Acessibilidade / Reportar erro

Autonomia, a luta digna por uma vidaexistência comum e a subversão da figura do ajvalil em Chiapas, México

Autonomy, the dignified struggle for a common life-existence and the subversion of the figure of ajvalil in Chiapas, Mexico 1 1 Tradução por Daniel Ayala Contreras, doutorando do Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social, PPGAS-USP

resumo

Este ensaio aproxima-se das maneiras pelas quais as comunidades zapatistas Tseltal, Tsotsil, Tojolabal e Ch’ol no México teorizam o poder e exercem a política como parte de suas respectivas atividades cotidianas nos municípios autônomos do estado de Chiapas. Em particular, analisa dois conceitos em língua Tseltal. O primeiro, o de lekil kuxlejal, refere-se a uma vida-existência digna no comum, sustentada por meio do cuidado coletivo socionatural; o segundo conceito, o de ajvalil, refere-se à figura do patrão-governo, que condensa dispositivos de poder caracterizados pela permanência de estruturas de natureza colonial. Ambos os conceitos adquirem intensidades e tonalidades particulares quando entram em campos de disputa política, particularmente quando são mobilizados por comunidades zapatistas Tseltal, Tsotsil, Tojolabal e Ch’ol para dar sustento ao exercício da autonomia em seu território, assim como para questionar e nomear as estruturas de poder contra as quais lutam.

palavras-chave
Zapatismo; cosmopolítica; Epistemologias indígenas; lutas descoloniais; cuidados coletivos

abstract

This essay analyzes the ways in which the Zapatista Tseltal, Tsotsil, Tojolabal and Ch’ol communities in Mexico theorize power and exercise politics as part of their respective daily activities in the autonomous municipalities of the state of Chiapas. In particular, it analyzes two concepts in the Tseltal language. The first of these, the concept of lekil kuxlejal, refers to a dignified life-existence in the commons that is sustained through socio-natural collective care; the second of them, that of ajvalil, refers to the figure of the boss-government, which condenses colonial structures of power. Both concepts acquire particular intensities and tones when they enter terrains of political dispute, particularly when they are mobilized by Tseltal, Tsotsil, Tojolabal and Ch’ol Zapatista communities to sustain the exercise of autonomy in their territory, as well as to question and name the power structures they struggle against.

keywords
Zapatismo; cosmopolitics; Indigenous epistemologies; decolonial struggles; collective caret-taking

Ao longo do ano de 2023 se celebram três importantes aniversários que marcam a história do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o exército rebelde que em 1º de janeiro de 1994 declarou guerra ao Estado mexicano e, posteriormente, empreendeu um projeto de autonomia ao interior do território indígena maia, nos vales localizados entre as montanhas da Selva Lacandona e nas terras altas do estado de Chiapas, no sudeste mexicano, na fronteira com a Guatemala. A véspera de Ano-Novo marca o trigésimo aniversário do levante armado, enquanto no mês de agosto serão celebrados o quadragésimo aniversário da fundação do exército rebelde e o vigésimo aniversário das Juntas de Buen Gobierno, os governos autônomos de uma série de comunidades indígenas dos povos Tseltal, Tsotsil, Tojolabal e Ch’ol, que exercem suas funções nas regiões político-administrativas zapatistas conhecidas como municípios autônomos. Por ser um ano em que os ciclos do tempo se encontram, o ano de 2023 nos convida a refletir criticamente a respeito das contribuições que o zapatismo oferece às teorizações sobre a política e os imaginários emancipatórios.

Este ensaio se baseia nessa pausa crítica e necessária. Aproxima-se das maneiras pelas quais as comunidades zapatistas Tseltal, Tsotsil, Tojolabal e Ch’ol teorizam o poder e exercem a política como parte de suas respectivas atividades cotidianas nos municípios autônomos. Em particular, analisa dois conceitos em língua Tseltal. O primeiro, o de lekil kuxlejal, refere-se a uma vida-existência digna no comum, sustentada por meio do cuidado coletivo socionatural; o segundo conceito, o de ajvalil, refere-se à figura do patrão-governo, que condensa dispositivos de poder caracterizados pela permanência de estruturas de natureza colonial. Como será visto ao longo do ensaio, ambos os conceitos adquirem intensidades e tonalidades particulares quando entram em campos de disputa política, particularmente quando são mobilizados por comunidades zapatistas Tseltal, Tsotsil, Tojolabal e Ch’ol para dar sustento ao exercício da autonomia em seu território, assim como para questionar e nomear as estruturas de poder contra as quais lutam.

Tanto a noção de lekil kuxlejal quanto a figura do ajvalil fazem parte de repertórios políticos que se expressam, sobretudo, em lutas pelas condições de vida coletiva e pelo território ( Schavelzon, 2016SCHAVELZON, Salvador. 2016. “Apresentação: Dossiê Cosmopolíticas e ontologias relacionais entre povos indígenas e populações tradicionais na América Latina”. Revista de Antropología, USP, 59 (3): 7-17. https://www.revistasusp.br/ra/article/view/124798/121474.
https://www.revistasusp.br/ra/article/vi...
). Refiro-me a noções da política que tecem outras possibilidades de existência, estabelecidas pelos seres humanos com os tempos, com a natureza, com os espíritos e com os ancestrais. Seus significados emergem de movimentos relativos contínuos dentro de terrenos disputados; seus sentidos emanam de práticas cotidianas que buscam alterar condições históricas opressivas e transformar suas paisagens socionaturais. Embora sejam expressões políticas que operam no campo da política nos terrenos de disputa marcados pela formação de Estados liberais e pelas lógicas do capital , são capazes de mobilizar um conjunto de vínculos socionaturais que transcendem esse mesmo terreno. Quer dizer, operam dentro e fora do campo da política, ou o que Mario Blaser chama de política razoável (2018). Nesse sentido, constituem impulsos cosmopolíticos; anunciam e enunciam a constituição de outros mundos possíveis ( Stengers, 2005STENGERS, Isabelle. 2005. “The Cosmopolitical Proposal”. In: LATOUR Bruno & WEIBEL, Paul (coords.). Making Things Public: Atmospheres of Democracy. Cambridge, MIT Press., Blaser & de La Cadena, 2018BLASER, Mario. jul./dez. 2018. “Uma outra cosmopolítica é possível?”. Revista de @ntropologia da UFSCar, 10 (2).).

Em meados da década de 1990, o México, assim como o restante da América Latina, estava imerso na primeira onda de reformas neoliberais. Juntamente com elas, uma segunda onda de reformas centradas na lógica da governança estava apenas começando a se desenvolver ( Goodale & Postero, 2013GOODALE, Mark & POSTERO, Nancy. 2013. Neoliberalism, Interrupted, Social Change and Contested Governance in Contemporary Latin America. Palo Alto, Stanford University Press.; Ong, 2006AIHWA (Ong). 2006. Neoliberalism as Exception, Mutations in Citizenship and Sovereignty. Durham, Duke University Press.). Ao mesmo tempo, a ascensão de políticas multiculturais institucionalizadas estava restringindo as aspirações radicais de organizações indígenas e afrodescendentes, enquanto a intensificação de economias políticas globalizadas estimulava lógicas capitalistas renovadas ( Hooker, 2020HOOKER, Juliet. 2020. Black and Indigenous Resistance in the Americas: From Multiculturalism to Racist Backlash. Lanham, Lexington Books.). Quase trinta anos depois, no caso do México, o país inteiro se tornou um território no qual as organizações criminosas e de tráfico de drogas disputam seu poder e seus ganhos econômicos. Trata-se de condições além do neoliberalismo, tempos em que os interesses do capital gravitam em torno do extrativismo, o que defino como biodespossessões i/legítimas, ou seja, maquinários de poder que extraem a energia vital das pessoas e de suas geografias socionaturais, e que encontram algumas de suas expressões mais cruéis nos feminicídios e nos desaparecimentos forçados.

Várias organizações de povos indígenas e afrodescendentes estão lutando contra essas mudanças de condições, por meio de ações que transcendem os limites das teorias políticas clássicas, incluindo o marxismo clássico. Apontam repetidamente para as sobreposições entre a permanência das estruturas coloniais e as lógicas heteronormativas e racializadas do capital ( Cumes, 2012CUMES, Aura. 2012. “Mujeres indígenas, patriarcado y colonialismo: un desafío a la segregación comprensiva de las formas de dominio”. Anuario Hojas de Warmi, s/n.: 1-18.; Lugones, 2008LUGONES, María. julio-diciembre 2008. “Colonialidad y género”. Revista Tabula Rasa, Bogotá, Colombia, 9: 73-101. https://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf.
https://www.revistatabularasa.org/numero...
; Paredes & Guzmán, 2014PAREDES, Julieta & GUZMÁN, Adriana. 2014. El tejido de la rebeldía. ¿Qué es el feminismo comunitario? La Paz, Mujeres Creando Comunidad.; Rivera Cusicanqui, 2010RIVERA CUSICANQUI, Silvia. 2010. Violencias (re)encubiertas en Bolivia. La Paz, La Mirada Salvaje/Editorial Piedra Rota.; Segato, 2016SEGATO, Rita Laura. 2016. La guerra contra las mujeres. Madri, Traficantes de Sueños.). Noções de política emergem desses impulsos transformadores, elas moldam condições alternativas para sustentar a vida-existência socionatural. Nas páginas seguintes explorarei as maneiras pelas quais lekil kuxlejal traça um mapa de horizontes possíveis baseados nos cuidados coletivos da vida-existência, o que em Tseltal é descrito como o kantayal lum k’inal. Tais horizontes se posicionam contra as estruturas de poder colonial expressas na figura do ajvalil, a qual, após quase trinta anos de exercício da autonomia, assume densidades particulares que possibilitam nomear as estruturas de dominação a partir de um pensamento tseltal rebelde zapatista.

O poder, não o poder em letras maiúsculas, mas o poder em letras minúsculas, o que Silvia Rivera Cusicanqui chama de micropolítica, que repolitiza a vida cotidiana e que está “ por debajo del radar de la [macro]política y trabaja[n] sobre colectivos pequeños y acciones corporales” [abaixo do radar da [macro]política e trabalha[m] sobre coletivos pequenos e ações corporais] ( Rivera Cusicanqui, 2019RIVERA CUSICANQUI, Silvia. 17 de febrero 2019. “Tenemos que producir pensamiento a partir de lo cotidiano”. El Salto. https://www.elsaltodiario.com/feminismo-poscolonial/silvia-rivera-cusicanqui-producir-pensamiento-cotidiano-pensamiento-indigena.
https://www.elsaltodiario.com/feminismo-...
), é capaz de ressoar, interpelar e impulsionar transformações além dos limites temporais que deram origem a essas mesmas ações coletivas. Portanto, a tarefa consiste em escutar atentamente as maneiras pelas quais os conceitos políticos emergem das práticas concretas de um determinado movimento social, neste caso o zapatismo, e ao mesmo tempo refletir sobre suas contribuições além das particularidades. Nesse sentido, ao invés de serem conceitos únicos, o lekil kuxlejal e a figura do ajvalil fazem parte de repertórios mais amplos. São contribuições que o zapatismo oferece para os diálogos que mantém com outras afirmações políticas, que colocam a vida-existência no centro. Daí sua relevância.

Este ensaio começa com uma aproximação etnográfica do primeiro Encontro Internacional Político, Artístico, Esportivo e Cultural de Mulheres que Lutam, realizado em 8 de março de 2018 no Caracol IV, ou Centro Regional Zapatista, cuja sede político-administrativa fica na comunidade de Morelia 2 2 Em 2003, o EZLN fundou cinco Caracoles ou zonas dentro do território zapatista, que agrupam o que àquela altura eram 38 municípios autônomos. Cada município, por sua vez, agrupa comunidades cuja população faz parte das bases de apoio do exército rebelde. Um desses Caracoles, o Caracol IV, tem sua sede na comunidade de Morelia, a mesma que é sede do município autônomo de 17 de Noviembre. Os outros Caracoles são Oventik, La Realidad, Roberto Barrios e Francisco Gómez. Em 2019, as regiões autônomas zapatistas foram ampliadas. , localizada na região do município estadual de Altamirano. Nesse Encontro, observamos que as mulheres zapatistas da geração que cresceu na autonomia zapatista acrescentaram dimensões relevantes a ambos os conceitos. A ênfase outorgada no Encontro ao cuidado coletivo não apenas reflete uma ética política que rege os termos de interação com hóspedes em seu território, mas também expressa como a autonomia emerge das atividades cotidianas que sustentam a vida-existência como parte das aspirações de um lekil kuxlejal. Por sua vez, no Encontro, observamos a referência ao ajvalil como uma figura que desponta da instituição da fazenda, mas, nesse caso, também ligada à do marido. Ao invés de ser uma referência ao passado, ela foi usada para explicar estruturas de poder no presente. O que surgiu foi uma análise complexa e um posicionamento da autonomia. Para encerrar, apresento reflexões críticas sobre a contribuição de ambos os conceitos para o atual contexto de violência.

