas às questões de linguagem.

Terceira pista: esclarecer-se que linguagem é ação ordinária também em pesquisa social e que é preciso, além da científica, investir-se no conhecimento da linguagem dos pesquisados

Tanto esta como a próxima pista já haviam sido insinuadas anteriormente (Sá & Mattos, 2016Sá, M. G., & de Mattos, P. L. C. L. (2016). De pequenos negócios de feira à metodologia científica: Dúvidas herdadas de experiências de pesquisa. Farol-Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 3(7), 628-669. doi: 10.25113/farol.v3i7.2528
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), entretanto aqui se propõe avançar na elaboração e sistematização de ambas com novos incrementos. Nesta, incorporando a lição do “jogo de linguagem” do segundo Wittgenstein, e, na próxima, os avanços na racionalidade e argumentação científica, a partir de Habermas.

Como melhor saber a significação do que é dito por gente que vive e negocia num contexto como o agrestino? Como fazer, também por lá, pesquisa social linguisticamente esclarecida? Foi por voltar-se contra uma concepção representacionista da linguagem, à qual ele mesmo havia aderido anteriormente (em Tractatus...), que Wittgenstein (2011)Wittgenstein, L. (2011). Tratado lógico-filosófico e investigações filosóficas (5ª ed., M. S. Lourenço, Trad. e prefácio). Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian. (Obra original publicada em 1921 e 1953) abandonou a busca pelo melhor modo de dizer o que são as coisas e se voltou para o entendimento dos significados que os termos adquirem nas interações pragmáticas historicamente situadas, ou seja, em “formas de vida” específicas (em Investigações filosóficas).

A metáfora que ele mesmo criou para se esclarecer sobre tais interações, a ideia de “jogos de linguagem”, é um recurso que também tem potencial de esclarecimento tanto para o próprio pesquisador, sobre a linguagem que constitui em sua prática ordinária de pesquisa, quanto acerca da linguagem dos pesquisados, que reelaboram jogos próprios ao contexto no qual se encontram imersos.

Wittgenstein (2011)Wittgenstein, L. (2011). Tratado lógico-filosófico e investigações filosóficas (5ª ed., M. S. Lourenço, Trad. e prefácio). Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian. (Obra original publicada em 1921 e 1953) apontou que os jogos de linguagem mostram “como a linguagem funciona”, mostram também que, mesmo seguindo as mesmas regras, ninguém joga do mesmo modo e que “é jogando o jogo que aprendemos, de fato, suas regras”. A ideia se apresenta como uma forma pertinente de se compreenderem os limites da linguagem nela mesma, no modo metafórico e contingente como são comunicadas impressões (indissociáveis do repertório linguístico de cada um e do modo como podem ser elaboradas a partir dele). Nessa perspectiva, como emitir definições prévias de significado de um termo ou assertiva, se o que é passível de ser observado é cada uso circunstancial? Tais usos, mesmo que partindo de regras comuns nas quais se insere a interação, são únicos e precisam ser compreendidos neles próprios.

As performances de comunicação precisam de um contexto no qual se dão e, nessa situação, adquirem significados. Sempre estamos elaborando imagens do que vimos, são os parentescos, as semelhanças entre “famílias de conceitos”, o que nos permite estabelecer associações entre os termos utilizados em jogos de linguagem distintos.

Tal reflexão evidencia a necessidade de uma preparação epistêmica para a prática de pesquisa social nos mais diversos contextos nos quais possa acontecer. Problematizar o próprio modo como se concebe e se denomina o que se estuda parece ser um desafio que ainda hoje prevalece na pesquisa social. Ao avançar nesse rumo, o como se fala sobre o que se estuda passa a estar em questão.

