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Retomadas, autonomias e cosmopolíticas desde as tramas Tupinambá

Retomadas, autonomy and (cosmo)politics in the Tupinambá moviment

resumo

As retomadas dos povos indígenas se tornaram, nas últimas décadas, uma prática que adquiriu importância no Brasil ao pressionar as autoridades para demarcarem as Terras Indígenas e arremeterem contra aqueles que têm se apropriado dos seus territórios. Contudo, as retomadas não se restringem aos conflitos fundiários, pois não são apenas lutas por recursos materiais ou simbólicos, como também não são somente uma luta identitária, já que não se restringem ao agenciamento das diferenças coordenadas estatalmente. Numa outra ordem de argumentos, as retomadas se mostram como práticas que vêm recuperando lugares para propagar as relações dos povos indígenas, materializando o que estão se propondo e nos propondo sob os termos de um conflito ontológico em que se produz e contraproduz o que chamamos de política, território, cultura, poder. Este artigo explora essa rota de debates, fazendo um diálogo entre as retomadas e as práticas indígenas das autonomias, seguindo a compreensão que os Tupinambá de Olivença alcançam com seu movimento pela “recuperação do território”.

palavras-chave
Retomadas; Autonomias; Tupinambá de Olivença; Cosmopolítica; Políticas Indígenas

abstract

The lands occupations (retomadas) by the indigenous peoples of Brazil has become, in recent decades, an practice that has become important for putting pressure on the authorities to demarcate the Indigenous Lands and attack those who have appropriated their territories. However, the retomadas are not limited to conflicts over land, since they are not only fights for material or symbolic resources, they are also not just a fight for their identities, since they are not limited to agency the differences coordinated by the state. In another order of arguments, the retomadas are practices that have been rescuing places and propagating important relationships for indigenous peoples, materializing what is proposed and proposed to us in terms of a ontological conflict, where is produced and counter-produced what we call politics, territory, culture, power. This article explores this problem, maintaining a dialogue between the retomadas and the autonomic indigenous practices, following the understandings that the Tupinambá de Olivença maintain within their movement for the “recovery of the territory”.

keywords
Retomadas ; autonomy; Tupinambá de Olivença; Cosmopolitics; Indigenous Politics

Políticas indígenas, algumas precauções

As compreensões sobre aquilo que os povos indígenas fazem com o que convencionamos chamar de política se baseiam repetidamente em sentidos dominantes que definem o que é política e indígena. É por esse motivo que, ainda quando óbvia, qualquer incursão sobre o que é chamado de políticas indígenas deve ser feita sob vigilância epistêmica, se usamos os termos de Bruce Albert ( 2015KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu. São Paulo, SP: Companhia das Letras.: 520), para evitar atualizar a “imposição de nossas próprias preconcepções a outros povos” ( Wagner, 2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. Tradução de Alexandre Morales; Marcela Coelho de Souza. São Paulo, Cosac Naify.: 46).

Por essa razão, mesmo quando há certo consenso na antropologia recente em resolver este problema evitando entender a política no seu próprio domínio, aproximando-nos dela com teorias e modelos etnográficos baseados nas compreensões e experiências da política vivida nos coletivos, ou separando os domínios aos quais pertencem as políticas indígenas e não indígenas, o problema persiste diante das convenções dominantes, que impõem a esses coletivos o que é indígena e política, ditando, sob um grande leque de conceitos e práticas, o que se espera desses povos. O problema surge porque, quando os movimentos indígenas 1 1 Entendo movimentos indígenas como uma proposição que, antes que definir uma morfologia política indígena, permite generalizar uma ampla forma de relações mediadas pelas práticas e os saberes trocados entre indígenas e não indígenas. operam suas políticas com o conceito de política, eles são capturados pela recursividade entre a dimensão conceitual e a dimensão pragmática dessa categoria, tornando o conceito parte indissociável das relações que define. Recursividade que converte a política num “‘objeto’ (ou uma ‘categoria nativa’) e um ‘conceito’” ( Goldman, 2006GOLDMAN, Marcio. 2006. Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro: 7Letras.: 41), vindos de domínios distintos que se sobrepõem como discursos, categorias e formas de fazer, como aponta Carneiro da Cunha para a relação entre cultura e política ( 2009CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009. “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. In: Cultura com aspas: e outros ensaios. São Paulo, Cosac Naify.). Mas, nesse processo recursivo entre as práticas e os conceitos de política, há sempre uma fuga criativa a qual podemos chamar de contrapolítica, em que se formam sentidos e práticas distintos dos convencionais, levados à relação não apenas como categorias ou conceitos, mas também como política. Nesse entramado, manifesta-se, no caso dos movimentos indígenas, tanto a diferença entre as formas indígenas e não indígenas de fazer política, como as intencionalidades dos povos e seus movimentos ao pôr em prática a política. Transformações que não parecem apenas indigenizar valores, conceitos e práticas, mas também levam adiante uma produção criativa que atinge as relações que englobam a categoria ( Mejía Lara, 2017MEJÍA LARA, Amiel Ernenek. 2017. Contrainvenções indígenas: antropologias, políticas e culturas em comparação desde os movimentos Nahua (Jalisco, México) e Tupinambá (Bahia, Brasil). 310 pp. Campinas, Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Unicamp. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?-code=000857541. Acesso em: 9 mar. 2016.
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).

É um transcurso recursivo em que terminam se sobrepondo reflexões disciplinares 2 2 Entendo categorias disciplinares como os conceitos que vêm dos saberes produzidos e controlados nas regras e os cânones das práticas acadêmicas e científicas, nas quais os conhecimentos, sob a noção de expertos, ganham sua legitimidade e seu poder. e indígenas, assim como as práticas políticas de indígenas e não indígenas. Uma troca reiterativa, poucas vezes pacífica, para a qual busco chamar a atenção, quanto ao efeito de equivalência que se produz entre conceitos e práticas discordantes quando usam as mesmas categorias. Um efeito que leva a uma perigosa analogia nominal englobada e enunciada como política, em que podem se impor nossas expectativas às dos povos indígenas, apagando o que eles estão se propondo e nos propondo.

Por esse motivo, ao explorar analiticamente as políticas indígenas, é preciso manter uma vigilância epistêmica, com operadores conceituais e metodológicos que não anulem essa complexa relação. No entanto, é também necessária a reflexividade sobre as relações em que acontecem as trocas recursivas, isso porque, como argumento, qualquer conceitualização sobre os indígenas e suas políticas é simultaneamente um saber e uma prática que definem os termos das relações que envolvem esses povos, abrangendo não poucas vezes as pretensões do lugar que os não indígenas querem que os indígenas ocupem ( Bonfil Batalla, 1977BONFIL BATALLA, Guillermo. 1977. “El concepto de indio en América: una categoría de la situación colonial”. Boletín Bibliográfico de Antropología Americana (1973-1979), 39 (48): 17-32.).

Dentro desse quadro, a vigilância epistêmica que sugiro para pensar sobre as retomadas e as autonomias indígenas é a do elo que há entre as intenções conceituais e práticas do saber disciplinar sobre o outro e o saber que os outros têm sobre as relações que o saber disciplinar determina sobre eles. Dito de outro modo, a precaução proposta é a de olhar com atenção as convenções que dominam as relações com os povos indígenas, dentro e fora da disciplina, e acompanhar como eles atuam ao se relacionarem a práticas como as das retomadas e as autonomias indígenas, abrindo espaço para considerar, na reflexividade dessas relações, o que estão pondo em prática os povos indígenas com seus movimentos.

Essas ressalvas se baseiam nas conclusões de alguns trabalhos dedicados a destrinchar o lugar de poder dos saberes disciplinares na produção das relações racializadas, das práticas de colonialidade e de sistemas de manutenção das desigualdades. Trabalhos em que se defende que a elaboração do conhecimento acadêmico sobre os povos indígenas, como podem ser os das suas histórias, suas culturas, seus pensamentos, suas políticas, seus movimentos, não são entidades teóricas autônomas, mas produzidas para e nas relações ( Castro-Gómez, 2003CASTRO-GÓMEZ, Santiago. 2003. “Ciencias sociales, violencia epistémica y el problema de la ‘invención del otro’”. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber. 2. ed. Buenos Aires: Clacso, pp. 145-161.; Fabian, 2013FABIAN, Johannes. 2013. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Rio de Janeiro, Vozes.).

O argumento acima descrito leva a concluir que as teorias sobre os povos indígenas são entidades conceituais e epistemológicas concomitantes a práticas que operam, de diversas maneiras, essas relações racializadas, de colonialidade e de desigualdade impostas a estes coletivos, tornando-se mesmo numa sala de universidade uma relação política, ou melhor dito, uma cosmopolítica, na qual os indígenas ocupam o lugar do outro que deve ser entendido, tutelado, organizado e controlado. Relações que os povos indígenas conhecem há bastante tempo contestando, com seus saberes e práticas, esse intrincado entramado, marcado por violências, mal-entendidos, imposições, resistências e contraproduções ( Baniwa, 2016BANIWA, Gersem. 2016. “Indígenas antropólogos: entre a ciência e as cosmopolíticas ameríndias”. In: RIAL, Carmen & SCHWADE, Elisete (orgs.). Diálogos antropológicos contemporâneos. Rio de Janeiro, Associação Brasileira de Antropologia.; Mejía Lara, 2017MEJÍA LARA, Amiel Ernenek. 2017. Contrainvenções indígenas: antropologias, políticas e culturas em comparação desde os movimentos Nahua (Jalisco, México) e Tupinambá (Bahia, Brasil). 310 pp. Campinas, Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Unicamp. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?-code=000857541. Acesso em: 9 mar. 2016.
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).

As anteriores inquietações se corroboram ao caracterizar algumas das convenções que dominam as noções sobre os povos indígenas e suas políticas, as quais mostram não apenas a diversidade de interpretações e teorias nesse campo de discussões, mas as relações das quais esses saberes são parte: separando, agrupando e generalizando os povos indígenas, num processo taxonômico em que se ratificam as expectativas sobre suas políticas.

Sem ser exaustivo e apenas a modo de elucidação, podemos caracterizar duas grandes convenções que marcam as expectativas existentes sobre as políticas indígenas, separadas aqui não por afinidade teórica, mas pelo que se espera que estes coletivos façam. Um exercício onde podemos tomar como referente três importantes operadores da antropologia política: o Estado, a cultura e o poder.

