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“Um mundo onde caibam muitos mundos”: as palavras verdadeiras de educadores zapatistas

“A world of many worlds”: the true words of zapatista educators

resumo

A máxima zapatista “por um mundo onde caibam muitos mundos” ressoa entre movimentos e acadêmicos, especialmente aqueles envolvidos na defesa das autonomias, da justiça climática e do pluriverso. Experimentamos, neste artigo, pensar tal máxima a partir de etnografia realizada com educadores zapatistas tzotzil no Caracol de Oventic, articulando os “muitos mundos” no zapatismo. As Declarações Zapatistas chamam para a composição nas diferenças, unindo a autonomia local à crítica anticapitalista, e abrem possibilidades de uma reinvenção metafísica das práticas que habilitam o Antropoceno. Há um deslocamento de alguns termos-chave – como palavras, mundo, verdade – e de outros que são caros às filosofias políticas do ocidente – como trabalho, capitalismo, humano. O mundo do poderoso é um mundo falso, que enfraquece e tira o lugar de outros mundos e palavras verdadeiras. O mundo de muitos mundos não deve ser uma propriedade ou recurso, mas um lugar ao qual os seres verdadeiros (humanos e outros que humanos) pertencem.

palavras-chave
Zapatismo; Pluralismo; Antropoceno; Etnografia; Chiapas

abstract

The Zapatista maxim “for a world of many worlds” resonates among movements and academics, especially those involved in the defense of autonomies, climate justice and the pluriverse. In this article, we try to think about this maxim based on ethnography carried out with tzotzil zapatista educators in Caracol de Oventic, articulating the “many worlds” in zapatismo. The Zapatista Declarations call for the composition of differences, uniting local autonomy with anti-capitalist criticism and opening up possibilities for a metaphysical reinvention of the practices that enabled the Anthropocene. There is a displacement of some key terms – such as words, world, truth – and others that are dear to western political philosophies – such as work, capitalism, human. The world of the powerful is a false world, which weakens and takes the place of other worlds and true words. The world of many worlds is not meant to be a property or resource, but a place where true beings (human and other than human) belong.

keywords
Zapatismo; Pluralism; Anthropocene; Ethnography; Chiapas

Muitas palavras caminham pelo mundo. Muitos mundos se fazem. Muitos mundos nos fazem. Há palavras e mundos que são mentiras e injustiças. Há palavras e mundos que são verdades e verdadeiros. Nós fazemos mundos verdadeiros. Nós somos feitos por palavras verdadeiras. No mundo do poderoso não cabem mais que os grandes e seus servidores. No mundo que nós queremos, cabem todos. O mundo que queremos é um onde caibam muitos mundos.

Quarta Declaração da Selva da Lacandona 1 1 Tradução nossa de trecho da Cuarta Declaración de La Selva Lacandona, disponível em: https://enlacezapatista.ezln.org.mx/1996/01/01/cuarta-declaracion-dela-selva-lacandona/.

A máxima zapatista de “um mundo de muitos mundos” tem inspirado resistências frente à destruição colonial e ao colapso ecológico provocados pelo “mundo do poderoso”. O movimento zapatista é composto por milhares de indígenas falantes das línguas mayas 2 2 Os mayas, que se dividem em diferentes povos e línguas, formam a maioria da população indígena em Chiapas. Carlos Lenkersdof, em seu texto Cosmovisão maya, define os maya como: “[…] cerca de trinta povos ou nações com idiomas relacionados, mas diferentes. Derivamse de um campo comum denominado protomaia que não é mais falado e que foi em parte reconstruído por alguns linguistas” ( Lenkersdof, 1999 p. 10:). , tzotzil, ch’ol, tojolabal e tzeltal, em Chiapas, no sudeste mexicano, além de mobilizar uma vasta rede de apoio transnacional. Vindo a público a partir do levante de 1º de janeiro 1994, o zapatismo contrariou as projeções fatalistas do domínio absoluto do neoliberalismo e do “fim da história”, tecendo, ao longo dos anos, uma organização social autônoma que encontrou ressonâncias em muitos outros mundos. Nas últimas décadas, o lema zapatista ganhou força em uma miríade de movimentos 3 3 Como o altermundialismo, movimentos indígenas e curdos pela autodeterminação, movimentos contra a destruição de rios e montanhas sagradas, movimentos de mulheres que conjugam a luta ecológica, antipatriarcal e anticolonial, dentre outros. que compartilham da defesa das autonomias e/ou da justiça climática a partir da perspectiva de uma “politização da natureza” 4 4 Movimentos que trazem à tona a questão de referências humanas e não humanas como parte ativa na luta pela terra ameaçada pelo avanço do capitalismo ( La Cadena, 2010). .

A militante indígena Txai Suruí citou as mulheres zapatistas na sua fala de abertura da COP2 5 5 O termo educadores é uma tradução equívoca nossa para designar os promotores autónomos de educación que são indígenas das comunidades que têm uma formação contínua em educação autônoma nos espaços do movimento. Em tzotzil, o educador/promotor é chamado jnikesvany, que significa “a pessoa que move”. Sobre isso, ver mais em Morel ( 2023). : “A Terra está falando e nos diz que não temos mais tempo. […] Vamos continuar pensando que com pomadas e analgésicos os golpes de hoje se resolvem, embora saibamos que amanhã a ferida será maior e mais profunda” 6 6 Fala proferida por Txai Suruí na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, ocorrida em 2021, na Escócia. É possível acessar o discurso completo em: https://www.youtube.com/watch?v=1gnUH7HNBAU. Acesso em: 28 mar. 2023. . Em entrevista, ela argumenta sobre como a luta pela autonomia no zapatismo é inspiradora para seu povo e para diversos outros povos indígenas na América Latina. Um dos principalmente motivos dessa inspiração seria a capacidade do zapatismo de articular a defesa de uma autonomia territorial local a uma crítica global anticapitalista ( Lacerda, 2022LACERDA, Mariana. Janeiro de 2022. “‘A gente é a floresta’: Entrevista com Txai Suruí”. Revista Cult, São Paulo, 278.). Como aponta Bâschet ( 2021BASCHÊT, Jêrome. 2021. A experiência zapatista. São Paulo, N-1 Edições.), a noção de “um mundo de muitos mundos”, proposta pelo movimento, articula a luta indígena, anticapitalista e uma resistência planetária em um entrelaçamento entre múltiplas escalas.

O lema zapatista ecoa a defesa da solidariedade entre os múltiplos mundos em meio ao colapso ecológico que é global, ao mesmo tempo que explicita uma ruptura com o paradigma presente em parte da esquerda e de movimentos ecológicos, ancorado na defesa da transformação social por um único caminho (cosmo)político. Assim, observamos movimentos que afirmam as autonomias por distintos caminhos. A intelectual mixe Yasnaya Aguilar Gil ( 2018GIL, Yásnaya. 2018. ¿Nunca más un México sin nosotros? San Cristóbal de las Casas, CideciUnitierra Chiapas.), por exemplo, conclama a uma confederação de nações autônomas, buscando desarticular práticas nacionalistas que fazem crer que o México é uma nação única e indivisível. Distinguindo-se da palavra de ordem zapatista “ nunca más um México sin nosotros”, sua proposta é criar um “ nosotros sin México”. Vemos ainda, na cosmopolítica wixaritari, todo um processo de “renovação do mundo” concretizado em uma confederação de povos indígenas no ocidente do México. A questão não seria perseguir uma meta ambientalista, de como salvar o planeta, mas criar e recriar mundos ( Naurtah, 2018NEURATH, Johannes. 2018. “Fricciones ontológicas en las colaboraciones entre huicholes y ambientalistas”. Relac. Estud. Hist. Soc. [online], 39 (156): 167-194.). Acompanhando a explosão de protestos desses mundos ameaçados pela possibilidade de destruição imediata, há uma ressonância também nos debates acadêmicos, especialmente no que diz respeito às discussões sobre o pluralismo ontológico ou pluriverso. O pluriverso não é um termo estritamente usado pelos zapatistas, mas por autores (de diversas áreas, mas sobretudo da Antropologia e Filosofia) que, inspirados pelo zapatismo e por outros movimentos, recusam a “monarquia ontológica” em tempos de Antropoceno ( La Cadena & Blaser, 2018LA CADENA, Marisol de & BLASER, Mario. 2018. A World of Many Worlds. Durham e London, Duke University Press.).

Destacamos duas obras que abordam o conceito do pluriverso e têm o lema zapatista como epígrafe. O primeiro é o livro Pluriverso ( Khotari et al., 2021 KHOTARI et al. 2021. Pluriverso: dicionário do pós-desenvolvimento. São Paulo, Editora Elefante.), que traz nos seus verbetes uma compilação de conceitos e práxis que buscam desafiar a ontologia moderna do universalismo em prol da multiplicidade de universos possíveis. Para os organizadores do livro, a recusa zapatista de um mundo único estaria diretamente articulada à multiplicação de paradigmas alinhados às propostas de pós-desenvolvimento. A máxima zapatista seria, então, o ponto de partida de uma forte crítica à noção de desenvolvimento, assim como possibilitaria abrir caminhos para sua superação.