Em contexto periférico como o agrestino, esse esclarecimento aponta, por um lado, para a necessidade de aprender, conviver e analisar a linguagem dos pesquisados que constituem e são constituídos por tal matriz cultural, e, por outro, que a geração de linguagem pretensamente científica a partir da imersão local é também ordinária à ação daquele que lá se insere. O pesquisador vê-se, então, como um jogador duplo; de um lado, joga com abstrações e esforços no sentido da construção de uma argumentação, e, do outro, com os modos de dizer as coisas, com os termos e as expressões nativas que aprendeu. Afinal, para Oliveira (2006)Oliveira, M. (2006). Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea (3ª ed.). São Paulo, SP: Loyola., “é impossível determinar a significação das palavras sem uma consideração do contexto socioprático em que são usadas” (p. 131).

O que foi até aqui exposto nessa pista é o desenvolvimento de uma segunda premissa anteriormente apresentada em Sá e Mattos (2016)Sá, M. G., & de Mattos, P. L. C. L. (2016). De pequenos negócios de feira à metodologia científica: Dúvidas herdadas de experiências de pesquisa. Farol-Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 3(7), 628-669. doi: 10.25113/farol.v3i7.2528
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: “acredita-se que a concepção clássica de linguagem - expressão de algo interior (pensamento etc.) - tem que ir cedendo lugar a uma compreensão pragmática: ela é uma forma de ação, sempre simbólica. Não se pode desvincular linguagem e relação, ou interrelação, porque toda linguagem é uma forma de relação social” (p. 631). Em decorrência disso, as possibilidades de compreensão do dito (e dos seus implícitos) são dependentes do nível de imersão e de autoinvestimento que o pesquisador faz naquele contexto prático e histórico, ou seja, na ampliação de entendimento dos significados objetivos e simbólicos da linguagem-ação localizada.

A título de ilustração da utilidade dessa pista, a seguir, são recuperadas duas experiências que explicitam como tal compreensão da linguagem dos pesquisados se integra à interpretação e produção textual em Ciência Social.

Um feirante, entrevistado na primeira experiência de pesquisa mencionada anteriormente, costumava repetir que era “ateimoso demais”. Escutando suas histórias e observando sua ação cotidiana (por meio de técnicas inspiradas na etnografia), foi possível construir uma interpretação sobre o que estaria por trás de tal expressão. Por meio de investimento no aprofundamento do entendimento da linguagem e do contexto do entrevistado, foi possível argumentar que aquilo por ele dito como “ateimosia” expressava sua inadaptação sociocultural ao contexto paulistano, o que não acontecia em seu contexto de ação atual na feira, por exemplo (Sá, 2018bSá, M. (2018b). Feirantes: Quem são e como administram seus negócios (2ª ed.). Recife, PE: Editora UFPE.).

Já ao falar (numa entrevista semiestruturada) das maiores dificuldades que havia atravessado, um proprietário de negócio de confecções entrevistado na experiência mais recente (também exposta na Seção 2) usou o termo “trincar” com a intenção de diferenciar as situações que viveu da “quebra do negócio”. Segundo ele, já havia “trincado” várias vezes, porém nunca tinha quebrado. Pela natureza de o negócio de confecções no Agreste ser informal e muito se negociar com cheques pré-datados, foi recorrente ouvir relatos de proprietários que quebraram algumas vezes (muitas delas em função de cheques sem fundo emitidos por compradores de outros estados).

Em síntese, com esses dois exemplos se procurou destacar que algumas expressões mais emblemáticas somente passam a fazer sentido ao pesquisador-ouvinte após investimentos de si no contexto dos entrevistados-interagentes. É o sentido de tais ditos e implícitos que precisa ser articulado na “peça de retórica argumentativa” (Mattos, 2002Mattos, P. L. C. L. (2002). A estruturação de dissertações e teses em administração: Caracterização teórica e sugestões práticas. RAC - Revista de Administração Contemporânea, 6(3), 175-219. doi: 10.1590/S1415-65552002000300010
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) a ser submetida ao crivo dos pares.