Utilizando esses operadores, pode-se caracterizar uma das convenções como aquela que entende as políticas indígenas como manifestações singulares da ordem universal do poder. Um cânon em que a relação dos povos indígenas com o Estado se torna um marcador que distingue a agência indígena na dimensão da política: pela sua ausência, por manter formas pristinas dele, por evitá-lo ou arremeter contra sua formação. Políticas indígenas que devem operar sob o domínio da religião, do parentesco, da comunalidade, das chefias, entre outros conceitos antropológicos que apreendem as formas como os indígenas devem experimentar a política ( Carneiro da Cunha, 1978CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os mortos e os outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. São Paulo, Hucitec.; Clastres, 2003CLASTRES, Pierre. 2003. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo, Cosac Naify.; Guerreiro, 2015GUERREIRO, Antonio. 2015. Ancestrais e suas sombras: uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Campinas, Editora da Unicamp.; Overing, 2002OVERING, Joanna. 2002. “Estruturas elementares de reciprocidade Apresentação de Sylvia Caiuby Novaes”. Cadernos de Campo, 10 (10): 117-138. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v10i10p117-138.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
; Sztutman, 2009SZTUTMAN, Renato. 2009. “Religião nômade ou germe do estado? Pierre e Hélène Clastres e a vertigem tupi”. Novos estudos Cebrap, 83: 129-157. https://doi.org/10.1590/S0101-33002009000100008.
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).

Nessa convenção, as práticas indígenas que estruturam essas políticas materializam a diferença que os distingue, singularizando as formas universais do poder. Diferenças separadas por tipos que permitem o contraste das experiências indígenas, incorporadas à antropologia com modelos, teorias etnográficas ou epistemologias nativas que explicam como os povos em questão levam adiante a política. Distinções importantes para a disciplina pelo objetivo de alcançar modelos ajustados às práticas indígenas reais, que propiciam compreender a generalidade da política e do poder, experimentadas na diversidade dos povos.

A outra convenção se pode caracterizar como aquela que inclui os indígenas e suas políticas ao Estado; entretanto, não se trata de uma convenção segundo a qual os indígenas teriam produzido essa estrutura de poder. A convenção que descrevo é a que considera os indígenas articulados ao Estado como resultado dos processos coloniais, da expansão capitalista e das formações nacionais, em que os indígenas teriam enfrentado, esquivado, resistido ou agenciado as relações coordenadas pelos Estados-nação, operadas, precisamente, pela política ( Arruti, 2001ARRUTI, José Maurício. 2001. “Agenciamentos políticos da ‘mistura’: Identificação étnica e segmentação negro-indígena entre os Pankararú e os Xocó”. Estudos Afro-Asiáticos, 23 (2): 215-254. https://doi.org/10.1590/S0101-546X2001000200001.
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; Bonfil Batalla, 1977BONFIL BATALLA, Guillermo. 1977. “El concepto de indio en América: una categoría de la situación colonial”. Boletín Bibliográfico de Antropología Americana (1973-1979), 39 (48): 17-32.; Carvalho, 2011CARVALHO, Maria Rosário de. 2011. “De índios ‘misturados’ a índios ‘regimados’”. In: REESINK, Edwin; CAVIGNAC, Julie & CARVALHO, Maria Rosário de (orgs.). Negros no mundo dos índios imagens, reflexos, alteridades. Natal, EDUFRN, pp. 82-99.; de Souza Lima, 2015DE SOUZA LIMA, Antonio Carlos. 2015. “Sobre tutela e participação: povos indígenas e formas de governo no Brasil, séculos XX/XXI”. Mana, 21 (2): 425-457. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n2p425.
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).

Nessa convenção, as políticas indígenas estão dadas pela capilarização das relações indígenas com o Estado e vice-versa, a qual teria levado esses povos a mobilizarem a política como uma forma de mediação entre seus poderes e os poderes abrangentes. Uma convenção que distingue as políticas indígenas das não indígenas na equação entre a singularidade cultural e histórica, e a generalidade das relações de poder.

Conforme essa convenção, a diferenciação das políticas indígenas está dada na materialização das formas criativas baseadas nas subjetividades culturais que ajustam os universais do poder às tramas históricas de cada povo. Tal singularidade é importante para a antropologia pelos contrastes que provocam no entendimento das dinâmicas entre o geral e o particular, permitindo o estudo e a caracterização das especificidades políticas de cada coletivo, movimento ou povo indígena dentro de uma trama histórica de relações marcada pelo Estado.

Mas, voltando ao argumento, o que busco ressaltar com as caracterizações dessas convenções dominantes sobre os povos indígenas é que elas são elos entre as entidades teóricas e as práticas políticas que encerram aos povos indígenas. São relatos que objetivam conceitual, metodológica e epistemologicamente as expectativas que, no caso da antropologia, ditam o que devemos esperar dos indígenas, convertidos ainda em roteiros etnográficos que capturam as narrativas sobre o tema. Um processo de recortes e ajustes entre o que se experimenta nas relações de pesquisa e o que se torna algum produto antropológico, no qual a disciplina impõe suas expectativas.

Um problema com desdobramentos não tão fáceis de resolver quando adentramos ao estudo das políticas indígenas, pois as discrepâncias entre o que o antropólogo considera convencionalmente política, pelo seu estudo sobre a teoria, e o que experimenta como política, pela sua relação junto aos indígenas com quem trabalha, podem não ser um problema metodológico, epistemológico ou conceitual 3 3 Esta discussão é bastante conhecida pela antropologia quando se debruça sobre o árduo transcurso criativo que a disciplina enfrenta para dar coerência a suas experiências e seus relatos. Um assunto tratado de diversas maneiras: metodologicamente, ao entender a disparidade entre dado e teoria como a materialidade de uma fronteira entre o que os interlocutores dizem e o que de fato fazem ( Malinowski, 1986); epistemologicamente, levando o antropólogo a escolhas éticas entre manter uma produção sob domínio da academia ou uma do “ponto de vista do nativo” ( Goldman, 2006; Viveiros de Castro, 2002); analiticamente, ao separar os conceitos indigenizados das teorias com o fim de reconhecer a criatividade da relação ( Carneiro da Cunha, 2009; Sahlins, 1997, 1997); ou ainda como um problema da escrita, quando se traduz e medeia reflexivamente o que se experimenta com as relações em campo e o que a disciplina espera do autor ( Strathern, 2014). , mas a materialização da intencionalidade dos movimentos indígenas em contestar as expectativas impostas, contraproduzindo as imposições mediante saberes e práticas acumulados por eles sobre os saberes e as práticas da disciplina.

Dito em outras palavras, a reiteração da categoria de política pelas políticas indígenas não é apenas o resultado residual de mal-entendidos, de mundos paralelos atuando simultaneamente sobre uma trama compartida ou da apropriação indígena do conceito, mas, como busco mostrar, se trata de uma relação operada como política constitutiva dela, a qual os indígenas estão se propondo transformar contraproduzindo aquilo que chamamos de política.

Uma relação que deve ser tratada com cuidado prático e epistêmico, porque a reiteração provocada pelos movimentos indígenas ao redor da categoria de política cria um resultado paradoxal de similaridade, no qual os povos indígenas são reconhecidos na sua diferença ao se tornarem sujeitos contíguos mediante a política ( Fabian, 2013FABIAN, Johannes. 2013. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Rio de Janeiro, Vozes.). Um efeito de equivalência que leva a considerar essa dimensão como um fato universal e não uma relação. Paradoxo que devemos vigiar de diversas maneiras para não impor nossas expectativas a esses entramados históricos, atualizando a violência prática e epistêmica largamente acumulada pelos povos indígenas.

Porém, é um paradoxo de contiguidade e equivalência que também abre espaço para os indígenas imporem suas concepções e proporem seus objetivos com a política. Um movimento de simetria em que os saberes e as práticas indígenas sobre política têm a mesma autoridade e legitimidade que os saberes e as práticas não indígenas. Esse argumento leva ao deslocamento epistêmico que se propõe: defende-se que, se qualquer teoria que engloba as políticas indígenas é uma entidade prática resultante das relações políticas para com os povos indígenas, então qualquer prática indígena sob aquilo que chamamos de política é também um saber indígena produzido para essa relação política uma contrapolítica.

Esse problema pode ser colocado nos termos de Marisol de la Cadena, que questiona: “Será que os políticos indígenas são tão singelos ou altruístas para lutar apenas até o limite dos direitos que lhes foram atribuídos por uma Constituição que não é a sua, que não dá chance à sua não modernidade?” (2009: 149-150, tradução nossa). A autora defende que não, resposta que nos permite colocar a questão das políticas indígenas em outros termos.

Sugiro, então, acompanhar as retomadas e as autonomias indígenas adotando a vigilância epistêmica e a reflexividade relacional, considerando o que essas práticas indígenas estão se propondo e nos propondo. Para isso, seguiremos as retomadas e as autonomias indígenas não como formas singulares ou subjetivas da política em geral, nem apenas como tramas históricas de lutas, de apropriação e resistência, mas como um entramado de relações criativas e de contraproduções em que a recursividade de conceitos como os de política mas não apenas materializa a agência desses movimentos, mostrando o que os povos indígenas vêm fazendo com o mundo que compartilhamos.

Caracterizações e imposições

Um entramado para as retomadas e as autonomias

Para tecer algumas conexões entre as autonomias indígenas e as retomadas, é importante caracterizar certas questões sobre as últimas, as quais têm ocupado um lugar de destaque no Brasil como uma forma de ocupação de terras. Diante disso, podemos dizer, pela negação, que as retomadas não se encerram no universo dos conflitos fundiários que acompanham as demarcações de Terras Indígenas, não são apenas uma luta por recursos para melhorar as condições de existência material e imaterial dos indígenas, não se definem pelo agenciamento da diferença em jogo na emergência de direitos baseados nas identidades, nem se limitam a pugnas pelo direito indígena a um território ou à autodeterminação.

Pelo lado assertivo, podemos afirmar que as retomadas indígenas buscam ocupar e recuperam lugares onde estão as relações indispensáveis para a produção daquilo que os torna e mantêm indígenas. Práticas de retomar lugares os quais se convertem em espaços que operam sua oposição às imposições realizadas pelo Estado e pela sociedade nacional, principalmente aquelas determinadas pelas políticas de administração dos territórios indígenas e de tutela dessas alteridades.

Levando isso em consideração, as retomadas acontecem sob condições que as entrelaçam com outras formas indígenas de produzir e recuperar territórios fora do Brasil, como são as autonomias indígenas. Ambas as formas buscam a autogestão do território, usando como referência as obrigações legais do Estado frente aos povos indígenas, criando espaços de autogoverno legitimados nos arcabouços legais nacionais e internacionais.

