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Direito como linguagem

Law as language

RESUMO

O objetivo deste artigo é examinar o direito como uma forma de linguagem. A investigação é, portanto, gramatical. O artigo está dividido em duas partes. A primeira, examina, muito brevemente, o que significa uma investigação gramatical no âmbito de uma antropologia do direito. A segunda descreve, também muito sumariamente, a gramática do direito. A descrição é o resultado da convivência diária e comezinha do autor desse texto de mais de 12 anos com os participantes do campo a partir de uma universidade privada em Brasília.

PALAVRAS-CHAVE:
Antropologia jurídica; linguagem; Wittgenstein; oposições valoradas

ABSTRACT

This article aims to examine law as a form of language. Therefore, it is a grammatical inquiry. The article has two parts. The first examines, very briefly, what a grammatical investigation means in the context of an anthropology of law. The second describes, also very briefly, the grammar of law. The description is the result of daily coexistence between the author and field participants from a private university in Brasília over 12 years.

KEYWORDS:
Legal anthropology; language; Wittgenstein; Hierarchical Opposition

A INVESTIGAÇÃO GRAMATICAL

O objetivo deste artigo1 1 Uma versão anterior desse texto foi apresentada no VII Enadir na mesa redonda “Direito e linguagem”. Agradeço aos participantes do evento pelas críticas e sugestões, algumas delas incorporadas na versão final. é examinar o direito como uma forma de linguagem. Todavia, dizê-lo não é suficiente. É preciso expor, minimamente, em que a afirmação se baseia e quais são as consequências mais imediatas que seria possível retirar daí. Pois bem: o ponto central de toda investigação é a ideia de que o significado de uma palavra (ou conceito, como vou preferir) é o seu uso. Dizer que as palavras têm um uso é banal, dizer que o significado é igual ao uso, não. A razão disso é que o significado como uso inverte a abordagem da linguística tradicional que supõe a anterioridade lógica da langue (o código que contém o sentido) em relação à parole (o uso, a palavra como evento). A investigação que proponho supõe que o uso está sujeito a regras naquilo que Wittgenstein chamou “jogo de linguagem”, quer dizer, “o todo composto pela linguagem e as ações com as quais ela está entrelaçada” (Wittgenstein, 1958WITTGENSTEIN, Ludwig. 1958 [1953]. Philosophical investigations (with the German text). Oxford, Blackwell Publishers., parágrafo 7, minha versão do inglês).2 2 Ao longo do texto as aspas são empregadas para destacar trechos e citações ao passo que o itálico apresenta categorias e termos importantes para a compreensão e organização do mundo descrito. A consequência é que jogos de linguagem e as suas regras podem ser descritos etnograficamente. A investigação também assume que não haja um substrato comum a todos os jogos de linguagem no qual um mesmo conceito seja utilizado, mas uma rede de semelhanças, um ar de família, se preferirem. Dominar uma linguagem implica em dominar uma técnica (um sentido de técnica diferente do que o direito se utiliza, como veremos) e uma linguagem reflete um modo de vida particular.

Uma investigação gramatical, conforme proponho aqui, se divide em dois passos. O primeiro é a descrição dos diversos usos. A dificuldade deste primeiro passo reside sobretudo no fato de que aquilo que mais nos interessa é o que é tomado por óbvio e evidente e está, geralmente, à frente de todos, dificuldade que se acentua quando pesquisador e pesquisados pertencem à mesma sociedade. O óbvio que precisa ser visto não pertence apenas à forma de vida do pesquisado, mas igualmente à do pesquisador. O segundo passo da investigação é examinar as relações entre as regras dos diversos usos, não apenas de um determinado conceito, mas também de outros. Enquanto o primeiro passo pertence à sociologia descritiva, o segundo se propõe a pensar as relações entre os diversos usos como um sistema. A ideia central, retirada de Marcel Mauss, é que o mundo social é construído pela relação entre os seus diversos aspectos (Tarot, 1998TAROT, Camille. 1998. “Marcel Mauss et l’invention du symbolique”. In: CAILLÉ, Alain (Org.). Plus réel que le réel, le simbolisme. Paris, La Découverte, pp. 25-40.). A sugestão é que as regras também têm sentido, e o seu sentido está na sua diferença recíproca (uma regra tem sentido como o outro de outra regra) e a relação entre as regras pode ser expressa como uma forma (um conteúdo que organiza outros conteúdos).

Infelizmente, o espaço restrito de um artigo não me permite apresentar o primeiro passo em sua integralidade. O argumento vai enfatizar as relações entre as regras e a descrição dos usos para exemplificar as relações; portanto, a descrição dos usos vai aparecer como contida pela forma. Dito de outro jeito, a apresentação dos resultados inverte o caminho da investigação. Passo então a examinar a aplicação destes princípios no campo do direito.

O DIREITO E O SEU LABIRINTO

Antes de entrarmos na gramática conforme definida acima, é preciso partir de uma visada mesmo que provisória do conjunto do que estou chamando de linguagem. Para tanto, gostaria de me apropriar de uma imagem sugerida por Wittgenstein nas Investigações (1958WITTGENSTEIN, Ludwig. 1958 [1953]. Philosophical investigations (with the German text). Oxford, Blackwell Publishers., parágrafo 18). A linguagem, sugere ele, é como uma cidade construída em momentos diferentes que vão se sobrepondo uns aos outros, um labirinto formado por ruas sinuosas para evitar transeuntes indesejados, cercado de avenidas construídas sobre pedaços de bairros antigos e por ruas largas de tráfego intenso, caminhos que se cruzam ao acaso, prédios novos ao lado de casas antigas às quais ganharam novas utilidades com tempo, cercada de bairros novos planejados, cidades que foram sendo engolidas pela metrópole ou ocupações mais ou menos ilegais como morros habitados ao acaso da desigualdade ou bairros pobres na periferia. Da imagem acima, adaptada do original, quero retirar dois pontos. O primeiro é que uma cidade tem seus jeitos de ser, os bairros características próprias, maneiras de circulação das pessoas e das coisas etc. O segundo é a ideia de que uma cidade também é um labirinto, tanto no sentido da sua conformação urbanística, como dos seus modos de ser que para os seus habitantes são óbvios e, por isso, invisíveis. A imagem permite enunciar o seguinte: para se fazer parte do direito, falar essa linguagem, é preciso ser capaz de dominar os caminhos da cidade, saber por onde ir para chegar aonde se pretende.

Há dois conjuntos de fenômenos que organizam e estruturam o direito como linguagem. O primeiro deles é a existência de um conjunto de normas substantivas e processuais às quais os enunciados escritos vão se referir. A ideia reguladora é que o direito formaria um todo coerente sem contradições internas ou falhas e capaz de subsumir todas as situações sociais que lhe forem apresentadas - ideia que já está presente em Weber (1978WEBER, Max. 1978. Economy and society. An outline of interpretative sociology. Berkeley, University of California Press.: 656). Ela é uma ideia reguladora que se exercita em certos usos, como o conceito de legislador. Os participantes do campo argumentam que tal ou qual interpretação da lei (que eles defendem) é a mais apropriada porque ela corresponderia à vontade do legislador (sempre no singular). Evidentemente, a pretensão é contraditória com a prática social de produção de leis, na qual impera o conflito, a potencial desordem, os vários interesses presentes na sociedade e o exercício do poder. Ela requer, portanto, um esquecimento intencional de parte da prática social.