Quarta pista: sustentar a apresentação de seus resultados com retórica argumentativa bem justificada, perante os pares e perante o contexto, de modo a alcançar a legitimação em ambas as esferas

A quem recorrer e em que se apoiar para a elaboração de retórica argumentativa duplamente justificada, ou seja, com pretensão de reconhecimento como válida perante os pares e o contexto? Por quais caminhos seria possível elaborar argumento razoável capaz de tanto ser considerado conhecimento em Ciências Sociais quanto junto ao público sobre o qual versa?

Em Pensamento pós-metafísico, Habermas (1990)Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro. delineia quatro principais caminhos que percorre ao longo do livro e, quiçá, ao longo dos movimentos epistemológicos de seu pensamento. Seus “motivos modernos” podem ser tomados como posicionamentos elementares à constituição de pensamento social contemporâneo. Este precisaria seguir (1) a trilha da questão perseguida pelo Círculo de Viena (a busca por critérios para a validade das proposições pretensamente científicas, em oposição ao pensamento metafísico); (2) o reposicionamento do que se acreditava ser “conhecimento” científico como “discurso”, produto linguístico, a partir do segundo Wittgenstein; (3) a revisão da concepção de razão centrada no indivíduo-sujeito (que se relaciona com objetos de estudo) para a de uma razão comunicativa, centrada na intersubjetividade constituída e constitutiva do tecido social e de suas relações sujeito-sujeito; (4) a primazia do mundo prático, de sua dinâmica, de suas necessidades e questões para a elaboração de teoria, uma inversão na lógica tradicional adotada na pesquisa social, em particular, na Sociologia - onde “a boa teoria vem primeiro” (Habermas, 1990Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.).

De modo geral, a teoria de Habermas aponta para uma demanda comum em ciência: de que sejam apresentados argumentos convincentes que satisfaçam um conjunto complexo de padrões lógicos, dialéticos e retóricos de avaliação, obviamente, dentro de um contexto social-institucional de disputa, padrões de conduta e reconhecimento (Rehg, 2009Regh, W. (2009). Cogent science in context: The Science Wars, argumentation theory, and Habermas. Cambridge: The MIT Press.). “Assim, a questão é: que argumentos devemos considerar como indicadores convincentes da verdade de suas conclusões? Em resposta, a teoria de Habermas diz: aqueles argumentos que nos persuadem da maneira correta, ou seja, em virtude de méritos lógicos com credenciais dialógicas” (Rehg, 2009Regh, W. (2009). Cogent science in context: The Science Wars, argumentation theory, and Habermas. Cambridge: The MIT Press., p. 151).

No âmbito da virada linguística, Rehg (2009, p. 21-30)Regh, W. (2009). Cogent science in context: The Science Wars, argumentation theory, and Habermas. Cambridge: The MIT Press. trata do que denomina “virada retórica”, da sua repercussão na ruptura de fronteiras disciplinares, da emergência de uma “cooperação interdisciplinar” e mesmo daquilo que chama de “fertilização cruzada” entre disciplinas distintas por meio de conceitos de fronteira, tais como discurso, retórica e texto que passam a ser utilizados, transitando livremente, entre áreas como Estudos Literários, Sociologia, Linguística, História, Filosofia e Comunicação. Em termos gerais, propõe-se “entender ciência como um processo argumentativo”, sendo essa argumentação compreendida não como uma demonstração dedutiva, mas sim como uma construção com o propósito de convencer uma audiência. É justamente a partir daí que se precisa ir além da concepção de argumento “formal” (premissas-análises-conclusões), e encarar a argumentação como um tipo de interação social.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (1992)Perelman, C., & Olbrechts-Tyteca, L. (1992). Traité de l’argumentation: La nouvelle rhétorique. Bruxelles, Belgique: Université de Bruxelles. apresentam uma proposta de ruptura com a concepção cartesiana de razão/raciocínio (que trata da razão como algo inerente a um sistema de pensamento “mais geométrico”) a partir do resgate da retórica e da dialética grega. É nesse sentido que propõem uma teoria que se volta para a estrutura da argumentação e tem como objetivo “o estudo de técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que foram apresentadas ao consentimento deles” (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 1992Perelman, C., & Olbrechts-Tyteca, L. (1992). Traité de l’argumentation: La nouvelle rhétorique. Bruxelles, Belgique: Université de Bruxelles., pp. 4-5).