O segundo livro intitula-se A World of Many Worlds, organizado por Marisol de La Cadena e Mario Blaser ( 2018LA CADENA, Marisol de & BLASER, Mario. 2018. A World of Many Worlds. Durham e London, Duke University Press.). Os diversos artigos que o compõem buscam reconsiderar a gramática material-semiótica da relação entre mundos a partir do pluriverso. Tal conceito estaria imbricado na proposta de ontologia política que opera com base na presunção de mundos divergentes constantemente surgindo por meio de negociações, enredamentos e cruzamentos. Os organizadores do livro inspiram-se no convite zapatista e definem o pluriverso como mundos heterogêneos unindo-se como uma ecologia política de práticas, negociando seu difícil estar junto na heterogeneidade. A oportunidade do pluriverso surgiria, paradoxalmente, diante da acentuação do colapso ecológico no Antropoceno.

Neste sentido, o Antropoceno, por um lado, intensifica forças políticas e econômicas que se estabeleceram pela primeira vez no século XVI e adquirem, no atual contexto, um poder destrutivo sem precedentes. Mas, por outro lado, essas drásticas circunstâncias também abrem caminhos para o questionamento dos fundamentos do “mundo do poderoso”, que só aceita seu próprio mundo destrutivo. É por isso que o momento histórico atual pode ser aquele em que as pessoas reconsideram a exigência de que os mundos sejam destruídos e formulam as condições para a reconstituição dos mundos ( La Cadena & Blaser, 2018LA CADENA, Marisol de & BLASER, Mario. 2018. A World of Many Worlds. Durham e London, Duke University Press.). Assim como para Txai Suruí, também para os autores de ambos os livros tal questionamento não passa por soluções “reformistas”, mas traz uma exigência de radicalidade em diferentes caminhos: demanda levar a sério a existência e o poder de seres não humanos ( Stengers, 2018STENGERS, Isabelle. 2018. “The challenge of ontological politics”. In: LA CADENA, Marisol de & BLASER, Mario. A World of Many Worlds. Durham e London, Duke University Press.), desestabilizar a divisão entre “aqueles que sabem” e “aqueles que acreditam” e a divisão entre natureza e cultura que torna o mundo um ( La Cadena & Blaser, 2018LA CADENA, Marisol de & BLASER, Mario. 2018. A World of Many Worlds. Durham e London, Duke University Press.), questionar as noções de crescimento e universalismo, pilares da modernidade ocidental capitalista ( Khotari et al., 2021 KHOTARI et al. 2021. Pluriverso: dicionário do pós-desenvolvimento. São Paulo, Editora Elefante.).

Ambos os livros estão permeados pela tensão entre o reconhecimento acadêmico e político do colapso ecológico que ameaça erradicar as vidas na Terra e as demandas de autodeterminação e autonomias apresentadas por mundos cujo desaparecimento foi assumido no início do Antropoceno. Uma das questões fundamentais parece ser: como pensar a multiplicidade diante do colapso ecológico de um mesmo mundo? O insight zapatista possibilitaria não resolver tal tensão, mas, justamente, abrir um pluriverso de possibilidades.

Considerando, então, as ressonâncias da máxima zapatista, experimentamos, neste artigo, pensar o trecho em destaque da Quarta Declaração da Selva da Lacandona, a partir de etnografia realizada com educadores zapatistas tzotzil6. Ao mencionar os autores do pluriverso, já explicitamos algumas das nossas estratégias de autorreferência ( Strathern, 2006STRATHERN, Marilyn. 2006. O gênero da dádiva. Campinas, Editora Unicamp.), marcada especialmente por parte da etnologia no Brasil que propõe uma “rotação de perspectiva” 7 7 Tal deslocamento parte do princípio de que a dominação político-econômica das sociedades indígenas pela “sociedade envolvente” e seu aparelho de Estado não deve levar ao privilegiamento teórico da segunda, o que pressuporia um englobamento absoluto, heteronômico, dos povos politicamente dominados pelo Estado-Nação. Trata-se de insistir, na construção do trabalho etnográfico, sobre a realidade e a efetividade das resistências à unificação promovida pela lógica estatal. Ver, por exemplo, Lima ( 1996), Viveiros de Castro ( 2002a). . É preciso observar ainda, como aponta Lares ( 2020LARES, A. F. (2020). “Caminos rarámuri para sostener o acabar el mundo. Teoría etnográfica, cambio climático y Antropoceno”. Mana, 26 (1): e261202. https://doi.org/10.1590/1678-49442020v26n1a202.
https://doi.org/10.1590/1678-49442020v26...
) ao abordar a teoria-prática rarámuri, que as premissas e implicações da mudança climática e de Antropoceno estão presentes de maneira prévia e paralela nas cosmopolíticas de outros povos. Cabe explorar como essas cosmopolíticas nos afetam. Seguimos apresentando o caminho percorrido nesta pesquisa.

Vivi por mais de umano em Chiapas 8 8 Cheguei a Chiapas pela primeira vez em dezembro de 2013 para participar da festa de vinte anos do levante zapatista e da Escuelita Zapatista. Voltei para realizar etnografia para minha tese de doutorado nos anos seguintes (grande parte do ano de 2015, trechos de 2016 e 2017). , quando tive a oportunidade de frequentar diferentes espaços do movimento zapatista: eventos abertos para simpatizantes de todo o mundo, comunidades 9 9 É importante ressaltar que usamos o termo “comunidade”, recorrentemente utilizado por indígenas e não indígenas na região para designar localidades onde vivem os indígenas zapatistas e não zapatistas. onde vivem bases de apoio zapatistas, espaços educativos autônomos voltados para alunos não zapatistas. A discussão apresentada neste artigo é baseada especialmente no diálogo que estabeleci enquanto aluna de tzotzil do Centro de Español y Lenguas Mayas Rebelde Autónomo Zapatista (CELMRAZ), um curso de espanhol e tzotzil voltado para alunos não zapatistas, no Caracol de Oventik. O CELMRAZ me possibilitou conviver de maneira mais próxima com educadores de educação autônoma que vivem em povos falantes de tzotzil na região dos Altos de Chiapas.

Durante o percurso, algo me chamou atenção: a educação autônoma era construída pelos indígenas zapatistas e para eles próprios, mas também pelos indígenas zapatistas para os apoiadores não indígenas. O CELMRAZ possibilitava inverter a relação colonial habitual, já que os indígenas eram os professores dos brancos. Este não é, então, um trabalho estritamente sobre a educação zapatista 10 10 Para conhecer mais sobre a proposta do Sistema de Educação Autônomo Zapatista, ver, por exemplo, Barronet ( 2012) e Gutierrez ( 2005). ou uma comunidade específica, mas parte desse espaço educativo do movimento de abertura para outros. Lá, os educadores zapatistas estabelecem não uma relação mimética, ou um processo de aculturação, mas traduções “equivocas” 11 11 A ideia de equívoco aparece aqui em sentido semelhante ao apontado por Eduardo Viveiros de Castro: “A equivocação não é o que impede a relação, mas o que a funda e impele: a diferença de perspectiva. Para traduzir é preciso presumir que uma equivocação sempre existe, e é isso que comunica as diferenças ao invés de silenciar o outro presumindo uma univocidade – a similaridade essencial – entre o que o Outro e nós estamos dizendo”. (Viveiros de Castro, 2004: 8) dos mundos de esquerda dos brancos.

O caminho percorrido também está relacionado com uma postura do próprio movimento zapatista: por uma série de questões que envolvem segurança e opções políticas, quando realizei a pesquisa, o movimento não se colocava aberto para receber pesquisadores ou pessoas de fora nas comunidades por um tempo prolongado, o que impossibilitaria um tipo de pesquisa mais clássico. A pesquisa que realizei está relacionada, então, com o meu vínculo com a militância e como aluna do zapatismo nos espaços de abertura do movimento, e teve o consentimento informado dos meus interlocutores, que colocaram como única condição que seus nomes não fossem identificados 12 12 Por este motivo os chamo, neste artigo, de “educadores zapatistas”, o que não é uma busca por generalizar os distintos educadores zapatistas, nem por construir homogeneizações sobre a educação zapatista, ou sobre os indígenas da região, mas sim uma maneira de colocar um “pasamontaña” nos seus nomes. . Cheguei ao movimento, antes de tudo, por conta da minha militância em grupos de educação popular no Rio de Janeiro; tal envolvimento permitiu uma relação de confiança e abertura nos espaços que frequentei.