Parte central da identidade dos operadores do direito se constrói em torno de uma necessidade: é preciso tomar uma decisão - e esse é o ponto - que seja institucionalmente consequente. Em outras palavras, os operadores vão entender que os motivos da decisão devem ser baseados em uma interpretação consistente da norma, uma que se baseie firmemente nas estratégias hermenêuticas que o campo reconhece. A ideia reguladora, para eles, é que haveria, no limite, uma decisão mais correta, mesmo se o processo de desvelá-la for marcado pela incerteza de que o resultado almejado (a melhor decisão) seja, de fato, possível de ser alcançado. Com o uso do termo operadores brasileiros, quero enfatizar o caráter etnográfico da observação; na teoria do direito, as coisas seguem um rumo um pouco diferente (por exemplo, admitindo que não há uma decisão mais correta, mas decisões possíveis, ou desenvolvendo um método mais rigoroso para ponderação de direitos). Há uma ligação estreita entre a melhor decisão como ideia reguladora e o uso do conceito técnica. A técnica jurídica é o instrumento que, segundo eles, configuraria e conformaria, idealmente, o consenso possível sobre qual seria a melhor decisão dadas as especificidades do caso concreto. Para seus operadores, fazer parte do direto é, fundamentalmente e para além do título de bacharel, ser capaz de dominar suas técnicas. Todavia, o uso acima de técnica jurídica está relacionado muito mais à distinção entre direito e outras formas de saber e, particularmente, à crítica à capacidade de que outras formas de conhecimento teriam de julgar as decisões oriundas das instituições jurídicas. Ela serve pouco para descrever o que os operadores do direito fazem.

Se dermos à técnica um uso descritivo (portanto diferente do uso acima), teríamos o seguinte: o que eles chamam de técnica é um conjunto muito grande de conceitos com usos diferentes em contextos diversos que somente com muito esforço da imaginação poderia ser reduzido um conceito que abrangesse todos eles. É possível dizer, todavia, que elas têm três características em comum (embora não seja isso que as defina): (a) elas são instrumentos do discurso; (b) têm um caráter performativo (usar a técnica jurídica implica em fazer algo dentro de instituições para as quais ela é eficaz; e, (c), e carregam uma força - no sentido de força ilocucionária em Austin (1975AUSTIN, John L. 1975 [1962]. How to do things with words. The William James Lectures delivered at Harvard University in 1955. Oxford, Oxford University Press .) - que é difícil para nós, cientistas sociais, entendermos, principalmente se tomarmos como ponto de partida a ideia de que o direito é um instrumento em favor de alguma outra coisa (o que ele, em meu entendimento, também é, mas não o é somente). Tampouco é possível reduzir a regra dos jogos de linguagem à norma, quer dizer, não é possível dizer que a norma jurídica seja sempre a regra dos jogos de linguagem jurídicos. Ela às vezes tem esse papel. Em outros contextos, a norma está submetida a outras regras, sejam elas regras próprias das hermenêuticas jurídicas, sejam regras derivadas do pertencimento a uma instituição, sejam regras da convivialidade própria deste campo, sejam ainda regras que derivam do fato de os julgadores são seres no mundo. Não pretendo que a enumeração seja exaustiva, tampouco que várias dessas regras não possam operar em um contexto particular. Por hora, importa destacar que a questão de que tipo de regra opera em determinada situação é, entendo, empírica.

O segundo fenômeno que estrutura o campo é a existência das instituições jurídicas com jurisdições distintas, embora às vezes sobrepostas. Há juízes estaduais e federais, bem como juízes especiais (causas trabalhistas, militares e eleitorais por exemplo estão sob a jurisdição de instituições à parte). Das decisões dos juízes de 1º grau, sejam eles estaduais ou federais, cabe recurso para os respectivos tribunais (cada jurisdição tem o seu) formado por desembargadores. Teoricamente da decisão do tribunal caberia recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), no caso de leis complementares, ou ao Supremo Tribunal Federal (STF), no caso de questões constitucionais. Na prática, os advogados já nas petições iniciais costumam colocar os elementos que vão lhes permitir recorrer primeiro ao STJ e, depois, ao STF.

A relação das instâncias superiores com as inferiores apresenta duas tendências contraditórias, mais visíveis no STF, mas por hipótese presentes nos outros tribunais: por um lado, o impulso para tutelar o que se faz nas instâncias inferiores, o que tem como resultado um aumento no número de processos - isso, em parte, está presente nas regras do processo, nas possibilidades de recursos dos mais variados tipos e na prática de abarcar mais competências; por outro lado, há a prática de encontrar maneiras de não decidir o caso a partir das suas especificidades, mas aplicar-lhe fórmulas gerais que possam ser utilizadas em um grande número de processos. Parte do trabalho do bom advogado nesses casos é a capacidade de tirar o processo da vala comum, enunciar com sucesso que “esse caso é diferente”.

Os dois fenômenos são importantes para a conformação do que venho chamado de gramática do direito. O primeiro deles (as normas) pretende ter um caráter universal conforme sua área de vigência (uma lei estadual não se aplica em outro estado, mas uma lei federal se aplicada a todos eles). A pretensão é que os mesmos jogos de linguagem sejam adotados por todas as instituições jurídicas, visto que as regras do processo teriam, dentro de sua área de vigência, uma aplicação universal. Na prática, a complexidade da instituição caminha na direção oposta. Os gabinetes dos ministros do STF giram se organizam como se fossem pequenas sociedades de corte nas quais a racionalidade cortês, quer dizer, os afetos que os outros creditam ao ministro são centrais para o funcionamento e as decisões que o gabinete produz (Souza, 2012SOUZA, Larissa Maria Melo. 2012. A fábrica de argumentos: uma etnografia da construção da iniquidade nos casos da anistia pelo Supremo Tribunal Federal. Brasília, Dissertação de Mestrado, Centro Universitário de Brasília.). De forma semelhante, cada vara de primeira instância tem um juiz titular que a organiza à sua maneira e interpreta as regras conforme à situação local. Cada juiz tem sua interpretação sobre alguns assuntos que lhe são mais caros ou sobre os quais ele tem maiores convicções. Isso sem contar o fato de que, como instituição, cada tribunal tem sua cultura local que traz diferenças no processamento inicial das causas, na sua organização administrativa e nas suas maneiras de decidir. Além disso, há diferenças na interpretação da mesma lei não apenas entre regiões e tribunais diferentes, como dentro de um mesmo tribunal uma turma pode decidir o mesmo caso de uma maneira enquanto a outra vai na direção oposta (Freitas Filho, 2009FREITAS FILHO, Roberto. 2009. Intervenção judicial nos contratos e aplicação dos princípios e das cláusulas gerais: o caso do leasing. Porto Alegre, S. A. Fabris.). Como resultado, a sugestão etnográfica é que a gramática pode variar conforme o local, uma espécie de sotaque se preferirem, mas os jogos de linguagem ainda guardam suficiente semelhança entre si para eles serem reconhecidos (nos meus termos) como uma mesma linguagem ou, talvez, sejam assim percebidos porque são colonizados pela hierarquia de enunciados que se criam nas diversas instâncias de uma mesma jurisdição.

INTERNALIDADE E EXTERNALIDADE

A metáfora da linguagem como cidade tem um ar de família com a maneira como os participantes do direito experienciam e percebem-no como prática profissional e campo social. Eles não apenas imaginam que o direito é diferente de outros saberes, como também que o direito se conformaria como uma maneira de existir à parte do resto. Ou seja, nos termos dessa investigação como uma forma de vida ou, para continuar na imagem acima, como uma metrópole vibrante, a verdadeira capital da sociedade brasileira que, paradoxalmente, como veremos, se coloca para além dela. Não advogo que todos os participantes pensam e agem assim, mas que essa é uma maneira de ver o mundo hegemônica no campo. A observação etnográfica, por sua vez, é capaz de enunciar o que isso quer dizer como prática social. Há maneiras de ser que são próprias ao direito e que não se confundem com outras, tanto no sentido de maneiras de se comportar, jeitos e cerimônias (que reproduzem uma certa perspectiva do que seria uma elite intelectual e econômica, do ponto de vista de quem não participa dela), como também no fato de que boa parte dos profissionais do direito (aqueles que efetivamente vivem dele) encontram seus círculos de convivência e convivialidade marcados pela presença de outros participantes do campo. Mais ainda, a posição que o indivíduo ocupa nas instituições jurídicas constitui-se como identidade social que atravessa as relações mais cotidianas. Assim, um ministro não deixa ser tratado por ministro quando vai a uma festa, “seja bem-vindo, ministro! Por favor, sinta-se em casa”. É um meio social muito cioso de quem é quem, uma espécie de clube cujo preço da admissão é ser do direito ou, em um grau menor em ocasiões sociais (como uma espécie de concessão cerimoniosa, um visto de residência temporário), ser casado com alguém do direito.