Mas há também um laço que conecta autonomias e retomadas como práticas políticas indígenas que não têm o Estado como referente indispensável para sua execução. Um elo que as relaciona pelo fato de que, ainda quando autorizadas politicamente como respostas ao descumprimento dos direitos indígenas pelas autoridades que adiam o respeito pleno dos territórios indígenas, como mecanismo de administrar os conflitos sociais e de manter a matriz produtiva capitalista , não se originam como resposta à violação desses direitos, mas na responsabilidade assumida pelos movimentos indígenas em manter e recuperar os espaços onde se vivem as relações indispensáveis para pôr em prática suas formas de vida.

Da mesma forma, essa caracterização permite diferenciar as retomadas das autodemarcações, também amplamente divulgadas no Brasil e muitas vezes sobrepostas, porém com buscas diferentes. Ainda que em ambos os casos se pretendam delimitar os espaços indígenas por conta própria, as autodemarcações, de modo diverso das retomadas, seguem regularmente os roteiros estabelecidos pelo Estado, respeitando as fronteiras definidas pelos agentes mediadores que produzem os limites para os indígenas nos Relatórios de Identificação.

Essa distinção indica nas retomadas indígenas a condição de que, mesmo interagindo com o Estado, o atravessam. Tal caracterização as aproxima novamente das autonomias indígenas, não nos sentidos dados às últimas nas interpretações levantadas por boa parte dos debates latino-americanos, que as entendem como práticas políticas que se propõem um nível de governo ( Díaz-Polanco, 1996DÍAZ-POLANCO, Héctor. 1996. Autonomía regional: la autodeterminación de los pueblos indios. México DF, Siglo XXI.; Gonzalez; Burguete Cal & Mayor; Ortiz, 2010GONZALEZ, Miguel; BURGUETE CAL Y MAYOR, Araceli & ORTIZ, Pablo (orgs.). 2010. La autonomia a debate: autogobierno indigena y estado plurinacional en America Latina. Quito, Flacso; GTZ; IWGIA; Unich; Ciesas.), mas no fato de que as autonomias vêm criando, como as retomadas, espaços de autogestão baseados nos próprios pressupostos de governo, cultura, saúde, território, política, entre outros.

Essas caraterísticas, em muitos sentidos paradoxais, nos devolvem ao debate inicial do artigo, pelo fato de essas relações serem produzidas numa troca recursiva de categorias e práticas que definem e transformam o que é política e indígena. Um conflito produzido, de um lado, nas condições impostas aos indígenas pelas políticas indigenistas e pelos saberes disciplinares concomitantes a elas, dispostos como práticas de controle dos territórios e como convenções de interpretação das realidades desses povos mediante as teorias da aculturação, da economia de identidades e da maximização de recursos; contraproduzido, do outro lado, com as práticas mobilizadas pelos movimentos indígenas no acúmulo de saberes junto a essas relações, dispostas a recuperar territórios com o fim de conservar os lugares onde estão suas formas de vida.

As retomadas, nesta forma de apresentá-las, mostram a dimensão cosmopolítica das políticas indígenas, materializando sua condição de conflito ontológico, se retomamos os termos de Almeida ( 2021ALMEIDA, Mauro. 2021. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. In: Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu Editora, pp. 135-174.), ao porem em jogo mais que o reconhecimento de direitos. Uma dimensão exposta não só porque os movimentos indígenas, como os dos Tupinambá de Olivença, incluem na política agências não humanas e não vivas provenientes de seus mundos vividos, mas também porque, como propõe Stengers ( 2018STENGERS, Isabelle. 2018. “A proposição cosmopolítica”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 69: 442-464. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464.
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), a política nessa relação é alargada. Uma resposta à “guerra ontológica” forçada com a imposição de práticas como a da expansão da propriedade privada, a qual acaba com a multiplicidade de agências presentes nos mundos indígenas ( Almeida, 2021ALMEIDA, Mauro. 2021. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. In: Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu Editora, pp. 135-174.: 311-316).

Nesta perspectiva, as retomadas e as autonomias, ao movimentarem a política no universo das suas relações, agitam simultaneamente o universo das relações não indígenas, propagando a política indígena no mundo que compartilhamos. Práticas e saberes acumulados por esses povos por longo tempo, com os quais se responsabilizam por alcançar direitos para seus coletivos, mas também por tecer tramas de lugares, de tempos e de relações em que se materializa uma forma outra de viver no mundo, alargando conceitos como os de governo, política, cultura ou território.

Os efeitos das retomadas

Sob as condições antes descritas, as retomadas transformam o domínio da política, principalmente ao tornar explícita a dimensão cosmopolítica que envolve os conflitos em que surgem os movimentos pela retomada do território. Isso porque, quando um grupo de indígenas retomam um pedaço de terra, não apenas se destravam impasses legais e políticos na demarcação de terras, territorializa-se a violência do esbulho presente nos processos de colonização, e se alcançam pelos fatos direitos historicamente negados pelos governos; também se questionam os fundamentos das relações impostas pela sociedade abrangente, como o da propriedade privada antes citada, indispensável na manutenção ontológica da sociedade nacional, do capitalismo e do Estado-nação.

Seguindo esse argumento, as retomadas se propõem, na sua dimensão cosmopolítica, recuperar os lugares e as relações desterradas pela administração colonial e indigenista que organizou e organiza os territórios indígenas e mantêm suas fronteiras , capilarizando as relações não indígenas pelo viés de uma disputa de territórios e espaços, trazendo ao entramado uma política baseada em fundamentos não convencionais à nossa política, como é a agência de animais, plantas ou encantados.

Contudo, essa capilarização dos movimentos indígenas que cria o espaço para “transpor fronteiras ontológicas” ( Almeida, 2021ALMEIDA, Mauro. 2021. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. In: Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu Editora, pp. 135-174.: 330-334) também abre lugar ao paradoxo de contiguidade que descrevemos no começo. O motivo está em que, quando os indígenas retomam uma terra, as disputas se alinham sob a noção de território e política, provocando apologistas e detratores dos movimentos indígenas, levando militantes, antropólogos, historiadores, advogados, ONGs, juízes, intelectuais, religiosos, políticos, universidades, governos, artistas, organizações sociais, entre outros, a participarem dessa disputa pragmática, conceitual e ontológica em que se definem o que é, não é e o que deve ser o indígena 4 4 Estas disputas, que podemos entender como disputas entre indianidades não indígenas, sob ideias divergentes do que é o indígena criam campos de disputa e tensão ao redor da categoria. .

Esse entramado, em que acontecem trocas e disputas criativas e recursivas entre supostos e contrassupostos, se pode levar à possibilidade de transpor fronteiras, regularmente é onde os conflitos ontológicos e a violência física e epistêmica se materializam de forma intensa. Um espaço onde as convenções dominantes sobre o que é indígena ganham uma grande força para impor e capturar as expectativas sobre o que esses movimentos indígenas deveriam fazer com suas políticas.

Trazendo novamente essas convenções e seguindo seus efeitos, uma expectativa comum sobre as retomadas é que elas operam politicamente os interesses materiais e simbólicos indígenas, ao se articularem às lutas pelo reconhecimento por direitos, como a demarcação de Terras Indígenas. Também vinculam essas ocupações de terra aos processos em que as diferenças, identitárias e culturais são reconhecidas como agências políticas mobilizadoras das necessidades dos coletivos. Trata-se de uma expectativa política baseada numa economia das diferenças, na qual essas figuras históricas e maleáveis que chamamos de identidades objetivariam a trama universal de disputas por recursos.

Outra dessas expectativas é que as retomadas, como resultado de conflitos coloniais e fundiários, abram uma forma indígena de oposição à exploração dos povos originários e do meio ambiente, vinda dos ciclos consecutivos de expansão colonial e capitalista que levaram à ocupação e à expropriação dos territórios indígenas. As retomadas são tratadas nesta convenção como a atualização de conflitos históricos nos quais está em jogo a existência de mundos não modernos, não coloniais, não capitalistas e não ocidentais.

Por último, as retomadas se entendem como uma maneira pela qual os indígenas reocupam, na forma de territórios, os espaços onde acontecem experiências imprescindíveis para manter sua diferença. Uma convenção na qual se tem a expectativa de que os indígenas contestem e revertam, mediante essa manifestação política territorializada, os transcursos de etnocídios, diásporas, deslocamentos forçados e confinamentos a pequenas terras, guardados nas memórias coletivas como motivos que mobilizam as subjetividades políticas para a recuperação dos territórios. latos teóricos que levam a práticas políticas com as quais se questionam as relações de colonialidade que pesam sobre os povos indígenas, são também roteiros que deixam de fora parte do que acontece nelas. Um paradoxo que provoca as seguintes perguntas: será que as retomadas procuram só recuperar o controle dos recursos perdidos no esbulho das suas terras? Será que buscam apenas o acesso aos lugares vividos para estar novamente neles? Será que é uma luta exclusiva pela terra ou pelo território? Será que as retomadas são o resultado do reconhecimento de direitos indígenas e da emergência de identidades? O que se está retomando?

Retomadas: mais que territórios e políticas

Um pequeno mapa da trama histórica

Até aqui descrevi alguns pressupostos das convenções sobre a política e o que é indígena, nos quais fica oculta a “imposição de nossas próprias preconcepções a outros povos” ( Wagner, 2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. Tradução de Alexandre Morales; Marcela Coelho de Souza. São Paulo, Cosac Naify.: 46); discuti a necessidade de manter um cuidado epistêmico para vigiar as aproximações do saber da disciplina às políticas indígenas; e, por último, caracterizei algumas questões apontadas pelas retomadas, apresentando os elos com as autonomias e expondo os conflitos ontológicos existentes entre as expectativas sobre as políticas indígenas e o que estes povos se propõem com seus movimentos.

Entretanto, para desembaraçar melhor o que os povos indígenas estão contraproduzindo com as retomadas e pensar nas consequências de relacioná-las com as autonomias, é importante adentrar mais nessas tramas de relações, as quais podemos acompanhar seguindo algumas questões levantadas pelo movimento dos Tupinambá de Olivença pela recuperação do território. Ocupações de terras que, na sua diversidade de formas, tempos e motivos, atestam os alargamentos do que entendemos por política, território, cultura, história ou povos indígenas.

Apenas para contextualizar, descreverei rapidamente a trajetória da luta dos Tupinambá e suas retomadas. Trata-se de um movimento indígena que acompanha outros no Brasil que surgiram após a constituinte de 1988. Movimentos que no Nordeste do país iniciaram, sob a nova legalidade, uma onda de reconhecimentos destes povos e a demarcação de algumas das terras ocupadas historicamente por eles.

