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Para além do sonho e da vigilia. O sonho ameríndio e a existência

Más allá del sueño y la vigilia: Sueño ameríndio y existencia

Beyond dream and wakefulness. The Amerindian dream and existence

RESUMO

Neste artigo analiso a dupla dimensão do sonho ameríndio, como viagem da alma e como ação provocada por outros seres que não o sonhador. O objetivo é discutir algumas interpretações recorrentes do sonho ameríndio e explorar o status ontológico do sonho para traçar uma proposta alternativa àquelas análises da experiência do sonho indígena que reproduzem a dicotomia sonho-vigília. Os estudos etnográficos sobre o sonho ameríndio e minhas pesquisas entre os indígenas Pumé dos Llanos do sudoeste da Venezuela são a base para responder às perguntas: o que é a experiência indígena do sonho? O que é o sonho? Por que o sonho é um estado ontológico, ou seja, representa, por um lado, o princípio da vitalidade da pessoa e, por outro, o fundamento da existência de todas as entidades que povoam o cosmos?

PALAVRAS-CHAVE:
Alma; corpo; pessoa; complexo de sonho; ontologia; cosmologia

RESUMEN

En este artículo analizo la doble dimensión del sueño amerindio, como viaje del alma y como acción provocada por otros seres distintos al soñador. El objetivo es discutir algunas interpretaciones recurrentes sobre el sueño amerindio y explorar el estatuto ontológico del sueño para esbozar una propuesta alternativa a aquellos análisis de la experiencia onírica indígena que reproducen la dicotomía sueño-vigilia. Los estudios etnográficos sobre el sueño amerindio y mi investigación entre los indígenas pumé de los Llanos del sudoeste de Venezuela son la base para responder a las preguntas: ¿qué es soñar desde la experiencia de la persona indígena? ¿qué es el sueño? ¿Por qué el sueño es un estado ontológico, esto es que representa, por un lado, el principio de vitalidad de la persona y, por otro lado, el fundamento de la existencia de todos los entes que pueblan el cosmos?

PALABRAS-CHAVE:
Alma; cuerpo; persona; complejo onírico; ontología; cosmología

ABSTRACT

In this article, I analyze the double dimension of the Amerindian dream, as a journey of the soul and as an action caused by beings other than the dreamer. The objective is to discuss some recurring interpretations of the Amerindian dream and to explore the ontological status of the dream to outline an alternative proposal to those analyzes of the indigenous dream experience that reproduce the dream-wake dichotomy. Ethnographic studies on the Amerindian dream and my research among the Pumé indigenous people of the Llanos of southwestern Venezuela are the basis for answering the questions: what is to dream from the experience of the indigenous person? What the dream means? Why is the dream an ontological state, that is, it represents, on the one hand, the principle of vitality of the person and, on the other hand, the foundation of the existence of all the entities that populate the cosmos?

KEYWORDS:
Soul; body; person; dream complex; ontology; cosmology

INTRODUÇÃO

Baseado no trabalho de campo realizado por mais de duas décadas entre os indígenas pumé na região de Llanos del Apure, sudoeste da Venezuela, este artigo pretende abordar algumas interpretações recorrentes do sonho ameríndio. Mais especificamente, minha intenção é fazer uma abordagem alternativa às análises da experiência onírica indígena que reproduzem a dicotomia sonho/vigília e que, com base nisso, se referem ao sonho indígena como um espaço para a elaboração dos desejos e expectativas do sonhador ou de seu grupo, abordando a dimensão transitiva da experiência da alma do sonhador, que é o protagonista do evento onírico. Outra questão tratada por esta antropologia do sonho indígena, fundamentada na dicotomia entre o sonho e a vida desperta, é o imperativo da interpretação, literal ou metafórica, do episódio onírico. Por último, o potencial do sonho como ativador de eventos -individuais e coletivos, presentes e futurosque acontecem no estado de vigília, é outra das linhas de análise da etnografia do sonho indígena.

Estas quatro linhas argumentativas que acabo de apresentar, que foram amplamente estudadas pela etnografia ameríndia, estão firmemente fundamentadas na teoria psicanalítica do sonho (Orobitg, 2017OROBITG, Gemma. 2017. “Los laberintos del sueño. Nuevas posibles vías para una antropología del sueño amerindio”. Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades , 9: 9-20.: 10-12). Embora não desconsidere a diversidade cultural dos significados e interpretações do sonho, tal teoria estabelece, como princípio universal, a subordinação da matéria do sonho à dimensão consciente da vida desperta à qual, se bem que de forma oculta, todo sonho sempre está ligado. No entanto, a etnografia do sonho indígena descobre teorias alternativas nas quais o sonho é apresentado, primeiro, como uma experiência não subordinada à vida desperta, mas com uma vida própria (Gallinier, 1990; Pitarch, 1996PITARCH, Pedro. 1996. Ch’ulel: Una etnografía de las almas tzeltales. México, Fondo de Cultura Económica., 2017PITARCH, Pedro. 2017. “Tu nos has soñado. Notas sobre el sueño en los cantos chamánicos tzeltales”, Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades , 9: 21-42.); segundo, como um estado ontológico, isto é, uma dimensão essencial da existência que completa a totalidade da experiência de vida do indivíduo (Groarck, 2017; Orobitg, 2017OROBITG, Gemma. 2017. “Los laberintos del sueño. Nuevas posibles vías para una antropología del sueño amerindio”. Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades , 9: 9-20.; Pitarch, 2017PITARCH, Pedro. 2017. “Tu nos has soñado. Notas sobre el sueño en los cantos chamánicos tzeltales”, Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades , 9: 21-42.). De fato, o sonho indígena é uma condição fundamental do ser-e-estar no mundo. Como diz um xamã pumé: “Sonhamos para viver... Vivemos sonhando.” Para os pumé, sonhar equivale a saber, lembrar, pensar e viver. Pelo contrário, não sonhar significa estar gravemente doente, não saber, esquecer, desaparecer e morrer.

Neste texto, examino o estado ontológico do sonho pumé. Por um lado, respondo à pergunta: O que é o sonho desde a perspectiva da experiência indígena? Quando se expressam em espanhol, o que os indígenas querem dizer com o termo sonho é um complexo de ações e estados de consciência que envolvem a totalidade da pessoa. Com efeito, o corpo e a alma do sonhador estão envolvidos na experiência do sonhar em uma relação que não é de complementaridade, mas sim de consubstancialidade. Em outras palavras, corpo e alma afetam um ao outro (Muñoz Moran, 2020MUÑOZ MORAN, Oscar. 2021. “Ánimu, cuerpo y movimiento en los sueños andinos”. Temas Americanistas, 45: 28-48.; Pitarch, 2013PITARCH, Pedro. 2013. “Los dos cuerpos mayas” In La cara oculta del pliegue: Ensayos de antropología indígena. México, Artes de México/CONACULTA: 37-65.; Orobitg, 2017OROBITG, Gemma. 2017. “Los laberintos del sueño. Nuevas posibles vías para una antropología del sueño amerindio”. Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades , 9: 9-20.: 13-14). Da mesma forma, os eventos oníricos vividos por cada tipo de ser acabam por definir sua natureza ao longo do ciclo de vida, perpetuando assim a ordem do cosmos (Orobitg, 1998OROBITG, Gemma. 1998. Les pumé et leurs rêves. Étude d’un groupe inden des Plaines du Venezuela. Amsterdam/ Paris, Éditions des Archives Contemporaines.).

Por outro lado, neste artigo desenvolvo a idéia pumé de que ninguém “existe” se não for sonhado por outrem. A mitologia pumé, como a de outros grupos indígenas, explica como os deuses criaram o cosmos sonhando (Devereux; 1966DEVEREUX, Georges. 1966. “Rêves pathogènes dans les sociétés non-occidentales” In Essais d’Ethnopsychiatrie générale. Paris, Gallimard .: 326). Para os pumé de hoje isto ainda continua sendo assim: cada ser tem a capacidade de provocar os sonhos nos outros, bem como, por sua vez, tem que lidar com as situações oníricas que lhe são dadas e nas quais se encontra envolvido. Este duplo processo de “sonhar” e “sonhar praticando os sonhos mandados por outros” torna possível, ativa e energiza relações entre a diversidade dos seres que habitam o cosmos. Neste sentido, o sonho pumé é o guardião da existência1 1 Esta frase é uma reelaboração, a partir da etnografia indígena, da afirmação de Sigmund Freud (1983) [1901] de que “o sonho é o guardião do sono, não seu perturbador...”. .

BREVE APRESENTAÇÃO DE UM POVO DE SONHADORES

Os pumé ou yaruro são aproximadamente 9.500 pessoas que vivem, principalmente na região de Los Llanos del Apure, sudoeste da Venezuela, na área de fronteira com a Colômbia. Estão organizados em pequenas comunidades localizadas em quatro eixos fluviais da bacia do Orinoco: Arauca, Cunaviche, Riecito e Capanaparo. Preservam fortemente seu idioma, o pumé, que é considerado como uma linhagem independente.

Os pumé sempre se destacaram nas comparações etnográficas por terem particularidades que contrastam com as de outros grupos indígenas das savanas das terras baixas da América do Sul. Estas diferenças dizem respeito aos padrões de subsistência, teorias de filiação e de parentesco, organização sociopolítica e, finalmente, vida ritual (Steward, 1948: 456).