Para fazer parte do direito há critérios bem definidos que possuem uma ordem: ser bacharel em direito, ter passado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (o que implica em ter o número e a carteira da OAB), passar em concursos públicos próprios das profissões jurídicas (como Ministério Público, Advocacia Geral da União e magistratura), assumir uma vaga de desembargador ou ministro. Digo que os critérios têm uma ordem, porque a posição posterior depende de se ter pertencido à anterior: assim, prestar o exame da ordem requer o título de bacharel em direito, enquanto passar em um concurso público exclusivo para os bacharéis em direito requer ter-se, para alguns, a carteira a ordem e para outros a comprovação do exercício de 3 anos de atividade jurídica (a exceção são as vagas para o STF para as quais o presidente indica quem ele quiser).

Os participantes do campo chamam a si próprios de operadores do direito (nunca a ouvi no feminino). A expressão enuncia a regra segundo a qual nenhum das categorias nas quais eles se distribuem profissionalmente - juiz, procurador, advogado, bacharel, assessor etc. - serve para referir-se ao conjunto de todos eles. Eu sempre achei muito estranho o uso da expressão. Nós, cientistas sociais, nunca nos chamaríamos de operadores (“operador da antropologia”, por exemplo, me soa ridículo, “operador antropológico” ridículo e pretensioso). Justamente por isso me chamava a atenção a maneira um tanto reverente pela qual as pessoas do campo utilizavam-na, às vezes com uma pausa quase imperceptível como se a destacá-la.

Há três usos da expressão operadores do direito que são relevantes para esse texto. O primeiro é, dir-se-ia, um uso mais mundano e descritivo: “operadores do direito” são seus militantes, quer dizer, as pessoas que vivem profissionalmente do direito e, para tanto, dominam e se utilizam da técnica jurídica (embora eles só utilizem o termo para referir-se aos advogados que não querem assumir outros papéis - como prestar um concurso ou dar aulas -, eles os chamam de “advogados militantes”). Depois, a expressão operadores do direito se refere à ideia de que o direito vai de si mesmo, uma espécie de incorporação na qual o operador é tomado pelo direito, como se o direito não fosse um instrumento que os indivíduos usam, mas como se os indivíduos fossem os instrumentos pelos quais o direito se realiza. Por fim, a expressão é utiliza para enunciar a oposição entre aqueles que são operadores e os que não são - o que, por sua vez, contém duas proposições diferentes: os que pertencem ao campo valem mais comparados aos que não pertencem, e geralmente ela inclui quem a utiliza como alguém do campo (raramente vê-se aqueles que são externos ao campo referirem-se aos seus participantes como operadores, eu mesmo me sinto muito sem graça em utilizá-la e só o faço em textos ou discussões acadêmicas, como descrição etnográfica).

Outra palavra com uso semelhante é jurista. E aqui há dois usos que gostaria de destacar. No primeiro deles, usa-se jurista para nomear aqueles que têm o título de bacharel e empregam profissionalmente os instrumentos jurídicos. No segundo, à diferença do anterior, usa-se jurista em oposição a advogado: o primeiro comentaria e escreveria sobre a lei, produziria “doutrina jurídica” - e poderia ser substituído por doutrinador -, o segundo usaria a técnica jurídica, os instrumentos que direito oferece para a defesa de uma parte. O jurista tomaria partido do direito como algo que basta a si mesmo (o que, em certo sentido é uma ilusão, afinal, eles não deixam de estar no mundo e, portanto, ter interesses, inclusive o de empregar sua interpretação da lei em processos judiciais); o advogado, por sua vez, relaciona o direito com algo que não está no direito, mas que, da perspectiva do campo, se subordina a ele (a sociedade). Também é possível chamar de jurista o advogado que utiliza argumentos originais em suas defesas, à diferença dos advogados tour court que utilizariam a jurisprudência e interpretações mais literais da lei em suas peças. Quando se opõe jurista ao advogado, aquele vale mais do que esse. E é interessante reparar que o valor se espalha em outras práticas do campo, a exemplo do ensino de direito.

No Brasil, quando se ensina direito, raramente os professores utilizam casos que, por definição, são contenciosos para exemplificar um conjunto de possibilidades da norma ou - nos nossos termos - seus vários usos. Em outras palavras, eles não utilizam o modelo do advogado como pedagogia. O ensino brasileiro do direito é tradicionalmente o comentário dos códigos artigo por artigo à maneira dos manuais de direito (não apenas eles, evidentemente, mas o que serve para o código serve para o resto), quer dizer, ensina-se o direito como doutrina jurídica. O professor enuncia o artigo, o que geralmente significa parafraseá-lo, declará-lo com outras palavras e, eventualmente, dá exemplos da sua aplicação que enfatizam a conformidade com o enunciado que ele produziu. Às vezes, eles contam casos que mostram sua inteligência jurídica. Aliás, a diferença entre teóricos e práticos do direito que parece ser uma distinção importante do campo jurídico francês (vide Bourdieu, 1986BOURDIEU, Pierre. 1986. La force du droit. Pour une sociologie du champ juridique. Actes de la recherche en sciences sociales, vol. 64, n. 1: 3-19. DOI 10.3406/arss.1986.2332
https://doi.org/10.3406/arss.1986.2332...
) não se aplica com a mesma veemência no caso brasileiro. Não apenas os juízes e ministros (mais esses do que aqueles) imaginam que suas decisões fazem doutrina e se enunciam como tal, mas também os problemas “teóricos” são resolvidos pelas decisões do Supremo Tribunal Federal. Várias vezes ouvi frases como: “eu não tenho mais problema de pesquisa porque o Supremo já decidiu a questão”, dita por outros professores ou alunos do direito. De forma semelhante, os advogados dizem que suas peças produzem teses.

Os usos acima enunciam a centralidade da oposição pertencer ou não pertencer ao direito ou, como prefiro, entre internalidade :: externalidade. Nela, o primeiro termo vale mais que o segundo de modo que aqueles que são internos merecem mais consideração do que aqueles que lhe são externos.3 3 Retiro de Aragão (2018) e a aplico num contexto um tanto diverso, já que Aragão pretendia que a oposição permeasse a sociabilidade no Brasil, o que não é o caso aqui. Ela é, portanto, uma oposição valorada.

O JUIZ E O ADVOGADO

Juiz e advogado são profissões, quer dizer, são categorias que pertencem à morfologia do campo jurídico e fazem parte de um contínuo de possibilidades que conformam as condições objetivas do exercício do direito como um ofício e, portanto, da sua prática propriamente dita. Num outro plano, a relação entre os conceitos enuncia regras gramaticais. Cada um deles expressa as duas possibilidades em torno das quais circula o direito: de lado, a decisão de qual norma aplicar ao caso concreto (dar o direito) e de outro a defesa de direitos (a sustentação de teses jurídicas). Retiro “dar o direito” do velho brocado jurídico “dá-me os fatos e lhe darei o direito” (a tradução da expressão em latim da mihi factum, dabo tibi ius, que o direito brasileiro transformou em princípio). Poderia substituir “dar o direito” por “dizer o direito”, e estaríamos talvez mais próximos à maneira como os juízes justificam o seu papel: “(…) a lei não diz nada, porque a lei é uma ficção. Quem diz o que a lei diz é o juiz” (depoimento de um juiz retirado de Mendes, 2012MENDES, Regina Lucia Teixeira. 2012. “Verdade real e livre convencimento: O processo decisório judicial brasileiro visto de uma perspectiva empírica.” Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 5, n. 3: 447-482.: 449). O uso de uma tese é a defesa da aplicação ou não de uma determinada norma ao caso concreto. Todavia, a forma, o conteúdo e a estratégia de uma tese podem variar bastante. Como regra gramatical, juiz :: advogado é uma oposição valorada. Não apenas o juiz vale mais que o advogado, quanto o juiz contém o advogado (ele deve ter três anos de atividades jurídica e a maneira mais fácil de comprová-lo é a carteira da ordem e a atuação em processos judiciais).

