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As Necrópoles e o Concreto Armado: reflexões antropológicas e históricas sobre os apartheids em Brasília e Joanesburgo

resumo

Este artigo compara o desenvolvimento das cidades de Brasília (Brasil) e Joanesburgo (África do Sul) pela análise dos dualismos evento e cotidiano; vida e não-vida. A partir de uma metodologia histórica e à luz das teorias antropológicas, indicamos como a constituição desses dois espaços do apartheid, esses eventos e cotidianos, se relacionam pelas concretizações das utopias eugenistas que reificam pessoas já racializadas na colonização. Pessoas que continuam tendo uma função dúbia de objeto e abjeto. Assim, apontamos o cimento como ator da tecnosfera no Negroceno, como sugeriu Malcon Ferdinand e, no cálculo de sua transformação em concreto, vemos como são indispensáveis as pessoas (as vidas) lidas pelo capitalismo/colonialismo como commodities (não-vida), extraídas dos resíduos dos arranjos políticos coloniais. Por fim, conceituamos as cidades modernas como necrópoles sem nos esquecer que as alternativas ao colonialismo, apresentadas pelas histórias negras, podem indicar experiências distintas do que seja o corpo e o espaço.

palavras-chave
racismo; apartheid; evento; cotidiano; Negroceno

abstract

This paper compares the development of the cities of Brasília (Brazil) and Johannesburg (South Africa) through the analysis of event and everyday dualisms, as well as life and non-life. Based on a historical methodology and in the light of anthropological theories, we indicate how the constitution of these two apartheid spaces, these events and everyday life, are related through the realization of eugenic utopias that reify people already racialized in colonization. People who still have a dubious function of object and abject. Thus, we point the cement as an actor of the technosphere in the Negrocene, as Malcon Ferdinand suggested and, in the calculation of its transformation into concrete, we see how indispensable people (lives) read by capitalism/colonialism as commodities (non-life), are extracted from the residues of colonial political arrangements. Finally, we conceptualize modern cities as necropolis without forgetting that the alternatives to colonialism, presented by black histories, may indicate different experiences of what body and space are.

keywords
racism; apartheid; event; everyday life; Negrocene

“(…) matéria é uma casa que habita a gente no

finito da jornada, mesmo que cimento

prometa eternidades, é de mariô y

barro a lembrança da acolhida

(palha, ou clorofila morrida, y

tecnologia de terra muito molhada

que a primeira deusa, velha, lenta, macerou).”

Tatiana Nascimento, 2018NASCIMENTO, Tatiana. 2018. mil994. Brasília, padê editorial.

Cotidiano e evento 1 1 Este artigo é um desdobramento das pesquisas realizadas no doutorado ( Lemos, 2022) e das vivências enquanto como homem negro, membro de comunidade tradicional de matriz africana, nascido e criado nas satélites de Brasília.

Na cidade moderna de continuidade colonial a disposição dos indivíduos, reduzidos aos seus corpos, manteve uma taxonomia racializada e uma lógica perversa do visível-invisível, valor-desvalor ( Fanon, 1968FANON, Frantz. 1968. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.). Assim, as condições históricas da contemporaneidade solidificaram os espaços cindidos que por sua vez “facilitaram o mecanismo de expansão do capital no espaço através do uso das formas” ( Santos, 1977SANTOS, Milton. 1977. A Totalidade do Diabo: como as formas geográficas difundem o capital e mudam as estruturas sociais. Contexto. São Paulo, Hucitec.).

Engenharia, arquitetura e urbanismo alinhadas a outras ciências como a medicina, a sociologia, a história, a estatística, a antropologia e a geografia perpetuaram práticas coloniais e racistas. Por meio desses saberes seccionam-se territórios e criam-se formas para estabelecer os corpos apropriados a cada lugar. Essa cisão, contudo, se torna potente devido à equiparação que o capitalismo promove entre alguns seres humanos e matérias geológicas. Aqui, o cimento se tornou um agente do capital.

Esses saberes se apoiaram na técnica do concreto armado. Naturalizou-se de tal modo o uso do cimento que até hoje poucos são os projetos que lançam mão de outros sistemas construtivos. Depois, nenhum outro sistema tem mais espaço nos currículos de arquitetura e engenharia como o concreto. Existem, inclusive, disciplinas dedicadas exclusivamente à aplicação do material: Resistência, Estabilidade, Sistemas Estruturais, Cálculo de Concreto Armado. E, mesmo nas disciplinas de desenhos técnicos, o concreto aparece subentendido nos projetos como pressuposto de todas as construções. Os prejuízos da hegemonia desse material são variados e vão da degradação ambiental à desqualificação dos trabalhadores e o risco ao qual são submetidos.

Pensar o uso do concreto é refletir sobre os eventos que ele proporcionou. Seja a construção de Brasília e as remoções forçadas para às cidades-satélites aqui chamadas apenas “satélites” -, seja a modernização de Joanesburgo sob o apartheid e o surgimento de Soweto, também resultado de remoções ( Borges, 2009BORGES, Antonádia M. 2009. Explorando a noção de etnografia popular: comparações e transformações a partir dos casos das cidades-satélites brasileiras e das townships sul-africanas. Cuadernos de Antropoligia Social, n. 29: 23-42.; Lemos, 2018LEMOS, Guilherme Oliveira. 2018. De Soweto à Ceilândia: siglas de segregação racial. Paranoá: cadernos de arquitetura e urbanismo, vol. 18, n.18: 102-114. DOI 10.18830/issn.1679-0944.
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). Além disso, é possível refletir sobre as alterações dos ciclos da vida e “não-vida” e como o processo de transformação do cimento em concreto é capaz de valorar vidas desprezíveis e desejáveis.

Esse artigo é perpassado pelo esforço, recorrente nas ciências sociais e humanas, em questionar as máximas dualistas de natureza e cultura. Indagações vinculadas a tantos outros dualismos como sujeito/objeto, orgânico/inorgânico, saber/ não-saber. Aqui, sob a influência das antropólogas Veena Das ( 1995DAS, Veena. 1995. Critical events: An anthropological perspective on contemporary. India. Delhi, Oxford University Press.) e Elizabeth Povinelli ( 1995POVINELLI, Elizabeth. 1995. Do Rock Listen? the cultural politics of apprehending Australian aboriginal labor. American Anthropologist, vol. 97, n. 3: 505-518.; 2016POVINELLI, Elizabeth. 2016. Geontologies: A Requiem to Late Liberalism. Durham e Londres, Duke University Press.), refletiremos outras séries: evento/cotidiano vida/não-vida.

Através dessas leituras alinhadas à pesquisa historiográfica e arquivística, elaborei duas questões centrais:

  1. a)

    O que torna o apartheid sul-africano um evento a parte enquanto as dores do racismo cotidiano ao redor do globo passaram, de certo modo, despercebidas? Por que, mais uma vez, o continente africano se torna o colosso do mundo e um lugar ímpar na própria experiência da raça no século XX?

  2. b)

    Como os corpos sobre o signo do Negro são dispostos junto a outras commodities? Como na cidade moderna esse corpo objeto/abjeto é mais um entre outros materiais tais como carbonato de cálcio e água?

O ornamento dispensável

A arquitetura modernista de expressão brutalista tem no concreto sua matriz. 2 2 O concreto em sua forma pura foi e continua sendo a matéria-prima para os edifícios modernistas. Em The New Brutalism publicado por Reyner Banham em 1955 estão apresentadas as novas diretrizes do movimento modernista em sua renovação brutalista. Um dos imperativos morais do Movimento Modernista seria a “honestidade na estrutura e no material” ( Banham, 1955: 22). Contudo, utilizo brutalismo aqui em seu sentido arquitetônico e político, uma vez que esses dois campos estão no cruzamento entre o material e o imaterial como aponta Mbembe ( 2020: 8). Agradeço, sobretudo, ao professor pela conversa durante meu tempo como pesquisador visitante na University of the Witwatersrand. Na quele momento, fevereiro de 2019, seu livro ainda não havia sido publicado e algumas reflexões sobre política neoliberal e brutalismo enriqueceram as propostas da pesquisa para além daquelas até então elaboradas. Veremos como esse concreto se refere à matéria física de composição dos edifícios e à estrutura do Estado nas cidades modernas pós-coloniais. Ou seja, uma força capaz de condensar e calcinar corpos, sobretudo, daqueles forjados na modernidade como inferiores sob o estigma da raça. Mas, afinal, quais as ideias e os entes relacionados e conectados aos pilares das construções modernistas?

Por exemplo, os prédios de Brasília são grandes modelos do modernismo. Desenhados por Oscar Niemeyer, carregam quase sempre os cinco pontos de Le Corbusier: plantas livres, fachadas livres, pilotis, janelas em fita, terraços jardins. Os edifícios atestam a ampla utilização do espaço, a livre circulação dos pedestres e belas vistas para o ambiente fora dos edifícios. Sem excesso de ornamento interno e externo a estética moderna garante que nenhum vestígio do passado desponte nas obras. Segundo o discurso de seus idealizadores, Brasília foi erigida do “deserto de não-vida” e “sem qualquer história”, projetada para criar espaços do novo homem brasileiro do século XX, síntese do melhor de todas as raças conforme os anseios de Gilberto Freyre. 3 3 A ideia de modernização do Brasil, assumida por políticos e intelectuais desde o século XIX até a década de 1930 ( Queiroz, 2022), expressa seu continuum na construção de Brasília ( Couto, 2013). Essa ideia, contudo, não se desvincula dos objetivos raciais do início do século XX. Ela se atualiza em versão mais “apropriada” às lógicas de branqueamento da população brasileira, como já alertava Abdias do Nascimento (1978). A nova capital deu materialidade para esse novo homem moderno ( Rubino, 2010: 302). Isto fica evidente no discurso proferido por Freyre às Nações Unidas, ironicamente realizado em Brasília em 1966, comparando o apartheid sul-africano com a realidade brasileira ele atestava: “O Brasil é talvez a única projeção multirracial, em escala vastamente continental, na qual, em sociedade moderna, não se produz uma estrutura em que subgrupos multirraciais vivem à parte existências paralelas, apenas tolerando-se uns aos outros” ( Freyre, 2003: 346).