O Encontro, a expressão de uma ética política do cuidado

O primeiro Encontro Internacional Político, Artístico, Esportivo e Cultural de Mulheres que Lutam teve lugar no início de março de 2018 no município autônomo zapatista de 17 de Noviembre, localizado em uma zona de transição ecológica entre a paisagem de pinheiros das terras altas do estado e a vegetação exuberante da Selva Lacandona, no que tem sido historicamente território maia tseltal e tojolabal, no sudeste mexicano 3 3 A região em que se localiza o município autônomo de 17 de Noviembre e os outros municípios que fazem parte do Caracol IV integravam o território político administrativo da cidade de Toniná, uma das cidades maias mais importantes do período clássico (250-900 d.C.). . Reuniu mais de 8 mil mulheres de Chiapas, do México e de outras partes do mundo. Essa não foi a primeira vez que eu participava de eventos internacionais convocados pelo EZLN, começando com o Encontro Intergaláctico pela Humanidade e Contra o Neoliberalismo em 1996 4 4 Esse encontro internacional foi realizado no final de julho de 1996 e fez parte de uma série de reuniões no território zapatista para promover diálogos e tecer alianças com organizações em nível nacional e internacional. Baschet ( 2004) oferece uma leitura do evento como parte de genealogias mais amplas da tradição internacionalista das esquerdas no século XX. . Esses encontros têm sido parte de minhas interações e modos de participação no território sob influência zapatista, incluindo eventos de menor escala em comunidades dos municípios autônomos. Dado que minhas pesquisas antropológicas sobre o zapatismo se focam em com preender o exercício cotidiano da autonomia diante da formação do Estado mexicano ( Mora, 2011MORA, Mariana. 2011. “Producción de conocimientos en el terreno de la autonomía. La investigación como tema de debate políti co”. In: BARONNET, Bruno; MORA, Mariana & STAHLER-SHOLK, Richard (coords.). Luchas “muy otras”: Zapatismo y autonomía en las comunidades indígenas de Chiapas. México, UAM-X, Ciesas, Unach., 2013MORA, Mariana. 2013. “La politización de la justicia zapatista frente a los efectos de la guerra de baja intensidad en Chiapas”. In: SIERRA, María Teresa; SIEDER, Rachel; CASTILLO, Rosalva Aída Hernández (coords.). Justicias indígenas y Estado: Violencias contemporáneas. Cidade do Mexico, Ciesas/Flacso., 2013b, 2017, 2022), esses eventos públicos não foram fonte de reflexão prévia. No entanto, para o propósito deste ensaio, considero importante analisar o encontro das mulheres cuidadosamente, porque eventos desse tipo são os principais espaços de gestação de diálogos face a face com outros movimentos, de troca de ideias, de surgimento de outras iniciativas e de formação de alianças. Também, permitem identificar as contribuições das comunidades maias zapatistas para diversos tecidos epistemológicos que propõem repensar os tipos de mundos que habitamos e suas interações.

Essa ocasião foi a primeira vez em que comunidades zapatistas convocaram uma reunião exclusivamente de mulheres em seu território. Meu principal interesse não era explorar as relações de gênero nas comunidades zapatistas ou identificar como elas desafiam as relações patriarcais dos povos maias. Compareci com o objetivo de observar como seus enunciados nomeiam determinadas estruturas de poder e expressam outros horizontes políticos. Achei particularmente relevante o fato de as principais organizadoras serem mulheres tseltal, tsotsil, tojolabal e ch’ol que nasceram após o levante de 1994 e que cresceram dentro das estruturas autonômicas zapatistas. Do município de 17 de Noviembre, região na que trabalho desde meados da década de 1990, participaram da organização do Encontro mulheres que conheci pela primeira vez quando eram crianças com menos de cinco anos de idade. Muitas de suas mães eram jovens lideranças na época do levante e foram algumas das primeiras autoridades políticas dos governos autônomos. Portanto, essas mães participaram dos primeiros debates sobre como as decisões políticas seriam tomadas dentro das estruturas autônomas, quais seriam as diferentes escalas de tomada de decisão e quais seriam os principais projetos de um governo próprio, incluindo a maneira como os sistemas de educação, saúde e justiça, entre outros, seriam projetados. Ouvindo-as com atenção, foi possível identificar como o exercício cotidiano da autonomia, protegido por um exército rebelde, marca e transforma os significados outorgados aos pensamentos tseltal, tsotsil, tojolabal e ch’ol.

Cada zona zapatista, conhecida como Caracol, implementa seus próprios acordos de participação e define suas prioridades, pois a autonomia não é uma receita imposta, mas o resultado de processos dinâmicos entre as diversas comunidades que estão aglutinadas nos municípios zapatistas, os quais, por sua vez, estão integrados em seus respectivos Caracoles. Conforme veremos a seguir, no caso do Caracol de 17 de Noviembre, as discussões nas assembleias comunitárias e municipais priorizaram projetar comissões encarregadas da reforma agrária zapatista, juntamente com uma política própria de promoção das atividades agrícolas, um sistema educacional próprio com base nas epistemologias tseltal e tojolabal e políticas de saúde abrangentes 5 5 Para uma descrição etnográfica das práticas diárias dessas comissões como parte dos processos de autonomia zapatista, o leitor pode consultar “Política kuxlejal, autonomía indígena, el Estado racial e investigación descolonizante en comunidades zapatistas” ( Mora, 2018); para uma descrição e análise detalhada da aplicação da justiça zapatista em relação às políticas de contrainsurgência do Estado mexicano, cumpre ler “La politización de la justicia zapatista frente a los efectos de la guerra de baja intensidad en Chiapas” ( Mora, 2013); sobre as lutas territoriais e a era das fincas, “(Dis)placement of anthropological legal activism, racial justice and the Ejido Tila” ( Mora, 2020); a relação entre os sentidos do político em chave feminina, “Repensando la política y la descolonización en minúscula: Reflexiones sobre la praxis feminista desde el zapatismo” (2011); e sobre reflexões críticas entre a pesquisa antropológica e o zapatismo: “Producción de conocimientos en el terreno de la autonomía. La investigación como tema de debate político” (2011). . Entrelaçadas com seu papel nesses processos, as mães das organizadoras do Encontro promoveram a participação das mulheres na autonomia e fizeram questionamentos contundentes às várias expressões do patriarcado em suas comunidades, como a violência doméstica, a falta de reconhecimento do direito das mulheres à terra e os obstáculos que impedem sua participação política em todas as esferas de seus municípios autônomos ( Centro de Derechos de la Mujer en Chiapas 2020CENTRO DE DERECHOS DE LA MUJER EN CHIAPAS. 2020. Informe temático Tierra y Territorio, desde la mirada de mujeres indígenas – campesinas de la Zona Norte, Selva, y Altos- Llanos de Chiapas. https://cdmch.org/2020/11/25/informe-tematico-tierra-y-territorio-desde-la-mirada-de-las-mujeres-indigenas-campesinas-de-la-zona-norte-selva-y-altos-llanos-de-chiapas/.
https://cdmch.org/2020/11/25/informe-tem...
, Saavedra, 2023SAAVEDRA, Laura. 2023. Corazonar las Justicias: Los saberes de las mujeres tseltales sobre violencias, justicias y derechos humanos. San Luis Potosi, Universidad Autónoma de San Luis Potosi.).

No Encontro, fiquei atenta a como a influência da referida geração de mães, tias e outras mulheres das comunidades marcou a ênfase que a nova geração vem dando à autonomia e ao exercício da política. Quando cheguei à reunião, estava ciente de que os cenários nacional e regional são extremamente diferentes do que as mães e as avós das organizadoras vivenciaram. Àquela altura, em 2018, os cartéis de drogas estavam iniciando uma disputa territorial em Chiapas, que logo levaria a processos de decomposição social que ameaçariam os projetos autonômicos e semeariam uma nova camada de medos na população 6 6 Por muitos anos, o estado de Chiapas não foi uma área de disputa entre os cartéis do crime organizado. No entanto, pouco tempo depois do encontro de mulheres, o cartel de Sinaloa e o cartel de Jalisco Nueva Generación iniciaram uma disputa pelo controle das rotas do tráfico de drogas e do mercado ilícito, conforme relatado na revista Proceso ( Mandujano, 2023). . Ao mesmo tempo, o evento ocorreu em um momento em que os feminicídios e os desaparecimentos forçados deixavam suas marcas em todo o território nacional. Ambos os fenômenos marcariam uma topografia social que também é testemunha de despojamentos i/legais pelos interesses do capital transnacional, em especial por parte de empresas de mineração extrativa, assim como pelo crime organizado.

Muitas das participantes desse encontro de mulheres vivenciaram em primeira mão os efeitos desse tipo de maquinário necropolítico ( Mbembe, 2003MBEMBE, Archilles. 2003. “Necropolitics”. Public Culture, 15 (1): 11-40.). O evento contou com a participação de algumas das mães dos 43 alunos desaparecidos da escola rural de professores de Ayotzinapa em 26 e 27 de setembro de 2014 7 7 Um dos casos mais emblemáticos da história recente do México é o desaparecimento forçado de 43 normalistas indígenas e camponeses da escola normal rural de Ayotzinapa, no estado de Guerrero, em 26 e 27 de setembro de 2014. Elementos das polícias municipal, estadual e federal, em cumplicidade com o grupo criminoso Guerreros Unidos, atacaram os estudantes, assassinaram três deles e desapareceram outros 43 na cidade de Iguala . Também esteve presente Araceli Osorio, mãe de Lesvy, estudante da Universidad Nacional Autónoma de México (Unam), vítima de feminicídio em 2017, juntamente com as mães de outras vítimas. Compareceram também feministas comunitárias de distintos povos originários, como Lorena Cabnal ( 2010CABNAL, Lorena. 2010. “Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala”. In: CABNAL, Lorena. Feminismos diversos: el feminismo comunitario. Madri, ACSUR Las-Segovias, pp. 11-25.), uma mulher Xinca da Guatemala, e a liderança Mapuche Moira Millán ( 2019MILLAN, Moira. 2019. El tren del olvido. Buenos Aires, Planeta.), da Argentina, que lutam incansavelmente tanto contra a violência feminicida quanto contra as despossessões territoriais de seus povos. Outras figuras estiveram também presentes e fizeram contribuições relevantes para o pensamento decolonial de distintas perspectivas, por exemplo, a partir de uma práxis queer, como a feminista negra Ochy Curiel ( 2007CURIEL, Ochy. 2007. “Crítica poscolonial desde las prácticas políticas del feminismo antirracista”. Nómadas, 26: 92-101. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=105115241010.
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=1...
, 2014CURIEL, Ochy. 2014. “Hacia la construcción de un feminismo descolonizado”. In: MIÑOSO, Yuderkys Espinosa; CORREAL, Diana Gómez & MUÑOZ, Karina Ochoa (eds.). Tejiendo de otro modo: feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán, Editorial Universidad del Cauca.), juntamente com outras mulheres da América Latina, da Europa, dos Estados Unidos e do Oriente Médio.

Saber quem esteve presente não é uma questão menor. A autonomia se expressa não só a partir do que acontece dentro das comunidades e regiões dos povos originários, ou seja, das formas de exercer a autodeterminação, de projetar e implementar sistemas próprios de governo, de impulsionar modelos alternativos de desenvolvimento e de promover ações com base nas epistemologias dos povos originários. Ela se expressa também em direção ao que aparenta ser “externo”, isto é, as diretrizes que estabelecem as condições de troca e interação com as pessoas hóspedes em seu território 8 8 Recupero reflexões e debates políticos que emergem da produção intelectual de estudiosos de povos indígenas nos Estados Unidos e no Canadá ( Blackwell, 2023; Nájera & Maldonado, 2017; Speed, 2019), em relação à presença de populações não originárias em seus territórios, incluindo povos indígenas que migraram ou que foram deslocados de seus próprios territórios e populações de ascendência africana. Os debates giram em torno do tipo de arranjos éticos e políticos que precisam ser estabelecidos para que essas populações não reproduzam a lógica dos colonizadores e do que em inglês se conhece como settler colonialism (Wolfe, 2006). . Nesse sentido, a autonomia zapatista é um exercício cosmopolítico constante para definir os termos das relações intersubjetivas e das interações socionaturais com diferentes atores à margem do Estado.

No dia anterior ao início do encontro, a estrada semipavimentada que corre ao longo do vale, começando na sede do município oficial de Altamirano até se dissolver nas terras baixas da Selva Lacandona estava congestionada com diversos tipos de automóveis, não apenas carros particulares, mas também ônibus alugados para a ocasião e caminhões de carga. Todos pararam na entrada dos terrenos comunitários que abrigam as instalações do governo autônomo zapatista: mulheres de várias idades desembarcaram, com mochilas, sacos de dormir e barracas nas mãos, e então empreenderam o caminho ladeira acima até o recinto da reunião. A entrada estava marcada por uma placa azul-escuro que dizia: “Bem-vindas, mulheres do mundo”, com estrelas vermelhas adornando cada lado. Havia uma placa amarela chamativa bem abaixo da primeira, com a advertência de “Proibida a entrada de homens”.