Descobrir a decisão mais “correta” configura-se, na posição do juiz, como um dever. Para tanto, ele teria de estar para além dos conflitos, paixões, estratégias desapontamentos e necessidades mais imediatas, de forma a, na distância do mundo, fazer surgir o direito na sua forma mais pura. No mundo ideal à brasileira, tudo se passa como se a lei possuísse o julgador como uma intuição intelectual inescapável e justa, pretensão que se consolida na ideia de livre convencimento do juiz, que se expressaria no uso apropriado da técnica e, como nos mostrou Mendes (2012MENDES, Regina Lucia Teixeira. 2012. “Verdade real e livre convencimento: O processo decisório judicial brasileiro visto de uma perspectiva empírica.” Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 5, n. 3: 447-482.), na ideia de verdade real.

No mundo real, as coisas se passam de maneira um tanto diferente. O juiz tem uma história pessoal e um lugar no mundo, quer dizer, concepções sobre a sociedade e, dentro dela, do seu papel (os juízes a todo momento estão fazendo juízos sociológicos, mas, ao mesmo tempo, negam-nos enquanto tal, como resultado as suas justificativas jurídicas reproduzem enunciados do senso comum), preferências pessoais sobre as diversas teorias do direito, sua consciência de classe (mesmo que ele não a veja como tal), considerações morais (que abrangem tanto sua moralidade pessoal como a ética profissional), experiências pessoais que se refletem na maneira como percebe os casos (como um juiz solteiro e novo verá a separação de um casal depois de 25 anos de casamento?) etc. Além disso, o juiz está em uma instituição e ocupa um cargo que, como exercício do poder, está imerso em um mundo de estratégias, alianças, movimentos e contra movimentos. Ele precisa, por exemplo, relacionar-se com condições objetivas às quais está submetido: a sua percepção da reação pública à decisão (o juiz pode deferir o pedido de um liminar para um leito de UTI ou um remédio que esteja fora da tabela do Sistema Unificado de Saúde, o SUS, pensando na possível repercussão que teria na imprensa); as consequências institucionais para sua carreira (cada juiz tem tabeladas as suas decisões para saber quantas ele faz a cada mês, de forma que juízes considerados pouco produtivos podem sofrer consequências por conta disso); a maneira como o tribunal irá reagir ao recurso desta decisão específica (é mais provável que o tribunal mantenha ou reforme a decisão?); os desdobramentos políticos (se ele pretende competir por uma vaga no tribunal, ele precisa ajustar suas decisões seja para ganhar apoios dentro do próprio tribunal, seja para conseguir, se for o caso, que o governo não o veja como um perigo aos seus interesses) e por aí a fora.

Vários juízes já me expressaram a angústia que acompanha o dever da melhor decisão: “o que fazer?”. A angústia resulta, em parte, da complexidade na qual o julgamento de um caso concreto efetivamente está submetido: a contradição entre as possibilidades de interpretação que a própria técnica oferece (entre uma interpretação restritiva ou extensiva da norma, por exemplo: a primeira se manteria dentro dos limites do enunciado normativo interpretado literalmente, a segunda procuraria aplicar a norma em situações não explicitamente enunciadas, mas que, teoricamente, se enquadrariam nos princípios que regem o enunciado da lei); os sentidos de justiça e injustiça que o julgador associa ao caso; as pressões que o caso sofre etc. É interessante notar que, apesar de presente nos discursos que os juízes têm sobre sua prática, a ideia de justiça não apenas está ausente do direito dogmático, como é contraditória à própria ideia juspositivista, como o direito brasileiro pretende ser. “Invocar a justiça é como dar uma pancada na mesa: uma expressão emocional”, já dizia Ross (2000ROSS, Alf. 2000 [1959]. Direito e justiça. Bauru, EDIPRO.). A angústia também está ligada, em outro plano, à insuficiência da linguagem do direito para dizer o que se quer dizer.

O papel do advogado é o simétrico oposto das pretensões acima. O advogado tem de tomar partido daquilo que defende e, no caminho contrário da posição do juiz, tem a obrigação de ser parcial para fazer avançar a causa de seu cliente, de encontrar no mundo do direito e nos corredores do fórum ou do tribunal os melhores argumentos (em relação ao direito substantivo), estratégias processuais (em relação às técnicas jurídicas) e/ou estratégias de outra ordem. O advogado não pode se pensar como alguém que está, idealmente, “para além do mundo”. Ele tem plena consciência - que ele pode elaborar de diversas maneiras - de que o direito é, na sua prática, o conflito pelo conflito, o conflito no seu estado puro. Ele está em um mundo de luta e batalha, e o seu principal dever é a sua fidelidade à causa de seu cliente. Portanto, ele não pode se dar ao luxo de se imaginar possuído pela norma jurídica. Para defender uma causa ele deve se perguntar não “qual o argumento jurídico mais correto?”, mas sim “qual o argumento que tal ou qual juiz tem mais probabilidades de aceitar?”. As estratégias variam conforme o pedido, o tipo de peça (se é a inicial, qual tipo de recurso, se é uma peça em resposta a uma outra etc.) e a “qualidade do direito” do seu cliente. Os participantes do campo entendem do que trata a frase e a utilizam para dizer coisas; assim, um juiz não pode falar para um advogado que vai lhe dar ganho de causa, mas pode dizer que o seu cliente tem "um bom direito". Um bom direito leva o advogado a enfatizar o direito substantivo e uma estratégia discursiva mais direta e objetiva. Já um direito ruim o leva a enfatizar aspectos processuais ou mesmo principiológicos que lhe permitam recorrer da decisão e uma estratégia discursiva mais rebuscada o que pode levá-lo a um texto mais barroco.4 4 É preciso reconhecer, todavia, que há casos de advogados que, como regra, têm textos rebuscados, o que pode significar uma estratégia de legitimação de um lugar, real ou imaginário, que, ele acredita, deveria ter na percepção de outros participantes do campo. Opera aqui a ideia segundo a qual um texto difícil compreensão é um texto mais profundo e erudito. Mas o que importa para o meu argumento é que mesmo um direito ruim não leva o advogado a desistir da causa ou concordar com o advogado da outra parte. O seu trabalho é, na medida do possível e das suas capacidades, transformar um direito ruim em um bom direito ou, se isso não for possível, mitigar os prejuízos (econômicos, sociais, simbólicos ou pessoais) para o seu cliente. Dessa forma, o resultado global do direito como prática é diluir a qualidade do direito nos argumentos e contestações entre as partes. Entretanto, ao falar da prática judiciária, o advogado assume a posição hermenêutica do juiz, como a crítica difusa e sempre presente de que o judiciário e os juízes não fazem seu papel “como deveriam”. A crítica serve para reproduzir o jogo de forças e a eficácia do discurso do campo jurídico. Isso cobra um preço. Para fazê-lo, o advogado tem de desconsiderar justamente a sua prática como advogado que o leva a diariamente arremeter contra os limites daquilo que ele mesmo prega. Uma alienação proposital, sem dúvida, mas que não é resultado da vontade ou do cinismo dos indivíduos qua indivíduos que militam neste campo.

Juízes e advogados também representam diferentes funções no discurso. A posição dos advogados é, ontologicamente, o lugar da pluralidade das vozes, versões e argumentos; por outro, a posição dos juízes tem como princípio reduzir o múltiplo ao um. Dito de outro jeito, a oposição entre dizer o direito e defender teses exprime, no âmbito do processo (e com certo grau de idealização, como veremos a seguir) uma oposição valorada na qual dizer o direito engloba a defesa de tese.