Partindo de um respeito escrupuloso à “imaginação conceitual” 13 13 Em relação a esse debate, recordamos os três imperativos básicos do pacto etnográfico apontados por Bruce Albert ( 1997), que afirma que o antropólogo deve, em primeiro lugar, fazer justiça à imaginação conceitual de seus interlocutores, em seguida, levar em conta o contexto sociopolítico pelo qual esse se insere, e, por último, ter um olhar crítico sobre o quadro da pesquisa etnográfica. dos nossos interlocutores, questionamos: Como pensar a afirmação de “um mundo de muitos mundos” com educadores zapatistas? Trata-se, então, de tomar as ideias dos indígenas zapatistas como conceitos 14 14 As ideias zapatistas aparecem como “dotadas de uma significação propriamente filosófica, ou como potencialmente capazes de um uso filosófico” ( Viveiros de Castro, 2002b). . Diferente da lógica da “educação bancária” criticada por Paulo Freire ( 1987FREIRE, Paulo. 1987. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra.), não há uma simples “transmissão de conteúdo”, mas uma implicação mútua entre educadores zapatistas e alunos não indígenas 15 15 Compartilhamos, então, das preocupações de Lucas da Costa Maciel ( 2018) sobre a importância de reconhecer o papel pedagógico do zapatismo ao realizar uma etnografia com os zapatistas, em que caminhamos perguntando, sem simplesmente descrever o mundo do outro, mas produzindo um mundo-ponte. . O experimento de pensar essa citação, que tem tido tantas repercussões teóricas e políticas, “como se” os educadores zapatistas estivessem preocupados em discuti-la como conceitos, possibilita também um deslocamento em relação a conceitos que são comuns ao que nós entendemos como política.

Veremos também como o zapatismo não é um movimento homogêneo, há “muitos mundos” no zapatismo. Por isso, buscamos explicitar as diferentes vozes internas ao movimento, que dialogam nas divergências ( Stengers, 2018STENGERS, Isabelle. 2018. “The challenge of ontological politics”. In: LA CADENA, Marisol de & BLASER, Mario. A World of Many Worlds. Durham e London, Duke University Press.). Para começar, faremos uma breve explanação sobre a Declaração, situando o contexto em que foi escrita. Em seguida, vamos para outros tempos e espaços, experimentando pensar alguns dos seus termos, como palavras, mundo, verdade, a partir dos deslocamentos trazidos pelos educadores zapatistas tzotzil com quem dialoguei no CELMRAZ. Por último, discutimos sobre as diferentes teorias do fim do mundo apresentadas pelos mesmos educadores zapatistas.

As declarações da selva da Lacandona

A famosa citação do “mundo de muitos mundos” está contida na Quarta Declaração da Selva da Lacandona, divulgada pelo movimento zapatista em 1º de janeiro de 1996, dois anos após o levante armado de 1994. As Declarações da Selva da Lacandona são comunicados públicos dos porta-vozes zapatistas que ganham ressonância nas redes nacionais e internacionais de apoiadores do movimento. A Quarta Declaração foi escrita em um momento de aumento do desgaste nas negociações entre o governo mexicano e o movimento. Logo após o levante, o EZLN apresenta uma lista de demandas ao governo, que em contrapartida propõe algumas mudanças legais. Os zapatistas vão consultar suas bases sobre a proposta do governo. E, assim, começa um considerável período de negociações, idas e vindas, que incluía mobilizações tanto do movimento zapatista quanto de diversos outros movimentos e setores da população 16 16 Sobre tal aspecto da história do zapatismo, ver: Reyes Ramos ( 2001), Bâschet ( 2021). .

É preciso ressaltar que o governo, ao mesmo tempo que anunciava publicamente uma tentativa de diálogo e pacificação, aumentava cada vez mais a militarização na região. Em 1995, o então presidente Ernesto Zedillo afirmava em rede nacional que havia descoberto a identidade dos dirigentes zapatistas e expedia ordens de prisão contra esses. Essas ordens de prisão não chegaram a ser concretizadas, pois o Exército mexicano não conseguiu encontrar os dirigentes na Selva; no entanto, avançou sobre várias comunidades de Chiapas. Em apenas quinze dias, mais de 20 mil pessoas foram desalojadas de suas comunidades 17 17 A linha de ação, apoiada no combate militar, era efetuada através da Secretaria de Defesa Nacional (Sedena) com os objetivos explícitos de: “destruir la voluntad de combatir del EZLN”, “organizar secretamente a certos setores de la populación civil, dentre gañaderos, pequeños proprietários y indivíduos caracterizados con um alto sentido patriótico, quienes serán empleados a órdenes en apoyo de nuestras operaciones” e ainda “aplicar la censura a los diferentes médios de difusión massivas” ( Dominguez, 2006: 184). Esse trecho deixa clara a própria vontade do governo em angariar civis com “alto sentido patriótico” para seguir suas operações militares. Esses civis logo se tornaram grupos paramilitares e passaram a constituir uma das principais práticas de contrainsurgência. .

Tal processo de militarização da região é denunciado explicitamente na Quarta Declaração:

Iniciado o diálogo com o supremo governo, o EZLN se viu traído no seu compromisso de buscar uma solução política para a guerra iniciada em 1994. Fingindo disposição para o diálogo, o mau governo optou covardemente pela solução militar e, com argumentos torpes e estúpidos, desatou uma grande perseguição política e militar que tinha como objetivo supremo o assassinato da direção do EZLN. ( EZLN, 1996EZLN (Ejército Zapatista de Liberación Nacional). 1996. Cuarta Declaración de la Selva Lacandona. https://enlacezapatista.ezln.org.mx/1996/01/01/cuarta-declaracion-de-laselva-lacandona/.
https://enlacezapatista.ezln.org.mx/1996...
)

Diante do avanço militar, o movimento zapatista torna-se cada vez mais descrente das possibilidades de negociação e acordo com o governo mexicano, mas ainda assim não desiste de construir os Acordos de Paz de San Andrés assinados em 1996, alguns meses após a divulgação da Quarta Declaração. Esses Acordos, embora não tenham sido executados, foram um marco nas discussões entre os movimentos indígenas e o Estado no que diz respeito aos debates em torno da autonomia 18 18 Dentre pontos que atravessam os direitos da mulher indígena, a educação pluriétnica, esse documento estabelece o compromisso do governo mexicano com a autodeterminação dos povos indígenas. Um dos pontos mais polêmicos da negociação de San Andrés, que não entrou no documento final, foi a possibilidade de reformar o artigo 27 da Constituição para garantir a integridade territorial dos povos indígenas. A não entrada desse ponto desagradou bastante ao movimento zapatista, que sempre demonstrou ter a questão da terra como um nó central da luta por autonomia. . Outro ponto importante também destacado na Quarta Declaração é o chamado feito a uma nova frente política, que possibilite a confluência de diferentes forças políticas, movimentos, povos, coletivos: um espaço de “encontro de vontades”. Em oposição ao mundo de um mundo trazido pela militarização estatal, o zapatismo propõe a criação de uma frente de muitos mundos.

Esse chamado zapatista ganha ecos não apenas no México, mas internacionalmente. Como mencionado por Guiomar Rovira ( 2009ROVIRA, Guiomar. 2009. Zapatistas sin fronteras: las redes de solidaridad con Chiapas y el altermundismo. México, Ediciones Era.), há uma rede transnacional de diversos coletivos e pessoas que também se desdobra em movimentos não convencionais, no altermundismo ou movimento antiglobalização, como as mobilizações de Seattle em 1999. A autora acentua o caráter não formal e flexíveldessasredesquetêmcomoreferênciaozapatismo, semquenecessariamente o movimento as tenha planejado ou tenha decisão direta sobre elas. Após o período pesquisado por Guiomar Rovira -do levante até os primeiros anos do século XXI -, há um importante acontecimento: em 2005, é publicada a Sexta Declaração da Selva da Lacandona e o fortalecimento de uma rede em torno desta.

A Sexta é uma proposta zapatista de composição com outras pessoas e movimentos do México e do mundo com o seguinte rumo:

La Sexta es una convocatoria zapatista. Convocar no es unir. No pretendemos unir bajo una dirección, ni zapatista ni de cualquier otra filiación. […] El destino es el mismo, pero la diferencia, la heterogeneidad, la autonomía de los modos de caminar, son la riqueza de la Sexta, son su fuerza. ( EZLN, 2013EZLN (Ejército Zapatista de Liberación Nacional). 2013. Ellos y nosotros. https://enlacezapatista.ezln.org.mx/2013/01/20/ellos-ynosotros-i-las-sin-razones-de-arriba/.
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)

A Sexta não sugere a fundação de um grupo homogêneo, mas se coloca como uma possibilidade de composição a partir das diferenças, propondo conexões de organizações locais de acordo com as dinâmicas e possibilidades das diferentes geografias.

Mais recentemente, em 2021, o movimento emitiu uma Declaração pela vida, que iniciava falando da multiplicidade de movimentos e coletivos em resistência -mulheres, transexuais, povos indígenas, associações de bairros etc. -e, ao final, ao invés da habitual referência de que falam “ desde el sureste mexicano”, estava escrito “ Planeta Tierra”. Nesta Declaração eles mencionam: “A convicção de que são muitos os mundos que vivem e lutam no mundo. E que toda pretensão de homogeneidade e hegemonia atenta contra a essência do ser humano: a liberdade” (EZLN, 2021).