No ideário modernista o ornamento era tido como crime, os excessos compltamente dispensáveis. A “limpeza”, ponto de conexão entre os estilos de Adolf Loos 4 4 Adolf Loos (1870-1930) se tornou um dos arquitetos mais influentes da Europa graças às suas ideias. Apesar de ter atuado no início do século XX, quando o movimento neoclássico dominava o cenário europeu, os escritos de Loos são considerados fundamentais para o movimento modernista. e Le Corbusier, foi destacada por esse último: “Loos varreu de baixo de nossos pés, era uma limpeza homérica exata, filosófica e lógica. Com isso, Loos influenciou nosso destino arquitetônico” (Le Corbusier apud Risela, 1988RISELA, Max. 1988. Raumplan versus Plan Libre: Adolf Loos and Le Corbusier, 1919-1930. Delft, Delft University Press.: 19). Inclusive, o artigo “Ornamento e Crime” ( 1908LOOS, Adolf. 1908. “Ornamento y delito”. Paperback, 7: 1–7. Disponível em: http://paperback.infolio.es/articulos/loos/ornato.pdf, acesso em ago. 2023
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) de Loos foi publicado na revista L’Esprit Nouveau de Le Corbusier. Esse artigo é tido como um dos textos fundadores da estética modernista. Nele encontram-se os princípios de Loos aliados à interpretação racial da sociedade apontando, com isso, os caminhos para uma nova arquitetura.

Loos faz uma comparação típica do pensamento racialista da virada do século XIX para o XX, o arquiteto estabelece uma metáfora entre o desenvolvimento humano e a história das civilizações em hierarquias raciais: “nascemos com a percepção de cachorro, aos dois anos vemos como um papua, 5 5 População negra na Nova Guiné. aos quatro como um germânico, aos seis como Sócrates e aos oito como Voltaire”. A criança e o papua eram vistos como imorais por natureza, “o papua devora seu inimigo e, por sua inocência isso não é crime nenhum, mas na visão do homem moderno isso é sinal de degeneração” ( Loos, 1908LOOS, Adolf. 1908. “Ornamento y delito”. Paperback, 7: 1–7. Disponível em: http://paperback.infolio.es/articulos/loos/ornato.pdf, acesso em ago. 2023
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: 1).

Seria, assim, possível medir o nível de uma civilização e de um país observando a quantidade de ornamento que se apresentam em suas paredes: “evolução cultural equivale a eliminação do ornamento nos objetos usuais” ( Loos, 1908LOOS, Adolf. 1908. “Ornamento y delito”. Paperback, 7: 1–7. Disponível em: http://paperback.infolio.es/articulos/loos/ornato.pdf, acesso em ago. 2023
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: 2).

Os pares do tempo de Loos, imersos na estética neoclássica, poderiam questionar a incapacidade de produzir novos ornamentos: “como nós, homens do século XIX, não sabemos o que qualquer negro sabe, o que todos os povos de épocas anteriores têm sabido?” Mas, sua resposta para esses questionamentos era simples, “[…] o que consiste a grandeza de nossa época é a incapacidade de realizar novos ornamentos! Nós vencemos o ornamento!”, e completa: “[…] chegará o tempo em que as cidades brilharão como muros brancos. Como Sião, a cidade santa, a capital do céu [...]” (1908: 3).

Podemos tirar algumas lições dessa elucubração sobre a natureza do ornamento, as potências das imagens e das ilusões presentes no artigo de Loos.

Primeiro podemos perceber uma episteme ocidental centralizada no olhar e na experiência do mundo dada, quase exclusivamente, pela visão. Não por acaso que os termos cosmovisão e visão de mundo são utilizados corriqueiramente para atestar a experiência e a compreensão de algo. Oyěwùmí ( 1997OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. 1997. The Invention of Women: making an African sense of western gender discourses. Londres, University of Minnesota Press.) contesta a eurocentricidade dessa forma de experienciar o mundo, e a distingue da cosmossensação, quando a experiência do mundo é sentida de várias formas, com vários sentidos.

O prejuízo de um caminho único para a experiência humana no mundo centrada no olhar é a ordem dualista. Tratou-se de opor o corpo, aquilo que é visível, ao espírito. No pensamento dualista o corpo foi visto como uma armadilha da qual qualquer pessoa racional deveria escapar. O corpo, portanto, seria o excesso de Loos. Mais ainda, o corpo ornamentado construído socialmente como signo do excesso, o Outro, o Negro, deveriam ser desprezados 6 6 A crítica de Oyěwùmí é ainda mais contundente. Para ela, mesmo que as ciências sociais e humanas tenham se afastado drasticamente da frenologia do século XIX, estas continuam operando análises onde a centralidade são os corpos: suburbanos, trabalhadores, criminosos, negros, mulheres e uma série de tipos específicos que, ao final das contas, acabará por trazer um senso comum e cotidiano de raça e, como efeito, opondo o sujeito que analisa ao sujeito objetivado ( Oyěwùmí, 1997: 4). .

A partir daí, a segunda lição que Loos nos apresenta sobre estética ocidental modernista é a relação do corpo negro com o excesso. O papua, um tipo Negro da Guiné Oriental, é fruto e perpetuador de exageros. É, sobretudo, um corpo já marcado na pele pelo sentido histórico que a modernidade lhe atribuiu. Esse corpo monumento é um corpo supérfluo da estética modernista. Figura em excesso entre outras figuras e, por isso, não figurável em qualquer superfície, o corpo e o signo Negro serão sempre imunes ao espírito ( Mbembe, 2014MBEMBE, Achille. 2014. Crítica da razão negra. Lisboa, Antígona.: 28). A “raça” essa força que suscita o poder da imagem, do visível e do ilusório não consiste apenas na formação de uma figura de ausência. Não é apenas, também, as práticas que consistem enquanto tal.

Podemos considerar que, para Loos, suscitar a raça e seu racismo no contexto do ornamento é criar um duplo, uma manta que encobre o sujeito: o “papua” nada mais é do que o excesso da natureza e, sendo o europeu a razão, não pode ter relação alguma com esse ser. Afinal, “para o racista, ver o negro é não ver que eles não está lá; que ele não existe; que ele mais não é do que o ponto de fixação patológica de uma ausência de relação” ( Fanon, 2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EdUFBA.; Mbembe, 2014MBEMBE, Achille. 2014. Crítica da razão negra. Lisboa, Antígona.: 66).

Essa economia de imagens inventadas suscita outro problema sobre a realidade das aparências e as aparências da realidade. No processo Atlântico escravista, a transformação das pessoas de origem africana em “negros” e, por isso, corpos a serem explorados, seguiu lógicas de transformação de pessoas em minerais. África era o lugar onde o mineral era extraído, as Américas o local de fundição para, enfim, a conversão em lucro europeu. “O negro não é apenas o protótipo do sujeito envenenado e carbonizado. É aquele cuja vida é feita de restos calcinados”, onde o processo de passagem do “homem-mineral ao homem-metal e do homem-metal ao homem-moeda é uma dimensão estruturante do primeiro capitalismo” ( Mbembe, 2014MBEMBE, Achille. 2014. Crítica da razão negra. Lisboa, Antígona.: 78).

Essa imagem inventada na contradição não poderia ser figurável na brancura dos “muros de Sião”, dos prédios da cidade modernista. Forjada pela ideia de excesso, animalidade e instintividade na longa narrativa da mitologia ocidental, atravessada desde o século XV aos nossos dias, o corpo Negro será expelido da estética moderna ao mesmo tempo em que é fundamental como mão de obra nas construções.

Nesse caso, Brasília e Joanesburgo, cidades constituídas dos gestos coloniais e da mimese modernista, estruturam-se na antinegritude ( Vargas, 2020VARGAS, João Costa. 2020. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Em Pauta, vol. 45. n. 18: 16-2. DOI 10.12957/rep.2020.47201.
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). São cidades onde a “brancopia” define espacialmente o privilégio de cor e traduz em arquitetura o “ideal da branquitude e da antinegritude” ( Alves, 2020ALVES, Jaime Amparo. 2020. Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos socioespaciais sobre o racismo. Geopauta, vol. 4, n. 1: 5-3. DOI 10.22481/ rg.v4i1.6161
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: 15).

Os arquitetos do sul, filhos e filhas das elites colonizadoras, fascinados com os padrões europeus, reverberaram essa estética na formação das cidades coloniais modernas. Do Brasil à África do Sul esses jovens arquitetos buscaram conexões com o velho mundo, pediram seus conselhos e replicaram de forma incisiva os conceitos em suas obras.

figura 1 |
Ensaio da modelo Sierra Veloso e da fotografa Alice Leite no Memorial dos Povos Indígenas em Brasília.

No Brasil são conhecidos os nomes de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Na África do Sul podemos destacar John Fassler, Helmut Stauch, Norman Eaton e William Holford. Todos eles colaboradores do Movimento Moderno e admiradores de outros importantes nomes no cenário da arquitetura e do urbanismo europeus como Le Corbusier, Patrick Geddes e Ebenezer Howard.

As conexões entre arquitetos dos dois lados ao sul do Atlântico passaram pelo roteiro europeu e Le Corbusier foi um desses pontos de convergência. Sua fama como símbolo do modernismo atraiu interesses e investimentos no período pós-guerra. Ao sul do globo seu modelo de arquitetura é sentido de Brasília à Chandigarh. 7 7 Capital dos estados indianos de Punjabe e Haryana, a cidade foi inteiramente planejada por Le Corbusier e fundada em 1947 após os eventos da Partição. Lahore, a antiga capital Punjabe, ficou sobre o domínio paquistanês. A ideia de “Estilo Internacional” nas obras modernistas é o cerne dessas conexões.