Segundo os relatos dos Tupinambá de Olivença, o atual movimento teria começado ao longo da década de 1990, marcado pelo entramado do Nordeste Indígena, onde, por décadas, especialistas e autoridades consideraram essas populações “misturadas”, e onde os povos que se reivindicavam indígenas eram questionados na sua autenticidade como consequência dos relatos canônicos.

Para os Tupinambá, esses questionamentos à veracidade sobre sua pertença indígena tiveram uma ênfase maior, por eles assumirem o etnônimo de um povo indígena considerado na historiografia oficial como desaparecido desde o século XVII, além de uma parcela considerável deles ter corpos com marcadores que atestam relações de parentesco com afrodescendentes.

Apesar das narrativas da história oficial e das relações racializadas no Brasil, os Tupinambá tiveram certo êxito nas suas reivindicações, ao contarem com o apoio de diversas organizações indígenas, indigenistas, antropólogos e historiadores que se aliaram a essa luta num momento singular de efervescência política pelas mobilizações em resposta aos “festejos dos quinhentos anos do descobrimento da América”. Um cenário que colocou estes Tupinambá no lugar daqueles indígenas que teriam enfrentado os portugueses e resistido todo esse tempo, mobilizando grande apoio político.

Porém, a demanda pela demarcação da terra dos Tupinambá e pela conquista do seu reconhecimento como indígenas, que alcançou um estágio avançado no processo de demarcação, não se funda, ainda nos seus relatos, na conjuntura política pós-constituinte, nem nas campanhas internacionais dos “quinhentos anos de resistência negra, indígena e popular”. O movimento estaria conectado a uma longa história local de oposição à perda dos espaços ocupados pelas redes de parentes que hoje se englobam como os Tupinambá. Conflitos marcados não apenas pelo esbulho como também pelas práticas de discriminação materializada no uso da categoria “caboclo” 5 5 Na região de Olivença, no sul de Ilhéus, caboclo é uma categoria polissêmica e até contraditória entre os significados que adquiriu ao longo da história. No contexto atual, é uma forma de designar uma população como “misturada”, principalmente entre “índios e brancos”, designação que tem aqui um duplo objetivo: marcar uma distância dos não indígenas, bem como evitar serem catalogados como indígenas, o que tiraria deles o direito à posse da terra. , utilizada para atribuir às famílias indígenas a caraterística de um coletivo residual, “sem uma cultura própria”, sem direitos e resultado da “mistura entre brancos, indígenas e negros”.

Nessa trama histórica, os indígenas teriam criado grupos de defesa dos lugares ocupados por eles, enfrentando latifundiários e o poder político local interessado nas suas terras, todos abertamente anti-indígenas. Dessas histórias, os Tupinambá destacam a luta de Marcelino José Alves 6 6 Para mais informações, cf. Couto ( 2003: 53-63, 70-73), Lins ( 2007), Magalhães ( 2010: 20-21, 62, 73-74, 84-85), Alarcon ( 2013: 27-28, 38-44, 131-135), entre outros. , o Caboclo Marcelino, um representante indígena que, na primeira parte do século XX, abriu o caminho para as exigências de seus direitos de volta da terra, organizando os “parentes” num movimento que terminaria sufocado violentamente pelas autoridades em 1937. Tal movimento representa hoje para os Tupinambá de Olivença o precedente da organização atual que busca a “recuperação do território”.

As retomadas teriam começado em 2004, um pouco após o início do processo de identificação e delimitação da TI pela Funai. Uma prática de ocupação de fazendas e terras com a qual se abriu uma nova temporalidade histórica, marcada por ciclos recorrentes de ocupações de terras pelos caciques, as lideranças e as cabeças de família, com intenções muito diversas, mas, como veremos, com o objetivo comum de garantir o “retorno da terra”.

Territórios alargados

Os anteriores relatos do movimento indígena e dos especialistas dedicados a estudar o caso dos Tupinambá de Olivença são eloquentes para apresentar e contextualizar o problema. Entretanto, a estratégia que proponho para acompanhar as questões levantadas pelos Tupinambá, além de acrescentar a dimensão cosmopolítica à narrativa, é a de seguir as trocas e os alargamentos das práticas e as categorias que alimentam o conflito em suas diversas dimensões.

Uma dessas trocas acontece com a noção de território, proveniente principalmente do Estado, mas derivada também dos conhecimentos vindos dos estudos sobre os movimentos indígenas e suas políticas. A importância dessa noção no conflito se deve a que ela controla e opera grande parte das relações entre as populações originárias e a sociedade envolvente, mediante conceitos como o de propriedade privada e terra indígena. Categoria tensionada, por um lado, pelas práticas territoriais e pelas políticas da diferença oficial, nas quais se estabelecem as fronteiras físicas, culturais e identitárias indígenas; e, do outro lado, pela dimensão pragmática dos espaços vividos, determinada pelas experiências destes povos nos lugares onde se é e se está indígena.

Essas tensões ao redor da noção de território materializam-se para os Tupinambá de Olivença nas sentenças oficiais, nos escritos governamentais, nos arcabouços legais e normativos, nas falas de apoio dos aliados, nas reportagens dos jornais, nas pesquisas antropológicas, nos projetos das ONGs, nas políticas indigenistas, entre outros espaços onde se estabilizam as indianidades permitidas 7 7 Entendo indianidade como a objetivação de práticas e categorias que definem e determinam o que é o indígena por aqueles que as produzem, sejam indígenas ou não indígenas. .

Nesta trama histórica do sul da Bahia, um dos momentos-chave em que aconteceram as distinções e disputas sobre a noção de território foi o transcurso criativo que acompanhou as pesquisas realizadas pelo movimento indígena e pelos mediadores do Estado na elaboração dos estudos para a demarcação da TI dos Tupinambá. Nesse lugar de trocas, o movimento negociou com antropólogos e funcionários indigenistas através de equívocos, imposições e enfrentamentos a fronteira da terra e os termos do que deveria ser esse território.

Nessa negociação levada adiante pelos Grupos de Trabalho do movimento na colaboração com a pesquisa de demarcação, foram somando ao território os lugares dos parentes 8 8 Parentes e agregados são duas categorias com as quais os Tupinambá englobam uma ampla e plural rede composta por consanguíneos e afins. No contexto da delimitação das terras indígenas, ambas as categorias se tornam importantes por garantirem, no transcurso do seu reconhecimento, o direito das famílias de permanecerem no território. Parente também tem um significado político de inclusão para os indígenas, uma categoria que reconhece, no contexto dos movimentos indígenas, a pertença a um povo indígena, tornando-se uma forma de afirmar uma paridade. : as ruas de moradia dos indígenas no vilarejo de Olivença, as praias, lagoas, mangues, cachoeiras e rios que ocupam rotineiramente, as abertas de mata com casas ocupadas por parentes, os caminhos que conectam o território e ainda os lugares onde aconteceram os enfrentamentos entre indígenas e não indígenas nos processos coloniais e de expansão da fronteira agrícola.

Uma noção de território que se pode entender, na interpretação canônica, como a maneira pela qual os Tupinambá garantiriam direitos e criaram condições materiais para sua existência. Conquista da luta Tupinambá frente ao Estado, graças à qual recuperaram os lugares históricos e de habitação contínua, documentados nas pesquisas e nos laudos antropológicos que determinaram, sob esse regímen de argumentos, as fronteiras onde acontecem as atuais relações indígenas.

Porém, se buscamos não impor nossos pressupostos, devemos manter a vigilância epistêmica e reflexividade proposta, já que a recursividade sob a ideia de território pode ser eloquente tanto nos termos oficiais como nos termos da luta destes indígenas. Um efeito de similaridade nominal que pode terminar encobrindo o processo criativo do movimento e omitindo a contestação dos Tupinambá de Olivença quanto à ideia oficial de território.

Para destrinchar essa trama de produções e contraproduções, podemos seguir os desdobramentos de uma frase repetida pelo movimento dos Tupinambá aos mais amplos interlocutores. Trata-se do enunciado “lutar para recuperar o território”, uma expressão recorrente que, como vamos observar, se baseia em entendidos próprios divulgados sob uma trama de relações indígenas que transformam a noção oficial dele 9 9 Essas definições estão presentes em diferentes lugares e se atualizam permanentemente; assim a encontramos, por exemplo, na Resolução n. 4 de 2021 do Governo Federal, em que os territórios indígenas se definem como lugares onde há um “vínculo histórico e tradicional de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território soberano brasileiro” (2021), ou no descrito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ( IBGE), que explica as terras indígenas como aquelas “destinadas à posse permanente das comunidades que as ocupam”, criadas “com intuito de preservar o habitat e garantir a sobrevivência físico-cultural dos grupos indígenas” (2022). .

Desde o ponto de vista do movimento Tupinambá, a ideia de território foi aparecendo nas trocas de saberes e práticas vindos da trama dos movimentos indígenas, aos quais eles foram se filiando paulatinamente, na medida em que definiam os termos da sua luta pela demarcação da terra. Uma rede de organizações políticas indígenas em que a noção de território tem seus próprios pressupostos, fundados nos saberes acumulados por esses indígenas nas trajetórias de luta frente ao Estado, nas experiências ao redor da política territorial oficial e no trato com as políticas da diferença coordenadas estatalmente, nas quais acumulam conhecimentos sobre como lidar com essas relações impostas.

Essas trocas foram capilarizadas também pela trama indígena que se estende no sul da Bahia, abraçando povos como Kariri-Sapuyá, Kamakã, Gueren, Baenã, Pataxó, Pataxó Hãhãhã 10 10 As trocas que aconteceram próximas aos Pataxó Hãhãhãi, os quais antecedem ao movimento dos Tupinambá no sul da Bahia, colaboraram a dividir afirmações que envolvem os sentidos dados à noção de retomada, em que se defende precisar “fazer a terra aparecer” para “ver de novo o território”, enunciado político registrado por Souza ( 2018: 264) entre os Pataxó e referido na luta do movimento dos Tupinambá como um ponto de entendimento do que deve ser feito. . Nessa rede ampla de parentes e agregados, adensaram-se do mesmo modo os intercâmbios de experiências que levaram os Tupinambá a se somarem a uma ética política indígena divulgada no sul do estado (e talvez divulgada em todo o Nordeste indígena), a qual defende que, para “ver de novo o território”, é preciso “fazer a terra aparecer”, bases práticas e conceituais das retomadas que se espalham pela região ( Alarcon, 2013ALARCON, Daniela Fernandes. 2013. O retorno da terra: as retomadas na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia, 343 pp. Brasília, Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília., 2020ALARCON, Daniela Fernandes. 2020. O retorno dos parentes: mobilização e recuperação territorial entre os Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia, 380 pp. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ/MN/PPGAS.; Carvalho, 2022CARVALHO, Maria Rosário de. 2022. Trajetórias e histórias insurgentes: os Kariri-Sapuyá da Pedra Branca, Recôncavo Sul Baiano. Salvador, EDUFBA.; Souza, 2018SOUZA, Jurema Machado de. 2019. Os Pataxó Hãhãhãi e as narrativas de luta por terra e parentes, no sul da Bahia. Brasília, Tese de doutorado Universidade de Brasília, UnB.).