A primeira diferença é que, embora suas atividades de subsistência sejam a coleta, a horticultura, a caça e a pesca, é esta última, nos rios ou nas lagoas da savana, que determina o nomadismo sazonal, os padrões de assentamento e a organização político-econômica dos pumé (Steward, 1948: 457). Minha etnografia sobre este grupo confirma esta afirmação (Orobitg, 1998OROBITG, Gemma. 1998. Les pumé et leurs rêves. Étude d’un groupe inden des Plaines du Venezuela. Amsterdam/ Paris, Éditions des Archives Contemporaines.), o que torna possível superar o debate, que não tem sido muito frutífero, sobre se a horticultura foi uma aquisição recente dos pumé ou se, ao contrário, sendo originalmente horticultores, eles haviam “regredido” para outras formas de subsistência (Leeds, 1961LEEDS, Anthony. 1961. “Yaruro incipient tropical forest horticulture. Possibilities and Limits” In WILBERT, Johannes (ed.) The Evolution of Horticultural Systems in Native South America. Causes and Consequences. Caracas, Sociedad de Ciencias Naturales La Salle: 13-46; Mitrani, 1988MITRANI, Philippe. 1988. “Los Pumé”. In LIZOT, Jacques (ed.) Los Aborígenes de Venezuela. Vol. III. Caracas, Fundación La Salle/Monte Ávila eds.: 155; Petrullo, 1969; Salas Jiménez, 1971SALAS JIMÉNEZ, Rafael. 1971. “La horticultura prehispénica de los pumé”. Annuario, Vol. VII/VIII: 415-424.).

A segunda diferença é que a unidade básica da organização social é a família estendida matrilocal; exceto para quem é considerado o chefe de família (Steward, 1948: 460). A linhagem é matrilinear. A estrutura de seu sistema de parentesco é basicamente dravidiana, embora orientada para a endogamia local, semelhante ao que Eduardo Viveiros de Castro e Carlos Fausto (1993VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo y FAUSTO, Carlos (1993) “La Puissance et l’acte. La parenté dnas les basses terres de l’Amérique du Sud”. L’Homme, 126-128, XXXIII (2-4) (La remontée de l’Amazone) : 141-170.) sugerem para os grupos amazônicos. As alianças matrimoniais são estabelecidas de preferência entre primos cruzados bilaterais e, às vezes, com um tio materno.

A terceira peculiaridade é a falta de conhecimento do habitat original do grupo. Esta questão tem estado no centro dos debates que procuram explicar como os pumé se diferenciam dos outros grupos da área. Existem diversas hipóteses, sendo a primeira que os pumé teriam tido contato com grupos da bacia amazônica, da qual poderiam inclusive ser originários (Steward, 1948: 456). A segunda hipótese é que as particularidades culturais dos pumé poderiam ser explicadas por suas estreitas relações com uma diversidade de povos indígenas e afrodescendentes, visto que Los Llanos é considerada uma dessas zonas intermediárias de trânsito constante entre os Andes e a costa (Morey, 1977MOREY, Robert y Nancy. 1977. “The Llanos: The Periphery as Center”. In Simposium Lowlands South American Indians I: Peripheries and Boundaries Reconsidered. 76th Annual Meeting of the American Anthropological Associations, Houston-Texas.).

Porém, a particularidade mais marcante dos pumé é, sem dúvida alguma, sua prática ritual. Alfred Métraux (1946MÉTRAUX, Alfred. 1967. Réligions et magies indiennes de l’Amérique du Sud. Paris, Gallimard .:92), em seu abrangente livro sobre messianismo e xamanismo entre os grupos indígenas da América do Sul, aponta para o xamanismo pumé como exemplo notável de prática xamânica com possessão. A possessão xamânica, argumenta Métraux, se bem que pouco relatada na etnografia, acaba sendo característica das práticas rituais dos xamãs em alguns grupos amazônicos, como, por exemplo, os tikuna, guajajara e bororo. Por conseguinte, estudos mais recentes concluem que não se trata de uma prática muito generalizada (Chaumeil, 1983CHAUMEIL, Jean-Pierre.1983. Voir, Savoir, Povoir. Le chamanisme chez les Yagua du Nord-Est péruvien. Paris, École des hautes Études en Sciences Sociales.: 16-20); daí sua excepcionalidade.

Na primeira etnografia sobre os pumé (Petrullo, 1939PETRULLO, Vincenzo.1939. The Yaruros of the Capanaparo River,Venezuela. Washington, Smithsonian Institution. Bureau of American Ethnology. Paper 123 [traducción: 1969, Los Yaruro del río Capanaparo. Caracas. Instituto de Antropología e Historia, Universidad Central de Venezuela].: 250), o transe e a possessão dos xamãs durante o ritual do Tõhé são descritos em detalhes. Mesmo nos dias de hoje, estes xamãs ainda dizem que, após o ritual, não conseguem explicar nada do que aconteceu durante a celebração. O que eles podem contar é a viagem de sua alma (pumethó) através das terras do “Mais além”, enquanto seu corpo (ikhará), “Aqui”, é simplesmente um receptáculo das almas -ou apenas das palavrasdos espíritos criadores ou de seus avatares que se incorporam para se comunicar diretamente com os pumé através do cântico (Orobitg, 1998OROBITG, Gemma. 1998. Les pumé et leurs rêves. Étude d’un groupe inden des Plaines du Venezuela. Amsterdam/ Paris, Éditions des Archives Contemporaines.:131-136).

O ritual do Tõhé surpreendeu, por outras razões, os primeiros missionários, capuchinhos e jesuítas. Em um documento do século XVIII, o padre jesuíta Agustín Vega relata com grande admiração a longa duração do ritual, desde o anoitecer até o amanhecer. Também fica igualmente impressionado com o ritmo frenético do cântico e da dança que o acompanha, que envolve toda a comunidade que repete, incansavelmente em coro durante toda a noite, os cânticos dos homens adultos que participam como solistas do ritual (Orobitg, 1998OROBITG, Gemma. 1998. Les pumé et leurs rêves. Étude d’un groupe inden des Plaines du Venezuela. Amsterdam/ Paris, Éditions des Archives Contemporaines.: 22). Nos dias de hoje, os indígenas vizinhos dos pumé, os kuiva, manifestam-se igualmente surpresos e até mesmo desconfiados dos pumé por causa desses cânticos noturnos, tendo inclusive me alertado sobre isso: “Tenha muito cuidado com os pumé! Eles passam noites inteiras fazendo bruxarias!” Isso é mesmo assim, desde o início de minha pesquisa, pude constatar a frequência do ritual, que pode chegar a ser celebrado de três a cinco noites por semana. Já mais tarde, nos primeiros anos do século XXI, fiquei impressionada com a capacidade deste ritual se transformar, quando algumas mulheres começaram a participar dele como solistas (Orobitg, 2005OROBITG, Gemma. 2015. “Lamento ritual de las mujeres pumé. Un ensayo sobre emotividad y política”. In GUTIÉRREZESTÉVEZ, Manuel & SURRALLÉS, Alexandre (eds.) Cultura y sentimiento.Etnografías amerindias. Madrid/ Frankfurt, Iberoamericana/Vervuert: 63-87.).

Entre os anos de 30 a 80, a comunicação com os espíritos que se expressa através do cântico do Tõhé foi interpretada pelos antropólogos como uma estratégia para fugir da situação de violência, marginalização e pobreza em que o grupo se encontrava, desde o início do século 20, devido às sucessivas invasões de seu território por colonos venezuelanos e colombianos que se dedicavam principalmente à agropecuária extensiva (Petrullo, 1939PETRULLO, Vincenzo.1939. The Yaruros of the Capanaparo River,Venezuela. Washington, Smithsonian Institution. Bureau of American Ethnology. Paper 123 [traducción: 1969, Los Yaruro del río Capanaparo. Caracas. Instituto de Antropología e Historia, Universidad Central de Venezuela].; Le Besnerais, 1951LE BESNERAIS, Henry. 1954. “Quelques aspects de la réligion des Indiens Yaruro”. Société Suisee des Américanistes, Bulletin 2, Genève: Musée et Institut d’ethnographie de la ville de Genève.; Mitrani, 1998MITRANI, Philippe. 1988. “Los Pumé”. In LIZOT, Jacques (ed.) Los Aborígenes de Venezuela. Vol. III. Caracas, Fundación La Salle/Monte Ávila eds.). No entanto, a antropologia dos anos 90 lançou uma nova luz para a explicação da persistência e frequência dos rituais: a resistência cultural (Barreto, 1994BARRETO, Daisy. 1994. “Resistencia y afirmación identitaria: los indios pumé-yaruro de los Llanos bajos de Venezuela. Caracas. Universidad Central del Venezuela (mecanografiado).). Ao lado dessas interpretações sociopolíticas, minha etnografia revela a dimensão ontológica do ritual. Ouvindo os pumé, descobri que o principal valor do Tõhé é maximizar a comunicação entre o “Aqui” e o “Mais além”. Como pude observar, o ritual ajuda a perpetuar o processo da pessoa de ir e vir entre as terras do “Aqui” e do “Mais além”. Estas passagens das almas são indispensáveis para a existência dos pumé. Daí a “obsessão” dos pumé com o ritual e também com o sonho. “Para viver bem, tem que se sonhar bem, tem que se cantar bem...”, disse um xamã pumé. Igual que no Tõhé, no sonho, a alma viaja. Não se trata de uma viagem espontânea. É uma viagem que precisa ser provocada por outros seres. Como mencionei acima, neste texto analiso estas duas dimensões que completam a experiência onírica indígena e que acabam por defini-la como um estado de ser que garante a manutenção da vitalidade da pessoa, bem como a existência e a sobrevivência do cosmos.

EXPERIÊNCIAS TRANSITIVAS: SONHAR PARA VIVER

Nesta seção apresento os desenvolvimentos teóricos da antropologia do sonho indígena. De forma geral, estes estudos estão baseados na definição do sonho como sendo a experiência da alma do sonhador. Mais especificamente, pretendem elucidar os significados, para o indivíduo e para a sociedade, dos deslocamentos corporais, temporais e espaciais, como conseqüência das passagens da alma durante o sonho. Se bem que a partir de diferentes abordagens teóricas, os referidos estudos sobre o sonho indígena destacam sua dimensão comunicativa. Em outras palavras, seja na esfera das relações sociais ou na esfera das interações cosmológicas, o sonho é representado como uma experiência que ativa relações significativas entre diferentes tipos de seres. A divergência entre estes estudos reside em elucidar onde está o valor comunicativo do sonho: em suas projeções na vida desperta ou no próprio evento onírico? Nesta seção faço uma contribuição a este debate desde a perspectiva da etnografia pumé. Proponho uma abordagem fenomenológica e cognitiva da experiência onírica indígena. Meu objetivo é apresentar uma proposta para o estudo do sonho indígena baseada, não em sua função, mas em sua definição a partir da própria experiência da pessoa que sonha: “O que é o sonho para os pumé? O que significa sonhar?”; fazendo um questionamento sobre como o diálogo etnográfico autoriza a criação da noção do complexo onírico, para assim analisar a experiência do sonho indígena.