O evento foi realizado no local que, desde 2007, abriga os prédios do governo autônomo de 17 de Noviembre, incluindo as sedes das comissões de justiça, agricultura, educação e saúde. No mesmo terreno comunitário estão localizadas as salas de aula da escola secundária autônoma da mesma região. Para essa ocasião, os prédios foram transformados em dormitórios temporários e equipados para abrigar as mulheres participantes. As convidadas espalhamos lonas plásticas no chão, colocamos nossos colchonetes e sacos de dormir ou cobertores, juntamente com nossos pertences pessoais. Ao nosso redor, as anfitriãs zapatistas montaram cantinas e cafeterias. Em fogueiras ao ar livre, elas esquentavam panelas de café, chá de limão, feijão e arroz. Outras levaram fogões portáteis para servir vários tipos de pratos, como caldos de galinha, picadinho de carne e ovos mexidos com nopal. A comida foi apenas uma parte das atividades que sustentaram o evento. Dentro do local, mulheres tseltal, tsotsil, tojolabal e ch’ol resolveram absolutamente tudo as questões técnicas do sistema elétrico, a amplificação do sistema de som no palco, a limpeza das latrinas e dos chuveiros, bem como a montagem dos espaços para as palestras, oficinas, expressões artísticas, apresentações e mesas-redondas. As boas-vindas começaram com as palavras da Capitã Erika, figura de comando dentro das estruturas político-militares do EZLN. A primeira coisa que comentou foram as diferentes tarefas de cuidado que fizeram parte do evento, começando com as condições necessárias para garantir que o Encontro fosse um espaço seguro para todas. “ Están al pendiente las mujeres ‘insurgentas’ del EZLN” [As mulheres “insurgentas” do EZLN estão de olho] (Capitã Erika, comunicação pública, 2018), explicou, e esclareceu que a tarefa principal delas era proteger os limites do recinto. Expressou também as seguintes palavras:

Hay también compañeras promotoras de salud y algunas doctoras. Entonces si alguien se enferma o se siente mal, basta que nos digan a cualquiera de nosotras y rápido avisamos para que atiendan las promotoras y si es necesario revise la doctora. Hay también compañeras coordinadoras, técnicas de sonido, de la luz, si es que se va, de la higiene, de la basura y los baños. Para que estas compañeras también puedan participar en el Encuentro, pues les pedimos que cuiden de la basura, de la higiene, de los baños. Hoy somos muchas pero es como si fuéramos una sola para recibirlas y que se sientan lo mejor que se puede, según nuestras condiciones. [Há também colegas promotoras de saúde e algumas doutoras. Então, se alguém estiver doente ou se sentindo mal, basta avisar qualquer uma de nós, e informaremos rapidamente para que as promotoras possam vir e, se necessário, para que as doutoras as examinem. Há também colegas coordenadoras, técnicas de som, técnicas de iluminação, caso as luzes se apaguem, pessoas responsáveis pela higiene, pelo lixo e pelos banheiros. Para que essas colegas também possam participar do Encontro, pedimos que cuidem do lixo, da higiene e dos banheiros. Hoje somos muitas, mas é como se fôssemos uma só para recebê-las e fazer com que se sintam o melhor possível, de acordo com nossas condições]. (Capitã Erika, comunicação pública, 2018).

Essas palavras de boas-vindas poderiam ser entendidas como uma descrição simples da logística que toda pessoa que atua como anfitriã deve comunicar ao público participante. São detalhes geralmente comunicados no final de um evento de recepção, após as explicações sobre os objetivos do encontro e os antecedentes que o tornaram possível. Nessa ordem mais convencional, a logística é simplesmente a infraestrutura que possibilita a realização do coração do evento político, que geralmente consiste em participações verbais, seja na forma de exposições, troca de ideias ou expressões culturais e artísticas. Nessa ocasião, entretanto, a inversão da ordem do que foi transmitido coincidiu com o sentido que a capitã Erika, representando as outras mulheres zapatistas presentes, dava ao político.

Erika iniciou o evento com a descrição dos cuidados não como uma simples reconfiguração na ordem habitual de um ato de recepção, mas porque o cuidado foi um aspecto indispensável do próprio Encontro. As questões de logística aspectos indispensáveis como a localização das latrinas e quem as limparia não foram a infraestrutura que permitiu a realização do encontro, mas elementos intrínsecos dele. Assim, na lógica zapatista, as tarefas “operacionais”, ao invés de serem o que possibilita a participação política algo geralmente medido por intervenções verbais , são elementos imanentes da política. A mensagem é contundente: o compartilhamento da palavra é inseparável da preparação e do desfrute da comida; o intercâmbio está ligado à garantia da limpeza dos espaços; a luta por condições que permitam a vida-existência está fundamentada em ações que geram cuidados coletivos e interdependentes.

Nesse sentido, quero enfatizar que a inversão da ordem no discurso de boas-vindas da capitã Erika foi um reflexo da importância do cuidado coletivo qualquer atividade que permita a reprodução da vida-existência comunitária no exercício diário da autonomia. Em uma das próximas seções deste artigo, veremos como isso se expressa nas atividades coletivas dentro dos municípios autônomos; aqui eu gostaria de salientar que se trata de exercícios micropolíticos que refletem o tipo de interações intersubjetivas que possibilitam transformações profundas, quando a sustentação da vida coletiva, em lugar de estar na produção e no produtivo, está ela mesma no centro da ação.

Essa insistência sutil, mas enfática, interpela principalmente pessoas que historicamente têm sido deslocadas às margens da comunidade política do Estado povos originários em luta, coletivos de mulheres afrodescendentes, coletivos de vítimas de feminicídio e desaparecimento forçado, entre outros. Para essas agentes, a participação política é atravessada e severamente limitada por diversas exclusões raciais, étnicas, de classe e de gênero, assim como por traumas intergeracionais e múltiplas violências físicas, estruturais e históricas. Ser anfitriãs de agentes à margem da comunidade política do Estado implica garantir condições de cuidado coletivo para elas. Embora não tenha sido a primeira vez que presenciei essa expressão política ética em eventos públicos zapatistas, ela ficou particularmente evidente no encontro de mulheres.

Em conjunto, a subsunção do político à aparente infraestrutura, ou a elevação da noção de infraestrutura a uma expressão essencial da política, produz fendas na dicotomia ocidentalizada liberal masculinizante que separa o produtivo (neste caso, o produtivo da participação política) do reprodutivo (neste caso, o cuidado). Convida-nos a questionar as suposições subjacentes a muitas conceitualizações de ação política. A divisão entre o produtivo e o reprodutivo e o papel que ela desempenha como parte da lógica do capital têm sido teorizados por intelectuais feministas marxistas desde a década de 1970 ( Hartmann, 1981HARTMANN, Heidi. 1981. The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism: A Debate on Class and Patriarchy. Londres, Pluto Press.; Mies, 1986MIES, Maria. 1986. Patriarchy and Accumulation on a World Scale: Women in the International Division of Labour. Londres, Zed Books.; Reddock, 1984REEDOCK, Rhoda. 1984. Women, Labour andStruggle in 20th Century: Trinidad and Tobago 1898-1960. La Haya, Institute of Social Studies.). As acadêmicas classificam as atividades associadas ao cuidado criar os filhos, limpar a casa, administrar as necessidades de uma unidade familiar, cuidar dos doentes etc. como tarefas de reprodução social. Localizam-nas principalmente na esfera doméstica dentro do esquema binário liberal público/privado. Argumentam que o capital é sustentado, primeiro, pela invisibilização das tarefas de reprodução social e, segundo, pela dependência dessas tarefas como parte do mecanismo de exploração do trabalho ( Federici, 2013FEDERICI, Silvia. 2013. Revolución en punto cero. Trabajo doméstico, reproducción y luchas feministas. Madri, Traficantes de Sueños.). Em um esquema dicotômico, baseado em premissas ocidentalizadas e heteronormativas público/privado, produção/reprodução, homem/mulher , o homem pode sair de casa para trabalhar e, assim, ser explorado na fábrica, porque a mulher da família nuclear fica em casa cuidando de todo o resto. Em uma linha paralela, outras feministas marxistas transferem essa perspectiva de análise para o âmbito agrícola, argumentando que o agronegócio ou a agricultura em grande escala é possível porque a agricultura de subsistência atende às necessidades básicas dos trabalhadores do campo ( Mies, 1986MIES, Maria. 1986. Patriarchy and Accumulation on a World Scale: Women in the International Division of Labour. Londres, Zed Books.).

Nos últimos anos, temos testemunhado debates efervescentes a respeito das tarefas do cuidado como uma potência política e com base em noções da política que vão além das contribuições das feministas marxistas descritas acima. Da mesma forma, liberam o cuidado das esferas cooptadas pelo capital e pelos Estados liberais a esfera doméstica e as tarefas feminizadas, como os cuidados com a saúde e a criação dos filhos para recuperar seus impulsos transformadores. Partindo de suas possibilidades emancipatórias, diversos autores têm refletido criticamente sobre como o cuidado sustenta o comum (Gutierréz Aguilar, 2020; Ménendez & García, 2020; Vega, 2018VEGA, Cristina. 2018. “Rutas de la reproducción y el cuidado por América Latina: Valorización colectiva y política”. In: AGUILAR, Raquel Gutiérrez (coord.). Comunidad, tramas comunitarias y producción de lo común. Debates contemporáneos desde América Latina. Oaxaca, Colectivo Editorial Pez en el Árbol/Editorial Casa de las Preguntas.) e o comunitário ( Tzul Tzul, 2018TZUL TZUL, Gladys. 2018. “Rebuilding Communal Life”. Nacla Report on the Americas, 50 (4): 404-407. DOI: 10.1080/10714839.2018.1550986.
https://doi.org/10.1080/10714839.2018.15...
; Gil, 2013), assim como sobre a maneira como as redes de vida são tecidas ( Escobar, 2008ESCOBAR, Arturo. 2008. Territories of Difference: Place, Movements, Life, Redes. Durham, Duke University Press.) e como isso parte de uma ética baseada na hospitalidade que permite a produção de conhecimento na diversidade ( Abdou, 2023ADBOU, Mohamed. 2023. “On the Ethics of Disagreements (Uṣūl al-Ikhtilaf) and the Ethics of Hospitality (Uṣūl al-Dhiyafa) between Spiritual and Non-Spiritual Leftists in the Newest Social Movements”. Political Theology, 24 (3): 261-282. https://doi.org/10.1080/1 462317X.2021.2003001.
https://doi.org/10.1080/1...
). Esses impulsos, por sua vez, sustentam as afirmações de que, em vez de produtiva, a vida não se baseia em relações mercantis ( Orozco, 2014OROZCO, Amaia Pérez. 2014. Subversión feminista de la economía. Aportes para un debate sobre el conflicto capital-vida. Madri, Traficantes de Sueños.; Kopenawa & Albert, 2010KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2010. La Chute du ciel. Paris, Terre Humaine/Plon.) e tem uma essência que não é útil ( Krenak, 2020KRENAK, Ailton. 2020. A vida não é útil: Ideias para salvar a humanidade. São Paulo, Companhia das Letras.).

A esses diálogos cosmopolíticos, mulheres zapatistas acrescentam a importância de repensar o político a partir da esfera do cuidado como expressão indispensável da participação do comum e como uma ética a partir da qual se tecem relações socioafetivas com outros atores no contexto de um território autônomo. Na próxima seção, será examinado como a ênfase dada ao cuidado transforma os significados dados a ele. O exercício cotidiano da autonomia está enraizado no cuidado, exercido como kanayel, como um respeito pelas relações socionaturais que sustentam as condições de lekil kuxlejal, uma vida-existência coletiva.

A autonomia é semeada na milpa

Abajo, en las ciudades y en las haciendas, nosotros no existíamos. Nuestras vidas valían menos que las máquinas y los animales...

Para el poder, ése que hoy se viste mundialmente con el nombre de

«neoliberalismo», nosotros no contábamos, no producíamos, no comprábamos, no vendíamos.

Éramos un número inútil para las cuentas del gran capital.

Entonces nos fuimos a la montaña para buscarnos bien y para ver si

encontrábamos alivio para nuestro dolor de ser piedras y plantas olvidadas.

Aquí, en las montañas del sureste mexicano, viven nuestros muertos. Muchas cosas saben nuestros muertos que viven en las montañas.

Nos habló su muerte y nosotros escuchamos…

Nos habló la montaña a nosotros, los macehualob, los que somos gente común y ordinaria…

Todos los días y sus noches que arrastran quiere el poderoso bailarnos el x-tol y repetir su brutal conquista.

El kaz-dzul, el hombre falso, gobierna nuestras tierras y tiene grandes máquinas de guerra que, como el boob que es mitad puma y mitad caballo, reparten el dolor y la muerte entre nosotros…

Por eso nos hicimos soldados.

Por eso seguimos siendo soldados.