O uso do juiz como função no discurso no caso brasileiro ganha seu caráter próprio na ausência de uma ideia reguladora que pudesse teoricamente basear o consenso, por mais difícil que fosse sua realização objetiva. Com isso eu quero dizer que o vai e vem de argumentos não para no uso de outro conceito, como racionalidade, verdade, fatos, tradição, justiça etc., capaz de promover um consenso substantivo mínimo. Tudo é potencialmente objeto de discussão entre as partes e o que sobra disso é o processo e as suas regras (escritas ou não) como os limites dentro dos quais o movimento pode e deve acontecer. Roberto Kant de Lima tem apontado com frequência o caráter escolástico do debate no direito brasileiro, quer dizer, o “oferecimento obrigatório de dissensos infinitos à autoridade de terceiros” (Kant de Lima, 2013KANT DE LIMA, Roberto. 2013. "Entre as leis e as normas: éticas corporativas e práticas profissionais na segurança pública e na justiça criminal." Dilemas, 6(3): 549-580. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7436
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: 12). A minha descrição concorda com a proposição. A diferença é que ela tem um caráter analítico, mas apropriado à direção deste texto. Analiticamente, o debate assume a seguinte forma: se uma parte argumenta que a outra fez “A” a parte contrária irá dizer que, na verdade, o seu cliente fez “não A”. Se as provas apresentadas pela parte contrária mostram “A”, o advogado tentará impugná-las ou argumentar que elas não servem para prová-lo. A mesma atitude se espalha para outras discussões que, no processo, não se referem ao mundo dos fatos, mas ao do direito e abrangem não apenas as normas (princípio ou regras) que seriam apropriados para o caso, mas também aplicação da jurisprudência (pode haver decisões anteriores em sentidos opostos) e a interpretação correta de uma e de outra (qual o método hermenêutico mais apropriado ao caso concreto). Em todos estes momentos, o advogado tem o dever de se contrapor à parte contrária. Caso contrário, estabelece-se um fato. Neste jogo de linguagem, um fato é aquilo que a outra parte não contesta, aquilo que - diz-se - a parte confessa, e esse é um uso muito particular do conceito.

Na ausência de uma ideia reguladora, sobra ao juiz o pertencimento à instituição que se enunciar enquanto o fato da autoridade (reduzir o múltiplo ao um em nome da autoridade). Não uso autoridade aqui no sentido que lhe dá Gadamer (1977GADAMER, Hans-Georg. 1977 [1975]. Verdad y método. Fundamentos de una hermenéutica filosófica. Salamanca, Ediciones Sígueme.), como a verdade que se enuncia a partir a tradição. Simplesmente repito um dos usos que os operadores fazem do conceito: como alguém que ocupa determinados cargos públicos que têm o poder de decidir (um ministro é uma autoridade, já um assessor de ministro não). A autoridade decide utilizando a linguagem da norma, mas não se submete a um valor publicamente compartilhado que esteja para além dela. Ela, portanto, fala a partir de si mesma: “é o juiz quem diz o direito”. Em outras palavras, o movimento entre “A” e “não A” para provisoriamente na decisão do juiz como exercício de autoridade - e digo provisoriamente porque da decisão cabe recurso. O resultado é frequentemente o arbítrio e a violência: a falta de uma fundamentação consistente (cf. Abreu e Souza, 2013ABREU, Luiz Eduardo;SOUZA, Larissa Maria Melo. 2013. O golpe e os marinheiros: notas sobre o uso à brasileira da jurisprudência no STF. Universita Jus, vol. 24, n. 3: 63-75. DOI 10.5102/unijus.v24i3.2601
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); a ignorância proposital ou não dos argumentos ou peças do processo (seja porque o seu conhecimento atrapalharia discursivamente a decisão que se quer tomar, seja porque os processos são muito longos e o tempo para se dedicar a cada um deles relativamente curto e, portanto, é grande probabilidade de algo importante ser deixado de fora); a forma agressiva e desdenhosa com que muitos juízes conversam com as testemunhas ou os advogados de um processo etc.

O campo jurídico (para além do processo judicial) inverte o valor da posição dizer o direito: : defender uma tese e lhe dá outros usos. O diálogo entre os operadores do direito não se caracteriza pela possibilidade de alcançar o consenso (quaisquer que sejam seus fundamentos) ou com o movimento da discussão na direção de novos argumentos (no sentido de uma polêmica na qual um lado incorpora os argumentos do outro e, por isso, movimenta os seus próprios) (Abreu, 2020ABREU, Luiz Eduardo. 2020. O que um antropólogo pode dizer para o Direito? Uma etnografia do não diálogo. In: GUSMÃO, Mônica; FIALHO, Vânia; SCHRÖDER, Peter (Orgs.). Antropologia e direito: aproximações necessárias. Recife, Editora da UFPE, pp. 25-80.). Os operadores têm plena consciência de que o convencimento significa, sobretudo, uma adesão política, principalmente quando a discussão se elabora para os seus participantes como “a melhor interpretação da norma”. O seu resultado não é convencer o alheio, mas colocar-se defronte a ele (deixar-se convencer por não ter o que dizer é fazer um mal-uso de um argumento). O diálogo no campo do direito ressoa o advogado enquanto função no discurso (o múltiplo como circulação, circulação como posição) e não o juiz (o direito dito, o fim da circulação). Trata-se, portanto, de uma outra oposição valorada que inverte à anterior e lhe dá outro sentido, a saber, o múltiplo como circulação das palavras: : o um como silêncio do outro (não são termos nativos) na qual o valor está no movimento e não na sua ausência.

Os valores também se invertem quando se toma a perspectiva não apenas de um processo, mas do conjunto de todos eles, quer dizer, se se toma como referência não um processo genérico e sua tramitação idealizada, mas a prática da instituição. Primeiro, é preciso considerar que dizer o direito só se realiza plenamente com direito dito no fim do processo. A expressão que os operadores utilizam para tanto é trânsito em julgado, quando não cabe recurso da decisão. Ora, embora teoricamente isso possa se dar em qualquer instância, não é o que na prática acontece. Usualmente, o processo só é transitado em julgado nas instâncias superiores (STF e STJ, mais no primeiro que no segundo). Não é difícil um juiz ver a sua decisão revertida nas instâncias superiores. Então nos dois pontos extremos teríamos, de um lado, a petição inicial e o conflito entre as partes que defendem direitos (ou expectativas de direitos) e, de outro, o trânsito em julgado como o direito dito. Entre os dois pontos extremos, a circulação dos argumentos contém o direito dito pelo juiz das instâncias inferiores; portanto, melhor seria chamá-lo de direito parcialmente dito. Como direito parcialmente dito, a decisão do juiz faz parte do sistema de circulação: é graças a ela que o processo pode seguir para as instâncias superiores. Mais ainda, se olharmos o julgamento em um órgão colegiado, veremos que não é o consenso que caracteriza o julgamento em turma. O exemplo mais pungente são as votações polêmicas no plenário do Supremo, nas quais cada ministro prepara o seu voto. Os argumentos de cada um, via de regra, são diferentes, quer dizer, eles podem concordar com o “deferido” ou “indeferido” para cada um dos pedidos das partes, mas não às razões pelas quais concordam ou divergem. Aliás, o princípio é justamente o oposto: o de fazer brilhar o voto e diferenciar-se dos demais ministros. Encontramos de tudo: um ministro “X” citando um manual para afirmar “A”, sendo que o manual utiliza os votos do próprio ministro “X” para fundamentar a doutrina; outro ministro citando Gadamer como fonte de autoridade para, ao proferir sua decisão, dizer “afasto-me então de todos os preconceitos” (Gadamer defendia justamente o contrário: a necessidade e o caráter positivo dos pré-conceitos para compreensão); dois ministros aplicando a ponderação de valores (Alexy, 1989ALEXY, Robert. 1989 [1978]. A theory of legal argumentation: the theory of rational discourse as theory of legal justification. Oxford, Oxford University Press.) para, no mesmo julgamento, chegarem a conclusões opostas; jurisprudência que pouco ou nada tem a ver com o caso fundamentando a decisão etc. A “posição vencedora” é aquela que tiver mais votos, independentemente das razões que justificam o voto “deferido” ou “indeferido”.