Esses saberes acumulados foram os que ajudaram o movimento dos Tupinambá de Olivença a antecipar as condições que lhes seriam impostas nas relações que chegariam com seu reconhecimento como indígenas pelo Estado, pelos políticos, pelos movimentos sociais e especialistas. Trocas em que as categorias de terra indígena e território se tornaram uma forma efetiva de disputas e negociações, com o fim de “ver a terra voltar”.

Neste percurso criativo e de luta, as retomadas, divulgadas como políticas indígenas de recuperação dos territórios, assumiram o papel de operador das relações que não são contidas nos termos dados pelo Estado, pelos saberes disciplinares e pela sociedade envolvente. Promovem movimentos recorrentes de ocupação de lugares, nos quais se vão produzindo os espaços onde se multiplicam tanto as relações entre os próprios indígenas, como junto aos não indígenas, da mesma forma como se entramam as agências não humanas e não vivas presentes nos espaços.

Essa propagação de lugares fomenta, na história local marcada pela violência anti-indígena e esbulho de terras, a atração “ao território” dos parentes “espalhados”, o que adensa as redes de familiares que participam da sua recuperação. Tal processo fortalece a luta pela demarcação da terra indígena, mas também alarga os motivos dessa reocupação territorial, de acordo com as tramas de cada rede de parentes, como: recuperar uma área que a família perdeu para uma fazenda, ampliar as roças para melhorar suas condições de vida, buscar lugares vizinhos de parentes afastados para alcançar o ideal de “estar próximo”, percorrer caminhos cerceados pelas propriedades privadas, aceder a fontes de água acaparadas pelas fazendas, ter acesso às matas para conseguir materiais de confecção de utensílios e caça.

Propagação de relações e espaços que envolve também animais, plantas, encantados, donos não humanos, antepassados, índios velhos já não vivos, entre outras agências que as retomadas também atraem e multiplicam. Trazendo ao entramado os lugares com as “lembranças” 11 11 As “lembranças”, no seu significado mais divulgado, são uma forma de enunciar a comunicação com encantados, donos e cuidadores dos animais, antepassados distantes que ocuparam as matas, ou parentes mortos, que têm em comum ficarem no espaço como um tipo de pegada, fixando saberes, práticas e formas de viver desses tempos e ontologias. Uma presença que se conhece por formas sensíveis como pensamentos, intuições, pressentimentos e, em alguns casos, com a ocupação do corpo de pessoas com essa habilidade. de um mundo cerceado pelas propriedades privadas. Um território de relações que entramam o mundo Tupinambá retomado, reconstruído pouco a pouco com a incorporação de ontologias, tempos e saberes indígenas contidos nesse espaço vivido.

Um objetivo que a Cacique Jamapoty (Maria Valdelice de Jesus) define nos termos de uma “luta pela terra” para “sentir a liberdade de viver no território e se conectar com ele” (informação verbal, 2010), dito numa fala ao refletir sobre a importância das retomadas. Tal luta é tomada e capturada pelo conceito de território, o qual, porém, é transformado desde as expectativas que essas redes de parentes impõem no processo de recuperar esses lugares vividos cheios de relações.

Os contraterritórios expressam sua dimensão cosmopolítica ainda com maior detalhe na fala de Karimã (Genilda Maria de Jesus) 12 12 Ela é uma mulher Tupinambá que, ao longo da luta pelo território, se converteu num dos reservatórios de lembranças das lutas passadas destes parentes. Por ser parte de uma rede de parentes que enfrentaram as autoridades para não serem expulsos de suas terras, assume um lugar de relevância. : ela nos dá uma importante chave dessa política alargada, ao nos explicar que “o território é onde estão nossas lembranças, é onde estão as casas dos parentes que morreram”, e é “onde dá para ver que viveram os índios antigos, onde estão os encantados” (informação verbal, 2015). Essa noção de território contorna e alarga os limites geográficos, jurídicos, históricos e produtivos dados nos termos convencionais, compondo-o de casas, caminhos, lugares e experiências que conectam as redes de parentes às matas, aos animais e aos não vivos que aí habitam.

Tais objetivos estão generalizados nos discursos dos caciques Tupinambá, que incluem essas outras dimensões à política: o Cacique Suçuarana (José Sinval Teixeira Magalhães) afirma travar uma luta “para andar livre pelo território”; o Cacique Acauã (Luciano Silva de Jesus) defende se tratar de uma luta para “viver na cultura” e “para que brancos, animais e plantas vivam em paz e sem sofrimento”; já o Cacique Babau (Rosivaldo Ferreira da Silva) explica ser uma luta “autorizada pelos encantados” para restaurar as relações fraturadas pela chegada das fazendas.

E é aqui que as retomadas, como contraprodução Tupinambá das noções de território vindas do domínio da política, da antropologia, da história ou do indigenismo, são fundamentais para acabar com a similaridade nominativa, reconhecendo a produção de um contraterritório. Essas práticas trazem à relação não apenas lugares para os humanos, nem só terras para as famílias viverem melhor, mas também espaços para que os encantados morem, áreas para que os animais “vivam bem”, ou ainda para alcançar um equilíbrio ontológico nas relações entre humanos e não humanos, estendendo a “luta pelo território” à sua dimensão cosmológica.

A multiplicação de caciques

Entretanto, os alargamentos e as contraproduções dos Tupinambá envolvem outras categorias e práticas. Assim, se numa parte das relações esse movimento alargou o alcance da noção de território contida no domínio das políticas de reconhecimento dos povos indígenas, numa outra se embrenhou na contraprodução das práticas associadas à administração dos territórios, contestando a expectativa de que os indígenas operem algum tipo de organização político-territorial “nativa”.

Este outro alargamento aconteceu sob a noção do Cacique, trazida à trama nas condições dispostas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), no seu lugar de agente encarregado do reconhecimento e da administração dos Povos Indígenas 13 13 Entre os anos de 1997 e 2000, os Tupinambá fizeram as primeiras demandas, aceitas pela Fundação em 2001, quando começaram as pesquisas de campo para corroborar a situação dessa população, reconhecendo preliminarmente a condição deles como indígenas em 2002, ao abrir a portaria para o Relatório de Identificação da Terra Indígena dos Tupinambá de Olivença. . Um reconhecimento oficializado pelo Estado em 2009, com a publicação no Diário Oficial da União do resumo do Relatório Circunstanciado de “Identificação e Delimitação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença” 14 14 Documento em que se determinaram os limites das terras suscetíveis de desintrusão e restituição do território historicamente ocupado pelos Tupinambá, última parte do longo processo legal que em 2023 ainda não tinha sido finalizado. ( Viegas & De Paula, 2009VIEGAS, Susana de Matos & DE PAULA, Jorge Luiz. 2009. Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da terra indígena Tupinambá de Olivença. Funai.).

Durante esse processo de reconhecimento pelo Estado brasileiro dos Tupinambá de Olivença, o movimento indígena foi ensaiando respostas para resolver as condições impostas na criação desse novo espaço político territorial indígena. Essas imposições, advindas dos pressupostos contidos no indigenismo, entre outros, dão por assentado que os povos indígenas do Brasil têm organizações políticas similares ou equivalentes. Uma expectativa de organização política ajustada à figura do Cacique, entendida como representante do povo e um agente mediador das relações com as autoridades do governo e sociedade abrangente.

Desse modo, a ausência de caciques entre os Tupinambá se entendeu, por aliados e indigenistas que se engajavam com o movimento, sob os relatos do Nordeste indígena, nos quais se ressaltam as drásticas transformações das sociedades originárias que as levaram a “perder seus rasgos culturais”, extinguindo línguas, religiões e organizações político territoriais “nativas”. Afirmação sustentada na historiografia e na literatura antropológica canônica brasileira que atesta, equivocadamente, a desaparição dos povos indígenas no Nordeste brasileiro.

Essa trama marcada pelos relatos da aculturação levou os aliados do movimento Tupinambá a advertirem sobre a necessidade de (re)criar figuras representativas do poder e da organização social indígena, como pajés e caciques. Foi assim que o movimento dos Tupinambá se embrenhou num novo transcurso criativo, com o fim de (re)criar a figura do Cacique, com a qual cumpriram a ideia de ter um representante abrangente para mediar política e administrativamente a burocracia indigenista.

Esta organização emergente dos Tupinambá se compôs de um cacique geral e de um vice-cacique. Um projeto de representação que se propôs torná-lo a autoridade única, centralizadora do poder proveniente do seu reconhecimento como indígenas pelo Estado. A proposta foi a de construir uma representação articuladora das decisões provenientes de uma assembleia que estaria composta por lideranças, figuras com o papel duplo de representação do poder do cacique nas 23 comunidades em que se dividiu a terra indígena dos Tupinambá de Olivença, e representantes locais das “aldeias” na administração centralizada.

A seleção do primeiro cacique se decidiu ao longo de algumas reuniões entre 1999 e 2000, escolhendo dois jovens engajados com o movimento: Aloízio Brás e Maria Valdelice de Jesus. A escolha de um membro da família Brás era pela relevância que a família teve na organização política dos “caboclos”, prévia ao movimento indígena, quando se engajaram na instauração do sistema público de educação na roça 15 15 Essas demandas estavam articuladas pelo Coletivo de Educadores Populares da Região Cacaueira (CAPOREC), o qual colaborou com um processo de organização política na região, contribuindo com o aviamento do movimento pela terra que começaria a demandar a demarcação de uma terra indígena. , mas também pela importante participação dessa família nas pesquisas feitas pelos próprios indígenas para identificar seu etnônimo 16 16 Em 2023 o Cacique Val (Valdenilson Oliveira Santos) morreu, aos 44 anos, de um acidente vascular, reduzindo o número para catorze caciques, já que ninguém assumiu o lugar dele. Um fato que pode mostrar como a dinâmica de criação e diminuição de caciques está mais associada às relações que cada um deles tece e não a uma representatividade fixada a um espaço. . Contudo, Aloízio desistiu da empreitada por impossibilidades pessoais.