Palavras de boas-vindas o Encontro intercontinental pela humanidade e contra o neoliberalism (1996)

Em 16 de fevereiro de 1996, o exército rebelde assinou a primeira rodada de acordos de paz com o governo federal, conhecidos como os Acuerdos de San Andrés Sakamch'en de los Pobres. Durante esses diálogos, o EZLN insistiu que as transformações sociais do Estado-nação deveriam começar com o exercício efetivo dos direitos coletivos dos povos indígenas à autonomia e à autodeterminação, incluindo os direitos a seus territórios e a seus próprios órgãos de governo. Sua insistência forma parte de sua luta contra a permanência de estruturas coloniais subjacentes ao Estado mexicano contemporâneo, as mesmas que continuavam ordenando as desigualdades sociais no país. Os vínculos entre essas estruturas coloniais, as lógicas do capital e a formação do Estado mexicano, analisados a partir do pensamento maia, foram abordados de várias maneiras nos comunicados do exército rebelde 9 9 Para uma análise da lógica do capital baseada na fazenda como uma instituição colonial, o leitor pode consultar o comunicado “Primera parte: Una finca, un mundo, una guerra, pocas probabilidades” ( 2018). . Talvez um dos mais notáveis tenha sido o comunicado lido em 1996 pela Major Ana María, então comandante tsotsil nas terras altas de Chiapas, na cerimônia de boas-vindas do Encontro Internacional pela Humanidade e Contra o Neoliberalismo. Suas palavras, que se encontram na citação com a qual esta seção começa, referem-se às condições de conquista que os povos originais de Chiapas viveram, devido à instituição das fazendas e ao constante desprezo dos kaz-dzul, os homens falsos, bem como à sua intensificação sob as políticas neoliberais promovidas pelas figuras de poder do Estado mexicano.

Cinco anos depois, em 2001, o governo mexicano transformou o conteúdo dos Acuerdos de San Andrés em reformas constitucionais, mas diluiu significativamente os pontos mais relevantes para os povos originários os direitos substantivos à autonomia, ao território e à livre determinação ( Gómez, 2004GÓMEZ, Magdalena. 2004. “La constitucionalidad pendiente. La hora indígena en la Corte”. In: CAS). Prevendo um cenário político dessa índole e desconfiando dos interesses do governo federal, o EZLN e as comunidades que fazem parte de sua base civil decidiram exercer seus direitos coletivos à margem das instituições estatais e independentemente das estruturas legais federais e estaduais. Paralelamente às negociações de paz com o governo federal, fundaram 38 municípios autônomos, agrupados em cinco centros político-administrativos regionais, inicialmente conhecidos como Aguascalientes e, em 2003, transformados em cinco Caracoles. Em 2019, onze centros autônomos adicionais foram acrescentados a esse primeiro grupo de municípios.

O município de 17 de Noviembre foi um dos primeiros a exercerem a autonomia. Em seu caso, da mesma maneira que aconteceu com outros municípios autônomos localizados nos vales da Selva Lacandona, a autonomia tomou forma, primeiramente, por meio da implementação de uma reforma agrária zapatista. Isso permitiu a redistribuição de terras que famílias mestiças da classe proprietária local ocupavam desde meados do século XIX, o que, em várias ocasiões, implicou o deslocamento de assentamentos tseltal e tojolabal. Essa reforma agrária rebelde faz parte de processos históricos de longa data que começaram durante os primeiros séculos da colônia espanhola, quando os dominicanos estabeleceram fazendas ( García de León, 1985GARCÍA DE LEÓN, Antonio. 1985. Resistencia y utopía: memorial de agravios y crónicas de revueltas y profecías acaecidas en la Provincia de Chiapas durante los últimos quinientos años de su historia. Cidade do México, Ediciones Era.). No início do século XIX, na atual região de 17 de Noviembre, famílias tseltal fugiram das fazendas para se estabelecerem em terrenos “vagos”. Elas foram expulsas novamente por famílias ladinas 10 10 ladinas, palavra usada para se referir à população branca e não-indígena meio século depois. Embora a Revolução Mexicana de 1910 tenha estabelecido a figura do ejido, terras comunais, e promovido a distribuição de terras de fazendas para comunidades indígenas e camponesas, nos vales de Chiapas os proprietários de terras aproveitaram as lacunas legislativas e jurídicas para manter uma parte significativa de suas terras ( Bobrow-Strain, 2007BOBROW-STRAIN, Aaron. 2007. Intimate Enemies: Landwoners, Power and Violence in Chiapas. Durham, Duke University Press.; Gómez Hernández & Ruz, 1992GÓMEZ, Antonio & RUIZ, Mario Humberto. 1992. Memoria Baldía: Los tojolabales y las fincas. Testimonios. Cidade do México, Unam.; Rus, 2012RUS, Jan. 2012. El ocaso de las fincas y la transformación de la sociedad indígenas de los Altos de Chiapas. Tuxtla Gutierrez, Unicach.). Assim, os ejidos foram estabelecidos como assentamentos satélites em torno das propriedades privadas ( Reyes, 1992REYES RAMOS, María Eugenia. 1992. El reparto de tierras y la política agraria en Chiapas, 1914-1988. Cidade do México, Unam.). O levante zapatista faz parte de ciclos de rebelião que tentam, de várias maneiras, recuperar territórios ancestrais em face desses atos de desapropriação territorial e seus mecanismos de repressão, e conseguiu abrir fendas nas geografias racializadas que haviam permanecido até 1994 nos vales da Selva Lacandona ( Mora, 2018MORA, Mariana. 2018. Política Kuxlejal, autonomía indígena, el Estado racial e investigación descolonizante en comunidades zapatistas. Cidade do México, Ciesas.).

A partir desse tipo de retomadas, que as bases de apoio zapatistas chamam de recuperação das terras das quais seus ancestrais foram despojados, iniciaram processos densificados que descrevo como processos de reterritorialização (Mora, 2022). Por meio de uma práxis autonômica das comunidades alinhadas com o exército indígena rebelde, promove-se um sentimento renovado de pertencimento a um território maia ancestral. As retomadas foram realizadas, em parte, por meio de órgãos de governo autônomos multiescalares, que entrelaçam a tomada de de cisões nas zonas zapatistas dos Caracoles nos níveis comunitário, intercomunitário, municipal e, finalmente, intermunicipal. O caracol era o símbolo usado nos glifos maias clássicos para se referir ao ato de falar, não como um ato exclusivamente verbal e discursivo, mas intimamente ligado à ação (Aubry, 2003). Assim, os Caracoles encarnam geografias de diálogo e trocas que não apenas ocorrem em um território específico, mas também redefinem o conjunto de relações humanas e não humanas que criam esse sentido de território.

O coração da autonomia zapatista é frequentemente descrito por meio do exercício dessa tomada de decisões, sobretudo a partir do conceito zapatista de mandar obedeciendo. Esse conceito tem sido amplamente teorizado como um exercício de democracia participativa que inverte a ordem clássica, na qual a figura da autoridade política comanda e o povo obedece ( González, 2003GONZÁLEZ Casanova, Pablo. 2003. “Los Caracoles zapatistas: redes de resistencia y autonomía (Ensayo de interpretación)”. La Jornada. http://www.jornada.unam.mx/2003/09/26/per-texto.html.
http://www.jornada.unam.mx/2003/09/26/pe...
; Reyes & Kaufman, 2011REYES, Alvaro & Mara Kaufman. 2011. “Zapatista Autonomy and the New Practices of Decolonization”. South Atlantic Quarterly, 110 (2): 505-525.; Speed, 2008SPEED, Shannon. 2008. Rights in Rebellion: Indigenous Struggle and Human Rights in Chiapas. Palo Alto, Stanford University Press.; Speed & Reyes, 2002SPEED, Shannon & Álvaro Reyes. 2002. “In Our Own Defense. Rights and Resistence in Chiapas”. Political and Legal Anthropology Review, 25 (1): 69-79.; Street, 1996STREET, Susan. (1996). “La palabra verdadera del zapatismo chiapaneco (Un nuevo ideario emancipatorio para la democracia)”. Chiapas, 2.). No entanto, se levarmos a sério a ênfase dada às tarefas de cuidado coletivo, conforme destacado no encontro de mulheres, é necessário questionar a ênfase excessiva outorgada às relações estabelecidas entre as figuras de autoridade e outros membros da comunidade na assembleia. Privilegiar essa esfera corre o risco de colocar as atividades que sustentam a vida-existência em comum no nível da infraestrutura que possibilita a tomada de decisões e de classificar as expressões cosmopolíticas dentro de marcos liberais. Talvez o sentido da autonomia seja tecido, sobretudo, por meio dos vínculos restabelecidos com uma das principais esferas que a sustentam e a mantêm a simbiose entre o milho, o ixim, em Tseltal, na milpa, com os membros das comunidades zapatistas. Não é que os espaços de deliberação que resultam em acordos não sejam importantes, mas sim que eles adquirem relevância quando passam por todas as relações socionaturais que habitam a milpa e revitalizam o florescimento da vida-existência.

A milpa é um campo agrícola no qual são semeados o milho, o feijão, a abóbora e uma grande variedade de outras plantas comestíveis, expressão de um conjunto de relações socionaturais desenvolvidas ao longo de séculos, que envolvem todos os membros de uma família, assim como relações complexas de apoio mútuo entre famílias nas comunidades. No centro está o ixim, mas o milho existe em simbiose com o feijão e uma grande diversidade de plantas que recuperam o nitrogênio que o milho necessita para crescer. Vale lembrar que o milho foi domesticado ao longo de milhares de anos pelos povos mesoamericanos, até o ponto em que não é mais capaz de se reproduzir por conta própria, senão que depende de práticas agrícolas humanas. O resultado é uma relação simbiótica e mutuamente constitutiva entre a milpa e os membros das comunidades.

O intelectual tseltal Juan “Xuno” López se refere a nnopel stamel-stsobel, o ato de aprender a respigar/colher, para descrever essa rede de relações que ocorre na milpa. Enquanto alguns membros da família colhem o milho, outros caminham atrás, procurando e coletando os grãos caídos no chão. Explica que a coleta da semente combina elementos práticos e ontológicos, pois a semente é vital para a reprodução dos alimentos que dão sustento e, ao mesmo tempo, a semente é ts’akal-kuxul sok ay sch’ulel, “ es un grano completo, pleno, tiene vida y espíritu. También es jme’tik-jchu’tik , madre y pecho o leche nuestro que nos alimenta” [é um grão completo, pleno, tem vida e espírito. Também é jme’tik-jchu’tik, mãe e seio ou leite nosso que nos alimenta] (López, 2013: 79).

O papel central do ixim na milpa como elemento indispensável da luta política pela autonomia é representado nos tecidos bordados por homens e mulheres zapatistas, encontrados nos mercados regionais de artesanato. Com frequência uma estrela vermelha do EZLN pode ser vista no canto superior do tecido, enquanto em seu centro brotam do chão pés de milho bordados com linha marrom. As folhas da espiga aparecem parcialmente separadas do milho, possibilitando a visualização de rostos marrons escondidos atrás de balaclavas que tomam o lugar dos grãos. As espigas, com os grãos feitos de rostos mascarados de membros de comunidades zapatistas, também têm um papel de destaque em outras expressões visuais autônomas, como os murais que adornam os prédios do governo autônomo ( Martí i Puig, 2022MARTÍ I PUIG, Salvador. 2022. “El muralismo zapatista: Una revuelta estética”. Latin American Research Review, 57 (1): 19-41.). Por meio de tais imagens, homens e mulheres zapatistas dos povos Tseltal, Tsotsil, Tojolabal e Ch’ol afirmam ser seres do ixim, uma referência ao Popul Vuh, o livro sagrado maia que descreve como os primeiros quatro humanos verdadeiros (Quitzé, Balam Akab, Mahucutah e Iqui Balam) surgiram do milho, depois de várias tentativas fracassadas de criar seres humanos de argila e de madeira.

O milho na milpa ocupa um lugar central na identidade camponesa dos povos indígenas e das populações mestiças não só em Chiapas, mas em toda a Mesoamérica, que dependem em grande parte dele para sua subsistência. Isso ocorre apesar de mais de trinta anos de políticas neoliberais terem minado sistematicamente a segurança alimentar de milhões de camponeses na região ( Solis & Aguilar, 2007SOLÍS, Daniel Villafuerte & AGUILAR, María del Carmen García. 2007. “Veinte años de neoliberalismo en el campo chiapaneco”. Anuario 2006 del Centro de Estudios Superiores de México y Centroamérica. Tuxtla Gutiérrez, Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas/Centro de Estudios Superiores de México y Centroamérica, pp. 139-168.). Nesse sentido, o milho, como integrante das relações da milpa, faz parte dos tecidos socionaturais de diversas paisagens sociais em todo o México e na América Central. Os zapatistas politizam essa relação generalizada de forma particular, insistindo no cultivo da milpa, principalmente por meio de práticas agroecológicas, como um elemento indispensável da autonomia. A conquista de níveis de soberania alimentar, em terras agrícolas que antes foram ocupadas por latifundiários, mantém afastados os interesses dos grandes proprietários de terras e as condições de trabalho baseadas na exploração. Nesse sentido, os tecidos bordados são uma expressão artística de uma declaração política mais ampla: a rebelião zapatista local cresce do ixim, e o ixim na milpa estabelece um vínculo estreito entre seres humanos e não humanos, semeia território e, em resumo, é o que possibilita as condições para sustentar uma vida-existência em comum.