A antropologia do sonho indígena: teorias sobre as passagens da alma

Uma aproximação ao sonho como uma experiência transitiva é a abordagem mais clássica da etnologia ameríndia. De fato, as passagens da alma do sonhador pelos diferentes espaços do cosmos, e a comunicação que esta experiência possibilita com os diferentes seres que o habitam -humanos e não humanos-, são o ponto central dos estudos mais atuais sobre a vida onírica indígena (Barcelos Neto, 2002BARCELOS NETO, Aristóteles. 2002. A arte dos sonhos. Uma iconografia ameríndia. Lisboa, Muesu Nacional de Etnologia/Assirio & Alvim.; Bilhaut, 2011BILHAUT, Anne-Gaël. 2011. El sueño de los záparas. Patrimonio onírico de un pueblo de la Alta Amazonia. Quito, Abya Yala.; Niño Vargas, 2007NIÑO VARGAS, Juan Camilo. 2007. Ooyoriyasa. Cosmología e interpretación onírica entre los ette del norte de Colombia. Bogotá, Universidad de los Andes/Ediciones Uniandes.; Orobitg, 1998OROBITG, Gemma. 1998. Les pumé et leurs rêves. Étude d’un groupe inden des Plaines du Venezuela. Amsterdam/ Paris, Éditions des Archives Contemporaines.; Shiratori, 2013SHIRATORI, Karen. 2013. O acontecimiento onírico ameríndio. O tempo desarticulado e as verdades possíveis. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro/PPGAS-Museu Nacional.; Vianna, 2016VIANNA, Joao Jackson Bezerra. 2016. “Notas cromáticas sobre os sonhos ameríndios: transformaçoes da pessoa e perspectiva”. Revista de Antropología (Sao Paulo), 59(3): 260-294.). Talvez isso seja assim porque esta dimensão do sonho indígena não entra em contradição com nossa idéia geral de sonhar como sendo a experiência individual da pessoa que sonha. Também não são totalmente estranhos para nós os encontros inesperados, muitas vezes fora da lógica da vida desperta, que acontecem durante nossos sonhos. Porém, dois aspectos surpreendem os etnógrafos que começam a receber frequentes relatos de sonhos de seus interlocutores indígenas, mesmo quando não tinham nem sequer pensado inquirir sobre estes tópicos. Por um lado, o perfil padronizado das narrativas dos sonho e, por outro, o entrelaçamento das dimensões da vida desperta e da vida do sonho ou, em outras palavras, a ampliação do campo do social -”real” ou “verdadeiro”no qual o tempo-espaço dos sonhos e os encontros e eventos que nele ocorrem são incorporados.

A observação do perfil padronizado das narrativas oníricas ameríndias é um aspecto que já foi destacado pelos primeiros estudos sobre a antropologia do sonho. Estes trabalhos pioneiros (Laughlin, 1966LAUGHLIN, Robert M. 1966. “Oficio de Tinieblas. Cómo el zinacanteco adivina sus sueños” In VOGT, Evon (ed.) Los zinacantecos: un pueblo tzotzil de los Altos de Chiapas. México, Instituto Nacional Indigenista: 396-413: 405; Lévy-Bruhl, 1960 [1922]LÉVY-BRUHL, Lucien. 1960 [1922]. La mentalité primitive. Paris, PUF (Bibliothèque de Philosophie Contemporaine).: 99) estavam procurando formas de lidar com o dilema do status de “verdade” do sonho indígena, como descoberto pela etnografia, em oposição às teorias hermenêuticas do sonho, dominantes no mundo ocidental, que colocam o sonho no reino do imaginário e das representações. As primeiras classificações antropológicas dos sonhos nas culturas tribais do mundo resistiram-se a explorar as teorias indígenas do sonho, o que teria significado questionar a universalidade dos esquemas interpretativos ocidentais do sonho. Neste sentido, a classificação inicial de James Steward Lincoln (1970LINCOLN, James Steward. 1970 [1935]. The Dream in Primitive Culture, New York. London, Johnson Reprint Corporation. [1935]) do sonho nas “sociedades primitivas” entre “sonhos estereotipados pela cultura” (cultural pattern dreams) e “sonhos individuais” (individual dreams) inspirou, até muito recentemente, as análises antropológicas da experiência onírica. De fato, os três eixos que estruturam a tipologia de Lincoln: interpretação (literal ou metafórica), função (individual ou coletiva), e o tipo de pesquisas que a combinação de ambas produz, fundamentam as interpretações antropológicas sobre a vida onírica indígena (Orobitg, 2004OROBITG, Gemma. 2004. “El sueño como fuente de estudio antropológico de las sociedades amerindias”. In LLUÍS I VIDAL-FOLCH, Ariadna & DALLA-CORTE, Gabriela (eds.) Actes del primer congrès Catalunya-Amèrica. Fonts i documents de recerca. Barcelona, Institut Català de Cooperació Iberoamericana: 203-210.: 207; Price-William e Nagashima Derrod, 1990PRICE-WILLIAM, S.D. & NAGASHIMA DERROD, D.J. 1990. “El contexto y el uso de los sueños en las sociedades amerindias” em PERRIN, Michel (ed.) Antropología y experiencias del sueño. Quito, Abya Yala : 277-295.; Shiratori, 2013SHIRATORI, Karen. 2013. O acontecimiento onírico ameríndio. O tempo desarticulado e as verdades possíveis. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro/PPGAS-Museu Nacional.:102).

Em resumo, aos estudos sobre a etnologia ameríndia tem sido geralmente aplicada uma distinção básica entre sonhos metaforicamente interpretados e sonhos literalmente interpretados. Os primeiros são caracterizados como sonhos pessoais, que afetam a vida do sonhador, e constituem os materiais para a análise antropológica de uma ciência indígena dos sonhos ou, em outras palavras, das chaves do simbolismo onírico ameríndio (Descola, 1993DESCOLA, Philippe. 1993. “Headshrinkers versus shrinks: Jivaroan dream analysis”. Man, 24: 439-450.; Lévi-Strauss, 1985LÉVI-STRAUSS, Claude. 1985. “Totem et Tabu version jivaro”, In La potière jalouse. Paris, Plon/ Agora (Les idées, les Arts, les Sociétés); Perrin, 1990). O segundo termo da tipologia, os sonhos literalmente interpretados, são definidos como sonhos culturalmente padronizados, que exercem influência sobre a vida de toda a comunidade, e cujo estudo permite aprofundar na análise das teorias indígenas do conhecimento, entendido em termos cosmológicos. Nesta coordenada é onde se insere a abundante literatura sobre sonhos xamânicos ou outros tipos de sonhos que marcam o ciclo de vida e os papéis sociais que os sonhadores vão adquirir a partir da experiência onírica (Bilhaut, 2011BILHAUT, Anne-Gaël. 2011. El sueño de los záparas. Patrimonio onírico de un pueblo de la Alta Amazonia. Quito, Abya Yala.; Galinier, 1990GALINIER, Jean. 1990. “La persona y el mundo de los sueños de los otomíes” In PERRIN, Michel (ed.) Antropología y experiencias del sueño. Quito, Abya Yala : 67-78; Gregor, 1981GREGOR, Thomas. 1981. “Far, far away my shadow wondered…Dream symbolism and dream theories of the Mekinahu Indians of Brazil”. American Ethnologist, 8(4): 709-720.; Guedon, 1988GUÉDON, Françoise.1988.“Du rêvea l’ethonographie.Explorations sur le mode personnel du chamanisme Nabesana”.Recherches Amérindiennes au Quebec, XVIII (2-3): 5-18; Lozonczy, 1990; Vaizelles, 1990VAIZELLES, Danièle. 1990. “Sueños y visiones de los Sioux Lakota”. In PERRIN, Michel (ed.) Antropología y experiencias del sueño. Quito, Abya Yala : 49-66.).

Esta dupla tipologia está baseada no dilema, colocado por Sigmund Freud na formulação de sua teoria de interpretação dos sonhos, entre uma interpretação realista (simbolismo universal) e uma interpretação relativista do simbolismo dos sonhos (Freud, 1983FREUD, Sigmund. 1983 [1901]. “Los Sueños” [Ünder den Traum], Los textos fundamentales del psicoanálisis. Barcelona, Ediciones Altaya: 113-168.: 164-166; Lévi-Strauss, 1985LÉVI-STRAUSS, Claude. 1985. “Totem et Tabu version jivaro”, In La potière jalouse. Paris, Plon/ Agora (Les idées, les Arts, les Sociétés)). No entanto, a etnografia revela que esta diferenciação tem pouca relevância para a análise comparativa do sonho indígena além de observar sua diversidade cultural (Tedlock, 1992 [1997]TEDLOCK, Barbara. 1992a [1987]. “Dreaming and dream research” In TEDLOCK, Barbara (ed), Dreaming. Anthropological and Psychological Interpretations. Cambridge, Cambridge University Press: 1-30), bem como confirmar o uso estratégico, e não canônico, de ambas formas de interpretação na vida cotidiana indígena (Descola, 1993DESCOLA, Philippe. 1993. “Headshrinkers versus shrinks: Jivaroan dream analysis”. Man, 24: 439-450.). De fato, a interpretação indígena dos eventos oníricos responde a uma “hermenêutica aberta” (Groarck, 2017: 53-57). Isto porque o sentido dos sonhos está sujeito às possibilidades de significado das interações sociais nas quais o sonhador e todos os seres do cosmos estão envolvidos durante o próprio sonho (Niño Vargas, 2007NIÑO VARGAS, Juan Camilo. 2007. Ooyoriyasa. Cosmología e interpretación onírica entre los ette del norte de Colombia. Bogotá, Universidad de los Andes/Ediciones Uniandes.:178; Shiratori, 2016SHIRATORI, Karen. 2013. O acontecimiento onírico ameríndio. O tempo desarticulado e as verdades possíveis. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro/PPGAS-Museu Nacional.:130-131).