As Declarações em questão foram escritas pelos “porta-vozes oficiais” do zapatismo. Há críticos do zapatismo que denunciam um suposto dualismo entre as palavras e as práticas do movimento, que seria produzido por uma “política ventríloqua” ( Pitarch, 2004PITARCH, Pedro. 2004. “Los zapatistas y el arte de la ventriloquia”. Istor, 17.) dos militantes brancos do movimento em relação aos indígenas 19 19 A história de surgimento do zapatismo é marcada pela relação com um grupo guerrilheiro vindo de origem urbana que viveu por anos na clandestinidade entre os indígenas mayas da região. . No entanto, outros autores argumentam sobre a possibilidade de “interação criativa” ( Baschêt, 2004BASCHÊT, Jêrome. 2004. “Los zapatistas: ¿‘ventriloquia india’ o interacciones creativas?”. Istor, núm. 17.) entre diferentes ideias-forças políticas e culturais (marxista, indígena maya, teologia da libertação, educação popular) que atravessam o zapatismo, o que impede que ele seja interpretado como um todo único homogêneo, redutível, em última análise, a mais uma fantasia política “branca”, em que os indígenas continuam no lugar de objeto. Próximos deste último caminho, dialogando com os muitos mundos no zapatismo, pensamos as declarações oficiais do zapatismo sem deixar de lado o caráter ativo dos participantes do movimento, e seu trabalho de elaboração intelectual ( Millan, 2014MILLAN, Margareth. 2014. Des-ordenando el género / ¿Des-centrando la nación? El zapatismo de las mujeres indígenas y sus consecuencias. México, Unam.; Levya, 1999LEYVA SOLANO, Xóchitl. Primavera, 1999. “De las cañadas a Europa: niveles, actores y discursos del nuevo movimiento zapatista (nmz) (1994-1997)”. Desacatos, 1: 1-25, México, Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social Distrito Federal. http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1607050X1999000100003&lng=es&tlng=es.
http://www.scielo.org.mx/scielo.php?scri...
).

Uma década após a publicação da Quarta Declaração, iniciei minha pesquisa em terras chiapanecas. A militarização da região seguia, e os zapatistas já não buscavam mais a negociação com o Estado, mas sim ampliar as heterogêneas redes de muitos mundos ( Baschêt, 2021BASCHÊT, Jêrome. 2021. A experiência zapatista. São Paulo, N-1 Edições.). Foi um período de diversas atividades abertas para apoiadores não indígenas, que vinha junto da denúncia da “grande tormenta” que se instaurava.

As palavras verdadeiras (que caminham pelo mundo)

Na citação zapatista do mundo de muitos mundos, as palavras são protagonistas: elas caminham pelo mundo, são verdadeiras e fazem pessoas. Em tzotzil, a tradução mais comum para palavra é k’op que, segundo os educadores zapatistas, também pode significar “língua, guerra, luta, problema”. Estudos etnográficos apontam como a palavra funciona entre os indígenas da região como um ser animado ( Pitarch, 2013PITARCH, Pedro. 2013. La cara oculta del pliegue. Antropología indígena. México, Artes de México / Conaculta.). As pessoas humanas não apenas falam, mas são “faladas” pelas palavras. Durante as aulas, os educadores zapatistas afirmam: “ Eso no soy yo que estoy hablando, o enseñando, es lo que dice la propia lengua”. Percebemos uma relação um pouco diferente daquela a que estamos acostumados na tradição ocidental, em que a língua pertence às pessoas humanas, mas aqui, há uma relação imanente em que são os humanos que pertencem à língua. Sendo assim, não são os educadores que falam as palavras nas aulas, mas as palavras falam através dos educadores, junto de toda a vida dos povos. As palavras e os muitos mundos falam através da Declaração zapatista.

Além disso, a palavra também é uma tradução equívoca: diferentemente da noção comum de que palavra e diálogo são uma maneira de resolver os conflitos, aqui as palavras parecem caminhar junto dos conflitos ( Pitarch, 2013PITARCH, Pedro. 2013. La cara oculta del pliegue. Antropología indígena. México, Artes de México / Conaculta.). Golpes e palavras podem ser a mesma coisa. Por diversas vezes, percebi um estranhamento dos alunos não indígenas diante dos silêncios e das poucas palavras dos zapatistas. Diferente dos longos comunicados dos “porta-vozes oficiais” do zapatismo, os educadores zapatistas costumam ser bem concisos nas suas falas, assim como nos seus gestos 20 20 Sobre a dimensão do controle do corpo entre os tzotzil, sugiro o interessante artigo de Boyer ( 2012). . É frequente escutá-los terminarem suas curtas falas públicas com a expressão: “ Esa es mi poca palabra”. Há uma preocupação explícita dos educadores ao ensinar a língua tzotzil de que é preciso ter cuidado com cada palavra, pois a língua é conflito e luta. Na declaração zapatista, vemos também ressaltada a importância das palavras que não são apenas uma convocação para o diálogo, mas luta contra o mundo dos poderosos, onde só cabem os grandes e os seus servidores. Em oposição a esse mundo, a Declaração adverte que há (algumas) palavras e mundos que são verdades e verdadeiros.

Certa vez, uma educadora zapatista contou: “ Las palabras están relacionadas con la vida, aquí en la organización [zapatista] ha habido lucha, vivimos hace mucho una guerra, que pasa por las armas, pero también por el uso de nuestra lengua. Eso todo, esa expresión bats’i k’op dice respecto no sólo a una palabra, pero en cómo viven los pueblos”. Palavra e língua ( k’op) estão frequentemente associadas a bats’i, que pode ser traduzido como verdadeiro.

Mais uma tradução equívoca, bats’i parece divergir da teoria da verdade do racionalismo moderno, na qual o sujeito alcança a verdade por meio da consciência em oposição aos sentidos. Essa última noção exclusivista de verdade faz parte da ocupação ontológica colonial que Jonh Law ( 2015LAW, John. 2015. “What’s Wrong with a One-world World?”. Distinktion Scandinavian: Journal of Social Theory, 16 (1): 126-139.) chamou de “o mundo de um mundo”, a saber, o mundo que se apresenta como exclusivo, pois conhece a única verdade e se concedeu o direito de assimilar e anular os outros mundos relegados à posição de crenças. Já bats’i não é a verdade de todo o mundo, ou do único mundo, mas da experiência de um povo de um lugar. Outros povos têm outras bats’i. O que tampouco é sinônimo de uma verdade relativista: bats’i quer dizer ser originário de um lugar, pertencente a um lugar próprio. O verdadeiro é o que é próprio de um lugar, ou melhor, o que está em seu lugar próprio, no duplo sentido de pertencente a esse lugar e de apropriado a ele.

Verdade aqui está diretamente relacionada com a vida dos povos. O bats’i k’op não se refere apenas ao tzotzil, mas é também a língua e as palavras que falam os tzetales, tojolabales e mesmo os indígenas de Oaxaca, ou seja, todos os que falam uma língua própria de um povo. Uma outra tradução para bats’i é “originário” (Gossen, 1979). A noção de verdade, verdadeiro, originário qualifica questões centrais para os educadores zapatistas com quem convivi.

Há, por exemplo, a educação verdadeira ( chanel), que é a educação de um povo de um lugar, seria a possibilidade de conhecer junto, entre humanos, mas também aprender com as formigas, os insetos, a água. Uma educadora contou: “ Es un proceso de matrimónio con la naturaleza, de confirmar que estamos vivos”. A educação verdadeira não separa a mente do corpo, nem a pessoa da terra, ela parte de uma relação vital com a natureza ( Morel, 2023MOREL, Ana Paula. 2023. “O movimento zapatista e a indigenização da educação popular”. Caderno CRH, 36, e023004. https://doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.52255.
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; Barronet, 2012BARONNET, Bruno. 2012. Autonomía y educación indígena. Las escuelas zapatistas de la Selva Lacandona de Chiapas, México. Quito, Ediciones Abya-Yala.).

Outra expressão comum é o trabalho verdadeiro ( a’mtel), aquele feito para a própria família e comunidade. Com esse tipo de trabalho, cada um tem seu próprio tempo, ninguém pode determinar quanto e como cada um deve trabalhar. Em outras palavras, o que determina esse trabalho são as necessidades de cada família, comunidade e da organização autônoma. Uma educadora zapatista conta que a’mtel significa que o trabalho não está separado da vida, mas faz parte dela.

Também há a comida verdadeira ( bats’i lekil ve’elil), que é a comida natural que vem da terra, sem uso de agrotóxicos e sem transgênicos. O milho é a principal comida verdadeira, base alimentar dos indígenas da região, chamado de ixim. Mas não qualquer milho: os zapatistas também falam em bats’i ixim (milho verdadeiro), para denominar o milho que não é transgênico. Uma educadora zapatista explica que é uma luta muito grande para se alimentar de comida verdadeira: “ Hay mucha comida fabricada, con eso hay más enfermedades que son desconocidas. Tambien hay el uso de los químicos. Nosotros, zapatistas, no utilizamos químicos, pero los partidistas usan, lo que afecta nuestra tierra y tiene un olor que va en el viento”. Junto ao aumento da comida industrializada, a ameaça dos agrotóxicos e dos transgênicos é uma constante nas comunidades e afeta bastante a produção do milho.

Além disso, há as pessoas verdadeiras, bats’i ants vinik, que podemos traduzir como mulher e homem originário ou indígena. Nas palavras de uma educadora: “ es el hombre que vive en un pueblo toda la vida, tiene una raíz, es originario del pueblo mismo donde vive”. O conceito de pessoa verdadeira aparece vinculado à possibilidade de estabelecer uma relação própria com a terra, o que é o completo oposto de ser proprietário de uma terra, e nesse sentido transcendê-la, englobá-la, contêla como sua “coisa”. E a relação com a terra se dá em termos bem específicos. Em um exercício reflexivo, a terra ganha uma conotação distinta de terra “recurso” (no sentido mais capitalista), ou de “bem universal” (como colocam teorias ocidentais mais progressistas) -ambos os casos vinculados à noção de propriedade privada, ainda que o segundo termo se refira à “função social” da propriedade. A terra não é um substrato inerte, um objeto que se pode possuir. Não é a terra que pertence às pessoas, mas as pessoas pertencem à terra, pertencem a um lugar.