Sugiro que a autonomia é sustentada por sua relação com a milpa não apenas como um alimento básico necessário como parte da segurança alimentar local, mas porque ele tem chu’lel, a energia espiritual que se aproxima da alma ou do coração em espanhol e, conforme descreve López, seu grão tem ts’akal-kuxul sok ay sch’ulel, que é pleno porque tem vida e espírito. Ixim é o que faz parte do p’ijil o’tanil, ou seja, da sabedoria-coração (sentimento-conhecimento) que todos os seres possuem para existir no mundo ( Moreno, 2021MORENO, María Patricia Pérez. Abr. 2021. “El Bats’il K’op Tseltal frente al proceso colonial”. Revista de la Universidad de México, 3: 73-79.). Por essa razão, são feitas oferendas à terra antes da semeadura. No dia 3 de maio, dia da Chan Santa Cruz, habitantes de comunidades maia realizam cerimônias nas nascentes e em outras fontes de água para pedir uma estação chuvosa adequada, chuva suficiente para garantir uma boa colheita e um bem-estar coletivo, não apenas para os moradores, mas para a terra, os espíritos e os ancestrais. De modo semelhante, as oferendas também são colocadas ao redor da milpa para pedir permissão quando chega a época da colheita.

Assim, o cuidado coletivo na autonomia passa pela milpa. Dado o locus do ixim na vida comunitária e como parte da luta política, não é de surpreender que as primeiras atividades do governo autônomo tenham consistido em definir as diretrizes para a implementação de uma reforma agrária zapatista, incluindo os esquemas de posse da terra e os acordos sobre como cultivá-la. Mais de um século de uma economia agrícola baseada nas fazendas, que dependia principalmente do pastoreio de gado, deixou o solo severamente esgotado e praticamente infértil. De fato, estima-se que 73% da Selva Lacandona tenha sido desmatado durante o século XX, sendo uma das principais razões a derrubada de árvores para abrir espaço para a criação de gado. No município autônomo de 17 de Noviembre, as terras recuperadas em 1994 estavam tão erodidas que, durante os primeiros anos posteriores ao levante armado, nas novas comunidades zapatistas era quase impossível semear a milpa e colher seu milho. Durante as entrevistas realizadas no município, os membros das comunidades zapatistas lembraram que, além de o solo ter perdido seus nutrientes, a grama que restou estava cheia de carrapatos, que antes se alimentavam do sangue do gado. Andar pela grama implicava a exposição a milhares desses pequenos animais. Vários anos se passaram antes de que a terra recuperasse sua fertilidade e outros animais, mais benéficos e menos prejudiciais, ocupassem o espaço.

O restabelecimento de um vínculo com a terra por meio da autonomia exigiu a reposição dos nutrientes do solo, um compromisso que levou vários ciclos agrícolas e promoveu a cura mútua entre a terra e a comunidade. Ao mesmo tempo, foi necessário reinventar as técnicas agrícolas, não apenas a partir das técnicas e do conhecimento compartilhado e transmitido entre as gerações pelos anciões, mas também do que foi aprendido por meio de intercâmbios agroecológicos com várias organizações camponesas, como a Via Campesina, uma rede global de agricultores fundada em 1993, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil. Ambas dialogaram e compartilharam aprendizados com os governos autônomos zapatistas durante a primeira década dos anos 2000. Alguns dos primeiros acordos das assembleias municipais autônomas foram a proibição do uso de pesticidas e fertilizantes químicos, bem como a proibição da extração de madeira para que as florestas pudessem se recuperar após anos de desmatamento. Ao mesmo tempo, estabeleceram-se milpas coletivas nas quais todas as famílias das comunidades zapatistas são responsáveis por trabalhar em turnos, e cuja colheita faz parte de um fundo coletivo. A simbiose entre o ixim na milpa e as pessoas restaurou as relações que possibilitam o florescimento da vida.

Tais práticas foram implementadas juntamente com uma reforma agrária autônoma. As políticas autônomas, as assembleias municipais e no nível dos Caracoles optaram pelo uso comunitário da terra, que é diferente da propriedade comunitária. Como descrevo pormenorizadamente em outras publicações, ao invés de se basear em títulos coletivos concedidos pelo governo autônomo, o sentimento de pertencer à comunidade, e, portanto, o direito de ter lotes de terra para semear milpa, é dado por meio da participação em todas as atividades comunitárias ( Mora, 2018MORA, Mariana. 2018. Política Kuxlejal, autonomía indígena, el Estado racial e investigación descolonizante en comunidades zapatistas. Cidade do México, Ciesas.). As famílias que vivem em uma comunidade zapatista têm o direito de uso das terras recuperadas, desde que participem politicamente das assembleias e cumpram com o trabalho comunitário, incluindo o cultivo das milpas familiares, o trabalho agrícola nos campos comunitários, como os lotes coletivos de café ou banana, o cuidado coletivo das nascentes e do sistema de água, entre outras tarefas. A relação entre a comunidade e a natureza não passa por um título de propriedade, nem mesmo por um título concedido por um governo autônomo, mas implica uma redefinição do que Federici ( 2018FEDERICI, Silvia. 2018. Re-enchanting the World: Feminism and the Politics of the Commons. Oakland, PM Press.) chama de comum. Para a autora, o comum não é um passado a ser escavado e recuperado levantando as camadas da época das grandes propriedades e de outras instituições de cunho colonial, mas a reconfiguração das memórias sociais tecidas a partir de práticas comunitárias profundamente enraizadas, que, por sua vez, estabelecem relações profundas entre humanos e não humanos.

No municipio 17 de noviembre, existem comissões político-administrativas que implementam os acordos de autonomia. Elas existem à margem das instituições estatais e essencialmente assumem o papel de instituições governamentais, rejeitando os programas sociais oficiais, implementados pelo Estado. Inclusive, acabam resolvendo pendências e conflitos agrários que a Procuradoria Agrária havia deixado em um estado de limbo por décadas ( Mora, 2013MORA, Mariana. 2013. “La politización de la justicia zapatista frente a los efectos de la guerra de baja intensidad en Chiapas”. In: SIERRA, María Teresa; SIEDER, Rachel; CASTILLO, Rosalva Aída Hernández (coords.). Justicias indígenas y Estado: Violencias contemporáneas. Cidade do Mexico, Ciesas/Flacso.). Foi a partir dessas práticas agrárias focadas na milpa e na posse autônoma da terra que o restante das esferas da autonomia tomou forma. A comissão autônoma de saúde, por exemplo, está intimamente ligada ao cuidado das milpas e das florestas. Isso implica enfatizar que a saúde não é a ausência de doenças, mas o bem-estar do coração comunitário e das relações entre plantas e humanos que dão força ao corpo coletivo e à terra. Por sua parte, o currículo autônomo das escolas primárias zapatistas tem como ponto de partida e nó central os conhecimentos que dão vida à milpa, ou o que a antropóloga María Bertely (2019) chama de pedagogias da milpa.

As três comissões sustentam o projeto de autonomia no município de 17 de Noviembre porque a combinação de suas atividades gera as condições para uma noção integral de saúde, entendida como os estados comuns que dão força à comunidade, incluindo a natureza. Por sua vez, são condições cotidianas que possibilitam o lekil kuxlejal, um conceito que em Tseltal se refere a uma vida-existência digna e coletiva entre seres humanos e entidades não humanas. Lekil kuxlejal faz referência a uma força coletiva integral, impulsionada por uma consciência comunitária que coloca no centro o cuidado do território, dos espíritos, dos ancestrais e de todas as atividades de homens e mulheres que, em seu conjunto, sustentam o comum.

Depois de se descrever a rede de relações socionaturais que passam pela milpa e que ancoram os processos de tomada de decisão na autonomia, o conceito de “cuidado” parece ser muito limitado. Não parece expressar a densidade de elementos que formam o o’tan, o coração, da autonomia. Por isso, perguntei a Vicky Velasco, uma liderança tseltal com quem tive o privilégio de trabalhar em projetos coletivos de mulheres no território zapatista no final da década de 1990, como ela descreveria o detalhado acima. Depois de anos sem nos ver, coincidimos no encontro de mulheres em 2018. Algum tempo depois, procurei-a para conversar sobre os caminhos percorridos na autonomia e esses elementos relacionados ao cuidado. Referiu-se a kanantayel lum k´inal, ao fato de que todas e todos cuidam e contribuem para o cuidado coletivo da Terra, que é o todo. Kanan é o ato de cuidar do todo com base em vínculos de respeito. Quando se torna plural, é kanantayel. Lum k’inal poderia ser traduzido em termos estritos como terra, mas se refere ao todo, aos seres humanos, aos espíritos, aos ancestrais, aos animais e às plantas. Explica:

Cada persona es kanan lum k’inal porque cuida la tierra, y eso se vuelve plural. Ese kanan, ese cuidado, se convierte en kanan lekil kuxlejal, en cuidar la vida-existencia digna. Cuando hablan [los ancianos] en la comunidad, cuando hay una asamblea o cuando hay un festejo y le rezan a la naturaleza, en todos esos momentos, hablamos del gran respeto que le debemos mostrar a la tierra. De ahí sobrevivimos, de ahí somos. Ahí entra todo lo que es el respeto, el respeto mutuo desde el corazón y en lo espiritual. Cuando nos referimos a ese respeto, no es sólo algo hablado, sino es lo que se vive desde el corazón, es la forma en que caminamos y nos relacionamos. Es lo que le da sentido a la autonomía. [Cada pessoa é kanan lum k’inal porque cuida da terra, e isso se torna plural. Esse kanan, esse cuidado, torna-se kanan lekil kuxlejal, o cuidado da vida-existência digna. Quando [os anciãos] falam na comunidade, quando há uma assembleia ou quando há uma celebração e eles rezam para a natureza, em todos esses momentos, falamos sobre o grande respeito que devemos demons trar pela terra. Daí é que sobrevivemos, daí é que somos. É aí que entra o respeito, o respeito mútuo de coração e no espiritual. Quando nos referimos a esse respeito, não se trata apenas de algo falado, mas é o que é vivido do coração, é a forma como andamos e nos relacionamos. É o que dá sentido à autonomia]. (Vicky Velasco, comunicação pessoal, 2023).

Kanantayel, as relações e os vínculos de cuidado coletivo que sustentam a vida-existência do lum k’inal, reflete um sentido cosmopolítico na autonomia zapatista. É uma contribuição e um convite para repensar o cuidado além das divisões binárias liberais do pensamento ocidentalizado e até mesmo além das contribuições de alguns feminismos. Soma-se aos esforços recentes de intelectuais dos povos originários que reconceitualizam o cuidado como práticas comunitárias que possibilitam a permanência da vida. No caso da Mesoamérica, Gladys Tzul Tzul tem argumentado que as responsabilidades coletivas que sustentam uma vida sociopolítica e espiritual comunitária são fundamentais para as práticas de governos autônomos ( 2022TZUL TZUL, Gladys. 2022. “Archipiélago y expansión algunas dinámicas para comprender la política comunal”. Ichan Tecolotl, 368.). Discute também como o trabalho comunitário que ela considera a espinha dorsal do governo autônomo comunitário abre horizontes éticos baseados na inter-relação entre a tomada de decisões e a energia social necessária para viver coletivamente. Ela dá o exemplo da manutenção da água. Explica que é motivo de vergonha para os membros de sua comunidade beber água sem antes ter trabalhado para limpar os tanques. E para limpar os tanques, são estabelecidos horários, turnos e acordos coletivos. A água potável, como atividade vital, é possível graças a essas decisões e ações coletivas. Por esse motivo, Tzul Tzul insiste que a comunidade não é uma identidade, é uma relação social, é uma maneira de dar forma e significado à vida, é uma ética política que tem pouco ou nada a ver com uma ética do trabalho.

Tzul Tzul insiste que essas expressões de autonomia são um arquipélago de possibilidades materializadas que geram fendas dentro da base colonial racial e patriarcal sobre a qual os Estados latino-americanos estão fundados. Se o kanantayel está no centro político da autonomia e dos governos comunitários de muitos povos originários mesoamericanos, as perguntas que surgem são: contra quais estruturas de opressão ele está posicionado? Também: quais são os conceitos em Tseltal que nomeiam essas estruturas e que adquirem um significado específico na autonomia? Volto novamente ao Encontro Internacional de Mulheres que Lutam, para me referir à figura do ajvalil-marido, como uma segunda contribuição conceitual que as comunidades zapatistas oferecem a outras lutas sociais.