Ou seja, na etnografia ameríndia, a separação entre a vida do sonho e a vida desperta é colocada em questão, assim como, e principalmente, a indagação sobre suas influências recíprocas que tem guiado até muito recentemente o debate antropológico sobre a vida onírica ameríndia. Da mesma forma, a análise do sonho indígena em termos de sua interpretação, literal ou metafórica, também é questionada (Shiratori, 2013SHIRATORI, Karen. 2013. O acontecimiento onírico ameríndio. O tempo desarticulado e as verdades possíveis. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro/PPGAS-Museu Nacional.:130). A esta altura de nossa análise, que outras perguntas podem ser feitas para orientar os estudos sobre o sonho ameríndio? Que outros caminhos para a análise da experiência onírica podem servir de fonte de inspiração para um exercício de etnografia comparativa?

Os estudos de etnologia indígena coincidem em assinalar dois aspectos inquestionavelmente definidores da experiência onírica ameríndia. Ambos se referem a sua dimensão comunicativa. Por um lado, a constatação de que sonhar é uma experiência de vida imprescindível. Por outro, a observação de que o ato de sonhar está subordinado a um processo de aprendizado que vai marcando os momentos do ciclo de vida de uma pessoa e autorizando os papéis sociais que ela irá desempenhar. Este aprendizado dos sonhos inclui tanto “aprender a sonhar bem” quanto aprender os diferentes gêneros narrativos e estilos vocais para socializar as experiências oníricas pessoais. Entre os pumé, por exemplo, as narrativas de eventos oníricos são comunicadas quer através de diferentes formatos de histórias, rimadas ou não, dependendo das situações sociais em que estas são narradas, quer através de cânticos durante o ritual do Tõhé (Orobitg, 1998OROBITG, Gemma. 1998. Les pumé et leurs rêves. Étude d’un groupe inden des Plaines du Venezuela. Amsterdam/ Paris, Éditions des Archives Contemporaines.) e das lamentações rituais das mulheres (Orobitg, 2015OROBITG, Gemma. 2015. “Lamento ritual de las mujeres pumé. Un ensayo sobre emotividad y política”. In GUTIÉRREZESTÉVEZ, Manuel & SURRALLÉS, Alexandre (eds.) Cultura y sentimiento.Etnografías amerindias. Madrid/ Frankfurt, Iberoamericana/Vervuert: 63-87.). Com efeito, cada tipo de interação onírica -com os espíritos criadores, com os donos da paisagem, das profundezas, com os brancos, com os outros pumé, com os animais, etc...também tem um gênero narrativo associado com o que é comunicado. Por exemplo, durante o ritual do Tõhé, os encontros com os espíritos criadores e seus vários avatares são explicados. Neste mesmo sentido, nos rituais de lamentação das mulheres pumé são contados os encontros com os espíritos da paisagem e com os brancos.

Uma aproximação ao sonho como uma ação comunicativa não é uma abordagem inovadora. Nos anos 80, Barbara Tedlock (1992a [1987]TEDLOCK, Barbara. 1992a [1987]. “Dreaming and dream research” In TEDLOCK, Barbara (ed), Dreaming. Anthropological and Psychological Interpretations. Cambridge, Cambridge University Press: 1-30: 30) desenvolveu uma proposta para a análise do sonho como sendo um “processo comunicativo dinâmico”. Seu objetivo era propor uma análise dos sonhos alternativa à psicologia analítica, baseada nos desenvolvimentos da antropologia da linguagem. Com esta finalidade, Tedlock deixou de lado os estudos sobre o simbolismo dos sonhos baseados na noção freudiana de trabalho de sonho (Descola, 1993DESCOLA, Philippe. 1993. “Headshrinkers versus shrinks: Jivaroan dream analysis”. Man, 24: 439-450.; Kuper, 1989 [1987]; Lévi-Strauss, 1985LÉVI-STRAUSS, Claude. 1985. “Totem et Tabu version jivaro”, In La potière jalouse. Paris, Plon/ Agora (Les idées, les Arts, les Sociétés)) e, em vez disso, avançou para uma análise da experiência onírica centrada nas formas de compartilhar sonhos, incluindo o estudo de gêneros discursivos e teorias ou códigos culturais para interpretação dos sonhos (Tedlock, 1992b [1987]TEDLOCK, Barbara. 1992b[1987]. “Zuñi and Quiché dream sharing and interpreting” In TEDLOCK, Barbara (ed), Dreaming. Anthropological and Psychological Interpretations. Cambridge, Cambridge University Press : 105-131.). Sua proposta é abordar o sonho como uma situação comunicativa, considerando acima tudo as interações dialógicas que ocorrem durante sua enunciação (Graham, 1995GRAHAM, Laura. 1995. Performing Dreams. Discourses of Immortality among the Xavante of Central Brasil. Austin, University of Texas Press.; Knab, 2004KNAB, Timohty J. 2004. The Dialogue of Earth and Sky. Dremas, Souls, Curing and the Mother Aztec Underworld. Tucson, The University of Arizona Press.; Tedlock, 1992a [1987]TEDLOCK, Barbara. 1992a [1987]. “Dreaming and dream research” In TEDLOCK, Barbara (ed), Dreaming. Anthropological and Psychological Interpretations. Cambridge, Cambridge University Press: 1-30:23). Também aplica este princípio à metodologia do trabalho de campo sobre os sonhos. Bicultural dreaming (Tedlock, 2007TEDLOCK, Barbara. 2007. “Bicultural Dreaming as an Intersubjective Communicative Process”. Dreaming, 17(2): 57-72.) é o método que representa o trabalho de campo como configuração de uma nova situação social que envolve a antropóloga à qual os indígenas explicam seus sonhos e que, em troca, lhes conta seus próprios sonhos. O objetivo desta metodologia é deixar para trás as coletâneas de sonhos e interpretações de material onírico que apenas permitem a elaboração de comparações etnográficas estatísticas. Em vez disso, propõe abordar o estudo da experiência onírica gerando um processo comunicativo e interpretativo intersubjetivo e dialógico, ou seja, uma prática onírica bicultural. Esta proposta representa a primeira tentativa de elaborar uma teoria antropológica e uma metodologia etnográfica para o estudo do sonho. Contudo, seu enfoque nas práticas comunicativas ligadas à ação de sonhar (dreaming) acaba desviando completamente o foco da análise do sonho como experiência de vida do sonhador e sua relação com as teorias locais sobre o sonhar, a vida e a morte.

A partir dos primeiros anos do século XXI, a virada ontológica da antropologia colocou mais uma vez o sonho em um lugar relevante para o estudo das culturas indígenas da América Latina. O argumento central destes trabalhos é que a dimensão comunicativa do sonho envolve a totalidade do cosmos. O ponto de partida é a redefinição do conceito de animismo. Este conceito é representado como uma ontologia na qual o intervalo natureza-cultura é composto por um complexo de relações sociais que ocorrem, de fato, entre humanos e não humanos por causa da humanidade original que ambos compartilham. De forma geral, o sonho é revelado como sendo a esfera da experiência onde a coabitação entre humanos e não humanos é mais visível (Bilhaut, 2011BILHAUT, Anne-Gaël. 2011. El sueño de los záparas. Patrimonio onírico de un pueblo de la Alta Amazonia. Quito, Abya Yala.:90; Vianna, 2016VIANNA, Joao Jackson Bezerra. 2016. “Notas cromáticas sobre os sonhos ameríndios: transformaçoes da pessoa e perspectiva”. Revista de Antropología (Sao Paulo), 59(3): 260-294.). As duas linhas de análise do sonho ameríndio associadas à virada ontológica explicam como este é um espaço-tempo onde a natureza humana dos seres é revelada, estando sempre ligada à sua corporeidade (Descola 2014DESCOLA, Philippe. 2014. “Modes of being and forms of predication”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 4(1): 271-280.; Viveiros de Castro, 2004VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo .2004) [1996]. “Perspectivismo y multinaturalismo en la América Indígena”. In SURRALLÉS, Alexandre & GARCÍA HIERRO, Pedro (ed.) Tierra Adentro: Territorio indígena y percepción del entorno. Copenhague, IWGIA: 37-80.). Neste sentido, durante a experiência onírica, por um lado, a classificação dos tipos de seres no cosmos se dá com base em critérios de identificação e diferenciação que levam em conta as qualidades e habilidades corporais que são reveladas nos eventos oníricos (Descola, 2005DESCOLA, Philippe. 2005. Par-delà Nature et Culture. Paris, Gallimard.). Por outro lado, durante o sonho é possível experimentar a diversidade de posições e perspectivas sobre o mundo, que também estão ligadas a qualidades corporais e sensíveis (Viveiros de Castro, 2004VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo .2004) [1996]. “Perspectivismo y multinaturalismo en la América Indígena”. In SURRALLÉS, Alexandre & GARCÍA HIERRO, Pedro (ed.) Tierra Adentro: Territorio indígena y percepción del entorno. Copenhague, IWGIA: 37-80.; Stolze Lima, 1996STOLZE LIMA, Tania. 1996. “Os dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”, Mana, 2 (2): 21-47.:28).

Por uma parte, a partir da noção de “formas de composição do mundo” (worlding), Anne-Gäel Bilhaut (2011BILHAUT, Anne-Gaël. 2011. El sueño de los záparas. Patrimonio onírico de un pueblo de la Alta Amazonia. Quito, Abya Yala.) elabora seu estudo sobre o patrimônio onírico dos záparas (Equador). Entre os záparas e de forma geral em todas as culturas indígenas, a coabitação entre humanos e não humanos é mais visível nos sonhos (Bilhaut, 2011BILHAUT, Anne-Gaël. 2011. El sueño de los záparas. Patrimonio onírico de un pueblo de la Alta Amazonia. Quito, Abya Yala.: 90). Esta coabitação onírica gera interações e diferentes formas de interlocução. Considerando ambos os aspectos, Bilhaut (2011BILHAUT, Anne-Gaël. 2011. El sueño de los záparas. Patrimonio onírico de un pueblo de la Alta Amazonia. Quito, Abya Yala.: 126) estabelece uma classificação dos interlocutores oníricos não humanos dos záparas. Seguindo essa mesma linha, minha etnografia sobre os pumé (Venezuela) é estruturada levando em consideração as relações com a diversidade de seres do cosmos que se produzem através do sonho e que os conectam em relações de continuidade e descontinuidade (Orobitg, 1998OROBITG, Gemma. 1998. Les pumé et leurs rêves. Étude d’un groupe inden des Plaines du Venezuela. Amsterdam/ Paris, Éditions des Archives Contemporaines.).