Retomando a declaração zapatista podemos pensar o mundo de muitos mundos, não como uma propriedade ou recurso, mas um lugar ao qual as pessoas verdadeiras pertencem. As palavras e os mundos verdadeiros divergem da noção exclusivista e unicista de verdade e apontam para uma noção de pertencimento, em que não há supremacia de um mundo, nem de uma espécie.

O pluralismo ontológico que se desdobra a partir da declaração zapatista também é frequentemente associado às teorias do perspectivismo ameríndio ( Lima, 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia Tupi”. Mana, Rio de Janeiro, 2 (2): 21-47. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200002.
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, Viveiros de Castro, 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana, 2 (2): 115-144.). A importância de discutir essas possíveis conexões é apontada por Peter Pál Pelbart e Mariana Lacerda:

Há causas comuns entre o zapatismo e os indígenas brasileiros, mas ainda estamos longe de aprender as possíveis conexões, e diferenças, mais profundas entre essas duas resistências, seja no plano cosmológico ou cosmopolítico. Estudos etnográficos apontam indícios do que se chama de perspectivismo ameríndio na tradição indígena do sudoeste mexicano. Não é inverossímil associar tal pluralismo ontológico com o lema mais explicitamente político “um mundo onde caibam muitos mundos” -que aparece nos centros culturais, comunitários e administrativos das comunidades zapatistas. ( Lacerda & Pál Pelbart, 2022LACERDA, Mariana & PÁL PELBERT, Peter. Janeiro de 2022. “Por que Zapatismo?”. Revista Cult, São Paulo, 278.: 10-11)

São muitos os paralelos possíveis entre perspectivismo ameríndio e zapatismo, ou ainda, em relação às noções de política das sociedades ameríndias das terras baixas da América do Sul. Como aponta Pedro Cesarino ( 2020CESARINO, Pedro. 2020. “Poética e política nas terras baixas da América do Sul: a fala do chefe”. Etnográfica [Online], 24 (1). DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.8109
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), há, nestas terras, um regime cosmopolítico no qual as palavras se prestam a conectar mundos múltiplos. Não pretendemos esgotar esses potentes paralelos, mas abrir caminhos a partir de um breve exercício reflexivo.

A antinomia observada por Eduardo Viveiros de Castro ( 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de Antropologia. São Paulo, Cosac Naify.) ao discutir o perspectivismo indica como, por um lado, os ameríndios são etnocentricamente avaros na extensão do conceito de humanidade. Esse aspecto da antinomia parece válido para os educadores, já que, na expressão o homem verdadeiro ( bats’i vinik), o verdadeiro faz referência ao próprio povo de quem fala. Ao mesmo tempo, o outro lado da antinomia também parece válido, pois, assim como descrito entre os indígenas “perspectivistas”, os educadores zapatistas apontam para a multiplicidade de pontos de vista sobre o mundo.

O homem verdadeiro ( bats’i vinik) não é equivalente a um único povo, mas cada povo é verdadeiro para si, assim como cada ser que existe no mundo. Os educadores zapatistas reiteram que tudo que existe no mundo tem valor, tem seu próprio ch’ulel. Os estudos etnográficos clássicos de Vogt ( 1969VOGT, Evon. 1969. Zinacantan: A Maya Community in the Highlands of Chiapas. Cambridge, The Belknap Press (of Harvard University Press).) entre os tzotzil mostram a centralidade do ch’ulel (alma) nas plantas domesticadas (como feijão e milho), montanhas sagradas, casas, deidades. Segundo Vogt, as interações mais importantes não são entre humanos, nem entre humanos e objetos materiais, mas entre os ch’ulel dos seres humanos e não humanos. Pedro Pitarch ( 1996PITARCH, Pedro. 1996. Ch’ulel: una etnografía de las almas tzeltales. México, Fondo de Cultura Económica.), em estudos contemporâneos, afirma que entre os tzeltal é comum que a pessoa reúna em si mesma diversos ch’ulel. O ch’ulel seria equivalente a pontos de vista, formando uma multiplicidade de perspectivas internas à pessoa.

Ser verdadeiro e ter ch’ulel parece indicar uma posição de sujeito, a partir da atribuição de intencionalidade consciente e de agência aos humanos e não humanos. Mais antropomórficos do que antropocêntricos (e, talvez, não por acaso, assumidamente preocupados com a forma e o valor do que existe), os educadores parecem indicar que uma legião de outros seres que os humanos têm forma “humana”, uma forma própria, com sua função e agência no mundo, o que significa, consequentemente, que nós humanos não somos assim tão especiais.

Além dos educadores zapatistas e alunos não zapatistas, havia outra presença constante nas aulas: as árvores. Para a surpresa dos alunos, em uma das primeiras aulas, um educador sugeriu que observássemos as árvores, suas formas, suas partes, para em seguida tentarmos dizer algo a elas. Para explicar melhor por que veem como veem, uma educadora desenha uma pessoa e uma árvore. Ela explicou que os lábios de uma pessoa são como as folhas de uma árvore e têm o mesmo nome, yanaeik. A barba são como as pequenas raízes e têm o mesmo nome, xi’k. Os pés são equivalentes às raízes, ambos chamados de akanil. O’osil é um dos nomes para coração de uma pessoa e é o mesmo nome dado para o meio da árvore. E por aí segue sua explicação, concluída com a afirmação de que uma árvore está sobre a terra assim como as pessoas e os animais e são, portanto, seres verdadeiros. O verdadeiro pode qualificar pessoas humanas ou outras que humanas pertencentes à terra.

Perguntei, então, a essa educadora se poderíamos dizer que uma árvore é humana. Ela responde que não se trata simplesmente de humanizar a árvore, mas de aprender a reconhecê-la. Cada coisa tem seu lugar no mundo, por isso o respeito é muito grande e importante desde aorigem. Um conceito interessante que atravessou as aulas foi o do reconhecimento da grandeza recíproca do outro ( ichbail ta muk), que é a possibilidade de perceber que tudo deve ter seu lugar no mundo, principalmente as diferenças. O termo recíproco é particularmente interessante para pensarmos em termos de pluralismo, pois não se trata apenas de um reconhecimento unilateral.

A preocupação de reconhecer o valor das coisas que existem está ligada à raiz ( yibel) de cada coisa. A pessoa caminha, mas também tem sua raiz. Para pensar qual é a raiz de uma pessoa é preciso saber de onde vem sua força para ela existir. As árvores estão sempre com suas raízes, com uma intensa ligação com a terra, sabem como se alimentar.

Percebemos como a noção de bats’i, enquanto verdadeiro e pertencimento, que nos permite conectar as reflexões dos educadores zapatistas com o perspectivismo ameríndio, também aponta diferenças 21 21 Outra distinção em relação ao perspectivismo, interessante de ser aprofundada em trabalhos futuros, é a existência de multiplicidade como algo interno à pessoa ( Pitarch, 1996). A constituição da pessoa e da sociedade indígena na região seria marcada fundamentalmente pela presença interiorizada dos estrangeiros inimigos. . Uma delas diz respeito às reflexões sobre a antítese do verdadeiro. Apesar de os educadores zapatistas não nomearem o que seria o oposto do bats’i, que chamaríamos de falso, frequentemente fazem referência a situações que levam a perder o pertencimento à terra, que enfraquecem o ch’ulel. Diferente das árvores, as pessoas humanas, ao viverem nas grandes cidades, podem perder sua conexão com a terra e isso faz com que percam seu lugar. Os zapatistas mais velhos que conheci relataram ter grande respeito pelas árvores, justamente porque, quando vivas, elas estão sempre conectadas com a terra.

A possibilidade de enfraquecer o que aqui chamamos, em uma tradução equívoca, de humanidade (que, como já vimos, não se restringe ao que entendemos, na tradição ocidental, como pessoas humanas) é um temor recorrente dos educadores zapatistas. Eles afirmam frequentemente que a força vital dos seres está sendo destruída pela ação capitalista e colonizadora. Lembrando as declarações do povo curdo ( Öcalan, 2016ÖCALAN, Abdullah. 2016. Confederalismo democrático. Rio de Janeiro, Rizoma Editorial.), também, para os educadores, o capitalismo é antinatural. Mais uma tradução equívoca, o capitalismo não é apenas um modo de produção explicado pelas relações sociais, mas é a antítese do ser verdadeiro. O capitalismo se estabelece por relações de trabalho falso, em que é preciso trabalhar para outros contra as suas próprias necessidades; produz um alimento falso, que faz adoecer; uma educação falsa, que separa o corpo da mente; enfurece os deuses, donos dos lugares importantes do mundo; não possibilita o respeito recíproco, não permite que se dê valor ao que existe; é uma desregulação, “des-lugarização” de um mundo perfeito; separa as pessoas de seus lugares, da terra -é o contraste com a possibilidade de ser um homem ou mulher verdadeiros ( bats’i ants vinik). Poderíamos dizer que o “mundo de um mundo”, a que fazem referência os autores do pluriverso, pode ser pensado com os educadores zapatistas como um mundo falso, que enfraquece e tira o lugar de outros mundos e palavras, podendo levar até ao fim do mundo.