Por outro lado, esses vínculos com a Europa criaram uma outra relação entre Brasil e África do Sul quanto ao estilo arquitetônico. Os estudos das professoras Marguirete Pienaar ( 2018PIENAAR, Marguerite. 2018. Transatlantic exchange: lessons from Brazil in the Work of Norman Eaton. Paranoá: cadernos de arquitetura e urbanismo, vol. 18, n. 18: 162-175. DOI 10.18830/issn.1679-0944.
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), Maria Fernanda Derntl ( 2019DERNTL, Maria Fernanda. 2019. O Plano Piloto e os Planos Regionais para Brasília entre fins da década de 1940 e início dos anos 60. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 1, n. 1: 26-44. DOI: 10.22296/2317-1529.2019v21n1p26.
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) e do professor Arthur Barker ( 2018BARKER, Arthur. 2018.“Modern movement mediations: Brazilian modernism and the identity of post-war architecture in Pretoria, South Africa. Paranoá: cadernos de arquitetura e urbanismo, vol. 18: 149-161. DOI 10.18830/issn.1679-0944.
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) revelam isso. A influência é tal que a crítica “cunhou a denominação Little Brazil para se referir aos edifícios afinados com o modernismo carioca que se espalharam por Pretória, Joanesburgo e Cidade do Cabo” ( Derntl, 2019DERNTL, Maria Fernanda. 2019. O Plano Piloto e os Planos Regionais para Brasília entre fins da década de 1940 e início dos anos 60. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 1, n. 1: 26-44. DOI: 10.22296/2317-1529.2019v21n1p26.
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).

Encontramos os sinais dessas mimesis, por exemplo, nas visitas de Norman Eaton nos anos 1940. Eaton não se impressionou apenas com as formas da arquitetura modernista brasileira que ele chegou a reproduzir na África do Sul, ele também estava atento aos complexos habitacionais de baixa renda que arquitetos e urbanistas estavam propondo naquele momento. Dentre os poucos registros de Eaton no seu diário de viagem destacamos o rascunho do projeto habitacional do Realengo 8 8 O registro de Eaton é apenas um indício de como os complexos habitacionais estavam conectados aos projetos nacionaisdesenvolvimentistas pelo mundo que, por sua vez, se ancoravam nos apartheids para se concretizarem. Em Joanesburgo do início dos anos 1950, o arquiteto Douglas McGavin Calderwood (1919-2009), apresentava um modelo de baixo custo para aproveitamento do espaço em detrimento do confinamento de trabalhadores nas townships que se tornariam Soweto ( Lemos, 2022: 175-179).

Análises que relacionam a estética modernista e pensamento político-social na arquitetura não são inéditas. Sobre Le Corbusier, por exemplo, Simone Brott faz um exercício para além da explícita relação do arquiteto com os movimentos fascistas e o colaboracionismo na França de Vichy ( Brott, 2013BROTT, Simone. 2013. Le Corbusier and fascist revolution. Thresholds, vol. 41: 146-157. DOI 10.1162/thld_a_00106.
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: 127). Para ela, esses contatos são sintomas da radicalização do modo como Le Corbusier entendia e aplicava o conceito “revolução”. Brott traça um histórico do uso na obra do arquiteto francês para elaborar as similaridades com o discurso fascista.

Em 1922, Corbusier anunciava em carta a pretensão de lançar seu “primeiro maior livro” sob o título de Architecture et révolution ( Brott, 2013BROTT, Simone. 2013. Le Corbusier and fascist revolution. Thresholds, vol. 41: 146-157. DOI 10.1162/thld_a_00106.
https://doi.org/10.1162/thld_a_00106...
:146). Por sugestão de amigos o título foi sofrendo alterações até se transformar em Vers une architecture, em janeiro de 1923. Para ela, a alteração do título não parece ser algo trivial se considerarmos o desaparecimento e reaparecimento do conceito na obra. E, apesar de encobrir o termo, Le Corbusier fez de révolution a palavra-chave do projeto. Como percebeu Brott, curiosamente a livro termina com os seguintes dizeres:

A sociedade deseja violentamente uma coisa que obterá ou não. Tudo está nisso; tudo dependerá do esforço feito e da atenção dada a esses sintomas alarmantes.

Arquitetura ou revolução Revolução pode ser evitada.

(Le Courbisier apud Brott, 2013BROTT, Simone. 2013. Le Corbusier and fascist revolution. Thresholds, vol. 41: 146-157. DOI 10.1162/thld_a_00106.
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: 147). 9 9 Exceto nos casos indicados pela bibliografia, a tradução de fragmentos em língua estrangeira é minha.

Para parte da historiografia, o final do livro sinaliza a tentativa de evitar uma revolução através de uma arquitetura moderna sob influência do socialismo utópico. Para Brott, no entanto, esses dizeres representam o desejo pela violência no qual os movimentos fascistas se debruçaram e para onde Le Corbusier se alinhou. Seja quando das relações com George Valois e Hubert Lagardelle ao se tornar editor do jornal sindical Prélude; ou ainda, quando ministrou aula em Roma, em 1934, a convite de Mussolini; e, por fim o mais importante, quando colaborou com Vichy nos anos 1940 ( Brott, 2013BROTT, Simone. 2013. Le Corbusier and fascist revolution. Thresholds, vol. 41: 146-157. DOI 10.1162/thld_a_00106.
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: 147; López-Durán, 2018LÓPEZ-DURÁN, Fabiola. 2018. Eugenics in The Garden: trans atlantic architecture and the crafting of modernity. Austin, University of Texas Press.: 171).

Para além das relações com o fascismo, Fabíola López-Durán ( 2018LÓPEZ-DURÁN, Fabiola. 2018. Eugenics in The Garden: trans atlantic architecture and the crafting of modernity. Austin, University of Texas Press.) salienta as estreitas conexões do pensamento arquitetônico modernista com as teorias eugenistas, sobretudo do neo-lamarckianismo que propunha uma relação causa-efeito do meio sobre indivíduos e suas raças. Com cartas e documentos inéditos de Le Corbusier à Alexis Carrel, 10 10 Médico e biólogo francês, ganhador do Nobel de Fisiologia (hoje Medicina) em 1912 por sua técnica anticoagulante na transfusão de sangue. Também conhecido por seu colaboracionismo ao governo de Vichy e defesa ampla à eugenia, extermínio e castração da população considerada desviante. Suas opiniões eugênicas estão presentes no livro O Homem, esse desconhecido (1935), umas das obras que orientou Le Corbusier na formulação do modelo do “novo homem” ( López-Durán, 2018: 158-172). a arquiteta comprova os vínculos das ideias sobre arquitetura modernista com o pretenso aperfeiçoamento racial humano via transformação do meio.

É válido lembrar que Le Corbusier e Loos não foram os únicos arquitetos e urbanistas que vislumbravam em termos raciais a cidade do homem moderno. A tradição do urbanismo inglês, cuja influência é perceptível do Brasil à África do Sul ( Derntl, 2020DERNTL, Maria Fernanda. 2020. Brasília e seu território: a assimilação de princípios do planejamento inglês aos planos iniciais de cidades-satélites. Cadernos Metrópole, vol. 22, n. 47: 123-146. DOI: 10.1590/2236-9996.2020-4706.
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; Lemos, 2022LEMOS, Guilherme Oliveira. 2022. No dilacerar do concreto: as histórias dos apartheids entre as satélites de Brasília e as townships de Joanesburgo (1955-1971). Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.), também investiu na eugenia galtoniana ajustando estatística social às diretrizes de ocupação do espaço. Patrick Geddes e Ebenezer Howard foram, provavelmente, os nomes de maior inspiração para seus pupilos britânicos do início do século XX. Eles materializaram a cidade eugênica e utópica de Kantsaywhere elaborada por Francis Ganton ( Welter, 2002WELTER, Volker M. 2002. Biopolis: Patrick Geddes and the City of the Life. Londres, MIT Press.: 187-191; Vigot, 1989VOIGT, Wolfgang. 1989. “The garden city as eugenic utopia”. Planning Perspectives, vol. 4, n. 3: 295-312. DOI 10.1080/02665438908725685.
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).

Mais adiante, o culto à violência no Movimento Moderno com expressão no neo-brutalismo dos anos 1950 apresenta-se tanto estética como no ethos. Brutalismo não é apenas uma referência ao concreto utilizado nas construções, é também, uma postura que orienta a vida moderna na sua impetuosidade. O brutalismo do edifício moderno enquanto estado da arquitetura se confunde com a arquitetura do Estado: enrijecimento de fronteiras, compressão de corpos em periferias e townships e os artifícios usados pelos poderes estatais/privados para a contenção e manuseio desses corpos nos centros urbanos ( Mbembe, 2020MBEMBE, Achille. 2020. Brutalisme. Paris, La Dévouverte.).

Corpo de prova do concreto

A estética clara e branca, externa aos prédios modernistas, não denota a massa escura do concreto interior das vigas intransponíveis pela luz. Ao submetermos ao corpo de prova do concreto, 11 11 Teste pelo qual uma amostra de concreto é posta sobre pressão para avaliar sua resistência. encontraremos o rompimento dos limites da vida e não-vida no ciclo do carbonato de cálcio (CaCO3), principal matéria química do calcário utilizado no cimento. A origem da matéria está nas conchas de crustáceos (vida) dos antigos oceanos do período Pré-Cambriano. A exploração do calcário para utilização de CaCO3 envolve uma vasta rede: da indústria do papel à alimentícia, do tratamento de esgoto à construção civil. É na última atividade, contudo, sua maior utilização. Hoje a fabricação mundial de cimento é da ordem de 1,7 bilhões de toneladas, o equivalente a um 1m³ de cimento por pessoa. Com exceção da água, nenhum outro material é consumido pela humanidade em tamanha quantidade ( Santos, 2008SANTOS, Roberto Eustáquio dos. 2008. A armação do concreto no Brasil: história da difusão da tecnologia do concreto armado e da construção de sua hegemonia. Belo Horizonte, Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais.: 15). Seu processo de fabricação se dá por meio da queima da cal (CaCO3) liberando CO2 na atmosfera:

C a C O 3 C a O + C O 2

Uma das críticas ao uso de cimento é precisamente a liberação do CO2 no ar. Mas, vejamos outra capacidade química desse artefato: a absorção da água, posto 42% da sua massa é a soma de água não evaporável e água absorvida ( Faria, 2004FARIA, Étore Funchal de. 2004. Predição da exotermia da reação de hidratação do concreto através de modelo termo-químico e modelo de dados. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 9).