Por outra parte, com base na noção de perspectivismo ameríndio, João Vianna (2016VIANNA, Joao Jackson Bezerra. 2016. “Notas cromáticas sobre os sonhos ameríndios: transformaçoes da pessoa e perspectiva”. Revista de Antropología (Sao Paulo), 59(3): 260-294.: 268) discute como o sonho, entre os baniwa (Brasil), atua nos interstícios entre os diferentes mundos que compõem as cosmologias indígenas. Durante a experiência onírica, não apenas todas as entidades do cosmos revelam sua humanidade, mas também ocorrem transformações de perspectiva, ou seja, a possibilidade de adquirir temporariamente a perspectiva de outro tipo de ser. Em suma, a conclusão de Vianna é que o sonho nos permite experimentar uma diversidade de posições e perspectivas e, ao mesmo tempo, perceber a impossibilidade de confundi-las.

Desenvolvendo também a noção de perspectivismo ameríndio, Karen Shiratori (2013SHIRATORI, Karen. 2013. O acontecimiento onírico ameríndio. O tempo desarticulado e as verdades possíveis. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro/PPGAS-Museu Nacional.:130-131) focaliza seu trabalho comparativo no evento onírico ameríndio e, mais especificamente, na elucidação dos significados e consequências de sua interpretação. Ela argumenta que o trabalho indígena de interpretação dos sonhos é uma forma de alterar a ordem dos acontecimentos. O sonho envolve um deslocamento temporal -não é passado nem futuro-, ou seja, a possibilidade de mudar a ordem geral dos acontecimentos da vida do sonhador. Neste sentido, a experiência onírica ativa uma “temporalidade múltipla”. Camilo Niño Vargas (2007NIÑO VARGAS, Juan Camilo. 2007. Ooyoriyasa. Cosmología e interpretación onírica entre los ette del norte de Colombia. Bogotá, Universidad de los Andes/Ediciones Uniandes.:178-179) também focaliza seu estudo sobre o sonho dos etté (Colômbia) em elucidar o significado do trabalho de interpretação do evento onírico. Ele argumenta que se, de forma geral, nas culturas ameríndias o mundo é composto por duas partes complementares -o mundo “aqui” e “o outro lado” (Descola, 1993DESCOLA, Philippe. 1993. “Headshrinkers versus shrinks: Jivaroan dream analysis”. Man, 24: 439-450.; Gallinier, 1997; Perrin, 1992PERRIN, Michel. 1992. Los practicantes del sueño. El chamanismos wayuu. Caracas, Monte Ávila Editores.; Orobitg, 1998OROBITG, Gemma. 1998. Les pumé et leurs rêves. Étude d’un groupe inden des Plaines du Venezuela. Amsterdam/ Paris, Éditions des Archives Contemporaines.; Pitarch, 1996PITARCH, Pedro. 1996. Ch’ulel: Una etnografía de las almas tzeltales. México, Fondo de Cultura Económica.), a experiência onírica liga essas duas ordens que se relacionam entre si. Por outras palavras, Niño Vargas argumenta que a interpretação dos sonhos visa fornecer uma solução para a aparente falta de coincidência entre as diferentes perspectivas a partir das quais o universo pode ser assimilado, e que são acessíveis através da experiência onírica. É precisamente, conclui ele, porque estas múltiplas formas de assimilar a realidade estão ligadas entre si que o sonho pode ser interpretado através de um entrelaçamento de pontos de vista. Danilo Paiva (2018PAIVA, Danilo. 2018. “A camino da Cidade das Onças: diálogos sobre sonhos no percurso para a Serra GrandeMetrópole dos Hupd’äh”, Revista de Antropologia (Sao Paulo), 60(1): 329-359.) também desenvolve este argumento da vida onírica, como um deslocamento temporal e espacial da pessoa, bem como um conector de uma multiplicidade de mundos e temporalidades. Neste caso, o autor analisa as narrativas dos sonhos dos hupd’äh como trânsitos cosmológicos que se entrelaçam narrativamente com viagens através do território indígena. Ele explica que estas conversas sobre os sonhos são formas de atuação cruciais para a sociabilidade dos hupd’äh. Esta última é entendida como um sistema de transformações no qual coexistem imagens míticas, oníricas e históricas. Neste sentido, o sonho revela uma multiplicidade de mundos cujos limites são ultrapassados pelo sonhador. Assim sendo, são estabelecidos diálogos transespecíficos que constituem a base da sociabilidade indígena (:331-332).

Estas propostas para o estudo do sonho, baseadas em noções-chave da virada ontológica, fornecem argumentos sólidos para a elaboração de uma teoria antropológica do sonho baseada na experiência e no conhecimento onírico dos indígenas. Estes trabalhos permitem aprofundar nossa compreensão sobre o lugar ontológico do sonho nas culturas ameríndias: conectando e transmutando tempos, espaços e perspectivas. Porém, tais estudos não se questionam precisamente sobre o que é o sonho; o que significa sonhar? Em outras palavras, a etnografia ameríndia discutiu a universalidade do trabalho de interpretação dos sonhos e demonstrou que a experiência onírica é uma forma de atuação sobre o mundo, mas a universalidade da própria experiência do sonhar ainda não foi questionada.

Notas sobre a etnografia pumé: O que significa sonhar? O que é o sonho?

Entre 1990 e 1993, realizei meu primeiro trabalho de campo com o povo indígena pumé da comunidade de Riecito. Naquele momento, meu objetivo era analisar as representações que os pumé faziam da doença. Na verdade, minha pesquisa fazia parte de um projeto interdisciplinar que visava definir um programa de cuidados primários de saúde adaptado às particularidades deste grupo indígena. Desde os primeiros dias na comunidade, acompanhando a equipe médica do projeto, comecei a questionar os pumé sobre as doenças, suas causas e formas de curá-las. Os resultados das minhas entrevistas foram tão desanimadores quanto os que os médicos obtiveram quando tentaram completar, sem sucesso, os históricos médicos de cada um dos pumé que visitou o posto de saúde. Concluí, depois de alguns dias, que os pumé não gostavam de falar de doença. Mas descobri mais tarde que isto não era bem assim. O que aconteceu foi que, nessas primeiras semanas, eu não tinha feito as perguntas certas. Quero salientar este fato porque um dia fiz a pergunta que me abriu as portas para obter longas explicações sobre a doença...

Já fazia quase duas semanas que eu tinha chegado a Riecito. Com muita frequência -três ou quatro vezes por semana-, eles tinham realizado a cerimônia do Tõhé. Desde o pôr do sol até o amanhecer, até aquele momento em que os primeiros raios de sol desenham a linha do horizonte, eles tinham entoado os cânticos do Tõhé. Homens e mulheres adultos, jovens e crianças participam da cerimônia. Durante a noite inteira, em completa escuridão, ou iluminados pela fraca luz do luar, eles repetem em coro as melodias improvisadas pelos homens adultos que participam da cerimônia. Naqueles anos, o Tõhé ainda era um ritual no qual só os homens cantavam como solistas2 2 Nos primeiros anos do século XXI, algumas mulheres começaram a participar como solistas deste ritual que, desde os primeiros documentos do século XVIII em que é mencionado, vinha sendo realizado exclusivamente por homens. Descrevi e analisei estas transformações em vários textos (Orobitg, 2005; 2021). . É sempre um homem adulto que lidera a cerimônia. Ele é assistido na entoação do cântico por sua esposa -que acenderá seus charutos (karamba) durante toda a noite -e outro homem adultoque o substituirá, quando necessário-. Ele dirige a cerimônia organizando ciclos de cânticos entre todos os homens participantes que vão se revezando. No final da noite, todos terão cantado como solistas pelo menos uma vez.

A partir das leituras que fiz antes de iniciar meu trabalho de campo, cheguei a Riecito com a ideia de que o Tõhé era basicamente uma cerimônia de cura. Os pumé me confirmaram isto logo nos primeiros dias de minha estadia: no Tõhé, os doentes eram curados. Porém, naquelas primeiras semanas de trabalho de campo, fiquei impressionada com a assiduidade com que o ritual era realizado. Então decidí conversar com César Díaz. Ele era, me disseram em Riecito, aquele que mais sabia sobre o Tõhé. Era um tõhe noamé haveca, ou seja, aquele que “canta melhor”, aquele que “sonha melhor”, porque tem um grande conhecimento das terras dos espíritos do “Mais além” e pode se comunicar com eles sem a necessidade de intermediários. Por sua vez, os espíritos podem possuir seu corpo durante o ritual e falar diretamente com os pumé. A seguir, apresento um momento de nossa conversa que foi minha iniciação no aprendizado da vida diária necessária para o sonho e o Tõhé:

Antropóloga: Don César, há muita gente doente hoje em dia? Don César: Não, não há ninguém doente na aldeia.

Antropóloga: Então, por que estão cantando? Don César: Cantamos para viver […]

Foi somente após alguns anos de convivência com os pumé que entendi o significado completo desta explicação: “Cantamos para viver”. Lembro-me de que anotei esta frase no meu diário de trabalho de campo pensando que não chegava a entendê-la totalmente; mas a escrevi mesmo assim. O que ficou claro para mim naquele momento foi que Don César estava me indicando a centralidade que a cerimônia do Tõhé tem para o povo pumé. Na realidade, como descobri mais tarde, durante o Tõhé, não só os doentes são curados, mas os conflitos, problemas e questões da vida cotidiana são resolvidos. Este papel ativo do ritual na organização da vida social é ainda mais significativo quando é o tõhenoamé haveca (“aquele que canta e sonha melhor”) que dirige a cerimônia.