Os fins do mundo

Os antigos profetas mayas anunciaram a chegada de epidemias, guerras e cataclismos na época colonial. Vapnarksy ( 2017VAPNARSKY, Valentina. 2017. “Futuros en contrapunto: proyección, predicción y deseo en maya yucateco”. Journal de la Société des Américanistes. https://doi.org/10.4000/jsa.15387.
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) assinala como, séculos depois, os mayas contemporâneos seguem interpretando o presente à luz das profecias. Para refletir sobre elas, é preciso considerar que os diferentes estudos etnográficos na região apontam para uma temporalidade cíclica 22 22 Os trabalhos de Gossen ( 1974), por exemplo, apontam como as profecias mayas fazem do futuro algo já conhecido; Le Guen ( 2012) mostra como há um retorno circular nos gestos. , em que o futuro 23 23 Vapnarksy ( 2017) aponta para a variedade de formas possíveis de futuro entre os mayas. está contido no passado. Neste sentido, o fim do mundo vai acontecer pois ele já sucedeu.

Segundo Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro ( 2014DANOWSKI, Déborah. & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2014. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro, Florianópolis, Editora Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental.), a história dos mayas conheceu alguns “fins”. Um deles foi a progressiva decadência em VII-X A.D. que sofreu essa poderosa civilização de grandes construções, provavelmente devido a uma combinação de conflitos sociopolíticos (revoltas e guerras) e um prolongado estresse ambiental (secas e esgotamento do solo). É interessante como os autores indicam que, mais do que um primeiro “fim do mundo” passado no período pré-colombiano, talvez o que tenha ocorrido seria algo às vezes até mais impensável do que o fim de um mundo: o fim de um Estado, com a retomada da autodeterminação dos povos a ele submetidos. Em seguida, com a invasão da América no século XVI, os mayas, como os demais povos do continente, sofreram com o genocídio dos povos ameríndios, a partir da imposição de um novo Estado colonial e do Mercado. Entretanto, ainda diante dessa tentativa de extermínio desses mundos, os mayas dos dias de hoje não apenas resistem na sua língua e existência, como são aqueles que, diante de cenário ainda tão similar ao das Américas no século XVI (um mundo invadido e dizimado por bárbaros estrangeiros), oferecem a experiência de uma das insurreições populares mais bem-sucedidas.

Ainda que a preocupação com o “tema aparentemente interminável do fim do mundo” não seja explicitada na Declaração zapatista em questão, ela é recorrentemente mencionada por porta-vozes oficiais do movimento e por nossos interlocutores educadores. Desde 2015, surgem constantes referências por parte dos subcomandantes zapatistas, tanto nos comunicados, como nos encontros públicos, em relação à “grave tormenta” em que já nos encontramos 24 24 A primeira referência a essa tormenta que se aproxima apareceu no comunicado de convocação para o Seminário do Pensamento Crítico frente à Hidra Capitalista (disponível em: http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2015/04/01/la-tormenta-el-centinela-yel-sindrome-del-vigia/). , um novo momento do capitalismo no qual se alastram catástrofes e pobreza.

Buscaremos apresentar algumas das teorias sobre o fim do mundo que me foram expostas pelos educadores zapatistas. Veremos como elas articulam (sem necessariamente homogeneizar) as vozes dos antigos, a presença da teologia da libertação, as preocupações do movimento e a relação com não indígenas na região. Foi no ConCiencias 25 25 O ConCiencias foi um encontro organizado pelos zapatistas que reuniu cientistas de diversos lugares do mundo em Chiapas. Para conhecer mais, ver: http://conciencias.org.mx. a primeira vez que escutei um zapatista falar sobre o tema.

No encontro, pude notar diversas perguntas que se repetiam: as perguntas giravam em torno de questões como o tempo de duração da Terra, a probabilidade de algo se colidir com a Terra, o tempo de duração do Sol e da vida, dentre outras. Neste mesmo encontro, diversos porta-vozes zapatistas afirmaram que, diante da catástrofe ecológica causada pela hidra capitalista, seria preciso reconfigurar as relações entre os conhecimentos. Para exemplificar, Subcomandante Moisés mencionou que, nas plantações de milho feitas na selva, antigamente eram necessários três meses para poder colher. Atualmente, os indígenas da região não podem mais contar com o ciclo antigo, pois a frequência da colheita diminuiu bastante. Nesse cenário, os conhecimentos científicos podem ajudar a lidar com tal situação dramática, especialmente quando estão em presença dos questionamentos indígenas que indagam os próprios fundamentos coloniais do conhecimento científico, o que estava ocorrendo no encontro.

Em outra ocasião, comentei distraidamente no Centro de Línguas o quanto o tempo tinha passado rápido, e uma educadora zapatista respondeu: “Sim, dizem que o tempo passa mais rápido quanto mais próximos estamos do fim do mundo”. 26 26 É interessante reparar como não são poucas as associações feitas entre o problema da “aceleração descontrolada” do tempo e a atual situação de crise planetária ( Danowski & Viveiros de Castro, 2014). Os educadores apontaram diferentes explicações para o fim do mundo nas comunidades e na região. Há a explicação mais ligada à Igreja católica, vinda de pessoas vinculadas à teologia da libertação 27 27 A teologia da libertação se desenvolveu em Chiapas como teologia índia, que tem seu foco nos povos indígenas. Se na sua fase inicial a teologia da libertação é marcada pela categoria “pobres”, sendo os indígenas incluídos dentro dessa maioria empobrecida, nesse outro momento abre-se espaço para uma atenção especial aos povos indígenas, o que se exprime na criação dessa nova tendência, a teologia índia. A religiosidade dos povos indígenas, historicamente combatida pela igreja católica, agora passa a ser reinterpretada a partir de Cristo ( Lupo, 2012). e à luta zapatista. Para elas, existe muita maldade sendo feita entre os seres humanos, diante disso Deus vai destruir todo o mundo ou quase… Pois há alguma chance para aqueles que sabem resistir, ou seja, os “de baixo”, os povos, os que já lutam cotidianamente, de conseguirem se salvar, já que esses não teriam feito maldades para serem castigados por Deus.

Há também uma outra teoria relacionada às pessoas mais velhas e aos yajval 28 28 Os yajval são os deuses, donos dos lugares importantes do mundo: há os deuses da terra, da montanha, dos rios etc. Segundo uma definição dada por Carlos Montemayor (2004), é também o antagonista. Vogt ( 1969) aponta como a relação dos seres humanos com os yajval balamil (deuses da terra) é marcada por uma ambivalência entre a admiração e o terror. : o slaje’m balumil (fim do mundo). Uma educadora explica que essa perspectiva é distinta do frenesi midiático que se criou em torno da data de 21 de dezembro de 2012. Nessa ocasião, houve toda uma repercussão, inclusive na mídia internacional, retomando as profecias dos mayas antigos. A San Cristóbal, uma das mais importantes cidades de Chiapas, chegaram diferentes pessoas ligadas a grupos “Nova Era”. Alguns afirmavam que as profecias mayas anunciavam um grande desastre natural culminando no fim imediato do planeta naquela data. Grupos como o Ascensión Nueva Terra asseguraram que os mayas previram que um raio de luz do centro da galáxia iria impactar o Sol com efeitos devastadores sobre a Terra.

Essa educadora soube que nessa época vieram pessoas de todo o mundo para Chiapas esperando o que ia acontecer. Mas ela conta que a mudança importante que ocorreu para os zapatistas foi distinta do que a maioria esperava. Para os zapatistas, a grande mudança foi a marcha silenciosa. Cerca de seis anos antes dessa marcha, o movimento entrou em um período de reclusão: não organizou muitas atividades abertas, nem divulgou muitos comunicados. A grande imprensa chegou a veicular diversas notícias insinuando que o zapatismo teria acabado. Ela explica que, ao contrário disso, o zapatismo não estava acabando, nem estava descansando, mas, sim, fortalecia sua autonomia interna, optando por não fazer desse trabalho algo público. Essa fase de reclusão acabou no dia da maior marcha pública zapatista, quando cerca de 30 mil indígenas zapatistas marcharam em completo silêncio em importantes cidades de Chiapas. Vindos das mais distintas regiões do estado de Chiapas, os zapatistas apareceram nas cidades com seus pasamontañas para marchar em fileiras com os punhos erguidos diante dos olhares estrangeiros. Alguns coletos 29 29 Como são chamados os moradores de Chiapas mexicanos e não indígenas. ficaram muito assustados pois, diante da aparição súbita dos encapuchados, chegaram a pensar que podia ser um novo levante. Mas, após o fim da marcha, os zapatistas saíram em pequenas caminhonetes de volta para seus povos.