Nesses casos, o direito dito não equivale às razões pelas quais se decide algo. Uma breve comparação com a common law ajuda a elucidar o que isso quer dizer. As razões da decisão é o que na common law chama-se de ratio decidenti. É ela que constitui, naquele direito, a parte central da decisão como precedente. No caso brasileiro, o relevante é o dispositivo, “em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem” (art. 489 da Lei nº. 13.105 de 16 de março de 2015). No Supremo, o dispositivo se publica no acordão. O acórdão é uma ata sumária do julgamento, p. ex., “o Tribunal, por maioria, apreciando o tema 990 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário para, cassando o acórdão recorrido, restabelecer a sentença condenatória de 1º grau”.5 5 O julgamento foi escolhido ao acaso. E no mesmo processo, estabelecem-se as teses de repercussão geral, das quais reproduzo sumariamente a primeira: “É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil (…) com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial (…)” (RE 1055941 / SP). Mas por que é constitucional? Isso o acórdão não diz. Ele tem 2 páginas. Todavia, o inteiro teor do acórdão desse julgamento que pode ser acessado no site do Supremo e contém tudo o que foi dito (relatório e voto do relator, manifestação do procurador geral, manifestação dos advogados das partes, votos dos outros ministros, discussões entre os ministros etc.) tem 551 páginas. A redução de 551 para 2 enuncia como número a descontinuidade qualitativa entre, de um lado, o debate, o vai e vem dos argumentos que justificam e defendem uma posição e aquilo que se enuncia como decisão. A decisão pode significar o fim do debate em relação àquele caso particular (embora da decisão do Plenário do Supremo ainda cabe recurso, como os embargos de declaração, utilizados teoricamente para elucidar ambiguidades ou imprecisões da sentença, ou embargos infringentes, que podem alterar a decisão). Ela não enuncia que os argumentos utilizados pelos ministros que ficaram vencidos se tornaram inválidos ou inaplicáveis. Num outro julgamento, os mesmos argumentos podem voltar. Um mesmo argumento pode estar no lado vencedor de um julgamento e no lado vencido de outro. Inversamente, o mesmo julgador pode utilizar argumentos diferentes para justificar o seu voto em situações semelhantes. O resultado é que o “direito efetivamente dito” não invalida os argumentos, tampouco as razões para decidir. Eles também continuam circulando.

A sugestão etnográfica é que são vários circuitos de circulação de palavras: alguns mais abertos (como discussões doutrinárias que se expressam nos manuais de direito), outros fechados (como os argumentos que circulam no Plenário do STF), outros ainda que têm aspectos de ambos. O “direito dito” como valor que se opõe e engloba a circulação dos argumentos (transforma o múltiplo no um) se aplica apenas a um circuito fechado em particular, a saber, o caminho que um processo percorre nas diversas instâncias do judiciário. Paradoxalmente, portanto, naquilo que os operadores do direito dizem a respeito da sua prática o juiz como função do discurso é o valor dominante, na prática do campo acontece o oposto: o valor está na circulação.

ESTRANHAMENTO E PERTENCIMENTO

Como o fato da instituição pode ser suficiente para justificar uma decisão? A pergunta não é banal. Suponho que a autoridade de uma instituição esteja nos valores que ela expressa, incorpora e exprime. Desta perspectiva, a autoridade não pode ser o resultado da instituição como fato, mas da sua relação com a sociedade envolvente. Compare com o uso que dá Gadamer ao conceito de autoridade. A comparação não é fortuita. Gadamer utiliza a ação do juiz para exemplificar a centralidade do uso para hermenêutica; para ele, a decisão em um processo judicial seria a atualização do passado no presente, como aquilo que, vindo da tradição, “faz sentido” aplicar. A autoridade da tradição derivaria daquilo que ela contém de verdade, que pertence a todos nós e sobrevive à ruína do tempo (cf. “O significado paradigmático da hermenêutica jurídica”, Gadamer, 1977GADAMER, Hans-Georg. 1977 [1975]. Verdad y método. Fundamentos de una hermenéutica filosófica. Salamanca, Ediciones Sígueme.: 396 ss.). Quando o ministro do supremo, após citar Gadamer, avisa que vai se desfazer de todos os preconceitos, ele enuncia muito mais do que um princípio hermenêutico às inversas (o rompimento com a tradição como uma necessidade da interpretação jurídica); de maneira um tanto torta, uma espécie de ato falho sociológico, ele revela ou desvela em parte as regras pelas quais, a partir do direito, se fala de e com aquilo que não pertence ao campo, aqueles que não são como eles, com a sociedade na qual ele se insere. Essa regra gramatical vou chamar de distanciação como estranhamento. A fórmula fica mais clara se a compararmos com outros sistemas jurídicos. Em muitos destes, o direito é percebido como a representação, em um plano que se destaca da vida ordinária, daquilo que é mais fundamental para esta sociedade (vide, por exemplo, o conceito de integridade em Dworkin, 1986DWORKIN, Ronald M. 1986. Law’s empire. Cambridge, Harvard University Press.). Se, nestes sistemas, o direito requer a criação de um outro mundo (na expressão de Hermitte, 1998HERMITTE, Marie-Angèle. 1998. Le droit est un autre monde. Enquête, n. 7: 17-37. DOI 10.4000/enquete.1553
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) ou, nos nossos termos, de uma linguagem artificial, o objetivo deste mundo ou linguagem é melhor representar o mais essencial de uma tradição. Poder-se-ia dizer nestes sistemas que a propósito da distância é o encontro, ou melhor, distância como pertencimento e não estranhamento.

O direito brasileiro se estrutura, ao contrário, em torno da seguinte oposição: distanciação como estranhamento :: proximidade e pertencimento (esses não são termos nativos) na qual o valor está no estranhamento. Dito de outro jeito, o direito brasileiro não se imagina como a enunciação dos valores intrínsecos à sociedade, mas como a narrativa de uma sociedade imaginada, diferente e em oposição não apenas à sociedade que experienciamos, mas também em oposição às idealizações e aos valores que se extraem dessa. Não é raro ouvir dos operadores variações da seguinte expressão: “o problema não é a lei. Nossas leis são muito boas. O problema é que a sociedade não segue a lei”. No limite desta perspectiva, a sociedade ao mesmo tempo que se opõe ao direito degrada-o (na medida em que, se as pessoas não seguem a lei, ela se avilta). Mas esse não é o único uso que podemos relacionar com a oposição. A distanciação também se expressa no uso que o direito faz da história (uma história como o desvelar da essência dos instrumentos jurídicos ao invés de história como mudança, ruptura, incomensurabilidade); na ideia de que o direito não pode deixar-se contaminar pela sociedade e no seu correlato de que qualquer contaminação do direito pela política é uma degradação do direito; na falta de uma ideia reguladora, como vimos acima., Assim, a ausência de um norte ideológico que servisse de ponto de encontro entre o direito e a sociedade do qual faz parte expressa justamente o rompimento como regra gramatical (Abreu, 2016ABREU, Luiz Eduardo. 2016. Tradição, Direito e Política. Dados, vol. 59, n. 1: 139-170. DOI 10.1590/00115258201673
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).