Depois desta conversa com Don César Díaz, comecei a perguntar aos homens adultos de Riecito como eles tinham aprendido a cantar o Tõhé. Foi quando, pela primeira vez, recebi longas explicações sobre a doença. Minhas perguntas sobre o Tõhé foram conduzindo meus interlocutores para um tipo de narrações que reuniam, em uma única história, a sucessão temporal do ciclo de vida e as experiências vividas “Aqui”-nas terras pumé-e no “Mais além” -nas terras dos espíritos ou territórios do sonho3 3 Estas expressões para denominar as duas dimensões da experiência são a tradução das expressões que os pumé comumente utilizam para se referir a elas: pumé dabú (literalmente a “terra dos pumé”) e oté dabú (a “terra dos deuses”) ou hadikharean dabú (“a terra dos sonhos”). Respectivamente, tal como os pumé costumam sintetizar em suas conversas: “Aqui” e “Mais além”. -.

O começo de todas as histórias de vida de homens adultos pumé é sempre o mesmo. Ela se concentra na infância e na descrição de uma primeira doença grave: “...quando eu era pequeno fiquei muito doente; morri por uns momentos”. A sequência da narrativa continua invariavelmente com a explicação de outra doença grave que foi vivida durante a juventude. É uma experiência de doença que marca a transição para a vida adulta: “...eu era ainda muito jovem e não conseguia comer ou beber, também não conseguia falar. Quase morri, e fiquei desse jeito durante três meses...”. E a descrição desta doença iniciática continua nestes termos: “...estava doente e então sonhei que os espíritos criadores me disseram que eu tinha ficado doente para que pudesse conhecer melhor suas terras e que, quando eu voltasse, eu deveria cantar o Tõhé”. E o narrador invariavelmente explicava em relação a sua doença: “...eu estava doente “Aqui”; mas no “Mais além” eu estava muito bem, comia muito enquanto me ensinavam a cantar o Tõhé...”4 4 Estes trechos são uma síntese abrangente, utilizando os termos mais recorrentes, das mais de trinta histórias de vida de homens adultos que coletei entre 1990 e 1992. .

Conhecer melhor as terras do “Mais além” e aprender a cantar o Tõhé. Isto é o que se pode esperar dessa grave doença que marca a passagem para a vida adulta. Basicamente do que se trata é de conhecer esses espíritos do “Mais além”, dos oté e dos tió5 5 Os pumé estabelecem uma hierarquia de espíritos. Em primeiro lugar estão os oté, os deuses criadores, seguidos por seus avatares, em uma cosmologia que é constantemente atualizada através dos sonhos. Depois estão os tió, os espíritos intermediários entre os oté e os pumé. , e, principalmente, aprender a escutá-los e saber como se comportar durante a passagem da alma através dos diferentes espaços do cosmos. Segundo as explicações que os pumé me deram, são esses espíritos, que se situam sobre suas cabeças, que ditam as “palavras do cântico” para o cantor. Mais tarde, e ao longo de toda a vida adulta, esse conhecimento e aprendizado é aprofundado através do sonho e do cântico, experiências que, como a doença, envolvem uma viagem da alma (pumethó). É interessante notar que a narração da viagem, que permite a relação com os espíritos criadores e seus avatares (oté), com os espíritos secundários (tió) e com todos os seres que povoam o cosmos, é elaborada como uma história única que integra toda a experiência de vida do indivíduo. Em outras palavras, cada nova viagem da alma (pumethó), seja durante o sono, doença ou cântico, resulta em novas descobertas de terras e seres, bem como em novas relações nas terras do “Mais além”.

Ilustração 1
Desenho realizado por um jovem cantor pumé em que retrata o Tõhé. No canto superior esquerdo, pode ser vista a simultaneidade entre o “Aqui” e o “Mais além” durante a celebração do ritual. Os espíritos superiores (oté) cantam no “Mais além”, mas também observam os pumé que cantam “Aqui”. O cântico dos espíritos chega aos cantores através da cruz do cântico que é colocada no centro do espaço ritual. Também representados no desenho estão os espíritos secundários (tió) que cantam sobre a cabeça dos cantores. São as figuras menores situadas acima das figuras maiores com maracas.

Os relatos dos homens adultos de Riecito sobre como aprenderam o cântico do Tõhé evocaramduas questões centraisparaminhapesquisa.Em primeiro lugar,arelação entre a doença e o sonho: “Fiquei doente e sonhei []”. Em segundo lugar, a relação entre o sonho e o acesso ao conhecimento do significado profundo dos acontecimentos. No caso destes relatos de iniciação ao cântico, a explicação da doença era recebida através do sonho: “Fiquei doente e sonhei que tinha adoecido porque []”. Foi então que comecei a perguntar sobre a doença através do sonho. Perguntei: “O que você sonha que tem? Você já teve algum sonho sobre a doença de sua esposa? Alguém na casa já sonhou alguma coisa para saber sobre a doença? O que os espíritos (oté) dizem que você tem? Estas eram as perguntas que meus interlocutores aguardavam para poder compor uma história sobre a doença e suas causas. Na verdade, são exatamente estas perguntas, como me disse Don César, que os curandeiros pumé perguntam a seus pacientes.

Quanto mais meu trabalho de campo ia avançando, mais se tornava necessário deixar de lado minhas próprias idéias sobre sonhar para entender esta dimensão da experiência pumé.

Ilustração 2
Don César me acompanhando “como um mestre” em algumas das entrevistas que realizei durante o trabalho de campo. Comunidade de Riecito, julho de 1992.

O complexo onírico: dormir, cantar, adoecer

Quando os pumé falam em espanhol utilizam três palavras pumé para se referir a “sonho”: handikhia, kanëhe e handivagá. As três envolvem a comunicação entre os pumé e o conjunto de todos os seres do cosmos. Estas três palavras, através de suas ligações semânticas -principalmente por simetria e analogiacompletam a noção pumé de “sonho”. Por um lado, consideram os diferentes contextos nos quais pode se dar a comunicação: “Aqui” (kanëhe e handivagá) e “Mais além” (handikhia). Por outro lado, incluem as diferentes ações que podem desencadear viagens da alma e, neste sentido, “encontros” e “reencontros” com uma ampla diversidade de seres. Estas ações são: dormir, adoecer, cantar ou “ter uma visão” com a ingestão de substâncias psicotrópicas. Da mesma forma, de acordo com a percepção indígena, o sonho é uma experiência que se aproxima do estado de quase-morte. A única diferença é que, no sonho, a alma retorna depois de vagar pela diversidade de mundos que compõe o cosmos. É como se fosse uma morte transitória. Por este motivo, o sonho é considerado uma experiência perigosa (Orobitg, 2017OROBITG, Gemma. 2017. “Los laberintos del sueño. Nuevas posibles vías para una antropología del sueño amerindio”. Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades , 9: 9-20.: 15). Para os pumé, este argumento dá legitimidade a tudo o que é conhecido e acontece nos sonhos.

O diagrama abaixo representa como uma pessoa pumé percebe certas experiências ligadas à vida onírica.

Ilustração 3
Complexo onírico: relações de significado entre os termos kanëhe, handikhia e handivagá

O aspecto mais relevante disso é que, do ponto de vista da fenomenologia da percepção pumé, ações aparentemente diferentes, como dormir, estar doente ou cantar, acabam se tornando experiências idênticas. Em outras palavras, todas essas ações convergem fenomenologicamente em uma única experiência. Ou seja, todas envolvem uma viagem de ida e volta da alma (pumethó) entre as terras do pumé e os diferentes espaços do cosmos, “Aqui” e “Mais além”.

Em resumo, o “sonho” pumé é apresentado como um complexo de ações que abrangem diferentes estados de consciência -vida desperta, vida semi-desperta e sonhoque permitem o acesso a todos os domínios do cosmos ou, pelo menos, vislumbres deles e, em muitas ocasiões, a comunicação com os outros seres que habitam essas diferentes esferas. No “Aqui”, mais especificamente, a alma da pessoa descobre os domínios e interage com os espíritos da paisagem e das profundezas. Da mesma forma, durante o sonho, a doença ou os cânticos, a alma transita pelas terras do “Mais além”, e acessa as terras dos espíritos criadores e seus avatares (oté), dos espíritos secundários (tió), dos donos dos animais, dos espíritos relacionados com o mundo branco e com a terra dos mortos. A alma da pessoa interage durante a experiência onírica com todos esses seres, ou simplesmente constata a impossibilidade de interagir. As relações ou oposições, únicas e originais, estabelecidas pela pessoa irão marcar sua identidade como indivíduo e seu futuro dentro da sociedade pumé. Por sua vez, os outros seres do cosmos também perpetuam sua identidade nessas interações, bem ou malsucedidas, que acontecem durante os encontros das almas. Essas perambulações da alma são inerentes à própria definição de pessoa. Essencialmente, essas viagens representam o princípio da vitalidade de qualquer tipo de ser-pessoa (Orobitg, 2016OROBITG, Gemma. 2016. “A vida dos maracás: reflexões em torno de um instrumento ritual entre os Pumé da Venezuela”. Revista de Antropologia (São Paulo), 59(1): 180-200.).

EXPERIÊNCIAS INTRANSITIVAS: ATUALIZAÇÕES COSMOLÓGICAS

Nesta seção apresento alguns fragmentos dispersos de etnografias ameríndias que fornecem novos argumentos para a consideração do sonho indígena como um estado ontológico. Estes trabalhos destacam como o sonho escapa ao controle do sonhador, o qual sonha sonhos enviados por outros seres. Nas etnografias da Mesoamérica e dos Andes, esses agentes dos sonhos são os deuses, santos ou demiurgos. No caso dos povos indígenas das terras baixas da América do Sul, todos os seres do cosmos estão envolvidos nesta dinâmica de fazer sonhar, ou seja, de provocar sonhos em outros seres. Esta abertura onírica à alteridade é apresentada como sendo a base da existência entendida como a recriação permanente das relações entre todos os seres do cosmos.