Maria Valdelice se tornou, assim, a primeira cacique geral dos Tupinambá de Olivença, assumindo o nome indígena de Jamapoty, como testifica a carta encaminhada à Funai em dezembro de 2000, que a reconhece como a máxima autoridade. Uma escolha também marcada pela sua trajetória junto às demandas locais, participando das atividades educativas, mas, principalmente, dedicada à promoção, junto a sua mãe Nivalda Amaral, de ações de saúde em colaboração com a Pastoral da Criança. Colaboração que teria facilitado a atração do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), para apoiar a consolidação da luta pelo reconhecimento de seus direitos como indígenas.

Em paralelo à eleição de Valdelice, foram definidas também as lideranças das “aldeias”. Neste caso, eram importantes na escolha as habilidades de bom trato com as pessoas, serem respeitados entre os parentes, terem participado dos momentos prévios de luta ou estarem conectados com as agências não humanas e não vivas que habitam o território, as quais manifestaram desde então sua intenção do “retorno da terra”, precisamente através de algumas destas pessoas eleitas para liderar. A estrutura política arquitetada pelo movimento buscava promover, mediante uma organização representativa, a articulação à política das redes familiares Tupinambá, sobretudo à política governamental e à burocracia indigenista. Um processo descrito pelos aliados e estudos do caso como um momento de “recuperação” da “identidade” e da “organização política” indígena.

Essas descrições colocaram a (re)aparição da figura do cacique sob algumas das interpretações impostas aos povos indígenas, como a expectativa de ser parte de um processo de resistência e ressurgimento indígena que revê as condições de controle e tutela estatal; a expectativa de ser parte de processos de indigenização e territorialização das noções políticas dispostas pelo indigenismo; ou, ainda, ser um movimento de agenciamento político da diferença indígena na operação de demandas por recursos como o da terra.

Mas, como a trama histórica Tupinambá nos propõe, a (re)criação do cacique e suas lideranças seria mais uma contraprodução do movimento indígena. Um processo criativo que iria transformando a figura do cacique junto às retomadas cíclicas de terra, definindo uma contrapolítica que contestou as relações territoriais impostas nas leis favoráveis a fazendas e latifúndios, à burocracia indigenista tutelar e suas indianidades oficiais, assim como aos saberes dos especialistas que os entendem como indígenas ressurgidos.

Uma (re)criação e transformação do cacique que também mostraram a dimensão cosmopolítica nesta relação, presente no efeito paradoxal que a nova figura desencadeou, causado entre o que o movimento indígena produzia para os parentes e o que se produzia por esse mesmo movimento para o domínio da política. Dessa maneira, se a autoridade da cacique de Jamapoty (Maria Valdelice de Jesus) garantia, na centralidade dessa figura única, o avanço burocrático da demarcação da TI, ao tornar inteligível a política Tupinambá no domínio da política governamental e da solidariedade política com os movimentos indígenas produzindo alianças com indigenistas, acadêmicos, políticos ou militantes , as retomadas se tornaram uma forma de produzir uma contrapolítica e um contraterritório.

Essa prática Tupinambá atingiu a própria forma de único cacique, desestabilizando os termos e as práticas de centralização do poder vinda do indigenismo, alargando os sentidos do que é política. Um caminho sem volta que levou à nomeação dos atuais quinze 17 17 Em 2023 o Cacique Val (Valdenilson Oliveira Santos) morreu, aos 44 anos, de um acidente vascular, reduzindo o número para catorze caciques, já que ninguém assumiu o lugar dele. Um fato que pode mostrar como a dinâmica de criação e diminuição de caciques está mais associada às relações que cada um deles tece e não a uma representatividade fixada a um espaço. caciques ( Santana, 2015SANTANA, Sirlandia S. 2015. O papel das mulheres na definição e demarcação das terras indígenas dos Tupinambá de Olivença-BA. São Paulo, Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/xmlui/handle/handle/3703. Acesso em: 18 out. 2022.
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), os quais continuam em eclosão sob o olhar suspeito dos aliados não indígenas, que consideram essa diversidade problemática e resultado da aparição dos recursos vindos do Estado com o reconhecimento deles como indígenas.

Tais suspeitas podem ser afastadas seguindo a posição de vigilância epistêmica e de reflexividade dessas relações, com as quais se pode acompanhar como a inviabilidade de um único cacique não é apenas resultado da racionalidade política, a qual permite concluir que o maior número de caciques é a melhor maneira de representar a diversidade de famílias. Mas pelo do fato de que a prática cosmopolítica de “recuperar o território” não tem o propósito de demarcar uma fronteira e unificar o poder, como propõe o Estado, mas o de atrair lugares e relações, os quais multiplicam também as representações.

Assim, as relações dos lugares retomados, trazidas pelo movimento de “recuperação do território”, recuperaram também outras agências e figuras políticas que fazem essa trama histórica. Uma delas é a de “cabeças” ou “cabeças de família”, um lugar ocupado por um homem ou mulher, em geral os mais velhos de uma rede de parentes, a qual se sobrepõe ao papel de representação de cacique e liderança.

Porém, as “cabeças” se diferenciam de caciques por alcançarem esse lugar, ao terem a capacidade de manter “por perto” irmãos, sobrinhos, filhos, noras, genros, netos etc. Um papel que se funda numa socialidade que cria os lugares vividos, mantendo as casas dos parentes nas proximidades da residência principal, a qual se torna centro dessas relações, convertido no espaço fundador que conecta, numa retícula de caminhos, os parentes que se relacionam afetivamente como visitas e cuidados recíprocos.

Esse entramado de casas, caminhos e parentes é o que faz o território Tupinambá, onde cada uma dessas redes familiares experimentou o cerceamento de suas relações pelos avanços em diferentes momentos das propriedades privadas. Relações desde as quais, ao voltarem a se conectar aos entramados pelas retomadas, se determinaram os motivos que mobilizam cada rede de parentes na “luta pela recuperação do território”. Um entramado composto por continuidades e sobreposições, as quais definem a multiplicidade que os engloba e os movimenta como Tupinambás.

É uma diversidade fundadora dos Tupinambá e do seu movimento, na qual um único cacique mediador dessa multiplicidade requerida pelo indigenismo foi se desmanchando, ao tempo em que a empreitada por um único cacique “fortaleceu o território”, multiplicando, paradoxalmente, as relações contidas nele. Uma cosmopolítica tensionada entre as figuras de representação esperadas pelo indigenismo, de um lado, e as cabeças de família que agenciam de fato essas tramas. Paradoxo que alarga a dimensão da política e dá sentido à política indígena desse movimento, contestando o que se espera deles com uma organização político territorial “nativa” nos termos do indigenismo e da literatura canônica da antropologia sobre o Nordeste indígena.

Propagando lugares, relações e tempos

Se continuamos acompanhando os desdobramentos da “recuperação do território” levada adiante com as retomadas do movimento indígena dos Tupinambá, a política operada pelas redes desses parentes não tem por que se deter no limite atribuído aos povos indígenas pelas convenções dominantes e pela legalidade brasileira. Em outras palavras: a luta dos Tupinambá não se restringe ao domínio da política e da administração dos territórios e é parte de um conflito cosmopolítico no qual este povo indígena vem contraproduzindo práticas e relações em oposição ontológica a categorias tão caras para a sociedade abrangente como a de propriedade privada.

Diante disso, a última relação trazida à reflexão parte de uma categoria Tupinambá que, a diferença das anteriores, faz um movimento oposto, alargando os conceitos de território e política a partir de um conceito próprio: o de “lembrança”. Esse conceito, como se explicará, une o tempo ao espaço, sobrepondo e transformando também o que convencionalmente chamamos de história. Torna as retomadas uma recuperação dos lugares ocupados pelas agências, vinda de outros tempos e de outras ontologias.

Essa conexão entre tempo e território questiona uma das leituras que se repete sobre as reocupações indígenas de terras, a qual inclui a noção de história nas expectativas políticas das práticas indígenas sobre os territórios, explicando suas recuperações como políticas indígenas de ação direta, que ocupam terras com o fim de reverter a história colonial de exploração e domínio dos indígenas. Uma leitura que, sob uma noção historicista, coloca os povos indígenas como agentes de um novo momento histórico em que as lutas pelos territórios reorganizam, política e territorialmente, suas sociedades e as relações com a sociedade abrangente, ao alcançar a autodeterminação.

Entretanto, as retomadas não parecem se deter aí, e as consequências das práticas de ocupar os lugares marcados pela violência, o esbulho, a diáspora e o confinamento produzem mais que um momento histórico que reverte ou atualiza a sucessão de eventos cronológicos encadeados como causas e efeitos. Assim, as retomadas Tupinambá seriam, no entendimento proposto pelos Tupinambá, também uma prática de contra-história, não apenas porque elas permitem reinterpretar o passado desde uma perspectiva do presente, que inclui outras relações na história, mas porque transformam a própria noção de história e a levam em uma direção outra.

Essa contraprodução Tupinambá vem da associação que eles fazem entre tempo e espaço, ou entre história e território, a qual pode ser descrita como uma noção de trama em que as ações realizadas em tempos determinados se fixam permanentemente aos lugares onde acontecem, sobrepondo-se umas às outras, tornando esses tempos e relações latentes nos lugares. Relações que se objetivam na ideia de “lembrança”, isto é, uma categoria pan-histórica na qual se reconhece a agência de não humanos e não vivos, provenientes de outros tempos e ontologias, os quais “lembram”, sensivelmente, o que se encontra em cada um desses lugares marcados. Nessa direção, as retomadas são uma política de recuperação de lugares e relações que não se limita a um objetivo histórico que entende o presente como o final de uma cadeia de fatos. As retomadas consistem, nesse sentido desta cosmopolítica Tupinambá, em uma ação situada num tempo determinado que cria mais um momento na memória coletiva e na cronologia de eventos significativos que se fixam aos lugares como novas “lembranças”. Tornam-se simultaneamente uma prática pela qual, ao recuperar o território, se amplia o entramado das relações provenientes de outros tempos indígenas contidos nos lugares retomados.