O ajvalil-marido e o colonialismo expresso por meio da fazenda

Depois de informar os detalhes logísticos do Encontro, a Capitã Erika descreveu como era a vida nas comunidades tseltal, tojolabal, ch’ol e tsotsil antes do levante zapatista em 1994, condições em que a vida era tão frágil que, com relativa frequência, mulheres e homens morriam de doenças comuns, como um resfriado ou uma infecção estomacal. Erika contou que, embora nesse momento ocupasse um cargo no EZLN, sua família passou pela mesma situação. De fato, ela deixou seu povoado por um tempo para trabalhar como empregada doméstica: “ Trabajé como sirvienta en la casa de una familia kaxlan sin recibir un salario” [Trabalhei como faxineira na casa de uma família kaxlan 11 11 Kaxlan é uma palavra em Tseltal que se refere a qualquer pessoa fora das comunidades, especialmente pessoas brancas. sem receber um salário] (Capitã Erika, comunicação pública, 2018), disse. Pela mesma razão, ela está intimamente familiarizada com o racismo histórico reproduzido quando alguém é obrigado a atender e garantir o bem-estar dos outros às custas do bem-estar de si mesmo e do coletivo do qual faz parte. Essa é uma pista importante que nos ajuda a entender o peso dado na autonomia ao kanantayel, em um sentido diferente do cuidado como um nicho de ação que sustenta lógicas coloniais racializadas e atravessadas por desvalorizações de gênero.

As participantes da reunião fizemos uma longa pausa nesse contraste, não somente por conta de tudo o condensado na breve explicação de Erika, mas também porque, no final de seu discurso, ela deu a palavra a representantes dos cinco Caracoles. Cada uma delas teve sua vez no centro do palco para expor, nas palavras de algumas mulheres Tsotsil do Caracol de Oventic, “ como eran las condiciones antes de la lucha” [como eram as condições antes da luta] (Mulheres zapatistas, comunicação pública, 2018). Elas se remeteram ao que Rivera Cusicanqui ( 2010RIVERA CUSICANQUI, Silvia. 2010. Violencias (re)encubiertas en Bolivia. La Paz, La Mirada Salvaje/Editorial Piedra Rota.) chama de memórias longas; neste caso, remontaram-se a mais de cinco séculos atrás, nas suas próprias palavras, “ desde la llegada de los españoles llegó la época de la esclavitud, la explotación, represión y exclusión para nosotros. Éramos explotados por los patrones, las decisiones las tomaba el capataz y el hombre de la familia, nos trataban como animales” [desde a chegada dos espanhóis chegou o tempo da escravidão, da exploração, da repressão e da exclusão para nós. Éramos exploradas pelos patrões, as decisões eram tomadas pelo capataz e pelo pai de família, éramos tratadas como animais] (Mulheres zapatistas, comunicação pública, 2018). Por sua vez, suas palavras estabeleceram um continuum com memórias mais curtas, especificamente com aquilo que em comunidades tseltal, tsotsil e tojolabal é conhecido como a época das fazendas, ou os tempos do mosjatel em Ch’ol, a época do baldio, o período de meados do século XIX até o final da década de 1970 e em algumas regiões até o levante zapatista, quando famílias e comunidades indígenas trabalhavam nas terras sob o controle da elite mestiça local, que as explorava na produção de café, cana-de-açúcar e gado, entre outros produtos ( Rus, 2012RUS, Jan. 2012. El ocaso de las fincas y la transformación de la sociedad indígenas de los Altos de Chiapas. Tuxtla Gutierrez, Unicach.).

As representantes dos Caracoles compartilharam lembranças coletivas de sofrimento nas fazendas e o que significava produzir para o proprietário em troca de um pequeno lote de terra para autoconsumo. Descreveram como, apesar de trabalharem nos lotes, as colheitas eram insuficientes, tornando quase inevitável pedir dinheiro emprestado aos proprietários para sobreviver. Cada novo empréstimo se somava a uma dívida que nunca se terminava de pagar. Compartilharam também histórias de fome e fizeram menção à dor imensa de ver crianças morrendo de doenças comuns. O que escutamos nesse dia foram memórias coletivas que mulheres e homens das comunidades têm relatado repetidamente nos eventos públicos zapatistas, incluindo outros encontros de mulheres, como uma reunião acontecida em 2007. Do mesmo modo, são as principais narrativas que escuto ao longo dos anos em que tenho acompanhado os processos de autonomia no município de 17 de Noviembre e em outras regiões zapatistas.

Como esses eram testemunhos que eu já tinha ouvido várias vezes, durante essa parte do encontro senti uma tensão em meu corpo. Tomei consciência do impulso de parar de escutar, porque já escutara isso antes. Ao mesmo tempo, lembrei-me de que tinha o compromisso de exercer uma política de escuta, o que implicava deter-me, mesmo no já conhecido, para compreender outras dimensões e pontos de encontro possíveis. Durante o evento, além das palavras transmitidas, prestei atenção nos tons e em suas saturações afetivas. Ficou evidente que a repetição persiste devido à insistência da dor que ainda sangra. Apesar de a época das fazendas ser coisa do passado, as estruturas coloniais sobre as quais elas se assentavam ainda permanecem ativas (Mora, 2017). É por isso que continua a doer, e é essa dor, na forma de reclamação e rejeição, que continua a ser comunicada. Juan “Xuno” López Intzin ( 2015INTZIN, Juan “Xuno” López. 2015. “P’ajel-uts’inel: nombrando el racismo y la discriminación”. Chiapas Paralelo. https://www.chiapasparalelo.com/opinion/2015/03/pajel-utsinel-nombrando-el-racismo-y-la-discriminacion/.
https://www.chiapasparalelo.com/opinion/...
) se refere a esse sentimento como uts’inel, como uma dor que se estende através do tempo, que age contra a dignidade humana e a natureza, um conceito que se aproxima do que em espanhol seria classificado como racismo.

A antropóloga afro-caribenha Deborah Thomas ( 2019THOMAS, Deborah. 2019. Political Life in the Wake of the Plantation. Durham, Duke University Press.) fala dos arquivos afetivos, outras formas de testemunho e, portanto, de nomear estruturas de opressão. São arquivos afetivos que estão inscritos na pele, no coração e em um conjunto de emoções que também narram a formação do Estado. A subjetivação é um registro que imprime os traços deixados pelo Estado em planos íntimos e afetivos. Por meio da repetição constante desses arquivos afetivos que remetem aos tempos das fazendas, os integrantes das comunidades zapatistas traçam um ponto de ancoragem negativo para que a implementação diária da autonomia adquira seu significado e encontre maneiras de se nutrir e de nutrir seu próprio terreno.

Ao mesmo tempo, notei uma insistência em narrar a era das fazendas com intensidades e tons diferentes dos de outras ocasiões. Chamou minha atenção o fato de que, nessa reunião, os depoimentos se referiram explicitamente à violência sexual que permeia as lembranças da vida nas fazendas. Em outras ocasiões, essas memórias foram comunicadas implicitamente, por meio de palavras veladas ou referências indiretas. Talvez nesse encontro de mulheres, essas memórias sociais tenham assumido um papel predominante, porque é uma nova geração de mulheres zapatistas que as narra. Não apenas se referiram a esses eventos de forma direta, mas também associaram a violência sexual perpetrada pelos fazendeiros às diferentes formas de abuso físico e emocional que suas mães, avós e bisavós sofreram também nas mãos de seus maridos, incluindo situações vivenciadas por elas mesmas.

Essa complexa análise do poder foi resumida por Maribel, uma mulher tseltal do Caracol de Roberto Barrios, quando disse que “ los patrones salvajes de la finca que abusaron sexualmente de nuestras abuelas, humillando con desprecio, maltrato y muerte. Nuestros maridos traían la mala costumbre del patrón” [os patrões selvagens da fazenda abusavam sexualmente de nossas avós, humilhando-as com desprezo, maus-tratos e morte. Nossos maridos tinham os maus hábitos dos patrões] (Maribel, comunicação pública, 2018). Por sua vez, uma representante do Caracol de Oventic sintetizou o vínculo entre as duas masculinidades através de um conceito que eu não tinha escutado antes. Ela explicou que, naquela época, “ no podíamos levantar la voz, mucho menos sonreír, ni rebelarnos contra el marido-patrón” [não podíamos levantar a voz, muito menos sorrir, nem nos rebelar contra o marido-patrão] (Maribel, comunicação pública, 2018).

Gostaria de me deter nessa figura do marido-patrão, a fim de indagar sobre as dimensões históricas e as estruturas de opressão que o conceito condensa. Considero que o termo encapsula uma matriz de poder colonial que se torna evidente quando se entende a palavra a partir de seu significado na língua Tseltal. A palavra equivalente para patrão é ajvalil. No entanto, ajvalil é um termo que não se limita à figura de autoridade de uma instituição baseada em relações econômicas de exploração; é um termo que, por sua vez, engloba figuras de comando nas esferas políticas, as de um governante que tem uma posição racializada superior, ou seja, que é um kaxlan, um forasteiro, uma pessoa de fora e que não pertence aos povos originais. Em tseltal, o termo ajvalil é usado tanto para se referir ao patrão da fazenda ou a qualquer outro patrão de qualquer emprego, seja em uma casa como empregada doméstica ou em uma obra como pedreiro, quanto para falar do presidente municipal ou do governador. No contexto histórico das terras altas, da zona norte e dos vales da Selva Lacandona em Chiapas, o patrão que explora economicamente a população local e o que governa como autoridade política local geralmente convergem em uma mesma pessoa ou em um pequeno grupo de famílias proprietárias de terras. Assim, famílias que antigamente foram proprietárias de fazendas, em muitos casos, continuam a ser autoridades políticas do Estado mexicano em nível local, por exemplo como presidentes municipais ( Bobrow-Strain, 2007BOBROW-STRAIN, Aaron. 2007. Intimate Enemies: Landwoners, Power and Violence in Chiapas. Durham, Duke University Press.).

Nas palavras das participantes dos Caracoles de Roberto Barrios e de Oventic, o ajvalil está imbricado com a figura do marido como parte da matriz racial e heteropatriarcal do poder colonial, que, embora cristalizada na instituição da fazenda, continua a fazer parte do andaime que forma o Estado hoje. Por meio da figura do ajvalil-marido, as representantes dos Caracoles oferecem uma teorização das estruturas de poder nas quais a figura da mulher indígena é subordinada em relação à figura de seu parceiro indígena homem e em relação à mulher kaxlan da casa-grande, a casa do proprietário de terras; ambos, por sua vez, mantêm uma relação ambígua de cumplicidade e mecanismos de controle exercidos pela figura do patrão kaxlan.

A figura do ajvalil-marido é uma intervenção conceitual que emerge das reflexões de mulheres tseltal, tsotsil, tojobal e ch’ol que participam há quase trinta anos do exercício diário da autonomia em seus territórios. Ela torna complexa uma análise das estruturas de poder que o próprio comando do EZLN tem expressado em diferentes ocasiões, como no comunicado intitulado “Primera parte: Una finca, un mundo, una guerra, pocas probabilidades”.

Certamente não estamos mais na época das fazendas, mas, como já foi argumentado no caso dos povos indígenas ( Cervone & Cucurí, 2017CERVONE, Emma & CUCURÍ, Cristina. 2017. “Desigualdad de género, justicia indígena y Estado intercultural en Chimborazo, Ecuador”. In: SIEDER, Rachel (coord.). Exigiendo justicia y seguridad: Mujeres indígenas y pluralidades legales en América Latina. Cidade do México, Ciesas.; Cumes, 2012CUMES, Aura. 2012. “Mujeres indígenas, patriarcado y colonialismo: un desafío a la segregación comprensiva de las formas de dominio”. Anuario Hojas de Warmi, s/n.: 1-18.; Nimantuj, 2008NIMANTUJ, Irma Alicia Velázques. 2008. Pueblos Indígenas, Estado y Lucha por Tierra en Guatemala. Guatemala, Avancso.) e da diáspora africana ( Crichlow & Northover, 2009CRICHLOW, Michaeline & NORTHOVER, Patricia. 2009. Globalization and the Post-Creole Imagination: Notes on Fleeing the Plantation. Durham, Duke University Press.; Glissant, 2018GLISSANT, Edouard. 2018. Poética de la relación. Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmes.; Pinho, 2022; Robinson, 2018; Thomas, 2011), as estruturas de poder condensadas na instituição da fazenda e da plantação continuam a ser uma parte central do maquinário que forma os Estados da América Latina e do Caribe. Desse modo, seria reducionista entender as condições da vida nas fazendas no que hoje é o território zapatista como baseadas apenas na exploração do trabalho, deixando de fora da análise os componentes raciais e de gênero. A referência constante à fazenda tampouco pode ser entendida como uma simples metáfora. Pelo contrário, a fazenda e a figura do ajvalil, incluindo a do ajvalil-marido, encapsulam uma análise de um tipo de poder que surgiu desde o início da conquista e que continua a ser reproduzido até hoje. Tal análise dialoga e constrói pontes teórico-políticas com diversas lutas de outros povos indígenas do hemisfério e com as lutas de diferentes povos afrodescendentes.