A água absorvida é constituída pelas primeiras camadas de moléculas de água submetidas ao campo das forças elétricas superficiais das partículas de C-S-H, os hidratos de silicato de cálcio hidratado. A água quimissorvida varia muito pouco nesse processo e se dá via ligação química real com as moléculas do absorvente, uma ligação que implica transferência de elétrons. Quimicamente, portanto, a principal característica do cimento é a absorção de água.

Esses elementos fracionados e rearranjados para favorecimento da tecnosfera adentram o ciclo do prescindível e imprescindível. Contudo, no cálculo químico do processo de transformação do cimento em concreto não estão inseridos os resíduos dos arranjos políticos do colonial-capitalismo também absorvidos pelo cimento.

O concreto à serviço da racionalização do espaço é, dentre as várias técnicas coloniais, uma entidade capaz romper as relações orgânicas entre os indivíduos e os elementos que os rodeiam. A dissolução dessas relações e a desterritorialização transformaram coisas e pessoas em mercadorias, inserindo-as no fluxo da dispensabilidade e indispensabilidade. Através da experiência globalizada da plantation no Novo Mundo criou-se a tecnosfera capaz de regular as diferentes esferas planetárias ( Ferdinand, 2019FERDINAND, Malcom. 2019. Une écologie décoloniale: penser l’écologie depuis le monde caribéen. Paris, Éditions du Seuil.). Regular substituindo a reciprocidade pela mercantilização. Biosfera, rizosfera, litosfera e hidrosfera são agora reguladas pela ordem econômica ( GREEN, 2015GREEN, Lesley. 2015. The Changing of the gods of reason: Cecil John Rhodes, Karoo Fracking, and the decolonizing of Anthropocene. e-flux journal, n. 65: 1-9. Disponível em: http://supercommunity.eflux.com/texts/the-changing-of-the-godsof-reason Acesso em ago. 2023
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: 4).

As cidades contemporâneas e sua racionalidade eugênica deram forma ao colonial-moderno. Nesses locais, a técnica do concreto aramado (elemento da tecnosfera) utiliza o calcário (litosfera) e, permeando os espaços coloniais, extrai dos resíduos políticos a força de trabalho (biosfera) necessária ao capitalismo tardio ( Lemos, 2022LEMOS, Guilherme Oliveira. 2022. No dilacerar do concreto: as histórias dos apartheids entre as satélites de Brasília e as townships de Joanesburgo (1955-1971). Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.: 54). Autoestradas, vias, muros, edifícios monumentais, barragens e hidroelétricas determinam agora os fluxos de pessoas e coisas. Permeando de forma rizomática os espaços, essas estruturas de concreto restringem ou dão acesso aos indivíduos conforme sua categorização social-biológica (Oyewmi, 1995).

Composto de carbonato de cálcio e água, esse grande artefato mágico da modernidade transforma líquido em sólido. Mantém formas de vida/não-vida nos ciclos da colonização e do capitalismo. Regula e divide os acessos, cria paisagens fraturadas que oferecem “imunidade ao tempo geológico, aos fluxos da física às forças da história humana”. A fé no cimento confere aos seres humanos e sua tecnosfera uma fratura entre economia e ecologia ( Green, 2015GREEN, Lesley. 2015. The Changing of the gods of reason: Cecil John Rhodes, Karoo Fracking, and the decolonizing of Anthropocene. e-flux journal, n. 65: 1-9. Disponível em: http://supercommunity.eflux.com/texts/the-changing-of-the-godsof-reason Acesso em ago. 2023
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: 7).

Da construção de barragens em terras Tuxás no interior da Bahia ( Cruz, 2017CRUZ, Filipe Sotto Maior. 2017. “Quando a Terra Sair” os índios Tuxá de Rodelas e a barragem de Itaparica: memórias do desterro, memórias da resistência. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília.) até os muros da base naval da marinha construídos no interior do Quilombo Rio dos Macacos (BA) ( Oliveira, 2020OLIVEIRA, Emília Joana Vianna de. 2020. “A água é a nossa nação’’: violência antinegra e Soberania Nacional mobilizadas para a gestão da morte pelo impedimento do acesso àágua na Comunidade de Rio dos Macacos – BA”. In: FLAUZINA, Ana; LOPEZ, Thula (org.). Rebelião. Brasília, Brado Negro, p. 96-112.); dos muros na Palestina ( Soske e Jacobs, 2015SOSKE, Jon; JACOBS, Sean. 2015. Apartheid Israel: the politics of an analogy. Chicago, Haymarket Books.) até às fraturas hidráulicas para extração de gás natural na África do Sul ( Green, 2015GREEN, Lesley. 2015. The Changing of the gods of reason: Cecil John Rhodes, Karoo Fracking, and the decolonizing of Anthropocene. e-flux journal, n. 65: 1-9. Disponível em: http://supercommunity.eflux.com/texts/the-changing-of-the-godsof-reason Acesso em ago. 2023
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): é a ordem do cimento e do concreto que imperam. Criam-se espaços na não-vida regulando o sistema planetário, impondo regimes de valor e, consequentemente, restringindo acessos às pessoas tipificadas como comodities.

Chegamos, portanto, em um tempo que os impactos da presença colonial e capitalista no planeta serão observados em milhares de anos, na escala do tempo geológico passamos do Holoceno para o Antropoceno. Fruto de um impacto urbano-agro-indrutrial de escala global, acompanhado de um crescimento populacional sem precedentes.

Na ordem conceitual, o Antropoceno foi agenciado pela antropologia como uma alternativa para o fim da bifurcação natureza e humanidade quer dizer, se não cair nas armadilhas que são, de um lado, a “construção social da natureza” e, de outro, uma “visão reducionista dos humanos feitos de carbono e água, forçar geológicas entre outras forças geológicas” ( Latour, 2014LATOUR, Bruno. 2014. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, vol. 57, n. 1: 1-30. DOI 10.11606/2179 0892.ra.2014.87702.
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: 12).

Ainda assim, esse mesmo conceito recai sobre a armadilha do humano universal quando não especifica a produção de um mundo antinegro pelas estruturas coloniais.

Na tentativa de superar esse obstáculo, Marisol de La Cadena propôs alternativamente o termo “ anthropo-not-seen” fazendo referência aos entes invisíveis no curso do Antropoceno ( Cadena, 2016CADENA, Marisol de La. 2016. Natureza disociadora. Boletín de Antropologia, vol. 31, n. 52: 253-263. DOI: 10.17533/udea.boan.v31n52a16
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: 225). Significa dizer que, desde o século XIV, com o movimento de expansão europeia, tem-se promovido uma guerra contra mundos dos quais não se operam a divisão natureza e humanidade. Ao mesmo tempo, esse “não-visto” se refere não só aos entes “vivos”, mas também, à capacidade destrutiva dessa força “invisível” (colonial) considerada sempre construtiva. Contudo, a insistência do termo anthropo ainda incide no universalismo.

Por outro lado, se nos concentrarmos no espaço Atlântico onde pessoas africanas receberam o signo Negro, espaço onde os entes terrestres são ofertados ao capital em favor da tecnosfera, podemos elaborar uma outra conceituação dessa era geológica. Nesse sentido, Malcolm Ferdinand nomina o tempo iniciado na plantation de “Negroceno”, dado que “a escravidão colonial negra seria um elemento entre muitos na transformação ecológica do sistema de plantation” ( Ferdinand, 2019FERDINAND, Malcom. 2019. Une écologie décoloniale: penser l’écologie depuis le monde caribéen. Paris, Éditions du Seuil.: 66). De África para América e de novo para África, da senzala para o quilombo, do quilombo à favela e assim por diante ( Nascimento 1985NASCIMENTO, Maria Beatriz. 1985. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Afrodiáspora, vol. 6, n. 7: 41-49.: 47; 1988). Esse corpo-mapa, criado e inserido na sociedade ocidental onde experiência do mundo se dá quase sempre pela visão, é circunscrito na dinâmica perversa da do ser e não-ser, da “perda de imagem”: “Corpo de repente aprisionado pelo destino dos homens de fora. Corpo-mapa de um país longínquo que busca outras fronteiras que limitem a conquista de mim” (Nascimento, 1988, 35:48 min).

Voltemos, então, para o planejamento das cidades modernas. Para a transformação do cimento em concreto. Esses elementos evocam um dilema a respeito do estado da matéria (do líquido para o sólido) a matéria do Estado (da vida para o lucro com a morte). Percebendo o concreto armado como o material que dita as formas urbanas dessas cidades relembramos que Milton Santos já havia salientado a importância das formas como ferramenta do capital.

Em A Totalidade de Diabo: como as formas geográficas difundem o capital e mudam estruturas sociais ( 1977SANTOS, Milton. 1977. A Totalidade do Diabo: como as formas geográficas difundem o capital e mudam as estruturas sociais. Contexto. São Paulo, Hucitec.) ele apontava os novos avanços tecnológicos como produtores de objetos cuja estrutura técnica abriga potencialidades. Através da articulação “forma e intencionalidade” as coisas ganharam um poder que nunca haviam possuído antes. Consequentemente, o mecanismo de planejamento tornou-se mais imperceptível. “Os povos dos países envolvidos, que têm passado da lavagem cerebral das teorias ocidentais acerca do crescimento e do espaço ou que se encontram indefesos perante elas, podem nem sequer suspeitar dos efeitos do planejamento” ( Santos, 1977SANTOS, Milton. 1977. A Totalidade do Diabo: como as formas geográficas difundem o capital e mudam as estruturas sociais. Contexto. São Paulo, Hucitec.: 32).

Decompondo novamente o concreto armado das vigas, pilotis e paredes da arquitetura modernista, encontramos pessoas cujos corpos estão cobertos por calcário: corpos negros, candangos 12 12 A etimologia da palavra remete a uma relação racial entre angolanos e portugueses. Já no Brasil, o candango foi, por algum tempo, sinônimo de mulato ( Lemos, 2018). concretados na fundação das vigas os quais não podiam ser removidos sem comprometer a estrutura das obras e o tempo de serviço ( Videsott, 2009VIDESOTT, Luisa. 2009. Narrativas da construção de Brasília: mídias, fotografias, projetos e história. São Carlos, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 287; Ribeiro, 2008RIBEIRO, Gustavo Lins. 2008. O Capital da Esperança: a experiência dos trabalhadores na construção de Brasília. Brasília, Editora da Universidade de Brasília.).