A maneira mais evidente pela qual o direito brasileiro enuncia o estranhamento como valor está presente na epistemologia da linguagem que ele pretende encarnar e utilizar. O direito de hoje acredita pertencer a uma tradição ocidental “milenar” (expressão que já ouvi) e se percebe como uma espécie de linguagem universal.6 6 Adapto para meu uso a ideia de linguagens da modernidade de MacIntyre (1988), vide especialmente “Tradition and translation”. Dito de outro jeito, o direito brasileiro acredita que suas ideias e instrumentos têm pouca relação com os contextos específicos da sociedade da qual faz parte (o pertencimento a uma tradição estrangeira é sobretudo uma forma de distanciar-se da tradição local). Ele também acredita que seus instrumentos, ideias e usos são de tal forma plásticos e abrangentes que ele é capaz de traduzir todas as outras linguagens jurídicas, mesmo aquelas cujos usos não têm correspondência à sua experiência social. Os dados etnográficos me sugerem a hipótese de que o a maioria dos operadores não percebe os outros sistemas jurídicos como tradições diferentes, mas como o direito falado em outras línguas. Na mesma direção, os operadores pretendem-se competentes para enunciar adequadamente aquilo que está posto nos outros sistemas e, ao mesmo tempo, os instrumentos desses podem ser trazidos para o direito brasileiro sem problemas de continuidade, quer dizer, eles seriam transitivos entre si. As diferenças que o direito brasileiro consegue perceber são aquelas enunciadas pelas possibilidades dessa “linguagem universal” que ele mesmo inventou como, por exemplo, a diferença entre sistemas de common e civil law ou entre sistemas de controle de constitucionalidade difuso, concentrado ou misto (esse último o nosso, um amálgama dos dois primeiros). Curiosamente, nem sempre foi assim. Em 1862, Visconde do Uruguai argumentava que havíamos copiado instituições estadunidenses sem que houvesse no nosso povo os costumes necessários para mantê-las e argumentava que seria preciso adaptá-las (o que no contexto significa introduzir a hierarquia administrativa no nosso federalismo) (Soares de Souza, 2002SOARES DE SOUZA, Paulino José. 2002. “Ensaio sobre o direito administrativo”. In: CARVALHO, José Murilo (Org.). Visconde do Uruguai. São Paulo, Editora 34, pp. 65-504., para os motivos da inversão, vide Abreu, 2016ABREU, Luiz Eduardo. 2016. Tradição, Direito e Política. Dados, vol. 59, n. 1: 139-170. DOI 10.1590/00115258201673
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).

O DIÁLOGO NO SILÊNCIO

Num outro plano, estranhamento implica no desarranjo na função representacional da linguagem (a capacidade de a linguagem descrever o mundo). Há um desencontro entre aquilo que diz o direito e aquilo que é possível apontar na sociedade brasileira, entre as palavras e as coisas. Certa feita, Antônio Umberto me disse que um dia ele queria escrever sobre o silêncio no direito e me deu o seguinte exemplo que reproduzo com minhas palavras: a maior - e talvez a mais importante - razão para os casais se separarem seria, segundo ele, o desamor. Todavia, nada no direito brasileiro permite considerar o desamor como razão suficiente para o rompimento da relação jurídica. O que ele queria dizer - e o fazia como juiz - é que o direito muitas vezes não tem como enunciar o que precisaria ser dito, faltam-lhe as palavras adequadas ou, invertendo o ponto de vista, “o que precisaria ser dito” não tem um uso, não é gramatical para o direito. Neste caso, o silêncio como regra gramatical quer dizer que o que está em jogo não pode ser enunciado como tal. Ele reside no não dito.

Todavia, o silêncio pode ter outros usos. Há igualmente silêncio de calar ou não ouvir o que diz o outro. E novamente encontramos a oposição entre a afirmação da doutrina e a prática dos operadores: aqui também o que se diz que se faz não é o que se pratica. Enquanto, para a doutrina, a oralidade é o “princípio norteador de um processo justo e democrático”, os operadores dirão algo bem diferente: a oralidade “até prejudicaria um pouco” ou, como diz o juiz, “reduzir a termo ou traduzir por vernáculo é incompatível com a oralidade” (os trechos foram retirados de Baptista, 2008BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. 2008. Os rituais judiciários e o princípio da oralidade: construção da verdade no processo civil brasilero. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabis Ed.: 75, nota 76; Ibidem: 81, nota 90). Em alguns casos, dizem os juízes dos tribunais especiais, se eles ouvirem o que a parte quer dizer eles teriam de dar ganho a parte contrária; para dar razão àquela é preciso ignorá-la, não a ouvir. Noutros, diz o brocado jurídico, “o testemunho é a prostituta das provas”, porque entende-se que as pessoas mentem em juízo e dizem o que vai beneficiar os seus, e não se pode confiar que as testemunhas vão dizer a verdade.

Os vários silêncios representam regras que vão por caminhos opostos: o primeiro vai do direito enquanto linguagem em direção à sociedade (no sentido de que a decisão se aplica à sociedade) e enuncia que dizer o que está realmente em jogo não é gramatical do ponto de vista da linguagem que o direito brasileiro inventou para si mesmo; os outros silêncios caminham da sociedade enquanto narrativas do que é justo ou correto ou como a representação das alianças e obrigações com as quais todos nos envolvemos em direção ao direito. Mas eles enunciam algo semelhante: o que se diz a partir da sociedade sem a mediação do advogado não é gramatical para o direito. Com isso não quero dar a impressão o leitor de que o direito não dialoga com a sociedade do qual faz parte. Limito-me a constatar que esse diálogo se dá no silêncio (Abreu, 2016ABREU, Luiz Eduardo. 2016. Tradição, Direito e Política. Dados, vol. 59, n. 1: 139-170. DOI 10.1590/00115258201673
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).

O diálogo como silêncio ganha sua dimensão propriamente gramatical como desdobramento de uma questão aparentemente simples: como a partir de uma linguagem que escolhe o estranhamento é possível produzir uma decisão que faça sentido para a sociedade da qual ela se distancia? Como resolver a contradição entre uma linguagem que se pretende estrangeira à realidade social e o fato de que as decisões do judiciário como instituição têm de ser pertinentes aos casos que ele julga? Se o direito se limitasse ao papel de crítica à sociedade e a enunciar uma sociedade que não é a nossa, ele não faria sentido, não teria um uso - e admitir um direito sem uso é um sem sentido empírico. A resposta é que o direito faz o contrário do que diz fazer: ele é uma tradição local que a todo momento se adapta ao seu contexto. A minha hipótese é que a adaptação não é o resultado de uma meta-regra, de uma ideia reguladora que ofereça uma direção substantiva mínima, por mais tênue que fosse sua realização concreta, mas do acaso, daquilo que precisa ser feito, do contexto e de suas circunstâncias. A hipótese, por sua vez, sugere a bricolagem como regra gramatical.

A bricolagem como prática se utiliza de um conjunto heterogêneo de resíduos deixados por outras atividades (pedaços de madeira, ferro ou de outros objetos, ferramentas etc.) e sobre essa matéria amorfa constrói a solução para um problema doméstico, quer dizer, ele transforma os resíduos, lhes dá outros usos. As coisas assim reaproveitadas ganham sentido não em relação àquilo que elas eram originalmente (uma tampa de refrigerante pode se transformar em um calço para uma mesa); mas, em relação ao sistema formado pela ação do bricoleur. O resultado é propriamente um sistema, porque o uso de cada objeto ganha sentido em relação a todos os outros que são empregados no caso concreto. Os materiais dos quais ele se utiliza oferecem alguma resistência à sua ação (não é possível utilizar madeira como antena de tv, por exemplo), mas não a constrangem. De forma semelhante, a bricolagem como hermenêutica jurídica é a composição de um enunciado (lei, norma, doutrina, princípio, precedente etc.), a partir de conceitos que são descontextualizados de sua morada original e ressignificados (utilizados) a partir de um sistema local cuja razão não está enunciada mas que pode ser recomposta pelo pesquisador a partir do conjunto das relações. Com isso, criam-se dois planos na observação: um o discurso nativo que dá um sentido global em oposição explícita ou velada à prática; outro o sentido que resulta da reorganização do conjunto em um sistema local a partir da circunstância.