A etnografia ameríndia revela que, nas mitologias indígenas, os espíritos criaram o mundo sonhando (Bastide, 1972BASTIDE, Roger. 1972. “Rêve et culture” In Le rêve, la transe et la folie. Paris, Flammarion.: 44; Devereux, 1966DEVEREUX, Georges. 1966. “Rêves pathogènes dans les sociétés non-occidentales” In Essais d’Ethnopsychiatrie générale. Paris, Gallimard .: 326-327; Orobitg, 2021OROBITG, Gemma. 2021. “Sangre y lógica del don entre los indígenas pumé de Venezuela. Un modelo femenino del cosmos”, Tabula Rasa (Bogotá), 36: 223-245.: 238-240; Pitarch, 2017PITARCH, Pedro. 2017. “Tu nos has soñado. Notas sobre el sueño en los cantos chamánicos tzeltales”, Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades , 9: 21-42.). Mas, acima de tudo, elucida que o sonho é sempre mandado ou provocado por outros seres, humanos e não-humanos. Por exemplo, entre os záparas da Amazônia equatoriana, os interlocutores oníricos são entidades que fazem os seres sonhar (Bilhaut, 2011BILHAUT, Anne-Gaël. 2011. El sueño de los záparas. Patrimonio onírico de un pueblo de la Alta Amazonia. Quito, Abya Yala.: 105). Entre os yukpa do norte da Colômbia, os sonhos são desencadeados por outros seres do cosmos que provocam encontros oníricos para realizar vingança ou para orientar positivamente, entre outros, a resolução de problemas de saúde em que também estão envolvidos (Goletz, 2020GOLETZ, Anne. 2020. “Recibiendo el canto del armadillo: transmisión onírica de saberes entre un armadillo y una mujer sabia de Sokorpa, territorio yukpa al norte de Colombia”, Tabula Rasa, 6: 267-292.: 283). Nas comunidades quéchua de Ayacucho (Peru), a pessoa não sonha, mas é sonhada por santos (Torres, 2017TORRES LEZAMA, Vicente. 2017. “Santos y vírgenes entre sueños. Relatos oníricos de peregrinos y devotos del sur andino”. Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades , 9: 117-146.) ou por espíritos da natureza que a envolvem e aprisionam no sonho (Cecconi, 2021CECCONI, Arianna. 2012. I sogni vengono da fuori. Esplorazioni sulla notte nelle Ande Peruviane. Firenze, Ed.it., 2017CECCONI, Arianna. 2017. “Todas estas montañas nos hablan. Apariciones, engaños y sueños de las mujeres en los Andes peruanos”. Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades, 19: 87-116.). Da mesma forma, para os tzeltal da zona de Altos de Chiapas (México), os sonhos da pessoa indígena são o resultado dos sonhos dos deuses. (Pitarch, 2017PITARCH, Pedro. 2017. “Tu nos has soñado. Notas sobre el sueño en los cantos chamánicos tzeltales”, Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades , 9: 21-42.: 24). Entre os wayuu de La Guajira na fronteira colombo-venezuelana, os sonhos são sempre enviados por um espírito, Lapü (Paz Reverol, 2017PAZ REVEROL, Carmen Laura. 2017. “Hacer los sueños. Una perspectiva wayuu”. Entre Diversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades , 9: 277-287.).

Esta dimensão intransitiva do sonho quase não foi analisada nas etnografias sobre o sonho ameríndio. Neste sentido, o sonho é representado como um estado de ser que não apenas conecta o mundo do “Aqui” e do “Mais além”, mas também garante a existência de todos os seres do cosmos que recriam e atualizam suas relações na esfera cosmológica ao sonharem sonhos provocados pelos outros.

Notas sobre etnografia pumé: sonhar os sonhos dos outros e encontros oníricos

O episódio que irei narrar agora ocorreu durante minha terceira estadia na comunidade de Riecito. Já fazia um ano que eu tinha iniciado meu trabalho de campo. Uma noite, deitada em uma rede durante o Tõhé, tive um sonho estranho. Eu estava andando pela pista de pouso de Riecito. Quando cheguei ao fim da pista, encontrei um precipício. Pulei. Apareci então no meio de uma cidade. De repente, percebi que alguma coisa estava errada: não conseguia me ouvir o que eu falava. Continuei a caminhar. Encontrei pessoas. Conversei com todas sem ter certeza de que elas podiam me ouvir. Em meu sonho, retornei ao Tõhé e expliquei o que estava acontecendo comigo. Então, um grupo de pessoas pumé foi dançando comigo até o fim da pista de pouso -que realmente existe na comunidade-. Eu os avisei para não que pulassem. No meio da pista, peguei um elevador que descia para as profundezas da terra. Lá havia uma sala onde estavam uns médicos chineses vestidos com aventais brancos. Eles estavam olhando para as telas de uns monitores e me disseram que minha doença era grave, mas que podiam me curar. De repente, acordei. No “Aqui”, o ritual já estava terminando. Minha primeira reação foi achar estranho o que eu tinha acabado de sonhar. Devo admitir que este sonho não teria tido nenhuma importância se alguns adultos pumé não tivessem feito uma interpretação para mim.

A primeira pessoa para quem eu contei meu sonho foi Don César. Ele ouviu atentamente a minha narração, sem me interromper. Quando terminei, ele me disse, eu tinha sonhado bem:

“... Este sonho foi muito bom. Os santos sabem que você está nos conhecendo “Aqui” e vieram ao seu encontro para que também possa nos conhecer no “Mais além”. Você, com certeza, ficou assustada. Quando eu era menino pequeno e eles me fizeram sonhar, a primeira vez que estive no “Mais além”, também fiquei com medo...”.6 6 César Díaz, Riecito, 20/5/1992

A partir daquele momento, as pessoas da comunidade falavam que eu sonhava bem. Além disso, este sonho desencadeou uma série de sonhos, sonhados por alguns membros da comunidade, sobre meu processo de aprendizagem. Este primeiro sonho bom também estava relacionado com uma doença, que vivi algumas semanas depois, e que, para os pumé, confirmou que os espíritos do “Mais além” também estavam tomando conta do meu aprendizado, causando estes sonhos. Don César reiterou que eu não deveria ter medo. Que era assim mesmo que os pumé aprendiam e viviam. Ele respondia minhas perguntas em detalhes. Você já está aprendendo como os pumé!

Jorge R. García, comquemeuestavaaprendendoalínguapumé, medeualgumas explicações adicionais para me fazer entender porque eu tinha sonhado bem; porque eu tinha conseguido resolver corretamente as situações do sonho que os santos me tinham feito sonhar. Algo que ele atribuiu a seus ensinamentos e, acima de tudo, aos de Don César. Estas são as palavras de Jorge:

“Este é o santo das águas profundas. Como você trabalha com Don César, que é um velho músico, e comigo, que sou seu primeiro assistente, ele mandou buscar sua alma para que você conheça bem os pumé. Eu também tive medo na primeira vez em que estive nas terras do “Mais além”. Logo você não sentirá mais medo. Se você tivesse ficado assustada, teria ficado doente.

É assim mesmo que os pumé aprendem a cantar. Foi para ver se você era medrosa... No dia em que você ficar doente, pense no que estou lhe dizendo, para que possa aprender com seu sonho. Ainda bem que você pegou este elevador, senão teria ficado assustada.

Os redemoinhos que se formam no rio é a brisa dos santos, dos donos das profundezas. Como nós costumamos dizer: Que brisa boa! Isto não é água. A gente aprende tudo isso com a própria alma. Nossos santos fizeram você sonhar para que tivesse certeza de que cantamos bem e com muita profundidade. Você é uma pessoa boa com a gente; é por isso que nada lhe aconteceu. Pode continuar a trabalhar em paz [...]. Já sonhou com o planeta onde você irá aprender. Você fala comigo todos os dias e com os outros pumé... é por isso que eles fizeram você sonhar”.7 7 Jorge R. García, Riecito, 20/5/1992

A dimensão intransitiva do sonho -”eles fizeram com que você sonhasse...”e o acesso a diferentes perspectivas -”os redemoinhos que se formam no rio é a brisa dos santos... A gente aprende tudo isso com a própria alma...”-, foram fatos que passaram despercebidos para mim naquele momento. Eu estava mais preocupada em tentar justificar e dar um significado ao fato de que meus sonhos poderiam representar uma área singular da cultura pumé.

Também esquecida em meus cadernos de trabalho de campo ficou toda uma série de sonhos de Don César, Jorge R. García e outros pumés nos quais eles viajavam para minha casa. Nos primeiros sonhos que me contaram, a situação, ao chegarem em minhas terras, era confusa. Em seus sonhos posteriores, eles conheceram meus parentes, os quais lhes disseram que estavam esperando por eles, e que sempre os recebiam muito bem oferecendo refrescos e comida. Logo minha terra passou a ser conhecida e muitas vezes percorrida por eles.

Este foi o primeiro sonho de Don César:

“Pegamos um avião para chegar em sua casa. Você não estava lá. Um policial nos disse que você não ia demorar em chegar. Ficamos esperando por muito tempo, mas você não chegava. Então decidimos ir procurá-la. Caminhamos muito. Nós encontramos você sentada debaixo de uma árvore. Parecia que não nos conhecia. Mas finalmente nos reconheceu. Fomos tomar um refresco e depois passear por suas terras”.8 8 César Díaz, Riecito, 1/10/1991

Ao contrário deste primeiro sonho, nos sonhos seguintes, eu sim estava esperando por eles. Muitas vezes, chegavam em minhas terras dizendo que eu os tinha mandado chamar. No sonho que narro abaixo, Jorge R. García demonstra sua familiaridade com o que foi descrito como “minhas terras e meus parentes”:

“Eu sonhei com a casa onde você mora. Eu cheguei e você estava com seu povo. Você estava feliz. Comi bem. Antes de chegar, sonhei que você chegava distribuindo doces e biscoitos para as crianças e eu disse a Don César: A Gemita está chegando!”9 9 Jorge R. García, Riecito, 30/05/1992

Meu trabalho de campo em Riecito também fez com que alguns espíritos fizessem os pumé sonhar para se interessar pelo que eu estava fazendo e autorizar minhas atividades. Os sonhos seguintes foram contados para mim no início de minha estadia em Riecito. Don César foi o primeiro a me falar sobre este tipo de encontros oníricos. Isto foi quase um ano antes de eu ter sonhado bem. Don César sonhou durante o dia. O sonho foi mandado a ele por um espírito que tinha a aparência de um homem branco que ele não conseguia identificar claramente. Esta é a narração do sonho:

“Ontem eu estava sonhando durante o dia.