O anterior entendimento de tempo, de espaço e da história no movimento dos Tupinambá se pode acompanhar nas suas descrições sobre a criação dos lugares de habitação, decorrente de uma socialidade em parte abandonada pela falta de espaço no avanço da propriedade privada. Nela, as redes de parentes se propagavam pela mata abrindo clareiras para as casas das novas famílias, criando também novas trilhas para conectar as redes familiares. Uma socialidade na qual os espaços abertos e os caminhos feitos podiam entrar em desuso no transcurso de transformação, vida e morte, das famílias dessa rede, ficando, porém, marcadas como “pegadas” nos lugares, unindo um tempo vivido ao lugar, guardado na forma de “lembrança”.

Essa prática de criação, vida e transformação dos lugares pode ser análoga às retomadas, não apenas porque, ao desterrar a propriedade privada, se abrem novamente espaços para os indígenas iguais a novas clareiras , criando condições para os parentes voltarem e porem em prática suas formas de viver, mas também porque elas conectam novamente as relações contidas nos lugares à trama que foi cerceada pelas fazendas. As retomadas resultam assim numa integração ao território das áreas afastadas dos parentes, dos lugares com matas, rios, roças e caminhos, mas também de lugares com “lembranças”, ocupados por outros tempos e ontologias, conectando essas agências atemporais ao presente.

Nesse entendimento de tempo e espaço, as retomadas marcam, paradoxalmente, um momento histórico que, através das “lembranças”, entrama uma história indígena atemporal, trazendo à trama pela materialidade dos lugares marcados com essas “pegadas” as experiências vividas pelos indígenas de outros tempos. Agências atemporais manifestas aos olhos treinados na distinção das paisagens modificadas, e nos corpos preparados na recepção de intuições, sonhos, epifanias, pensamentos ou incorporação dos não humanos e não vivos que comunicam suas intenções nessa liminaridade temporal e ontológica.

Trata-se de uma trama pan-histórica tecida pelos lugares com “lembranças”, que faz do território um lugar ocupado por tempos históricos, isto é: espaços onde de fato aconteceram as experiências indígenas, mas também lugares onde potencialmente essas formas de vida continuam acontecendo em sua relação epistemológica com o presente. Assim, por exemplo, os “índios bravos”, parentes antigos que teriam vivido “nus, comendo cru, sem sal”, se mantêm como “lembranças” nas matas conservadas onde pode continuar vigente essa forma de vida. Motivo de o movimento lutar para recuperar a floresta, vinculando-se às “pegadas” desses tempos e saberes.

Esses lugares de outros tempos e ontologias são fundamentais na luta atual dos Tupinambá, encorpando a noção de “luta pelo território” que vai incorporando com as retomadas os lugares e os tempos indígenas. Mas, nesse transcurso, as “lembranças” operam uma outra relação: a de trazer de novo a “cultura”, perdida ao longo de séculos no meio da violência experimentada pelas políticas de integração. Assim, o acesso ao território pelas retomadas traz terras e recursos, mas traz também o acesso a saberes indígenas que podem se atualizar.

Nesse sentido, a “recuperação do território” mediante as retomadas é parte de um conflito ontológico que disputa o tempo, no qual os Tupinambá atualizam a história indígena, retomando a presença indígena histórica e atual. E contestando a cosmopolítica incrustada nas práticas territoriais baseadas no direito à propriedade privada e nos saberes disciplinares, em que as descontinuidades culturais e as emergências políticas indígenas se explicam sob as teorias da aculturação, da economia de identidades e da maximização de recursos.

Retomadas, autonomias e cosmopolítica

Para fechar o percurso feito sobre as questões levantadas pelas retomadas Tupinambá, farei um desfecho relacionando retomadas e autonomias, as quais mantêm fortes elos. Porém, são conexões que não se relacionam pela mediação de alguma generalização prática ou conceitual, como sucede, por exemplo, com a categoria do Bom Viver ( summa kawsay ou suma qamaña). Esta última, uma teoria e uma prática cosmopolítica proveniente dos povos Kichwa e Aimara, divulgada pelos movimentos pan-indígenas e o pensamento crítico latino-americano. Ela se tornou um referente das políticas indígenas e uma generalização que permite operar a comparação pelas semelhanças que os próprios povos indígenas vêm encontrando entre práticas com objetivos análogos.

Se usássemos como referente uma estratégia parecida de comparação, as retomadas e as autonomias indígenas dificilmente se relacionariam: por um lado, porque, ainda que as retomadas sejam uma prática com grandes repercussões no Brasil, não assumiram até agora a abrangência de uma categoria geral que englobe, para os próprios indígenas, a diversidade de suas práticas políticas, como acontece, ao contrário, com a categoria de autonomia; esta é um referente entre os movimentos desta índole, com a qual se expressam as políticas indígenas que buscam controlar as relações dos seus territórios.

Essa desconexão entre autonomia e retomada é, por outro lado, provocada pelas teorias disciplinares sobre as políticas indígenas, as quais, ao reproduzirem as expectativas das convenções que dominam as reflexões sobre as autonomias indígenas principalmente no que se refere a como os indígenas devem operar um governo na liminaridade do Estado , criam uma fronteira conceitual com as retomadas, porque estas últimas não se propõem um autogoverno. Diferença que impede algumas conexões possíveis numa agenda de reflexões ainda por ser feita.

Entretanto, essa desconexão permite, paradoxalmente, relacioná-las fora das estratégias desses debates, contornando algumas imposições descritas sobre as políticas indígenas, principalmente aquelas vindas das expectativas que dominam as reflexões na trama pan-indígena, em que se espera que as práticas políticas indígenas produzam resultados equivalentes no continente.

Desse modo, se na escala das analogias e das generalizações pan-indígenas as retomadas e as autonomias pouco se assemelham e não há conexões diretas entre seus entramados históricos, numa outra ordem, ambas as práticas se conectam pelos esforços, diversos, para contestar as violências vividas nas tramas desses coletivos indígenas. Além de se conectarem como resultados de uma prática política que contraproduz as relações impostas pela sociedade abrangente, pelos saberes disciplinados, pelo sistema capitalista ou pelas políticas das diferenças coordenadas estatalmente.

Recuperando o argumento do artigo, o que relaciona as retomadas e as autonomias indígenas é que ambas fogem das expectativas do que são e devem ser as políticas indígenas, tornando óbvio que, como povos, coletivos e movimentos, se mobilizam fora do “limite dos direitos que lhes foram atribuídos por uma Constituição que não é a sua” (De la Cadena, 2009DE LA CADENA, Marisol. 2009. “Política indígena: un análisis más allá de ‘la política’”. Red de Antropologías del Mundo, 4: 139-171.: 149-150, tradução nossa). Um limite onde a proposta cosmopolítica ajuda a intuir os alargamentos que os movimentos indígenas produzem, sem apagar com isso os entramados e as relações que estão nos propondo, evitando assim nossas imposições.

Surgem assim as últimas perguntas do artigo: o que se propõem as retomadas e as autonomias numa dimensão cosmopolítica? O que os espaços povoados de relações chamados de territórios produzem ao serem retomados do Estado ou das propriedades privadas?

As respostas a essas preguntas seguem as estratégias adotadas até agora, destacando a importância elucidativa de acompanhar os entramados das relações. Tramas históricas nas quais as retomadas se tornam práticas que, ao “recuperar o território”, se dispõem a propagar lugares, tempos e relações indígenas, sem que o limite de um TI e as normas da legalidade sejam a fronteira final. Nesse sentido, conectar as retomadas e as autonomias seguindo suas tramas abre o caminho para acompanhar as contraproduções desde suas demissões cosmopolíticas.

Essa trajetória de alargamentos criativos mostra os elos entre as autonomias indígenas e as retomadas nas contestações às expectativas que há sobre ambas as práticas, levando a esses movimentos a contraprodução de relações que materializam essa criatividade nos termos de uma política. Uma dimensão que está presente no trabalho de Mora Bayo ( 2018MORA BAYO, Mariana. 2018. Política kuxlejal: autonomía indígena, el Estado racial e investigación descolonizante en comunidades zapatistas. Cidade do México, Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social.) sobre as autonomias zapatistas e o qual permite trazer algumas relações possíveis entre práticas tão diferentes como são as do movimento zapatista e o movimento dos Tupinambá.

Essa dimensão explorada no trabalho de Mora Bayo, o qual se alinha ao que definimos como contraproduções, é detalhada pela autora nas descrições das intenções dos indígenas maias para governar e administrar seus territórios, aspirando ao controle da terra, do poder e do saber, porém, com o propósito ético de alcançar uma “vida-existência digna”, fundadora do que eles chamam lekil kuxlejal, princípio operador dessa política indígena.

Práticas definidas pelos zapatistas como autonômicas, as quais, como as retomadas, contestam as expectativas que há sobre sua política, no caso, sobre o que deve ser um governo indígena. Assim, se nos debates sobre o acesso ao poder pelos movimentos indígenas autonômicos se espera que eles controlem um governo local nos termos de um poder representativo do coletivo, a prática zapatista responde e alarga a noção de governo no seu objetivo de multiplicar o poder, antes que de concentrá-lo.

A proposta do governo zapatista se debruça em produzir em todos os membros das suas comunidades a agência de governar num transcurso pedagógico, como o resume a frase: “governar aprendendo a governar” ( Mora Bayo, 2018MORA BAYO, Mariana. 2018. Política kuxlejal: autonomía indígena, el Estado racial e investigación descolonizante en comunidades zapatistas. Cidade do México, Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social.: 281, tradução nossa). Segundo essa pedagogia, os integrantes das comunidades são sempre parte de alguma esfera do governo autônomo, num movimento rotativo da autoridade no qual todos assumem lugares de mando e obediência em algum momento, dissipando o controle único do território, do governo, do saber e da política. Tal autonomia provoca um contragoverno que contesta as noções de Estado, de política e de poder.

Ainda mais, já que a política kuxlejal não se limita à dimensão do poder ou do governo e é “uma forma digna de bom-viver, que se refere não apenas a um ser individual, mas a esse ser na relação com um coletivo, que por sua vez está ligado à terra, aos mundos naturais e sociais, assim como ao sobrenatural” ( Mora Bayo, 2018MORA BAYO, Mariana. 2018. Política kuxlejal: autonomía indígena, el Estado racial e investigación descolonizante en comunidades zapatistas. Cidade do México, Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social.: 38). Uma trama que povoa as autonomias zapatistas de humanos, não humanos e não vivos relacionados de “forma digna”, fundadora de uma ética objetivada como governo, mas a qual não termina no ato de governar.