Em Brasília, o candango fixado como operário “mestiço” na historiografia e no discurso dos idealizadores da capital teve sua imagem reinventada e revisitada para mobilização de uma identidade comum ao moderno brasileiro: “Nas proximidades do branco, no alto os céus se desmantelam, debaixo dos meus pés a terra se arrebenta, sob um cântico branco, branco. Toda essa brancura me calcina...” ( Fanon, 2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EdUFBA.: 108).

Na construção da Universidade de Brasília a angústia de Fanon supera a metáfora para Expedito Xavier Gomes e Gildemar Marques. Em 5 de maio de 1962 o Correio Braziliense noticiava:

O auditório de da Universidade de Brasília se chama ‘2 Candangos’, como homenagem do Reitor aos 2 anônimos que morreram na sua construção. Em homenagem diremos seus nomes: Gildemar Marques, de Bom Jesus, Piauí, 19 anos e Expedito Xavier Gomes, de Ipu, Ceará, 27 anos. ( Correio Braziliense, 6 maio 1962CUNHA, Ari. “Visto, Lido e Ouvido”. Correio Braziliense, Brasília, 5 maio de 1962. p. 7.)

Atestamos a cor desses trabalhadores no único documento que fornece informações detalhadas: o laudo da perícia do soterramento presente no processo S3066/622ª Vara de Fazenda Pública do Distrito Federal, cx. 89, S3066/62. do Arquivo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. 13 13 O processo movido por Antônia, viúva de Expedito Xavier, diz respeito ao requerimento das pensões devidas aos dependentes pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI). Esse simples documento nos leva para uma análise de como a historiografia sobre as habitações populares no Brasil desconsidera a transferência de renda das famílias negras para o IAPI. Dinheiro que, pela violência burocrática, permanecia nos cofres do instituto e era revestido para a construção civil ( Lemos, 2022: 59). Optamos, contudo, pela não reprodução das fotografias desses indivíduos mortos para evitar a violência colonial do próprio arquivo.

O primeiro prédio da universidade foi erigido sobre os corpos desses trabalhadores concretados duplamente na vida e na história. Digo concretados na história pois, a homenagem da “tragédia” não traz seus nomes, ela antes os reifica como “Dois Candangos”.

A imagem do candango alia o ser sub-humano, contribuinte da construção, às matérias-primas do concreto armado. Eram os “titãs de aço”. O nome candango, sinônimo de desprezível, será ressignificado ao mesmo tempo em que é posto em disposição na massa de cimento (indispensável). No discurso de sua nomeação como prefeito Israel Pinheiro proferia: “felizmente, os candangos, que até então eram pejorativamente conhecidos, são realmente titãs de aço, em cuja energia e vontade o Brasil pode confiar sua redenção” (NOVACAP, 1960). O candango se apresenta como mais uma classificação que justifica o encarceramento e a eliminação de pessoas negras em um contexto específico ( Wynter, 1994WYNTER, Sylvia. 1994. No Humans Involved: an open letter to my colleagues. Forum N.H.I: Knowledge for 21st Century, vol. 1, n. 1: 1-17.: 2).

Esses indivíduos, transformados por meio de “mil detalhes, anedotas, relatos” ( Fanon, 2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EdUFBA.: 105) formam a base do projeto do Brasil moderno. Ao mesmo tempo, a figura por si exclui as mulheres do processo de construção da capital, como se a ereção da cidade fosse exclusivamente o fruto do trabalho masculino. Reforçando, dessa forma, os sentidos ocidentais de experienciar o mundo onde “as hierarquias sociais, como sexo e raça, são uma função do privilégio visual sobre os outros sentidos” (Oyěwùmí, 2010: 30).

Mercadoria, metal, moeda e minério. A divisão da narrativa histórica escravidão, colonialismo e apartheid ( Mbembe, 2001MBEMBE, Achille. 2001 As formas africanas de auto-inscrição. Estudos Afro-Asiáticos, n. 23: 179-209. DOI 10.1590/S0101-546X2001000100007.
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: 196) separou esses eventos do cotidiano, criou ilusões de um passado aterrador contra um presente aceitável ou, ainda, criou exemplos deslocados geograficamente que tornam aceitáveis regimes de desvalor dos sujeitos tidos como sub-humanos e despossuídos de seus corpos. Nas novas cidades esses corpos funcionam pelas vias do capital, onde a dinâmica do supérfluo e do necessário opera um fluxo constante sobre todos os entes envolvidos nesse espaço.

Assim como Brasília, Joanesburgo funciona sobre o espectro da superfluidade. Mas diferente da capital brasileira, o centro industrial de Gauteng foi palco para o evento o colosso do mundo, o apartheid. Falar da superfluidade não quer dizer que a cidade exista apenas pelo excesso, as arestas “aparadas” são peças importantes desse sistema. Superfluidade refere-se à “dialética do indispensável e do dispensável, trabalho e vida, pessoas e coisas” ( Mbembe, 2001MBEMBE, Achille. 2001 As formas africanas de auto-inscrição. Estudos Afro-Asiáticos, n. 23: 179-209. DOI 10.1590/S0101-546X2001000100007.
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: 38). As cidades modernas são reescritas de maneira a replicar o inconsciente colonizador. Inventando algo novo ao mesmo tempo em que replicam similaridades com as metrópoles e onde suas principais características advém, sobretudo, do capitalismo.

No Distrito Federal brasileiro o capital está atrelado ao desenvolvimento urbano e construção civil cuja origem está ancorada na transição do comércio escravista para formas legais ganho no Brasil do século XIX. 14 14 A historiografia da formação econômica brasileira baseada nos clássicos de Celso Furtado (1958) e Fernando Novais (1989) tem sido revisada pela perspectiva de um capitalismo nacional muito mais atrelado ao capital mercantil Atlântico, onde a matéria-prima era composta por africanos e indígenas escravizados ( Alencastro, 2000). Ao mesmo tempo, o fluxo desse capital passa a ser direcionado para outras atividades sobretudo a construção civil no Rio de Janeiro ( Fragoso e Florentino, 2001). Já em Joanesburgo, o capitalismo industrial chegou pelos campos diamantíferos de Kimberley e da exploração do ouro no planalto de Witwatersrand ( Posel, 1991POSEL, Deborah. 1991. The Making of Apartheid: 1948-1961. Oxford, Clarendon Press.; Freund, 2019FREUND, Bill. 2019. Twentieth-Century South Africa: a developmental history. New York, Cambridge University Press.). Construída como uma cidade sem referências do passado, uma experiência europeia em África, Joanesburgo aliou capital, trabalho e indústria conectada com a economia global. A cidade viveu e vive vinculada a instituições formais e coercivas com uma estrutura legal que determinava o valor das pessoas, das propriedades e dos créditos por meio de divisões raciais ( Nuttal e Mbembe, 2008NUTTALL, Sarah; MBEMBE, Achile. 2008. Johannesburg: the elusive metropolis. Joanesburgo, Wits University Press.: 39).

Afirmar que as cidades têm essas características atreladas ao capitalismo não significa dizer que elas apenas criam uma relação de produção e acumulação. Afinal, como mostrou Marx, uma das características do capitalismo é o fluxo e o movimento ( Nuttal e Mbembe, 2008NUTTALL, Sarah; MBEMBE, Achile. 2008. Johannesburg: the elusive metropolis. Joanesburgo, Wits University Press.: 40). Como falamos sobre o circuito da teconosfera, vida e não-vida são confundidas nesse fluxo, pessoas negras são dispostas junto às comodities. O crescimento de Joanesburgo em 1886 coincide com a adoção do padrão-ouro pelo sistema econômico ocidental treze anos antes. O descobrimento do ouro em Witwatersrand trouxe consigo uma leva de imigrantes europeus que ocuparam o planalto na busca por investimento, lucro e bens. Para um bem existir é necessário que ele mesmo seja lançado fora de circulação constantemente, ou seja, tenha algum nível de superfluidade. Tal qual indicavam os engenheiros de minas em Wiwatersrand no início do século XX, o lucro só é possível pela divisão racial do trabalho e excesso dos trabalhadores. 15 15 Como aponta achistoriografia sobre a indústriacmineradora na África do Sul: Nkosi (1987), Duncan (1995), Teisch (2005), Katz (2006), Higginson (2007), Tuffnellc (2015), Freund (2019).

As pessoas sob o signo Negro, aquelas que são dispostas como bens, não fogem a essa regra. Na África do Sul, os trabalhadores europeus eram em sua maioria desempregados em suas terras natais e vão, por intermédio das estruturas raciais, se beneficiar dos trabalhos de imigrantes do Zimbábue, Moçambique e Zâmbia. Ao contrário do que a teoria marxista clássica propagou, a circulação do capital não era precedida apenas por uma relação de classe, “mas também no investimento humano em certas formas de delírio racial” ( Nuttal e Mbembe, 2008NUTTALL, Sarah; MBEMBE, Achile. 2008. Johannesburg: the elusive metropolis. Joanesburgo, Wits University Press.: 42).

A dinâmica da cidade e do trabalho em Joanesburgo produziu esses delírios: vidas negras necessárias à construção do capital industrial ligado à mineração. Valoradas como dispensáveis, abundantes e em excesso. Essas vidas foram marcadas como “objetos entre outros objetos”. A relação espacial do corpo negro com a cidade se estabelece na contradição da vida desprezível e, por isso, desejável como força de trabalho de baixo custo. Ao mesmo tempo, a própria cidade se estrutura nessa dicotomia e só sobrevive por meio dela. Vidas que se fizeram por meio de um sacrifício necessário ao desenvolvimento o que implica numa distribuição de morte ou necropolítica.