Mais do que o fim do mundo, os mayas contemporâneos do movimento zapatista anunciavam, ao invés disso, um novo mundo. Dessa vez, os longos comunicados típicos do movimento cederam lugar a um breve comunicado com o seguinte texto: “ ¿Escucharon?, es el sonido de su mundo derrumbándose. Es el nuestro resurgiendo”. Junto da mensagem havia um áudio com a música “Como la cigarra”, composta em 1978, durante a ditadura militar argentina, por María Elena Walsh: “ Tantas veces me mataron, tantas veces me morí, no entanto estoy aqui ressuscitando […] cantando al sol como la cigarra después de un año bajo la tierra, igual que sobreviviente que vuelve de la guerra”. A aparição de numerosos zapatistas, que falavam simplesmente com a sua presença: Estamos aqui.

Essa educadora contou que uma grande parte dos que participaram da marcha eram jovens, uma nova etapa da luta começava. No entanto, ressalta ela, essa nova etapa da luta não descarta a ideia de que o mundo pode acabar (ou já está acabando). Ela explica melhor então de que falam os mais velhos quando mencionam o slaje’m balumil. Essa noção seria bem distinta da narrativa da Igreja, principalmente porque, para os mais velhos, a Terra e outros lugares importantes do mundo são sagrados. E os yajval que habitam esses lugares importantes da natureza estão zangados, pois muitos homens estão provocando sua destruição e sem respeitar esses lugares. Por isso, muitas vezes a Terra treme, diz ela. Mas isso não é um castigo como diz a Igreja; o que ocorre é que os yajval estão zangados.

Ocorreu algo no povoado dessa educadora, situado próximo ao Caracol de Oventik, que podemos relacionar com essa teoria do slaje’m balumil. Ela relatou que, por conta da destruição causada pelos capitalistas, o clima está mudando muito, e uma das consequências disso que mais afeta seu povo é o atraso das chuvas.

Havia, então, uma grande seca na região. A educadora relata: “Conhecíamos bem como plantar milho, mas a chuva não veio, então a plantação secou e quase não houve colheita”. Depois de um tempo, enfim a chuva veio, mas chegou com muita força, acompanhada de um grande vento. Foi uma tempestade tão grande que acabou com a pouca plantação que tinha vingado. Nessa época, a Igreja disse que isso ocorrera por conta dos pecados das pessoas da região. Para os indígenas mais velhos, isso tinha ocorrido porque muitas pessoas que plantaram não haviam feito oferendas; só plantavam sem agradecer aos deuses, donos dos lugares importantes. Ela diferencia novamente as posições dos mais velhos e da Igreja: “os avós falavam para agradecermos à terra, diferente das igrejas que falavam que a gente tinha feito coisas ruins e por isso Deus estava castigando”.

Nessa ocasião, uma situação foi emblemática. Um indígena mais velho foi um dos únicos que nunca deixou de fazer oferendas quando plantava. Suas plantações estavam sempre com velas e até incensos como uma forma de agradecer à terra. Quando ocorreu a seca e a tempestade que a seguiu, sua plantação foi a única que não sofreu nenhum problema.

Muitos do povoado ficaram impressionados com a colheita desse homem, ao mesmo tempo que se davam conta de que não era mais tão comum fazer oferendas para a terra. Depois disso, alguns voltaram a fazer suas oferendas, mas a comunidade ainda é muito dividida entre aqueles que fazem oferendas e os que não fazem. Aqueles que fazem oferendas podem ser indígenas zapatistas ou não. Porém, a ideia de que os danos causados pelos capitalistas estão influenciando a relação dos yajval com as pessoas e seus lugares e causando slaj’em balumil, essa sim está mais ligada ao que pensam os zapatistas.

Podemos identificar também que, nessa explicação do slaj’em balumil, o fim do mundo não aparece como um único ato súbito (com um grande dia marcado por um desastre natural, por exemplo), mas, sim, como um processo contínuo de degradação ligado tanto a um enfraquecimento da relação com os yajval por parte dos povos, quanto ao profundo desrespeito por parte dos capitalistas, que só causam danos e destruição para esses lugares importantes do mundo. Os educadores, em diferentes ocasiões, alertaram aos estudantes não indígenas: “o mundo já está acabando e temos pouco tempo”, “o zapatismo está alertando, há uma tormenta e já estamos dentro dela”, “se a gente não se dá conta, não se organiza, tudo vai acabar nesse mundo”, “a destruição já está ocorrendo… não vamos esperar sentir o tremer da Terra, a gente não sente, mas a Terra já está tremendo”. Outro apontamento dos educadores é que, diante dessa situação que se espalha por todo o mundo, não é possível resistir apenas em seu próprio território, mas é preciso articular as resistências, como uma possibilidade de frear essa destruição. Voltamos à Declaração, em que se afirma a importância da multiplicidade em tempos de catástrofe do mesmo mundo.

Em um contexto de contínua degradação, os zapatistas conseguem, apesar de tudo, anunciar seu mundo ressurgindo, divergindo do espetáculo midiático em torno das profecias mayas. Os educadores zapatistas alertam para a tormenta em que já estamos, mas ainda assim desenham um outro futuro no presente. O futuro-presente talvez seja algo muito distinto, pois é preciso ter a perspectiva de tempo dos caracóis (como são chamados os centros administrativos zapatistas). Os caracóis são uma espiral, explicam os educadores. Para os mais velhos, a palavra caracol ( to’t) significa que vão comunicar algo para muita gente. É uma maneira de dizer que não há princípio nem fim, pois é um espaço aberto para muitos tempos e formas de viver diferentes.

Começo-meio-começo

Ao experimentarmos pensar a Quarta Declaração Zapatista com os educadores tzotzil, produzimos um deslocamento de alguns de seus termoschaves -como palavras, mundo, verdade -e de outros que são caros às filosofias políticas do Ocidente -como trabalho, capitalismo, humano. Vemos como a máxima zapatista tece uma proposta de organização política horizontalizada, que se desdobra na Sexta Declaração Zapatista e na articulação entre a autonomia local e a crítica anticapitalista, ao mesmo tempo que possibilita também uma reinvenção metafísica das práticas que habilitam o Antropoceno.

As palavras dessa Declaração podem ressoar em outros mundos (dos movimentos sociais aos acadêmicos inspirados pelos zapatistas) como seres animados que agem e falam através das pessoas, e não são simplesmente um texto a ser lido e interpretado. Se somos afetados pela noção de verdadeiro dos educadores zapatistas, ao invés de uma interpretação da verdade unicista, vemos como é preciso pensar a Declaração a partir da relação de pertencimento a um lugar.

Lembrando as falas dos educadores sobre o respeito à grandeza recíproca do outro ( ichba il tamuk), os muitos mundos precisam coexistir no mesmo mundo não porque os seres são todos iguais, mas porque são diferentes, porque têm seu valor recíproco próprio.

O mundo do poderoso é um mundo falso, que enfraquece e tira o lugar de outros mundos e palavras. O mundo de muitos mundos é atravessado pelos fins cíclicos de um passado-futuro. Este mundo, compartilhado nas diferenças, não deve ser uma propriedade ou recurso, mas um lugar ao qual as pessoas verdadeiras pertencem (sem supremacia de um mundo ou espécie).

Certa vez, um educador zapatista me disse: “ el zapatismo no busca ser un modelo a que todos deben de seguir igualmente, pero es un llamado para que los pueblos luchen en sus modos con sus distintas geografías”. A diferença entre chamado e modelo trazida por ele foi depois aprofundada por Eduardo Viveiros de Castro (2016b) através da diferenciação entre os termos exemplo/chamado e modelo 30 30 Segundo o autor, “Modelos são como Ideias platônicas, que se pode (que se deve) apenas copiar, sempre, é inevitável, imperfeitamente – os povos são sempre atrasados, ignorantes, recalcitrantes –, como os “modelos de desenvolvimento” impostos a ferro e a fogo pelos Bancos Mundiais, os FMI, os Estados Unidos e a Comunidade Europeia, e, por último, mas não por menos autoritários, os Governos de nosso trágico país. Exemplos instigam à experimentação e à criação. Modelos, à obediência e à servidão. Exemplos se seguem, como se segue uma pista que nos leva aos nossos próprios lugares; modelos se aplicam – sempre aos outros, aos menores, aos menos, aos que se obriga serem aplicados nos modelos que lhes empurram goela abaixo” (2016b: 49). .

As Declarações da Selva Lacandona funcionam não apenas como uma maneira de publicizar as decisões do movimento, ou um modelo a ser seguido, mas também são um chamado que tem suas múltiplas ressonâncias. Tal caminhar também está presente na educação autônoma, baseada nos chamados e perguntas e não em um modelo fechado ( Morel, 2023MOREL, Ana Paula. 2023. “O movimento zapatista e a indigenização da educação popular”. Caderno CRH, 36, e023004. https://doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.52255.
https://doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.52255...
). O chamado zapatista é um apelo para as múltiplas autonomias, porém não para que todos tenham uma vida idêntica à dos zapatistas. É um chamado para resistências que sigam as questões e necessidades das diferentes geografias e povos pertencentes a seus lugares.