A aceitação da validez da filosofia pós-virada também impõe ao cientista social uma atenção particular para a necessária adaptação do orador ao auditório, afinal “é em função de um auditório que se desenvolve toda argumentação” (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 1992Perelman, C., & Olbrechts-Tyteca, L. (1992). Traité de l’argumentation: La nouvelle rhétorique. Bruxelles, Belgique: Université de Bruxelles., p. 7). Ou seja, os resultados de uma pesquisa precisam ter suas apresentações adaptadas ao público (se “geral”, se estudantes, se uma banca examinadora ou mesmo os pares num evento científico). A adaptação é dever do orador e não da plateia com a qual se deseja ou necessita comunicar. Se, por um lado, as mesmas competências e técnicas argumentativas podem ser encontradas/usadas em situações das mais distintas, por outro, cabe ao orador/escritor discernir e fazer o uso apropriado daquelas que podem levá-lo ao êxito comunicativo em cada tipo de interação ou auditório.

Para além do reconhecimento como válido numa comunidade científica específica, argumentos elaborados com tal pretensão precisam também ser expostos ao crivo do público em geral do contexto no (e para o) qual foi pretensamente elaborado aquilo que se chama de conhecimento científico.

Apenas parte dessa pista pode ser ilustrada pelas experiências vividas ao longo do período aqui delimitado, justamente o que se refere à justificação argumentativa junto aos pares, algo que se atesta por meio dos trabalhos anteriores citados ao longo deste ensaio. Na segunda parte, referente à construção argumentativa direcionada aos personagens pesquisados e ao contexto local, apenas as experiências mais recentes (pós-2016) podem vir a exemplificar outra premissa assim formulada anteriormente: “para além da aprovação da qualidade objetivada no trabalho científico apresentado aos pares, é preciso que este seja reelaborado em linguagem adequada e viável para, deste modo, ser apresentado ao público local potencialmente interessado por seus resultados” (Sá & Mattos, 2016Sá, M. G., & de Mattos, P. L. C. L. (2016). De pequenos negócios de feira à metodologia científica: Dúvidas herdadas de experiências de pesquisa. Farol-Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 3(7), 628-669. doi: 10.25113/farol.v3i7.2528
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, p. 632).

O que se intenciona com essa pista é abrir um horizonte retórico-argumentativo no sentido de expor, e assim colocar ao crivo do debate público local, o que se apresenta como resultado científico do trabalho de pesquisa. A tradução de argumentos e elaborações, com maior grau de sofisticação téorico-epistêmica-metodológica, para linguagem menos distante da corriqueira é o caminho que se tem trilhado a partir do entendimento do lugar da retórica e da audiência no que se apresenta como produto de pesquisa. Além dessas “novas vestes” necessárias para ser aceito e escutado no debate público num contexto periférico como esse, ao longo dos últimos anos, a atividade de pesquisa vem sendo progressivamente pensada e executada de modo integrado à extensão, no sentido de construir pistas para a participação no diálogo sobre os temas caros ao desenvolvimento da região.

Participações em associações sem fins lucrativos (de moradores, de classe ou que prestam serviços comunitários, por exemplo), bem como o envolvimento em assessorias a tais tipos de organizações, têm se mostrado alternativas viáveis para uma maior inserção na problemática dos novos temas de pesquisa abraçados, bem como um modo de melhor compreender (a) os públicos com os quais se quer interagrir, (b) como o argumento precisará ser formulado quando direcionado a ele e (c) quais caminhos e estratégias podem ser mais viáveis para sua exposição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As quatro pistas acima sistematizadas e apresentadas como principal objetivo deste ensaio apontam para (1) a necessidade de uma compreensão apropriada de um contexto como periférico, ou seja, constituído a partir e em função de sua posição geopolítica; (2) o avanço na construção de um modo de produção científico apropriado ao referido contexto; (3) a relevância de esclarecimentos sobre a linguagem como ação ordinária própria e dos pesquisados; e (4) a retórica argumentativa como meio para se alcançar a legitimidade em conformidade ao auditório ao qual se dirige.