Na profundeza das minas que circundam Joanesburgo, as doenças respiratórias como a tuberculose e a silicose eram constantes. Esta última, doença potencialmente progressiva, irreversível e que leva à incapacidade trabalhadores na construção civil e mineração. Ela é provocada pela inalação da poeira da sílica cristalina presente no cimento e constante nos trabalhos que exigem perfuração, trituração ou corte de rochas ( Katz, 2006KATZ, Elaine. 2006. The Contributions of American mining engineers and technologies to the Witwatersrand Gold Mining Industry, 1890-1910. Mining History Journal, vol. 13: 12-30.). O dióxido de silício (SiO2) em contato com as células pulmonares provoca liberação de mediadores inflamatórios (macrófagos, neutrófilos, linfócitos) que fagocitam o dióxido de silício. Como o SiO2 não é digerível (matéria do ciclo da não-vida) esse processo acaba provocando continuamente uma autólise autodestruição celular desencadeando fibrose nos tecidos: cicatrizes que enrijecem o pulmão e dificultam a troca gasosa e, por fim, a respiração ( Sato et. al., 2006SATO, TAKENO, HONMA, et. al. 2006. “Heme Oxygenase-1, a Potential Biomarker of Chronic Silicosi, Attenuantes Silica-induced Lung Injury”. ATS Journal, vol. 174: 906-914.). 16 16 Igualmente, a população da Fercal, uma das cidadessatélites do Distrito Federal, sofre também com a qualidade do ar. Ali instalaram-se fábricas de cimento desde os anos 1960 para abastecer a construção civil. Estudos de 2012 mostram que a quantidade de partículas no ar na região chega a ser três vezes maior do que uma média anual aceitável (Maury e Blumenschein, 2012: 86). Na perspectiva sociológica sobre análise dos riscos que a indústria do cimento proporciona, destacamos o estudo de Carolina F. Bertanha (2019).

O esquema da autodestruição celular e a incapacidade do corpo de digerir o silicato tem algo de similar com a dinâmica de autodestruição psicológica das subjetividades negras. Como lamenta Fanon, racismo diz respeito tanto aos efeitos externos quanto internos, sua toxidade parece não ter fim se não pela explosão:

Enclausurado nesta objetividade esmagadora, implorei ao outro. Seu olhar libertador, percorrendo meu corpo subitamente livre de asperezas, me devolveu uma leveza que eu pensava perdida e, extraindo-me do mundo, me entregou ao mundo. Mas no novo mundo, logo me choquei com outra vertente, e o outro, através de gestos, atitudes, olhares, fixou-me como se fixa uma solução com um estabilizador. Fiquei furioso, exigi explicações...não adiantou nada. Explodi. Aqui estão os farelos reunidos por um outro eu. ( Fanon, 2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EdUFBA.: 103)

Ao mesmo tempo, o apartheid sul-africano conseguiu se justificar e criar uma relação de distância entre pessoas negras e brancas via discursos sanitaristas. Nas três primeiras décadas do XX, a segregação sanitária foi praticada como uma forma de atingir o progresso e o desenvolvimento. Seguindo esse caminho, os médicos sanitaristas trataram de argumentar que as pessoas africanas eram mais suscetíveis às doenças, principalmente a tuberculose, devido à falta de convivência com as formas ocidentais na cidade industrial. No entanto, era possível adaptar os povos originários às condições de vida com a criação de espaços próprios. Seguia-se a segregação por meio de argumentos sanitaristas, garantia-se a saúde das populações brancas nos centros e regulava a vida das pessoas negras ( Packard, 1989PACKARD, Randall M. 1989. White Plage, Black Labor. Berkeley, University of California Press.: 194-196).

Logo, a medida em que o apartheid sul-africano se desenha nos anos de 1950, os planejamentos urbanos e regionais eram ventilados na imprensa e nos órgãos da administração da cidade. Os burocratas publicizavam a necessidade do planejamento devido ao aumento da concentração de pessoas nos centros urbanos, esse aumento por sua vez seria propulsor das doenças. Por outro lado, ocultavam as causas econômicas como a necessidade das mineradoras em abaixar os custos de produção para melhores rendimentos ( Mabin, 2013MABIN, Alan. 2013. The map of Gauteng: evolution of a city-region in concept and plan. Joanesburgo, GCRO.: 22; Lemos, 2022LEMOS, Guilherme Oliveira. 2022. No dilacerar do concreto: as histórias dos apartheids entre as satélites de Brasília e as townships de Joanesburgo (1955-1971). Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.: 161-173).

O grande plano para o reordenamento de Joanesburgo foi primeiro pensado junto do urbanista e arquiteto francês Maurice Rotival. O modernista pioneiro do CIAM ( Congrês Internationaux d’Architecture Moderne) foi também um dos primeiros a utilizar computadores para precisão dos cálculos juntamente de fotografias aéreas. Em sua perspectiva, esta seria a melhor forma de conduzir o crescimento das cidades modernas, uma cidade controlada pelas elites (6, 2002aHEIN, Carola. 2002. Maurice Rotival: French planning on a world-scale (Part I). Planning Perspectives, vol. 17, n. 3: 247-265. DOI: 10.1080/02665430210129315.
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: 250).

Com experiências no Plano de Caracas (Venezuela, 1936) e New Haven (Estados Unidos, 1941) os burocratas sul-africanos não hesitaram na convocação do urbanista para reconfiguração de Joanesburgo. Em agosto de 1952, o jornal Rand Daily Mail reportava a manchete “Rotival explains his master plan for development of rand” [Rotival Explica seu Plano para o Desenvolvimento do Rand] após o encontro entre o urbanista e membros do governo ( Figura 2). A primeira proposta de Rotival destacada pela matéria apontava o estabelecimento das 500.000 casas para nativos, tanto na região do Far East Rand, como no sudoeste de Joanesburgo, com a reorientação das townships de Pimville, Orlando e Moroka complexo de townships que formam hoje Soweto.

Rotival também previa um “ white corridor” entre Joanesburgo e Vereeniging.

Um espaço destinado apenas ao desenvolvimento industrial e às casas para pessoas brancas. No entendimento do urbanista, a região poderia prosperar com o planejamento, dada a potência de exploração das minas de carvão mineral para a produção de energia elétrica.

Anos mais tarde o projeto de Rotival foi utilizado como base para produção do Planning Survey of the Southern Transvaal ( 1957NRDC. A Planning Survey of the Southern Transvaal: The Pretoria Johannnesburg-Vereening Area (Red Report). Pretoria: Government Print, 1957.) ou, Red Report, estudo que orientou todo planejamento regional entre Pretória, o planalto de Witwatersrand (onde está Joanesburgo) e a cidade de Vereeniging (região conhecida como PWV).

Transitando novamente para o outro lado do Atlântico, durante a construção de Brasília na década de 1950, observamos o argumento ecológico e sanitário para proibir construções autônomas da população migrante. A “Faixa de Segurança Sanitária”, definida pela rodovia DF-001 ( Figura 3), foi artifício usado em 1958 para barrar o assentamento de trabalhadores migrantes próximas à Brasília.

Figura 2 |
Jornal Rand Daily Mail em 1952.

Figura 3 |
Faixa de Segurança Sanitária.

A partir dessa baliza todas as doações de terra ou construções dentro dos limites só poderiam ser aceitas depois da aprovação de um conselho diretivo da NOVACAP (Holston, 2010). A faixa concretiza o argumento do engenheiro sanitarista Saturnino de Brito Filho que, em plano anterior ao de Lúcio Costa, já alertava para a necessidade de a nova capital federal não reproduzir os erros de Belo Horizonte devendo evitar a “formação de favelas” além de “determinar a distância em km a que poderão estabelecer novo núcleos [satélites]” (CLNCF, 1955: 85 apud Lemos, 2022LEMOS, Guilherme Oliveira. 2022. No dilacerar do concreto: as histórias dos apartheids entre as satélites de Brasília e as townships de Joanesburgo (1955-1971). Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.).

As construções de rodovias e estradas parque (ordem do concreto) não integraram efetivamente todos os habitantes da região ( Maravalhas e Derntl, 2019DERNTL, Maria Fernanda. 2019. O Plano Piloto e os Planos Regionais para Brasília entre fins da década de 1940 e início dos anos 60. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 1, n. 1: 26-44. DOI: 10.22296/2317-1529.2019v21n1p26.
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). Quando muito serviram para levar os trabalhadores até suas distantes casas criando cidades segregadas com acessos pontuais ao centro. Delimitações fundamentais no planejamento regional para impulsionar o fluxo pelo qual se sustenta o capitalismo nas cidades modernas ( Santos, 2001SANTOS, Milton. 2001. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record.; 2009SANTOS, Milton. 2009. Pobreza urbana. São Paulo, Edusp.).

Observando esses dois exemplos podemos dizer que o cimento adentra as configurações espaciais no interior dos territórios coloniais da mesma forma que penetra as rochas durante o fraturamento hidráulico ( fracking). Sua função, seu único objetivo, é extrair ao máximo a energia de alguns entes terrestre em benefício do sistema neoliberal ( Green, 2015GREEN, Lesley. 2015. The Changing of the gods of reason: Cecil John Rhodes, Karoo Fracking, and the decolonizing of Anthropocene. e-flux journal, n. 65: 1-9. Disponível em: http://supercommunity.eflux.com/texts/the-changing-of-the-godsof-reason Acesso em ago. 2023
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; Povinelli, 2016POVINELLI, Elizabeth. 2016. Geontologies: A Requiem to Late Liberalism. Durham e Londres, Duke University Press.; Ferdinand, 2019FAGUNDES, Guilherme Moura. 2019. Fogo Gerais: Transformações Tecnopolíticas na Conservação do Cerrado. Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.; Mbembe 2020MBEMBE, Achille. 2020. Brutalisme. Paris, La Dévouverte.). As cidades modernas, planejadas para o bom funcionamento da vida humana quer dizer, para o bom funcionamento daqueles considerados humanos produz uma cisão mortífera dos entes. Agem, portanto, como necrópoles. 17 17 É necessário salientar a diferença entre a morte (nekróu) induzida e imposta no ocidente, para a morte concebida em outras cosmologias ou povos tradicionais. Por exemplo, nos candomblés a morte ikú (yoruba) e kufua (kimbundo) não estabelece uma cisão. A morte não tem o mesmo sentido pois, Ikú não rompe a pertença à comunidade. Ikú apenas transforma a condição do ser vivo para ancestral também participante e pertencente à comunidade, vinculado através da memória. E memória no ocidente é totalmente sequestrada em favor dos eventos históricos, dos ”grandes nomes”. Devo essas reflexões sobre Ikú ao prof. wanderson flor do nascimento durante uma conversa registrada no dia 19.06.2020 quando me apresentou ideias de seu capítulo no prelo. Essa mesma reflexão enseja outra já realizado por Muniz Sodré (2019) sobre o espaço dos terreiros nas regiões periurbanas e como estes se dão na alternativa ao modo de organização colonial ( SODRÉ, 2019: 28-32).

