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O homem bidimensional: a antropologia do poder e o simbolismo em sociedades complexas

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Fernando C. Prestes Motta

O homem bidimensional: a antropologia do poder e o simbolismo em sociedades complexas

Por Abner Cohen. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978. 170 p.

Não sou antropólogo, mas vejo no livro de Abner Cohen a potencialidade que a análise antropológica contém para a análise de organizações. Em parte, o autor procura mostrar esse aspecto, deixando, entretanto, um campo muito grande para outros desenvolvimentos.

Seu interesse nas sociedades complexas contemporâneas leva-o naturalmente ao problema da organização. Percebe claramente a existência de grupos de interesses que se organizam formalmente nas sociedades industriais avançadas, mas percebe igualmente que muitos desses grupos organizam-se informalmente. Esta última articulação pode envolver amizade, parentesco, rituais e cerimônias.

O interesse fundamental de sua análise da articulação de grupos está na visão das relações sociais como caracterizadas por um aspecto que raramente lhes foge: o poder. Seria lícito dizer que o exercício, a distribuição e a manutenção do poder permeia um número muito grande de relações sociais e políticas na sociedade moderna.

Ocorre que as relações sociais são sustentadas por formas e gestos simbólicos. A sociedade fornece ao indivíduo, no desenvolvimento de sua identidade, os modelos carregados de conseqüências sociais. Isto explica por que as conseqüências do gesto simbólico estão freqüentemente fora das intenções dos que dele se utilizam.

Os símbolos que sustentam relações sociais, freqüentemente de poder, devem ser entendidos como objetos, atos, conceitos ou formas lingüísticas que impelem o homem à ação, detonando sentimentos e emoções. Os símbolos envolvem ambiguamente diversos significados. Por símbolo dominante podemos entender aquele que evoca sentimentos e emoções em alta intensidade, tem grande densidade de significados e impele fortemente os homens à ação. Em termos opostos está o signo que não tem densidade de significados, além de não precisar evocar emoções e sentimentos.

Os agrupamentos específicos, que se mantêm em grande medida graças ao desenvolvimento desses símbolos, tendem a associá-los no interior de ideologias ou visões dinâmicas de mundo. Nessas ideologias percebe-se a integração dos símbolos das relações interpessoais e daqueles dos rituais que dizem respeito aos problemas mais genéricos da existência humana. Tais símbolos reforçam-se mutuamente, expressando e ratificando a organização política dos grupos.

Não se pode afirmar que os padrões simbólicos de comportamento sejam exclusivos dos grupos informais. Na realidade, os grupos formalmente organizados também precisam deles em diversos momentos. Adicione-se ainda que tais grupos desenvolvem interações padronizadas que nada ou pouco têm a ver com sua estrutura formal, mas que constituem dados concretos da organização total e de seu funcionamento. Isto só vem fortalecer o papel do universo simbólico. Ainda assim, a importância dos grupos informais que permeiam as sociedades contemporâneas é central e ali a estratégia simbólica é um dado fundamental.

Evidentemente, um grupo, para agir, precisa de ação. Em suma, ele deve distinguir-se dos demais, deve recorrer a uma ou a diversas formas simbólicas para definir tal distinção. Sabe-se que em grupos primitivos a descendência constitui um elemento importante de diferenciação. Sua importância em sociedades muito móveis e amplas é minimizada. Mesmo assim, há muitos casos de adaptação. Não são estranhas ao mundo moderno, por exemplo, as linhagens que desenvolvem empresas econômicas. Bem mais importantes do que o princípio da descendência adaptada, porém, parecem ser crenças e práticas rituais, exclusivismo moral, estilo de vida, comunicação, tomada de decisões, autoridade e processo de liderança, como mecanismos ainda muito importantes no mundo contemporâneo.

No âmbito do Estado moderno, que detém o monopólio da violência legítima, os grupos de interesses não podem utilizar a coerção física para sustentar sua estrutura de autoridade. Precisam, portanto, manipular um poder normativo e simbólico para manter sua dominação. A autoridade se expressa hierarquicamente, envolvendo relações entre os superiores e inferiores, além de relações entre iguais. De forma geral, pelo menos na sociedade moderna, há ainda a garantir os mecanismos de mobilidade entre os diversos níveis. Não é fácil tornar a autoridade, assim configurada, um fenômeno aceito sem discussões. Geralmente, é preciso criar, realizar e perpetuar o mito da autoridade. Existe muito de cerimonial na manutenção da autoridade. Como afirma o autor, essa autoridade não é apenas refletida em cerimônias, mas é também nelas criada e recriada permanentemente.

Os grupos sociais que agem no mundo moderno usam e abusam das cerimônias de autoridade. Creio que concentrar-se, como faz Cohen, nos grupos informais é perder o melhor da festa. Tais grupos informais criam e recriam a autoridade, principalmente no âmbito de grandes organizações. Vitor Thompson analisou de forma original o que chamou de dramaturgia na organização. Ao que tudo indica, tal dramaturgia poderia ser analisada com muito mais profundidade utilizando-se a análise antropológica, caso seu foco de atenção fosse, por exemplo, a grande empresa. Entendo também que o autor se perde demais no enunciado de diferentes correntes de pensamento, que não auxiliam muito na compreensão do problema básico, a saber: as relações de poder e o universo simbólico que as fortalece e que as garante. Com um pouco mais de empenho, o autor poderia, se fosse esse seu interesse, delinear uma teoria antropológica das organizações modernas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1979
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