Porém, se seguimos as propostas de poder e governo dos zapatistas e buscamos conectá-la com as retomadas Tupinambá sem as tramas das relações que a autora nos mostra, o esforço de não impor nossas expectativas se tornaria difícil pela facilidade com a qual os conceitos da disciplina propagam seus pressupostos. Na estratégia oposta, trazer as relações e acompanhar ambas as categorias nas suas práticas e nos seus entramados se torna um tipo de controle sobre essas imposições. Isto é, acompanhar as relações possíveis dessas práticas indígenas sem impor a elas a nossa cosmopolítica só pode ser evitado ao reconhecer, reflexivamente, a trama de relações destes conflitos ontológicos, se trazemos novamente a ideia de Almeida ( 2021ALMEIDA, Mauro. 2021. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. In: Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu Editora, pp. 135-174.), presente nas trocas fora e dentro dos saberes e das práticas disciplinares.

Ainda porque, ao trazer essas relações, vem junto a criatividade dessas contraproduções, em contramão à generalidade unificadora das dimensões da política, do Estado, da história, do território, do governo, da cultura, da antropologia. Uma conexão entre generalidades diferentes, de entramados sem conexão, que pode colaborar com a propagação das proposições que esses mundos possíveis estão fazendo ao mundo que compartilhamos.

Essa estratégia pode contribuir também entre aqueles dedicados a refletir sobre essas relações ao fortalecimento da nossa vigilância epistêmica e a ampliar a reflexividade sobre o leque de imposições, conceituais e práticas, reproduzidas nas expectativas sobre o que é e deve ser o indígena. Um acúmulo de perguntas que pode aproveitar o caminho andado pelas contraproduções destes movimentos indígenas para transformar as nossas práticas e nossos pressupostos cosmopolíticos ao nos relacionar com os movimentos indígenas.

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  • WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. Tradução de Alexandre Morales; Marcela Coelho de Souza. São Paulo, Cosac Naify.
  • 1
    Entendo movimentos indígenas como uma proposição que, antes que definir uma morfologia política indígena, permite generalizar uma ampla forma de relações mediadas pelas práticas e os saberes trocados entre indígenas e não indígenas.
  • 2
    Entendo categorias disciplinares como os conceitos que vêm dos saberes produzidos e controlados nas regras e os cânones das práticas acadêmicas e científicas, nas quais os conhecimentos, sob a noção de expertos, ganham sua legitimidade e seu poder.
  • 3
    Esta discussão é bastante conhecida pela antropologia quando se debruça sobre o árduo transcurso criativo que a disciplina enfrenta para dar coerência a suas experiências e seus relatos. Um assunto tratado de diversas maneiras: metodologicamente, ao entender a disparidade entre dado e teoria como a materialidade de uma fronteira entre o que os interlocutores dizem e o que de fato fazem ( Malinowski, 1986MALINOWSKI, Bronislaw. 1986. Los Argonautas del Pacífico occidental. Barcelona, Planeta-Agostini.); epistemologicamente, levando o antropólogo a escolhas éticas entre manter uma produção sob domínio da academia ou uma do “ponto de vista do nativo” ( Goldman, 2006GOLDMAN, Marcio. 2006. Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro: 7Letras.; Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. abr. 2002. “O nativo relativo”. Mana, 8 (1): 113-148. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000100005.
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200200...
    ); analiticamente, ao separar os conceitos indigenizados das teorias com o fim de reconhecer a criatividade da relação ( Carneiro da Cunha, 2009CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009. “‘Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”. In: Cultura com aspas: e outros ensaios. São Paulo, Cosac Naify.; Sahlins, 1997SAHLINS, Marshall. abr. 1997a. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção (parte I)”. Mana, 3 (1): 41-73. https://doi.org/10.1590/S0104-93131997000100002.
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313199700...
    , 1997SAHLINS, Marshall. out. 1997b. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção (parte II)”. Mana, 3 (2): 103-150. https://doi.org/10.1590/S0104-93131997000200004.
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313199700...
    ); ou ainda como um problema da escrita, quando se traduz e medeia reflexivamente o que se experimenta com as relações em campo e o que a disciplina espera do autor ( Strathern, 2014STRATHERN, Marilyn. 2014. O efeito etnográfico. São Paulo, Cosac Naify.).
  • 4
    Estas disputas, que podemos entender como disputas entre indianidades não indígenas, sob ideias divergentes do que é o indígena criam campos de disputa e tensão ao redor da categoria.
  • 5
    Na região de Olivença, no sul de Ilhéus, caboclo é uma categoria polissêmica e até contraditória entre os significados que adquiriu ao longo da história. No contexto atual, é uma forma de designar uma população como “misturada”, principalmente entre “índios e brancos”, designação que tem aqui um duplo objetivo: marcar uma distância dos não indígenas, bem como evitar serem catalogados como indígenas, o que tiraria deles o direito à posse da terra.
  • 6
    Para mais informações, cf. Couto ( 2003COUTO, Patrícia. 2003. Os filhos de Jaci, ressurgimento étnico entre os Tupinambá de Olivença Ilhéus, BA. 93 pp. Salvador, Monografia, Universidade Federal da Bahia, UFBA.: 53-63, 70-73), Lins ( 2007LINS, Marcelo. 2007. Os vermelhos nas terras do cacau: a presença comunista no sul da Bahia (1935-1936). Salvador. Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia, UFBA.), Magalhães ( 2010MAGALHÃES, Aline. 2010. A luta pela terra como oração: sociogênese, trajetórias e narrativas do movimento Tupinambá. 151 pp. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.: 20-21, 62, 73-74, 84-85), Alarcon ( 2013ALARCON, Daniela Fernandes. 2013. O retorno da terra: as retomadas na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia, 343 pp. Brasília, Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília.: 27-28, 38-44, 131-135), entre outros.
  • 7
    Entendo indianidade como a objetivação de práticas e categorias que definem e determinam o que é o indígena por aqueles que as produzem, sejam indígenas ou não indígenas.
  • 8
    Parentes e agregados são duas categorias com as quais os Tupinambá englobam uma ampla e plural rede composta por consanguíneos e afins. No contexto da delimitação das terras indígenas, ambas as categorias se tornam importantes por garantirem, no transcurso do seu reconhecimento, o direito das famílias de permanecerem no território. Parente também tem um significado político de inclusão para os indígenas, uma categoria que reconhece, no contexto dos movimentos indígenas, a pertença a um povo indígena, tornando-se uma forma de afirmar uma paridade.
  • 9
    Essas definições estão presentes em diferentes lugares e se atualizam permanentemente; assim a encontramos, por exemplo, na Resolução n. 4 de 2021 do Governo FederalRESOLUÇÃO n. 4, 22 jan. 2021. Disponível em: https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/6169/2/RES_FUNAI_2021_4.html.
    https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/616...
    , em que os territórios indígenas se definem como lugares onde há um “vínculo histórico e tradicional de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território soberano brasileiro” (2021), ou no descrito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ( IBGEIBGE. Brasil: 500 anos de povoamento | território brasileiro e povoamento | história indígena | terras indígenas. Disponível em: https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/historia-indigena/terras-indigenas.html. Acesso em: 10 set. 2022.
    https://brasil500anos.ibge.gov.br/territ...
    ), que explica as terras indígenas como aquelas “destinadas à posse permanente das comunidades que as ocupam”, criadas “com intuito de preservar o habitat e garantir a sobrevivência físico-cultural dos grupos indígenas” (2022).
  • 10
    As trocas que aconteceram próximas aos Pataxó Hãhãhãi, os quais antecedem ao movimento dos Tupinambá no sul da Bahia, colaboraram a dividir afirmações que envolvem os sentidos dados à noção de retomada, em que se defende precisar “fazer a terra aparecer” para “ver de novo o território”, enunciado político registrado por Souza ( 2018SOUZA, Jurema Machado de. 2019. Os Pataxó Hãhãhãi e as narrativas de luta por terra e parentes, no sul da Bahia. Brasília, Tese de doutorado Universidade de Brasília, UnB.: 264) entre os Pataxó e referido na luta do movimento dos Tupinambá como um ponto de entendimento do que deve ser feito.
  • 11
    As “lembranças”, no seu significado mais divulgado, são uma forma de enunciar a comunicação com encantados, donos e cuidadores dos animais, antepassados distantes que ocuparam as matas, ou parentes mortos, que têm em comum ficarem no espaço como um tipo de pegada, fixando saberes, práticas e formas de viver desses tempos e ontologias. Uma presença que se conhece por formas sensíveis como pensamentos, intuições, pressentimentos e, em alguns casos, com a ocupação do corpo de pessoas com essa habilidade.
  • 12
    Ela é uma mulher Tupinambá que, ao longo da luta pelo território, se converteu num dos reservatórios de lembranças das lutas passadas destes parentes. Por ser parte de uma rede de parentes que enfrentaram as autoridades para não serem expulsos de suas terras, assume um lugar de relevância.
  • 13
    Entre os anos de 1997 e 2000, os Tupinambá fizeram as primeiras demandas, aceitas pela Fundação em 2001, quando começaram as pesquisas de campo para corroborar a situação dessa população, reconhecendo preliminarmente a condição deles como indígenas em 2002, ao abrir a portaria para o Relatório de Identificação da Terra Indígena dos Tupinambá de Olivença.
  • 14
    Documento em que se determinaram os limites das terras suscetíveis de desintrusão e restituição do território historicamente ocupado pelos Tupinambá, última parte do longo processo legal que em 2023 ainda não tinha sido finalizado.
  • 15
    Essas demandas estavam articuladas pelo Coletivo de Educadores Populares da Região Cacaueira (CAPOREC), o qual colaborou com um processo de organização política na região, contribuindo com o aviamento do movimento pela terra que começaria a demandar a demarcação de uma terra indígena.
  • 16
    Em 2023 o Cacique Val (Valdenilson Oliveira Santos) morreu, aos 44 anos, de um acidente vascular, reduzindo o número para catorze caciques, já que ninguém assumiu o lugar dele. Um fato que pode mostrar como a dinâmica de criação e diminuição de caciques está mais associada às relações que cada um deles tece e não a uma representatividade fixada a um espaço.
  • 17
    Em 2023 o Cacique Val (Valdenilson Oliveira Santos) morreu, aos 44 anos, de um acidente vascular, reduzindo o número para catorze caciques, já que ninguém assumiu o lugar dele. Um fato que pode mostrar como a dinâmica de criação e diminuição de caciques está mais associada às relações que cada um deles tece e não a uma representatividade fixada a um espaço.
  • Financiamento:

    PNPD-Capes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2022
  • Aceito
    31 Ago 2023
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