Um exemplo com qual tenho trabalho há algum tempo é o valor da igualdade. A norma de que todos são iguais perante a lei está talvez na totalidade das constituições modernas. Na nossa não é diferente. Todavia, em sociedades de ideologia individualista, a igualdade é imaginada como substantiva, como se decorresse da própria natureza humana (e em La Boétie, 1982 [1853]LA BOÉTIE, Etienne. 1982 [1853]. Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo, Editora Brasiliense S. A., como encontramos em Rousseau, 2002ROUSSEAU, Jean-Jacques. 2002 [1754]. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes. Chicoutimi, Université du Québec à Chicoutimi. [1754]). No direito brasileiro, todavia, a igualdade é percebida pela máxima de Rui Barbosa, segundo a qual “[a] regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”, porque seria preciso “dar a cada um na razão do que vale” (Barbosa, 1999BARBOSA, Rui. 1999 [1956]. Oração aos moços. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa.: 26). A ideia de que os indivíduos têm valores diferentes e a parte que lhes cabe (seu quinhão) é proporcional ao seu valor transforma a igualdade como substância na desigualdade como justiça (Abreu, 2013ABREU, Luiz Eduardo. 2013. Justiça e desigualdade no direito brasileiro. Revista de Direito Brasileira, n. 5: 69-90. DOI 10.26668/IndexLawJournals/2358-1352/2013.v5i3.2720
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). E, nesse sentido, o direito e os seus operadores ecoam a sociedade mais ampla na qual eles se inserem. Cardoso de Oliveira (2009)CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. 2009. Concepções de igualdade e (des)igualdades no Brasil (uma proposta de pesquisa).” Série Antropológica, n. 425: 6-20. Disponível em Disponível em https://www.academia.edu/3646624/Concepções_de_Igualdade_e_Des_Igualdades_no_Brasil acesso em 4 dez. 2022.
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tem mostrado a operação problemática de duas concepções diferentes de igualdade, uma a de tratamento igual e a outra de tratamento diferenciado - o problema é que as regras entre uma situação e outra não são claras na nossa sociedade.7 7 Para a relação do trecho de Barbosa com a questão da cidadania, vide Cardoso de Oliveira (2020), Kant de Lima (2013) e Mendes (2005). Do princípio da igualdade assim traduzido resultam duas atitudes opostas e complementares: uma em dar mais a quem possui menos para equilibrar a relação assimétrica - os hipossuficientes segundo a linguagem própria do direito - que muitas vezes é o exercício da caridade enquanto valor; a outra em garantir em privilégios àqueles que têm mais valor (prisão especial, a aposentadoria obrigatória para juízes pegos em atos corruptos, o uso da figura do direito adquirido para perpetuação de privilégios e tantos outros mencionados pela antropologia jurídica) que incorporam justamente a diferença de valor como valor.

O resultado global desses processos de adaptação é a convivência de princípios que seriam considerados contraditórios do ponto de vista da sua morada original (no caso acima, a igualdade que justifica a desigualdade como valor). Mas não é o único exemplo. Kant de Lima há muito aponta para o fato de que o nosso sistema penal é formado por princípios contraditórios de sistemas inquisitoriais e acusatoriais (Kant de Lima, 1989KANT DE LIMA, Roberto. 1989. Cultura jurídica e práticas policiais: a tradição inquisitorial. Revista Brasileira de Ciências Sociaisvol. 4, n. 10: 65-84 Disponível em Disponível em http://www.anpocs.com/images/stories/RBCS/10/rbcs10_04.pdf acesso em 4 dez. 2022.
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), e a produção mais recente vem mostrando a aplicação dessa oposição em outros ramos do direito. O tribunal do júri representa neste contexto um caso muito especial: primeiro, ele é muito diferente do júri estadunidense, ao qual a doutrina brasileira sempre se refere e a própria diferença é uma bricolagem: no júri brasileiro não se pretende produzir a verdade a partir daquilo que é possível provar à frente de todos, não há regras de exclusão de evidência, os advogados não estão limitados naquilo que podem dizer pelo juiz, não há discussão entre os jurados, tampouco a exigência de unanimidade, o juiz elabora quesitos que os jurados votam sim ou não “de acordo com sua consciência” e o veredito é dado pela maioria dos votos (Kant de Lima, 1999KANT DE LIMA, Roberto. 1999. Polícia, justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público. Revista de Sociologia e Política, vol. 13: 23-38. DOI 10.1590/S0104-44781999000200003
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); depois, justamente por sua proximidade com a tradição e os valores locais - afinal são os jurados que decidem o veredito -, não é de se estranhar que, como a etnografia tem demonstrado, no resultado prevaleçam os valores da sociedade mais ampla, muitas vezes em detrimento ou, mesmo, em oposição à lei (Schritzmeyer 2020SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2020. “Na dúvida, foi moralmente condenada ao invés de legalmente absolvida”: etnografia de um julgamento pelo Tribunal do Júri de São Paulo, Brasil. Revista de Antropologia, vol. 63, n. 3: 1-28. DOI 10.11606/1678-9857.ra.2020.178180
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e Nuñez 2020NUÑEZ, Izabel Saenger. 2020. “Com defunto ruim não se gasta vela”: hierarquizações que recaem sobre vítimas e réus na administração de conflitos no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. Revista Antropolítica, n. 47: 89-117. DOI 10.22409/antropolitica2019.0i47.a42012
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). Penso que seria possível falar de sínteses locais, específicas e não generalizáveis nesses casos porque continuam operando dois planos distintos: um o da linguagem universal do direito brasileiro cuja gramática não permite a enunciação daquilo que faz sentido para sociedade mais ampla, de outro a prática que introduz justamente os outros aspectos que não é possível mencionar. Daí se segue que, para saber o que se quer dizer a partir do direito, é preciso tomar o cuidado metodológico de não separar os diversos planos e examinar a sua confluência a partir da empiria ou, como preferem os juristas, o caso concreto (claro, em um sentido bem diferente do que eles usam).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    Uma versão anterior desse texto foi apresentada no VII Enadir na mesa redonda “Direito e linguagem”. Agradeço aos participantes do evento pelas críticas e sugestões, algumas delas incorporadas na versão final.
  • 2
    Ao longo do texto as aspas são empregadas para destacar trechos e citações ao passo que o itálico apresenta categorias e termos importantes para a compreensão e organização do mundo descrito.
  • 3
    Retiro de Aragão (2018)ARAGÃO, Luiz Tarlei. 2018. Coronéis, candangos e doutores. Por uma antropologia dos valores. Curitiba, Editora Appris. e a aplico num contexto um tanto diverso, já que Aragão pretendia que a oposição permeasse a sociabilidade no Brasil, o que não é o caso aqui.
  • 4
    É preciso reconhecer, todavia, que há casos de advogados que, como regra, têm textos rebuscados, o que pode significar uma estratégia de legitimação de um lugar, real ou imaginário, que, ele acredita, deveria ter na percepção de outros participantes do campo. Opera aqui a ideia segundo a qual um texto difícil compreensão é um texto mais profundo e erudito.
  • 5
    O julgamento foi escolhido ao acaso.
  • 6
    Adapto para meu uso a ideia de linguagens da modernidade de MacIntyre (1988)MACINTYRE, Alasdair. 1988. Whose justice? Which rationality? Indiana, University of Notre Dame Press., vide especialmente “Tradition and translation”.
  • 7
    Para a relação do trecho de Barbosa com a questão da cidadania, vide Cardoso de Oliveira (2020)CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. 2020. "Civic Sensibilities and Civil Rights in a Comparative Perspective: Demands of Respect, Considerateness and Recognition." Ivs Fvgit, 23: 195-219. Disponível em:https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=7782484
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    , Kant de Lima (2013)KANT DE LIMA, Roberto. 2013. "Entre as leis e as normas: éticas corporativas e práticas profissionais na segurança pública e na justiça criminal." Dilemas, 6(3): 549-580. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7436
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  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2022
  • Aceito
    23 Out 2022
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