Reflexões finais

A crítica expressa por mulheres zapatistas no Encontro Internacional de Mulheres que Lutam se concentrou nas maneiras pelas quais a permanência das estruturas de poder colonial espreme a energia vital de povos inteiros e dos territórios dos quais fazem parte. Sem dúvida, os modos de exploração nessas geografias racializadas são diversos e mudaram ao longo do tempo. Entretanto, o motor desse maquinário continua a ser lubrificado por meio de elementos que estão presentes em qualquer estrutura colonial despojamentos territoriais, imposição de formas alienígenas de governança, negação das maneiras próprias de tomada de decisão, assim como das ideias, das epistemologias, dos conceitos e dos idiomas dos povos, extração da sua força vital e de seus territórios para o bem-estar de outras populações, principalmente as de descendência europeia. É nesse terreno que se localizam as violências extremas e as biodespossessões atuais. Ao mesmo tempo, se entendermos as estruturas coloniais como técnicas inseparáveis da lógica do capital, então a ênfase excessiva na produção desloca e relega o trabalho do cuidado para esferas marginais, para os papéis de cuidado da força vital daqueles rotulados como superiores, de cuidado da vida do patrão e, em alguns casos, do patrão-marido. Nesse sentido, quando as mulheres representantes dos Caracoles se referiram ao ajvalil-marido, ofereceram às outras participantes uma maneira de nomearem e de se aproximarem das condições contemporâneas que tornam permissíveis as violências extremas e a morte lenta da terra.

É por isso que o conceito de ajvalil-marido encapsula o referente negativo que ordena e dá sentido às ações de cuidado coletivo como elementos que tornam possível um lekil kuxlejal por meio da criação de relacionamentos baseados no kanantayel lum k’inal. Os testemunhos e as ações de cuidado durante o Encontro, com base nos quais tecemos as reflexões apresentadas neste ensaio, lançaram as bases para descrever o terreno em que estávamos literalmente pisando, nas terras recuperadas em 1994, a partir das quais estão sendo impulsionados os processos de reterritorialização dos povos dos vales da Selva Lacandona. Nessas terras, o cuidado das condições que sustentam a vida-existência do comum emerge em dois planos inter-relacionados. Por um lado, descrevi os processos internos estabelecidos a partir do vínculo com o ixim, a relação simbiótica entre os seres humanos e o milho, que literalmente semeia e nutre a autonomia e as prioridades das principais comissões do município autônomo de 17 de Noviembre. Por outro lado, como parte de uma ética política que estabelece as diretrizes e os termos de interação com as pessoas convidadas a habitar e compartilhar no território autônomo.

O convite deste artigo foi aproximar-se dessas outras formas de entender o cuidado coletivo, além das estruturas analíticas feministas que recaem sobre as divisões binárias dos Estados liberais e das lógicas do capital. Para entender o peso de seus significados, recorremos aos arquivos afetivos acumulados em memórias longas. Ao mesmo tempo, à ênfase dada ao cuidado na e a partir da autonomia, as mulheres zapatistas têm acrescentado tonalidades, além de aumentar suas intensidades. Isso representa uma proposta da política diante de condições históricas marcadas pelo aumento acelerado de violências extremas, incluindo feminicídios, assassinatos e desaparecimentos forçados, juntamente com políticas extrativistas de vários tipos e megaprojetos de desenvolvimento. Acredito que a ênfase dada ao cuidado no Encontro Internacional de Mulheres que Lutam elevou sua potência política no contexto da autonomia a um patamar superior. Representou um convite irrecusável, expresso na recusa em deslocar o cuidado para o nível de infraestrutura e na insistência na ampliação de suas possibilidades transformadoras, por meio da construção de pontes com propostas semelhantes em diferentes geografias socionaturais.

Referências bibliográficas

  • ADBOU, Mohamed. 2023. “On the Ethics of Disagreements (Uṣūl al-Ikhtilaf) and the Ethics of Hospitality (Uṣūl al-Dhiyafa) between Spiritual and Non-Spiritual Leftists in the Newest Social Movements”. Political Theology, 24 (3): 261-282. https://doi.org/10.1080/1 462317X.2021.2003001.
    » https://doi.org/10.1080/1
  • AGUILAR, Yásnaya Gil. 2013. “La diversidad lingüística y la comunalidad”. Cuadernos del Sur, Revista de Ciencias Sociales, 18 (34): 71-81. https://cuadernosdelsur.com/revistas/34-enero-junio-2013/
    » https://cuadernosdelsur.com/revistas/34-enero-junio-2013/
  • AIHWA (Ong). 2006. Neoliberalism as Exception, Mutations in Citizenship and Sovereignty. Durham, Duke University Press.
  • AUBRY, Andrés. 2023. “Los caracoles zapatistas (Tema y variaciones)”. La Jornada: Ojarasca, 79. https://www.jornada.com.mx/2003/11/24/oja-caracoles.html
    » https://www.jornada.com.mx/2003/11/24/oja-caracoles.html
  • BASCHET, Jérome. 2004. “¿Más allá de la lucha por la humanidad y contra el neoliberalismo?”. Chiapas, 16. https://revistachiapas.org/No16/ch16baschet.html
    » https://revistachiapas.org/No16/ch16baschet.html
  • BLACKWELL, Maylei. 2023. Scales of Resistance: Indigenous Women’s Transborder Activism. Durham, Duke University Press.
  • BLASER, Mario. jul./dez. 2018. “Uma outra cosmopolítica é possível?”. Revista de @ntropologia da UFSCar, 10 (2).
  • BLASER, Mario & Marisol de la Cadena. 2018. “Introduction: Pluriverse, Proposals for a World of Many Worlds”. In: DE LA CADENA, M. & BLASER, M. A World of Many Worlds. Durham, Duke University Press, pp. 1-22.
  • BOBROW-STRAIN, Aaron. 2007. Intimate Enemies: Landwoners, Power and Violence in Chiapas. Durham, Duke University Press.
  • CABNAL, Lorena. 2010. “Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala”. In: CABNAL, Lorena. Feminismos diversos: el feminismo comunitario. Madri, ACSUR Las-Segovias, pp. 11-25.
  • CENTRO DE DERECHOS DE LA MUJER EN CHIAPAS. 2020. Informe temático Tierra y Territorio, desde la mirada de mujeres indígenas – campesinas de la Zona Norte, Selva, y Altos- Llanos de Chiapas. https://cdmch.org/2020/11/25/informe-tematico-tierra-y-territorio-desde-la-mirada-de-las-mujeres-indigenas-campesinas-de-la-zona-norte-selva-y-altos-llanos-de-chiapas/
    » https://cdmch.org/2020/11/25/informe-tematico-tierra-y-territorio-desde-la-mirada-de-las-mujeres-indigenas-campesinas-de-la-zona-norte-selva-y-altos-llanos-de-chiapas/
  • CERVONE, Emma & CUCURÍ, Cristina. 2017. “Desigualdad de género, justicia indígena y Estado intercultural en Chimborazo, Ecuador”. In: SIEDER, Rachel (coord.). Exigiendo justicia y seguridad: Mujeres indígenas y pluralidades legales en América Latina. Cidade do México, Ciesas.
  • CRICHLOW, Michaeline & NORTHOVER, Patricia. 2009. Globalization and the Post-Creole Imagination: Notes on Fleeing the Plantation. Durham, Duke University Press.
  • CUMES, Aura. 2012. “Mujeres indígenas, patriarcado y colonialismo: un desafío a la segregación comprensiva de las formas de dominio”. Anuario Hojas de Warmi, s/n.: 1-18.
  • CURIEL, Ochy. 2007. “Crítica poscolonial desde las prácticas políticas del feminismo antirracista”. Nómadas, 26: 92-101. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=105115241010
    » https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=105115241010
  • CURIEL, Ochy. 2014. “Hacia la construcción de un feminismo descolonizado”. In: MIÑOSO, Yuderkys Espinosa; CORREAL, Diana Gómez & MUÑOZ, Karina Ochoa (eds.). Tejiendo de otro modo: feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán, Editorial Universidad del Cauca.
  • ESCOBAR, Arturo. 2008. Territories of Difference: Place, Movements, Life, Redes. Durham, Duke University Press.
  • EZLN. 2018. “Primera parte: Una finca, un mundo, una guerra, pocas probabilidades”. https://enlacezapatista.ezln.org.mx/2018/08/20/300-primera-parte-una-finca-un-mundo-una-guerra-pocas-probabilidades-subcomandante-insurgente-moises-supgaleano/
    » https://enlacezapatista.ezln.org.mx/2018/08/20/300-primera-parte-una-finca-un-mundo-una-guerra-pocas-probabilidades-subcomandante-insurgente-moises-supgaleano/
  • FEDERICI, Silvia. 2013. Revolución en punto cero. Trabajo doméstico, reproducción y luchas feministas. Madri, Traficantes de Sueños.
  • FEDERICI, Silvia. 2018. Re-enchanting the World: Feminism and the Politics of the Commons. Oakland, PM Press.
  • GARCÍA DE LEÓN, Antonio. 1985. Resistencia y utopía: memorial de agravios y crónicas de revueltas y profecías acaecidas en la Provincia de Chiapas durante los últimos quinientos años de su historia. Cidade do México, Ediciones Era.
  • GLISSANT, Edouard. 2018. Poética de la relación. Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmes.
  • GÓMEZ, Antonio & RUIZ, Mario Humberto. 1992. Memoria Baldía: Los tojolabales y las fincas. Testimonios. Cidade do México, Unam.
  • GÓMEZ, Magdalena. 2004. “La constitucionalidad pendiente. La hora indígena en la Corte”. In: CAS
  • TILLO, Rosalva Aída Hernández; PAZ, Sarela & SIERRA, María Teresa (eds.). El Estado y los indígenas en los tiempos del PAN. Cidade do México, Ciesas, pp. 175-206.
  • GONZÁLEZ Casanova, Pablo. 2003. “Los Caracoles zapatistas: redes de resistencia y autonomía (Ensayo de interpretación)”. La Jornada. http://www.jornada.unam.mx/2003/09/26/per-texto.html
    » http://www.jornada.unam.mx/2003/09/26/per-texto.html
  • GOODALE, Mark & POSTERO, Nancy. 2013. Neoliberalism, Interrupted, Social Change and Contested Governance in Contemporary Latin America. Palo Alto, Stanford University Press.
  • GROBA, Constante González; LUCZAK, Ewa Barbara & NIEWIADOMSKA-FLIS, Urszula. 2023. Pathologizing Black Bodies: The Legacy of Plantation Slavery. New Brunswick, Routledge University Press.
  • HARTMANN, Heidi. 1981. The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism: A Debate on Class and Patriarchy. Londres, Pluto Press.
  • HOOKER, Juliet. 2020. Black and Indigenous Resistance in the Americas: From Multiculturalism to Racist Backlash. Lanham, Lexington Books.
  • INTZIN, Juan “Xuno” López. 2015. “P’ajel-uts’inel: nombrando el racismo y la discriminación”. Chiapas Paralelo. https://www.chiapasparalelo.com/opinion/2015/03/pajel-utsinel-nombrando-el-racismo-y-la-discriminacion/
    » https://www.chiapasparalelo.com/opinion/2015/03/pajel-utsinel-nombrando-el-racismo-y-la-discriminacion/
  • KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2010. La Chute du ciel. Paris, Terre Humaine/Plon.
  • KRENAK, Ailton. 2020. A vida não é útil: Ideias para salvar a humanidade. São Paulo, Companhia das Letras.
  • LUGONES, María. julio-diciembre 2008. “Colonialidad y género”. Revista Tabula Rasa, Bogotá, Colombia, 9: 73-101. https://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf
    » https://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf
  • MANDUJANO, Isaín. 26 maio 2023. “Disputa entre el CJNG y el Cártel de Sinaloa causa desplazamiento forzado y terror en Chiapas”. Revista Proceso. https://www.proceso.com.mx/nacional/2023/5/26/disputa-entre-el-cjng-el-cartel-de-sinaloa-causa-desplazamiento-forzado-terror-en-chiapas-video-307754.html
    » https://www.proceso.com.mx/nacional/2023/5/26/disputa-entre-el-cjng-el-cartel-de-sinaloa-causa-desplazamiento-forzado-terror-en-chiapas-video-307754.html
  • MARTÍ I PUIG, Salvador. 2022. “El muralismo zapatista: Una revuelta estética”. Latin American Research Review, 57 (1): 19-41.
  • MBEMBE, Archilles. 2003. “Necropolitics”. Public Culture, 15 (1): 11-40.
  • MIES, Maria. 1986. Patriarchy and Accumulation on a World Scale: Women in the International Division of Labour. Londres, Zed Books.
  • MILLAN, Moira. 2019. El tren del olvido. Buenos Aires, Planeta.
  • MORA, Mariana. 2020. “(Dis)placement of Anthropological Legal Activism, Racial Justice and the Ejido Tila, Mexico”. American Anthropologist, 122 (3): 606-617. https://doiorg/10.1111/aman.13426
  • MORA, Mariana. 2013. “La politización de la justicia zapatista frente a los efectos de la guerra de baja intensidad en Chiapas”. In: SIERRA, María Teresa; SIEDER, Rachel; CASTILLO, Rosalva Aída Hernández (coords.). Justicias indígenas y Estado: Violencias contemporáneas. Cidade do Mexico, Ciesas/Flacso.
  • MORA, Mariana. 2018. Política Kuxlejal, autonomía indígena, el Estado racial e investigación descolonizante en comunidades zapatistas. Cidade do México, Ciesas.
  • MORA, Mariana. 2011. “Producción de conocimientos en el terreno de la autonomía. La investigación como tema de debate políti co”. In: BARONNET, Bruno; MORA, Mariana & STAHLER-SHOLK, Richard (coords.). Luchas “muy otras”: Zapatismo y autonomía en las comunidades indígenas de Chiapas. México, UAM-X, Ciesas, Unach.
  • MORENO, María Patricia Pérez. Abr. 2021. “El Bats’il K’op Tseltal frente al proceso colonial”. Revista de la Universidad de México, 3: 73-79.
  • NÁJERA, Lourdes Gutiérrez & MALDONADO, Korinta. 2017. “Transnational settler colonial formations and global capital: A consideration of Indigenous Mexican migrants”. American Quarterly, 69 (4).
  • NIMANTUJ, Irma Alicia Velázques. 2008. Pueblos Indígenas, Estado y Lucha por Tierra en Guatemala. Guatemala, Avancso.
  • OROZCO, Amaia Pérez. 2014. Subversión feminista de la economía. Aportes para un debate sobre el conflicto capital-vida. Madri, Traficantes de Sueños.
  • PAREDES, Julieta & GUZMÁN, Adriana. 2014. El tejido de la rebeldía. ¿Qué es el feminismo comunitario? La Paz, Mujeres Creando Comunidad.
  • PINHO, Osmundo. 2021. Cativeiro: antinegritude e ancestralidade. Salvador, Segundo Selo.
  • REEDOCK, Rhoda. 1984. Women, Labour andStruggle in 20th Century: Trinidad and Tobago 1898-1960. La Haya, Institute of Social Studies.
  • REYES, Alvaro & Mara Kaufman. 2011. “Zapatista Autonomy and the New Practices of Decolonization”. South Atlantic Quarterly, 110 (2): 505-525.
  • REYES RAMOS, María Eugenia. 1992. El reparto de tierras y la política agraria en Chiapas, 1914-1988. Cidade do México, Unam.
  • RIVERA CUSICANQUI, Silvia. 17 de febrero 2019. “Tenemos que producir pensamiento a partir de lo cotidiano”. El Salto. https://www.elsaltodiario.com/feminismo-poscolonial/silvia-rivera-cusicanqui-producir-pensamiento-cotidiano-pensamiento-indigena
    » https://www.elsaltodiario.com/feminismo-poscolonial/silvia-rivera-cusicanqui-producir-pensamiento-cotidiano-pensamiento-indigena
  • RIVERA CUSICANQUI, Silvia. 2010. Violencias (re)encubiertas en Bolivia. La Paz, La Mirada Salvaje/Editorial Piedra Rota.
  • ROBINSON, Cedric. 2021. Marxismo negro: la formación de la tradición radical negra. Madri, Traficantes de Sueños.
  • RUS, Jan. 2012. El ocaso de las fincas y la transformación de la sociedad indígenas de los Altos de Chiapas. Tuxtla Gutierrez, Unicach.
  • SAAVEDRA, Laura. 2023. Corazonar las Justicias: Los saberes de las mujeres tseltales sobre violencias, justicias y derechos humanos. San Luis Potosi, Universidad Autónoma de San Luis Potosi.
  • SCHAVELZON, Salvador. 2016. “Apresentação: Dossiê Cosmopolíticas e ontologias relacionais entre povos indígenas e populações tradicionais na América Latina”. Revista de Antropología, USP, 59 (3): 7-17. https://www.revistasusp.br/ra/article/view/124798/121474
    » https://www.revistasusp.br/ra/article/view/124798/121474
  • SEGATO, Rita Laura. 2016. La guerra contra las mujeres. Madri, Traficantes de Sueños.
  • SOLÍS, Daniel Villafuerte & AGUILAR, María del Carmen García. 2007. “Veinte años de neoliberalismo en el campo chiapaneco”. Anuario 2006 del Centro de Estudios Superiores de México y Centroamérica. Tuxtla Gutiérrez, Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas/Centro de Estudios Superiores de México y Centroamérica, pp. 139-168.
  • SPEED, Shannon. 2019. Incarcerated Stories: Indigenous Women Migrants and Violence in the Settler-Capitalist State. Chapel Hill, NC, The University of North Carolina Press.
  • SPEED, Shannon. 2008. Rights in Rebellion: Indigenous Struggle and Human Rights in Chiapas. Palo Alto, Stanford University Press.
  • SPEED, Shannon & Álvaro Reyes. 2002. “In Our Own Defense. Rights and Resistence in Chiapas”. Political and Legal Anthropology Review, 25 (1): 69-79.
  • STENGERS, Isabelle. 2005. “The Cosmopolitical Proposal”. In: LATOUR Bruno & WEIBEL, Paul (coords.). Making Things Public: Atmospheres of Democracy. Cambridge, MIT Press.
  • STREET, Susan. (1996). “La palabra verdadera del zapatismo chiapaneco (Un nuevo ideario emancipatorio para la democracia)”. Chiapas, 2.
  • THOMAS, Deborah. 2019. Political Life in the Wake of the Plantation. Durham, Duke University Press.
  • TZUL TZUL, Gladys. 2022. “Archipiélago y expansión algunas dinámicas para comprender la política comunal”. Ichan Tecolotl, 368.
  • TZUL TZUL, Gladys. 2018. “Rebuilding Communal Life”. Nacla Report on the Americas, 50 (4): 404-407. DOI: 10.1080/10714839.2018.1550986.
    » https://doi.org/10.1080/10714839.2018.1550986
  • VEGA, Cristina. 2018. “Rutas de la reproducción y el cuidado por América Latina: Valorización colectiva y política”. In: AGUILAR, Raquel Gutiérrez (coord.). Comunidad, tramas comunitarias y producción de lo común. Debates contemporáneos desde América Latina. Oaxaca, Colectivo Editorial Pez en el Árbol/Editorial Casa de las Preguntas.
  • Financiamento:

    Uma parte da pesquisa apresentada neste artigo foi financiada pela Fundação Wennergren dos Estados Unidos.
  • 1
    Tradução por Daniel Ayala Contreras, doutorando do Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social, PPGAS-USP
  • 2
    Em 2003, o EZLN fundou cinco Caracoles ou zonas dentro do território zapatista, que agrupam o que àquela altura eram 38 municípios autônomos. Cada município, por sua vez, agrupa comunidades cuja população faz parte das bases de apoio do exército rebelde. Um desses Caracoles, o Caracol IV, tem sua sede na comunidade de Morelia, a mesma que é sede do município autônomo de 17 de Noviembre. Os outros Caracoles são Oventik, La Realidad, Roberto Barrios e Francisco Gómez. Em 2019, as regiões autônomas zapatistas foram ampliadas.
  • 3
    A região em que se localiza o município autônomo de 17 de Noviembre e os outros municípios que fazem parte do Caracol IV integravam o território político administrativo da cidade de Toniná, uma das cidades maias mais importantes do período clássico (250-900 d.C.).
  • 4
    Esse encontro internacional foi realizado no final de julho de 1996 e fez parte de uma série de reuniões no território zapatista para promover diálogos e tecer alianças com organizações em nível nacional e internacional. Baschet ( 2004BASCHET, Jérome. 2004. “¿Más allá de la lucha por la humanidad y contra el neoliberalismo?”. Chiapas, 16. https://revistachiapas.org/No16/ch16baschet.html.
    https://revistachiapas.org/No16/ch16basc...
    ) oferece uma leitura do evento como parte de genealogias mais amplas da tradição internacionalista das esquerdas no século XX.
  • 5
    Para uma descrição etnográfica das práticas diárias dessas comissões como parte dos processos de autonomia zapatista, o leitor pode consultar “Política kuxlejal, autonomía indígena, el Estado racial e investigación descolonizante en comunidades zapatistas” ( Mora, 2018MORA, Mariana. 2018. Política Kuxlejal, autonomía indígena, el Estado racial e investigación descolonizante en comunidades zapatistas. Cidade do México, Ciesas.); para uma descrição e análise detalhada da aplicação da justiça zapatista em relação às políticas de contrainsurgência do Estado mexicano, cumpre ler “La politización de la justicia zapatista frente a los efectos de la guerra de baja intensidad en Chiapas” ( Mora, 2013MORA, Mariana. 2013. “La politización de la justicia zapatista frente a los efectos de la guerra de baja intensidad en Chiapas”. In: SIERRA, María Teresa; SIEDER, Rachel; CASTILLO, Rosalva Aída Hernández (coords.). Justicias indígenas y Estado: Violencias contemporáneas. Cidade do Mexico, Ciesas/Flacso.); sobre as lutas territoriais e a era das fincas, “(Dis)placement of anthropological legal activism, racial justice and the Ejido Tila” ( Mora, 2020MORA, Mariana. 2020. “(Dis)placement of Anthropological Legal Activism, Racial Justice and the Ejido Tila, Mexico”. American Anthropologist, 122 (3): 606-617. https://doiorg/10.1111/aman.13426.
    https://doiorg/10.1111/aman.13426...
    ); a relação entre os sentidos do político em chave feminina, “Repensando la política y la descolonización en minúscula: Reflexiones sobre la praxis feminista desde el zapatismo” (2011); e sobre reflexões críticas entre a pesquisa antropológica e o zapatismo: “Producción de conocimientos en el terreno de la autonomía. La investigación como tema de debate político” (2011).
  • 6
    Por muitos anos, o estado de Chiapas não foi uma área de disputa entre os cartéis do crime organizado. No entanto, pouco tempo depois do encontro de mulheres, o cartel de Sinaloa e o cartel de Jalisco Nueva Generación iniciaram uma disputa pelo controle das rotas do tráfico de drogas e do mercado ilícito, conforme relatado na revista Proceso ( Mandujano, 2023MANDUJANO, Isaín. 26 maio 2023. “Disputa entre el CJNG y el Cártel de Sinaloa causa desplazamiento forzado y terror en Chiapas”. Revista Proceso. https://www.proceso.com.mx/nacional/2023/5/26/disputa-entre-el-cjng-el-cartel-de-sinaloa-causa-desplazamiento-forzado-terror-en-chiapas-video-307754.html.
    https://www.proceso.com.mx/nacional/2023...
    ).
  • 7
    Um dos casos mais emblemáticos da história recente do México é o desaparecimento forçado de 43 normalistas indígenas e camponeses da escola normal rural de Ayotzinapa, no estado de Guerrero, em 26 e 27 de setembro de 2014. Elementos das polícias municipal, estadual e federal, em cumplicidade com o grupo criminoso Guerreros Unidos, atacaram os estudantes, assassinaram três deles e desapareceram outros 43 na cidade de Iguala
  • 8
    Recupero reflexões e debates políticos que emergem da produção intelectual de estudiosos de povos indígenas nos Estados Unidos e no Canadá ( Blackwell, 2023BLACKWELL, Maylei. 2023. Scales of Resistance: Indigenous Women’s Transborder Activism. Durham, Duke University Press.; Nájera & Maldonado, 2017NÁJERA, Lourdes Gutiérrez & MALDONADO, Korinta. 2017. “Transnational settler colonial formations and global capital: A consideration of Indigenous Mexican migrants”. American Quarterly, 69 (4).; Speed, 2019SPEED, Shannon. 2019. Incarcerated Stories: Indigenous Women Migrants and Violence in the Settler-Capitalist State. Chapel Hill, NC, The University of North Carolina Press.), em relação à presença de populações não originárias em seus territórios, incluindo povos indígenas que migraram ou que foram deslocados de seus próprios territórios e populações de ascendência africana. Os debates giram em torno do tipo de arranjos éticos e políticos que precisam ser estabelecidos para que essas populações não reproduzam a lógica dos colonizadores e do que em inglês se conhece como settler colonialism (Wolfe, 2006).
  • 9
    Para uma análise da lógica do capital baseada na fazenda como uma instituição colonial, o leitor pode consultar o comunicado “Primera parte: Una finca, un mundo, una guerra, pocas probabilidades” ( 2018EZLN. 2018. “Primera parte: Una finca, un mundo, una guerra, pocas probabilidades”. https://enlacezapatista.ezln.org.mx/2018/08/20/300-primera-parte-una-finca-un-mundo-una-guerra-pocas-probabilidades-subcomandante-insurgente-moises-supgaleano/.
    https://enlacezapatista.ezln.org.mx/2018...
    ).
  • 10
    ladinas, palavra usada para se referir à população branca e não-indígena
  • 11
    Kaxlan é uma palavra em Tseltal que se refere a qualquer pessoa fora das comunidades, especialmente pessoas brancas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2022
  • Aceito
    17 Out 2023
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com