Considerações Finais

As soluções até hoje pautadas no melhoramento/desenvolvimento das cidades, continuam falhas em razão de atuarem a mesma lógica do sistema de produção da morte pelas cisões entre os entes do sistema planetário. Pessoas de origem africana, povos originários e outras fixadas historicamente como sub-humanas são dispostas no espaço conforme as vontades da colonização e do capitalismo junto a outros entes da não-vida (carbonato de cálcio, calcário, água etc.). Na transformação do cimento em concreto aramado ocultam-se os processos sociais e históricos que envolvem os seres humanos colonizados.

Aqui entendemos as necrópoles no sentido aproximado ao que Jaime Amparo Alves apresentou recentemente. Em um primeiro momento, Alves deu enfoque aos dados estatísticos sobre a produção de morte incidente na população negra da cidade de São Paulo (2018)ALVES, Jaime Amparo. 2018. The Anti-Black City: police terror and black urban life in Brazil. Minneapolis, University of Minnesota Press.. Agora em Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos sócio-espaciais sobre o racismo ( 2020VARGAS, João Costa. 2020. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Em Pauta, vol. 45. n. 18: 16-2. DOI 10.12957/rep.2020.47201.
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), suas observações, ainda centradas em dados, caminham em sentido ampliado sobre as ideias de espacialidade. Por outro lado, carece de uma consideração crítica das técnicas arquitetônicas e urbanísticas utilizadas pela branquitude para cindir os mundos entre homem e natureza.

E nesse ponto, portanto, nos afastamos de uma análise quantitativa para uma aproximação com a antropologia da técnica, tomando como referência estudo já realizado em relação à gestão da vida e da não-vida no cerrado ( Fagundes, 2019FAGUNDES, Guilherme Moura. 2019. Fogo Gerais: Transformações Tecnopolíticas na Conservação do Cerrado. Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.). Nesse último caso, contudo, o trabalho se ateve ao manejo do fogo na Estação Ecológica Serra Gerais (Jalapão-TO). Na tese, Guilherme M. Fagundes verifica como a mudança na perspectiva do combate ao manejo, decorrida da inclusão dos saberes e práticas locais quilombolas, enseja alterações na lida com o fogo e nos arranjos das vidas humanas e não humanas ( Fagundes, 2019FAGUNDES, Guilherme Moura. 2019. Fogo Gerais: Transformações Tecnopolíticas na Conservação do Cerrado. Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.: 154-212).

Aqui, ao enfatizar criticamente os fatores sócio-históricos presentes nos gestos que transformam o cimento em concreto, pretendemos futuramente apontar outros caminhos. Ao denunciar as tecnologias coloniais do capitalismo tardio, esperamos abrir caminhos para revisitar as alternativas. Afinal, o uso globalizado do concreto e a criação de paisagens fraturadas não estão concluídas. As técnicas de taipa, de habitações derivadas da “biointeração” ( Santos, 2015SANTOS, Antônio B. 2015. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília, INCT/UnB.), ainda existem e encontram-se em disputa por aqueles que defendem uma vivência ecologicamente viável. Mas esse mesmo movimento pode ser rapidamente cooptado pela própria branquitude, tal qual identifica Ferdinand ( 2019FERDINAND, Malcom. 2019. Une écologie décoloniale: penser l’écologie depuis le monde caribéen. Paris, Éditions du Seuil.).

Inclusive, mesmo no espaço urbano, os modos de vida das ocupações indicam que não há uma totalidade o concreto. O habitar consubstancial se contrapõe à brancopia cartesiana do mundo antinegro ( Paterniani, 2022PATERNIANI, Stella Zagatto. 2022. Ocupações, práxis espacial negra e brancopia: para uma crítica da branquitude nos estudos urbanos paulistas. Revista de Antropologia, vol. 65, n. 2: 1-25. DOI 10.11606/1678-9857.ra.2022.197978.
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: 17-20).

Busquei, portanto, formular a crítica à branquitude a partir de uma análise histórica da aplicação das técnicas arquitetônicas e urbanísticas que constituem a cidade moderna. Identifiquei como a constituição de edifícios brutalistas, próprios da estética modernista, ofuscam o evento colonial e o aparthied. Assim, convido colegas historiadores ao exame do que seja o evento e o cotidiano nesse contexto. Por fim, inseri a crítica à cidade moderna no bojo das produções sobre ecologia decolonial e contra-colonialidade, apontando as necrópoles como elemento fundamental do Negroceno.

Contudo, é indispensável construir tais críticas frisando que não há uma novidade. Propriamente porque as experiências históricas de quilombos, de terreiros e outras organizações espaciais, constituem essa reflexão/ação ( Sodré, 2019SODRÉ, Muniz. 2019. O Terreiro e a cidade: a formação social negro-brasileira. Rio de Janeiro, MauadX.; Nascimento, 1985NASCIMENTO, Maria Beatriz. 1985. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Afrodiáspora, vol. 6, n. 7: 41-49.). Elaborar a crítica ocultando essas experiências pode contribuir para obliteração dessas experiências negras insurgentes e retroalimentar a pretensa universalidade das paisagens cimentadas.

Os agentes históricos negros formularam e continuam formulando estratégias para dilacerar o concreto. Seja pelos movimentos sociais, quando observamos a articulação global na luta contra os apartheids ( Hall, 2022HALL, Amanda J. 2022. Black students and the U.S Anti-Apartheid movements on campus, 1976-1985. Zanji: The Journal of Critical Global South Studies, vol. 6, n. 1: 8-28. DOI 10.13169/zanjglobsoutstud.6.1.0002
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), ou as ocupações nos grandes centros urbanos ( Paterniani, 2022PATERNIANI, Stella Zagatto. 2022. Ocupações, práxis espacial negra e brancopia: para uma crítica da branquitude nos estudos urbanos paulistas. Revista de Antropologia, vol. 65, n. 2: 1-25. DOI 10.11606/1678-9857.ra.2022.197978.
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); a partir de estratégias para a ressignificação do cotidiano por meio da arte, da escrita, das reinvenções tecnológicas ( Nemer, 2021NEMER, David. 2021. Tecnologia do oprimido: desigualdade e o mundano digital nas favelas do Brasil. Virória, Ed. Milfontes.), ou do ensino como forma de cura ( Lemos, 2022LEMOS, Guilherme Oliveira. 2022. No dilacerar do concreto: as histórias dos apartheids entre as satélites de Brasília e as townships de Joanesburgo (1955-1971). Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.). Afinal, como lembra Denise Ferreira da Silva, “cura não é o marcador entre saúde e doença é antes um processo de criação na linguagem e com linguagem um processo de expressão. É a criação de sentido, quando orientada para questões éticas e coletivas, que tem o potencial para recriar o mundo de uma nova maneira” ( Silva, 2016SILVA, Denise Ferreira; DESIDERI, Valentina. 2016. Leituras (Po)éticas. Cadernos de Subjetividade. São Paulo, n. 19: 61-70.).

Agradecimentos:

Meu obrigado à Guilherme Moura Fagundes, Antonádia Borges, Ana Flávia Magalhães Pinto, Gabriela Leandro, Marcos Queiroz, Raquel Freire, Muha Bazila, Anderson Oliva, Anesu Chigariro, Amanda J. Hall, David Nemer, Leandro Bulhões e todos que participaram direta ou indiretamente da escrita deste artigo. Agradeço também aos pareceristas anônimos por seus comentários e leitura cuidadosa, as sugestões foram essenciais.

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  • WYNTER, Sylvia. 1994. No Humans Involved: an open letter to my colleagues. Forum N.H.I: Knowledge for 21st Century, vol. 1, n. 1: 1-17.
  • Financiamento:

    A pesquisa que originou o artigo recebeu incentivo da CAPES (Processo PDSE: 88881.189473/2018-01).
  • 1
    Este artigo é um desdobramento das pesquisas realizadas no doutorado ( Lemos, 2022LEMOS, Guilherme Oliveira. 2022. No dilacerar do concreto: as histórias dos apartheids entre as satélites de Brasília e as townships de Joanesburgo (1955-1971). Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.) e das vivências enquanto como homem negro, membro de comunidade tradicional de matriz africana, nascido e criado nas satélites de Brasília.
  • 2
    O concreto em sua forma pura foi e continua sendo a matéria-prima para os edifícios modernistas. Em The New Brutalism publicado por Reyner Banham em 1955 estão apresentadas as novas diretrizes do movimento modernista em sua renovação brutalista. Um dos imperativos morais do Movimento Modernista seria a “honestidade na estrutura e no material” ( Banham, 1955BANHAM, Reyner.1955. The New Brutalism. Architectural Review, n. 688: 355-361.: 22). Contudo, utilizo brutalismo aqui em seu sentido arquitetônico e político, uma vez que esses dois campos estão no cruzamento entre o material e o imaterial como aponta Mbembe ( 2020MBEMBE, Achille. 2020. Brutalisme. Paris, La Dévouverte.: 8). Agradeço, sobretudo, ao professor pela conversa durante meu tempo como pesquisador visitante na University of the Witwatersrand. Na quele momento, fevereiro de 2019, seu livro ainda não havia sido publicado e algumas reflexões sobre política neoliberal e brutalismo enriqueceram as propostas da pesquisa para além daquelas até então elaboradas.
  • 3
    A ideia de modernização do Brasil, assumida por políticos e intelectuais desde o século XIX até a década de 1930 ( Queiroz, 2022QUEIROZ, Marcos. 2022. O Haiti é Aqui: ensaio sobre a formação social e cultural jurídica latinoamericana (Brasil, Colômbia e Haiti, século XIX). Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.), expressa seu continuum na construção de Brasília ( Couto, 2013COUTO, Bruno Gontyjo. 2013. Ideologia e utopia de Brasília: disputas em torno do projeto de Brasil moderno. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília.). Essa ideia, contudo, não se desvincula dos objetivos raciais do início do século XX. Ela se atualiza em versão mais “apropriada” às lógicas de branqueamento da população brasileira, como já alertava Abdias do Nascimento (1978)NASCIMENTO, Abdias do. 1978. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro, Paz e Terra.. A nova capital deu materialidade para esse novo homem moderno ( Rubino, 2010RUBINO, Silvana B. 2010. “Gilberto Freyre e Lucio Costa ou a boa tradição: O patrimônio intelectual do Sphan”. In: GUERRA, Abílio (org.). Textos Fundamentais sobre História da Arquitetura Moderna Brasileira – Parte 1. São Paulo, Ed. Romano Guerra, p. 299-315.: 302). Isto fica evidente no discurso proferido por Freyre às Nações Unidas, ironicamente realizado em Brasília em 1966, comparando o apartheid sul-africano com a realidade brasileira ele atestava: “O Brasil é talvez a única projeção multirracial, em escala vastamente continental, na qual, em sociedade moderna, não se produz uma estrutura em que subgrupos multirraciais vivem à parte existências paralelas, apenas tolerando-se uns aos outros” ( Freyre, 2003FREYRE, Gilberto. 2003. Palavras repatriadas. Brasília/São Paulo, Ed. UnB e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.: 346).
  • 4
    Adolf Loos (1870-1930) se tornou um dos arquitetos mais influentes da Europa graças às suas ideias. Apesar de ter atuado no início do século XX, quando o movimento neoclássico dominava o cenário europeu, os escritos de Loos são considerados fundamentais para o movimento modernista.
  • 5
    População negra na Nova Guiné.
  • 6
    A crítica de Oyěwùmí é ainda mais contundente. Para ela, mesmo que as ciências sociais e humanas tenham se afastado drasticamente da frenologia do século XIX, estas continuam operando análises onde a centralidade são os corpos: suburbanos, trabalhadores, criminosos, negros, mulheres e uma série de tipos específicos que, ao final das contas, acabará por trazer um senso comum e cotidiano de raça e, como efeito, opondo o sujeito que analisa ao sujeito objetivado ( Oyěwùmí, 1997OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. 1997. The Invention of Women: making an African sense of western gender discourses. Londres, University of Minnesota Press.: 4).
  • 7
    Capital dos estados indianos de Punjabe e Haryana, a cidade foi inteiramente planejada por Le Corbusier e fundada em 1947 após os eventos da Partição. Lahore, a antiga capital Punjabe, ficou sobre o domínio paquistanês.
  • 8
    O registro de Eaton é apenas um indício de como os complexos habitacionais estavam conectados aos projetos nacionaisdesenvolvimentistas pelo mundo que, por sua vez, se ancoravam nos apartheids para se concretizarem. Em Joanesburgo do início dos anos 1950, o arquiteto Douglas McGavin Calderwood (1919-2009), apresentava um modelo de baixo custo para aproveitamento do espaço em detrimento do confinamento de trabalhadores nas townships que se tornariam Soweto ( Lemos, 2022LEMOS, Guilherme Oliveira. 2022. No dilacerar do concreto: as histórias dos apartheids entre as satélites de Brasília e as townships de Joanesburgo (1955-1971). Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.: 175-179).
  • 9
    Exceto nos casos indicados pela bibliografia, a tradução de fragmentos em língua estrangeira é minha.
  • 10
    Médico e biólogo francês, ganhador do Nobel de Fisiologia (hoje Medicina) em 1912 por sua técnica anticoagulante na transfusão de sangue. Também conhecido por seu colaboracionismo ao governo de Vichy e defesa ampla à eugenia, extermínio e castração da população considerada desviante. Suas opiniões eugênicas estão presentes no livro O Homem, esse desconhecido (1935), umas das obras que orientou Le Corbusier na formulação do modelo do “novo homem” ( López-Durán, 2018LÓPEZ-DURÁN, Fabiola. 2018. Eugenics in The Garden: trans atlantic architecture and the crafting of modernity. Austin, University of Texas Press.: 158-172).
  • 11
    Teste pelo qual uma amostra de concreto é posta sobre pressão para avaliar sua resistência.
  • 12
    A etimologia da palavra remete a uma relação racial entre angolanos e portugueses. Já no Brasil, o candango foi, por algum tempo, sinônimo de mulato ( Lemos, 2018LEMOS, Guilherme Oliveira. 2018. De Soweto à Ceilândia: siglas de segregação racial. Paranoá: cadernos de arquitetura e urbanismo, vol. 18, n.18: 102-114. DOI 10.18830/issn.1679-0944.
    https://doi.org/10.18830/issn.1679-0944...
    ).
  • 13
    O processo movido por Antônia, viúva de Expedito Xavier, diz respeito ao requerimento das pensões devidas aos dependentes pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI). Esse simples documento nos leva para uma análise de como a historiografia sobre as habitações populares no Brasil desconsidera a transferência de renda das famílias negras para o IAPI. Dinheiro que, pela violência burocrática, permanecia nos cofres do instituto e era revestido para a construção civil ( Lemos, 2022LEMOS, Guilherme Oliveira. 2022. No dilacerar do concreto: as histórias dos apartheids entre as satélites de Brasília e as townships de Joanesburgo (1955-1971). Brasília, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.: 59).
  • 14
    A historiografia da formação econômica brasileira baseada nos clássicos de Celso Furtado (1958) e Fernando Novais (1989) tem sido revisada pela perspectiva de um capitalismo nacional muito mais atrelado ao capital mercantil Atlântico, onde a matéria-prima era composta por africanos e indígenas escravizados ( Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. 2000. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Companhia das Letras.). Ao mesmo tempo, o fluxo desse capital passa a ser direcionado para outras atividades sobretudo a construção civil no Rio de Janeiro ( Fragoso e Florentino, 2001FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. 2001. O Arcaísmo como projeto: Mercado Atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.).
  • 15
    Como aponta achistoriografia sobre a indústriacmineradora na África do Sul: Nkosi (1987)NKOSI, Morley Z. 1987. American Mining Engineers and the Labour Structure in the South African Gold Mines. African Journal of Political Economy, vol. 1, n. 2: 63-80., Duncan (1995)DUNCAN, David. 1995. The Mills of God: The State and African labour in South Africa 1918-48. Johannesburg, Wits University Press., Teisch (2005)TEISCH, Jessica. 2005. “Home is not so very far away”: Californian Engineers in South Africa, 1868-1915. Australian Economic History Review, vol. 45, n. 2: 139-160. DOI 10.1111/j.1467-8446.2005.00132.x
    https://doi.org/10.1111/j.1467-8446.2005...
    , Katz (2006)KATZ, Elaine. 2006. The Contributions of American mining engineers and technologies to the Witwatersrand Gold Mining Industry, 1890-1910. Mining History Journal, vol. 13: 12-30., Higginson (2007)HIGGINSON, John. 2007. Privileging the machines: American engineers, indentured chinese and white works in South Africa’s deep-level gold mines, 1902-1907. International Review of Social History, vol. 52, n. 1: 1-34. DOI: 10.1017/S0020859006002768
    https://doi.org/10.1017/S002085900600276...
    , Tuffnellc (2015)TUFFNELL, Stephen. 2015. Engineering inter-imperialism: American miners and the transformation of global mining, 1871-1910. Journal of Global Histoty, vol. 10: 53-76. DOI 10.1017/ S1740022814000369.
    https://doi.org/10.1017/S174002281400036...
    , Freund (2019)FREUND, Bill. 2019. Twentieth-Century South Africa: a developmental history. New York, Cambridge University Press..
  • 16
    Igualmente, a população da Fercal, uma das cidadessatélites do Distrito Federal, sofre também com a qualidade do ar. Ali instalaram-se fábricas de cimento desde os anos 1960 para abastecer a construção civil. Estudos de 2012 mostram que a quantidade de partículas no ar na região chega a ser três vezes maior do que uma média anual aceitável (Maury e Blumenschein, 2012: 86). Na perspectiva sociológica sobre análise dos riscos que a indústria do cimento proporciona, destacamos o estudo de Carolina F. Bertanha (2019)BERTANHA, Carolina F. 2019. Quem mora aqui se adapta”: entendimento público de riscos e práticas de convivência com a poluição do ar na Fercal-DF. Brasília, Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília..
  • 17
    É necessário salientar a diferença entre a morte (nekróu) induzida e imposta no ocidente, para a morte concebida em outras cosmologias ou povos tradicionais. Por exemplo, nos candomblés a morte ikú (yoruba) e kufua (kimbundo) não estabelece uma cisão. A morte não tem o mesmo sentido pois, Ikú não rompe a pertença à comunidade. Ikú apenas transforma a condição do ser vivo para ancestral também participante e pertencente à comunidade, vinculado através da memória. E memória no ocidente é totalmente sequestrada em favor dos eventos históricos, dos ”grandes nomes”. Devo essas reflexões sobre Ikú ao prof. wanderson flor do nascimento durante uma conversa registrada no dia 19.06.2020 quando me apresentou ideias de seu capítulo no prelo. Essa mesma reflexão enseja outra já realizado por Muniz Sodré (2019)SODRÉ, Muniz. 2019. O Terreiro e a cidade: a formação social negro-brasileira. Rio de Janeiro, MauadX. sobre o espaço dos terreiros nas regiões periurbanas e como estes se dão na alternativa ao modo de organização colonial ( SODRÉ, 2019SODRÉ, Muniz. 2019. O Terreiro e a cidade: a formação social negro-brasileira. Rio de Janeiro, MauadX.: 28-32).

Editado por

Guilherme Oliveira Lemos é doutor

e mestre em história pela Universidade de Brasília. Atualmente é professor efetivo do Instituto Federal de Brasília. Suas pesquisas englobam temas relacionados à história dos apartheids em Brasília e Joanesburgo, segregação urbana e racial, territórios negros e quilombolas, história das lutas anticoloniais e impactos ambientais/humanos do colonialismo através dos planejamentos regionais e urbanos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2022
  • Aceito
    05 Jul 2023
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
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