Uma vez que a Ciência Social seja entendida como um campo no qual uma argumentação construída com bases empíricas e ressignificações teóricas localizadas também pode prevalecer, ou seja, como uma esfera dialógica na qual um discurso que se justifica com competência e é aceito como válido, se impondo ao ser confrontado com outros que não apresentaram a mesma performance capaz de alcançar tal reconhecimento intersubjetivo, também é preciso tomar como crucial tanto o entendimento do contexto quanto a preparação epistemológica do pesquisador atuante em Estudos Organizacionais nesse sentido. Se a atividade da pesquisa, em particular a social, é algo que cobra dos seus praticantes consciência e esclarecimento sobre o que está em jogo, sobre o que se acredita estar fazendo, é possível atuar maduramente sem agir como quem está num amplo processo que visa à construção de um argumento persuasivo e convincente?

Quando um pesquisador se propõe a trabalhar considerando o paradigma linguístico, a argumentação precisa ser reposicionada no plano performático-retórico da pragmática da linguagem. A compreensão e a interpretação precisam ser traduzidos num discurso com poder de convencimento do público ao qual se destina. A incorporação disso, além de projetar a construção argumentativa para o cerne da atividade de pesquisa social - afinal, a validade do que se elabora e se apresenta como resultados estará condicionada ao êxito da justificação discursiva, necessariamente suportada por rigoroso trabalho teórico-empírico, junto ao público que se quer impactar -, demanda continuada evolução do modus operandi e atenção à dimensão linguística do habitus científico posto em prática em contexto periférico. Ao menos foi nesse sentido que apontaram as pistas aqui reunidas.

Por fim, talvez ainda seja pertinente registrar que são diversos os desafios que se imaginam para levar adiante uma agenda de pesquisa com foco na condição de pessoas e negócios em contexto periférico. A título de ilustração, gostaria de destacar três. O primeiro seria a inserção em campo e a conquista da confiança dos seus informantes e entrevistados, afinal a maioria deles não tem clareza das motivações e dos desdobramentos daquela interação com alguém que se apresenta como um professor-pesquisador vinculado a uma universidade, ou seja, um primeiro desafio ao pesquisador é conseguir “se achegar” e se socializar (Sá & Mattos, 2016Sá, M. G., & de Mattos, P. L. C. L. (2016). De pequenos negócios de feira à metodologia científica: Dúvidas herdadas de experiências de pesquisa. Farol-Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 3(7), 628-669. doi: 10.25113/farol.v3i7.2528
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) num tecido social um tanto diferente de suas origens ou daqueles aos quais está mais habituado. O segundo seria desenvolver sua capacidade interpretativa em relação aos dramas individuais e às tramas coletivas nas quais tais proprietários e seus negócios se inserem, ou seja, articular sentidos e elaborar visões sobre essas duas dimensões do fenômeno em termos condizentes com sua condição periférica. E o terceiro pode ser explicitado na necessidade de investimentos na criação de instrumentos teóricos (noções) que possibilitem uma caracterização mais apropriada de tais tipos de negócios que, mesmo materializando uma forma de organização da atividade produtivo-comercial contemporânea, apresentam traços constitutivos diferenciados quando comparados com empresas capitalistas convencionais.

  • Avaliado pelo sistema double blind review.
  • Versão original

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Editado por

Editores Científicos convidados: Diego Szlechter, Leonardo Solarte Pazos, Juliana Cristina Teixeira, Jorge Feregrino, Pablo Isla Madariaga e Rafael Alcadipani

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2018
  • Aceito
    14 Out 2019
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