Don César: Eu estou aqui para ajudar. É o meu corpo. Não é nenhum santo que está ajudando.

Um homem loiro grandalhão me disse: Olhe irmão, se você for dar o vídeo da gravação para a garota, eu tenho que ficar sabendo.

Don César: Sim, eu vou dar sim, se vocês me permitem.

Por isso eu disse a ela que poderia gravar. Já que ela tem a permissão dos santos para gravar também. Eu ouvi muito bem o que vocês disseram...” 10 10 César Díaz, Riecito, 1/10/1991

O sonho seguinte me foi contado por Jorge R. García algumas semanas após meu primeiro sonho bom. Em sua narração, surge novamente a idéia do sonho como sendo uma experiência provocada por outros seres e também um espaço-tempo de interação e a atualização das relações e das paisagens cosmológicas. Este é o sonho:

“Santo: Esta mulher é boa?

Jorge: Sim, ela muito boa e vai ser minha comadre. Quero que ela aprenda rápido. Santo: Sim, nós sorrimos enquanto a ouvimos falar...

Isso é bom. Não a assustem com sonhos bobos! (Isso foi dito pelo santo aos outros santos).

Pelo menos, aqui estamos nós trabalhando e eles estão nos ouvindo como se fosse por um cabo, por um telefone...”. 11 11 Jorge R. García, Riecito, 03/06/1992

De qualquer forma, para além de serem narrações interessantes, estes sonhos revelam como os pumé, praticando estes sonhos em mim, me transformaram em uma pessoa pumé. Ou seja, alguém que sabe praticar, sem medo, os sonhos provocados pelos outros. E também alguém que sabe provocar sonhos em outras pessoas. Eu sempre fui para eles alguém que pertencia a outra esfera do cosmos.12 12 Na comunidade, eles estavam sempre muito interessados em ouvir sobre minha longa viagem de avião e outros meios de transporte até Riecito. Eles gostavam que eu lhes explicasse como eram as terras de onde eu vim, se meu povo também morria, o que comíamos, que animais existiam... Don César me pediu para levar a palavra pumé às minhas terras. Ele estava interessado em saber o que meu povo diria sobre eles, como eles as receberiam. Aprendi a língua, aprendi a sonhar; mas minha presença e suas conversas comigo só faziam sentido por causa de quem eu era, uma nivé (não indígena, outro tipo de pessoa, branco). Eu nunca deixei de ser isso, embora eles se referissem a mim como ibean nivé, isto é, “a nossa branca”. . Minha presença ampliou os limites do espaço-tempo onírico deles. Na verdade, como me explicou Don César, este foi o principal significado para eles de minha estadia na comunidade.

Ilustração 4
Este é um desenho da série que César Díaz fez para me explicar a composição do cosmos. É uma representação da simultaneidade dos mundos e da necessidade imperativa de viajar entre eles, por mais perigosas que estas viagens possam ser. Fios de energia, rádios, aviões e helicópteros aparecem amplamente no desenho como conectores entre os diferentes domínios.

SER SONHADO PARA SONHAR: UMA CONCLUSÃO

O sonho entendido como uma viagem da alma é a experiência individual do sonhador. No entanto, à luz dos estudos etnográficos sobre o sonho ameríndio, esta afirmação deve ser contextualizada. Muitas vezes, o sonhador indígena afirma ter muito pouco controle sobre a parte de sua pessoa que é a protagonista dos eventos oníricos. A experiência onírica dos indígenas, argumenta Shiratori, aponta essencialmente para o futuro (Shiratori, 2016SHIRATORI, Karen. 2013. O acontecimiento onírico ameríndio. O tempo desarticulado e as verdades possíveis. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro/PPGAS-Museu Nacional.:37). Como exemplo, a ideia pumé da pluralidade de almas (pumethó) que animam e se identificam com o corpo-envoltório, sobre o qual o indivíduo parece não ter nenhum controle, envolve colocar a alteridade no centro da definição de pessoa (Orobitg, 1998OROBITG, Gemma. 1998. Les pumé et leurs rêves. Étude d’un groupe inden des Plaines du Venezuela. Amsterdam/ Paris, Éditions des Archives Contemporaines.:126). Além disso, como mencionei anteriormente, a diversidade de ações e estados de consciência que compõem o complexo onírico coloca a experiência da alteridade no centro da existência dos pumé. Coincido com Danilo Paiva (2018PAIVA, Danilo. 2018. “A camino da Cidade das Onças: diálogos sobre sonhos no percurso para a Serra GrandeMetrópole dos Hupd’äh”, Revista de Antropologia (Sao Paulo), 60(1): 329-359.: 331), em sua análise das narrativas oníricas dos hupd’hä, quando ele interpreta as interações oníricas em termos de predação ontológica. Ou seja, dar forma aos mecanismos que constituem a sociedade indígena a partir do que está fora dela. Para os pumé, este princípio estrutura a própria definição do que significa ser uma pessoa, bem como a sociabilidade. É um esquema que se aplica, sem exceção, a todos os seres do cosmos e estrutura a sociabilidade em todas as esferas cosmológicas.

Um evento curioso que se passou durante meu trabalho de campo pode ser ilustrativo dessa simetria generalizada que é ativada através do sonho. Uma noite, durante o ritual do Tõhé, algumas crianças me convidaram para acompanhá-las ao centro da pista de pouso que organiza o espaço da comunidade de Riecito: de um lado, as casas dos pumé, do outro lado, as instalações do Centro de Assistência Indígena do governo venezuelano e o rio Riecito. Então me pediram para que eu escutasse o cântico do Tõhé, ou seja, o canto de um homem adulto e o dos assistentes repetindo em coro as estrofes rimadas. Imediatamente, me fizeram ouvir o mesmo cântico ritual vindo, como um eco, da margem do rio, do outro lado da pista de pouso. “Ouça... São os espíritos que também estão cantando! Obtive então provas diretas do que homens adultos já tinham me dito! De fato, explicaram que, durante o ritual, os pumé estão cantando “Aqui” enquanto os espíritos criadores e seus avatares (oté) estão cantando no “Mais além”. Em outras palavras, os pumé celebram o ritual “Aqui” provocando o sonho dos espíritos do “Mais além”, e vice-versa. Não se trata apenas de duas dimensões da existência que estão ligadas através da viagem onírica uma da outra. A afirmação “cantamos para viver” torna-se mais significativa com esta imagem de experiência ritual -uma ação constitutiva do complexo oníricoque revela que a base da existência de todos os seres deve ser sonhada pelos outros. Isto significa, por um lado, aprender a provocar sonhos nos outros e, por outro lado, saber como praticar os sonhos, muitas vezes inesperados, que outros seres nos fazem sonhar.

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  • 1
    Esta frase é uma reelaboração, a partir da etnografia indígena, da afirmação de Sigmund Freud (1983FREUD, Sigmund. 1983 [1901]. “Los Sueños” [Ünder den Traum], Los textos fundamentales del psicoanálisis. Barcelona, Ediciones Altaya: 113-168.) [1901] de que “o sonho é o guardião do sono, não seu perturbador...”.
  • 2
    Nos primeiros anos do século XXI, algumas mulheres começaram a participar como solistas deste ritual que, desde os primeiros documentos do século XVIII em que é mencionado, vinha sendo realizado exclusivamente por homens. Descrevi e analisei estas transformações em vários textos (Orobitg, 2005; 2021OROBITG, Gemma. 2021. “Sangre y lógica del don entre los indígenas pumé de Venezuela. Un modelo femenino del cosmos”, Tabula Rasa (Bogotá), 36: 223-245.).
  • 3
    Estas expressões para denominar as duas dimensões da experiência são a tradução das expressões que os pumé comumente utilizam para se referir a elas: pumé dabú (literalmente a “terra dos pumé”) e oté dabú (a “terra dos deuses”) ou hadikharean dabú (“a terra dos sonhos”). Respectivamente, tal como os pumé costumam sintetizar em suas conversas: “Aqui” e “Mais além”.
  • 4
    Estes trechos são uma síntese abrangente, utilizando os termos mais recorrentes, das mais de trinta histórias de vida de homens adultos que coletei entre 1990 e 1992.
  • 5
    Os pumé estabelecem uma hierarquia de espíritos. Em primeiro lugar estão os oté, os deuses criadores, seguidos por seus avatares, em uma cosmologia que é constantemente atualizada através dos sonhos. Depois estão os tió, os espíritos intermediários entre os oté e os pumé.
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    César Díaz, Riecito, 20/5/1992
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    Jorge R. García, Riecito, 20/5/1992
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    César Díaz, Riecito, 1/10/1991
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    Jorge R. García, Riecito, 30/05/1992
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    César Díaz, Riecito, 1/10/1991
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    Jorge R. García, Riecito, 03/06/1992
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    Na comunidade, eles estavam sempre muito interessados em ouvir sobre minha longa viagem de avião e outros meios de transporte até Riecito. Eles gostavam que eu lhes explicasse como eram as terras de onde eu vim, se meu povo também morria, o que comíamos, que animais existiam... Don César me pediu para levar a palavra pumé às minhas terras. Ele estava interessado em saber o que meu povo diria sobre eles, como eles as receberiam. Aprendi a língua, aprendi a sonhar; mas minha presença e suas conversas comigo só faziam sentido por causa de quem eu era, uma nivé (não indígena, outro tipo de pessoa, branco). Eu nunca deixei de ser isso, embora eles se referissem a mim como ibean nivé, isto é, “a nossa branca”.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    Plan Nacional I+D. Ministerio de Ciencia, Innovación e Universidades, Gobierno de España

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2021
  • Aceito
    09 Ago 2021
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