A última seção deste artigo inicia com uma referência a Nêgo Bispo ( 2022BISPO, Nêgo. 2022. “Começo-meio-começo”. In: FIRMEZA, Y. et al. (orgs.). Composto-escola: comunidades de sabenças vivas. São Paulo, N-1 Edições.). O autor aponta para um começo-meio-começo, sem postular um fim, opondo-se às ficções salvacionistas de uma terra prometida. A incompletude da escola, para ele, seria a sua maior potência. Poderíamos pensar que para os muitos mundos e suas ressonâncias também.

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  • VOGT, Evon. 1969. Zinacantan: A Maya Community in the Highlands of Chiapas. Cambridge, The Belknap Press (of Harvard University Press).
  • 1
    Tradução nossa de trecho da Cuarta Declaración de La Selva Lacandona, disponível em: https://enlacezapatista.ezln.org.mx/1996/01/01/cuarta-declaracion-dela-selva-lacandona/.
  • 2
    Os mayas, que se dividem em diferentes povos e línguas, formam a maioria da população indígena em Chiapas. Carlos Lenkersdof, em seu texto Cosmovisão maya, define os maya como: “[…] cerca de trinta povos ou nações com idiomas relacionados, mas diferentes. Derivamse de um campo comum denominado protomaia que não é mais falado e que foi em parte reconstruído por alguns linguistas” ( Lenkersdof, 1999 p. 10:LENKERSDOF, Carlos. 1999. Cosmovisión Maya. México, Centro de Estudios Antropológicos, Científicos, Artísticos, Tradicionales.).
  • 3
    Como o altermundialismo, movimentos indígenas e curdos pela autodeterminação, movimentos contra a destruição de rios e montanhas sagradas, movimentos de mulheres que conjugam a luta ecológica, antipatriarcal e anticolonial, dentre outros.
  • 4
    Movimentos que trazem à tona a questão de referências humanas e não humanas como parte ativa na luta pela terra ameaçada pelo avanço do capitalismo ( La Cadena, 2010LA CADENA, Marisol. 2010. “Indigenous Cosmopolitics in the Andes: Conceptual reflections beyond ‘politics’”. Cultural Anthropology, 25 (2): 334-370. https://doi.org/10.1111/j.1548-1360.2010.01061.x.
    https://doi.org/10.1111/j.1548-1360.2010...
    ).
  • 5
    O termo educadores é uma tradução equívoca nossa para designar os promotores autónomos de educación que são indígenas das comunidades que têm uma formação contínua em educação autônoma nos espaços do movimento. Em tzotzil, o educador/promotor é chamado jnikesvany, que significa “a pessoa que move”. Sobre isso, ver mais em Morel ( 2023MOREL, Ana Paula. 2023. “O movimento zapatista e a indigenização da educação popular”. Caderno CRH, 36, e023004. https://doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.52255.
    https://doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.52255...
    ).
  • 6
    Fala proferida por Txai Suruí na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, ocorrida em 2021, na Escócia. É possível acessar o discurso completo em: https://www.youtube.com/watch?v=1gnUH7HNBAU. Acesso em: 28 mar. 2023.
  • 7
    Tal deslocamento parte do princípio de que a dominação político-econômica das sociedades indígenas pela “sociedade envolvente” e seu aparelho de Estado não deve levar ao privilegiamento teórico da segunda, o que pressuporia um englobamento absoluto, heteronômico, dos povos politicamente dominados pelo Estado-Nação. Trata-se de insistir, na construção do trabalho etnográfico, sobre a realidade e a efetividade das resistências à unificação promovida pela lógica estatal. Ver, por exemplo, Lima ( 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia Tupi”. Mana, Rio de Janeiro, 2 (2): 21-47. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200002.
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313199600...
    ), Viveiros de Castro ( 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de Antropologia. São Paulo, Cosac Naify.).
  • 8
    Cheguei a Chiapas pela primeira vez em dezembro de 2013 para participar da festa de vinte anos do levante zapatista e da Escuelita Zapatista. Voltei para realizar etnografia para minha tese de doutorado nos anos seguintes (grande parte do ano de 2015, trechos de 2016 e 2017).
  • 9
    É importante ressaltar que usamos o termo “comunidade”, recorrentemente utilizado por indígenas e não indígenas na região para designar localidades onde vivem os indígenas zapatistas e não zapatistas.
  • 10
    Para conhecer mais sobre a proposta do Sistema de Educação Autônomo Zapatista, ver, por exemplo, Barronet ( 2012BARONNET, Bruno. 2012. Autonomía y educación indígena. Las escuelas zapatistas de la Selva Lacandona de Chiapas, México. Quito, Ediciones Abya-Yala.) e Gutierrez ( 2005GUTIERREZ, Raul. 2005. Escuela y zapatismo entre los tzotziles: entre la asimilación y la resistencia. Análisis de proyectos de educación básica oficiales y autónomos. México, Tesis, Maestría en Antropología Social, Ciesas Sureste.).
  • 11
    A ideia de equívoco aparece aqui em sentido semelhante ao apontado por Eduardo Viveiros de Castro: “A equivocação não é o que impede a relação, mas o que a funda e impele: a diferença de perspectiva. Para traduzir é preciso presumir que uma equivocação sempre existe, e é isso que comunica as diferenças ao invés de silenciar o outro presumindo uma univocidade – a similaridade essencial – entre o que o Outro e nós estamos dizendo”. (Viveiros de Castro, 2004: 8)
  • 12
    Por este motivo os chamo, neste artigo, de “educadores zapatistas”, o que não é uma busca por generalizar os distintos educadores zapatistas, nem por construir homogeneizações sobre a educação zapatista, ou sobre os indígenas da região, mas sim uma maneira de colocar um “pasamontaña” nos seus nomes.
  • 13
    Em relação a esse debate, recordamos os três imperativos básicos do pacto etnográfico apontados por Bruce Albert ( 1997ALBERT, Bruce. 1997. “Situation ethnographique et mouvements ethniques: réflexions sur le terrain post-malinowskien”. In: Augé M. (pref.) Anthropologues en dangers: l’engagement sur le terrain. Paris, Jean-Michel Place, pp. 75-88.), que afirma que o antropólogo deve, em primeiro lugar, fazer justiça à imaginação conceitual de seus interlocutores, em seguida, levar em conta o contexto sociopolítico pelo qual esse se insere, e, por último, ter um olhar crítico sobre o quadro da pesquisa etnográfica.
  • 14
    As ideias zapatistas aparecem como “dotadas de uma significação propriamente filosófica, ou como potencialmente capazes de um uso filosófico” ( Viveiros de Castro, 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “O nativo relativo”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 8 (1): 113-148. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000100005.
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200200...
    ).
  • 15
    Compartilhamos, então, das preocupações de Lucas da Costa Maciel ( 2018MACIEL, Lucas. 2018. Os murais zapatistas e a estética tzotzil: pessoa, política e território em Polhó, México. São Paulo, Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, USP.) sobre a importância de reconhecer o papel pedagógico do zapatismo ao realizar uma etnografia com os zapatistas, em que caminhamos perguntando, sem simplesmente descrever o mundo do outro, mas produzindo um mundo-ponte.
  • 16
    Sobre tal aspecto da história do zapatismo, ver: Reyes Ramos ( 2001REYES RAMOS, María Eugenia. Oct.-Dec. 2001. “El movimiento zapatista y la redefinición de la política agraria en Chiapas”. Revista Mexicana de Sociología, 63 (4): 197-220.), Bâschet ( 2021BASCHÊT, Jêrome. 2021. A experiência zapatista. São Paulo, N-1 Edições.).
  • 17
    A linha de ação, apoiada no combate militar, era efetuada através da Secretaria de Defesa Nacional (Sedena) com os objetivos explícitos de: “destruir la voluntad de combatir del EZLN”, “organizar secretamente a certos setores de la populación civil, dentre gañaderos, pequeños proprietários y indivíduos caracterizados con um alto sentido patriótico, quienes serán empleados a órdenes en apoyo de nuestras operaciones” e ainda “aplicar la censura a los diferentes médios de difusión massivas” ( Dominguez, 2006DOMINGUEZ, Onésimo, 2006. Tras los Pasos de una Guerra Inconclusa (Doce años de Militarización en Chiapas). San Cristóbal, Ciepac, A.C.: 184). Esse trecho deixa clara a própria vontade do governo em angariar civis com “alto sentido patriótico” para seguir suas operações militares. Esses civis logo se tornaram grupos paramilitares e passaram a constituir uma das principais práticas de contrainsurgência.
  • 18
    Dentre pontos que atravessam os direitos da mulher indígena, a educação pluriétnica, esse documento estabelece o compromisso do governo mexicano com a autodeterminação dos povos indígenas. Um dos pontos mais polêmicos da negociação de San Andrés, que não entrou no documento final, foi a possibilidade de reformar o artigo 27 da Constituição para garantir a integridade territorial dos povos indígenas. A não entrada desse ponto desagradou bastante ao movimento zapatista, que sempre demonstrou ter a questão da terra como um nó central da luta por autonomia.
  • 19
    A história de surgimento do zapatismo é marcada pela relação com um grupo guerrilheiro vindo de origem urbana que viveu por anos na clandestinidade entre os indígenas mayas da região.
  • 20
    Sobre a dimensão do controle do corpo entre os tzotzil, sugiro o interessante artigo de Boyer ( 2012BOYER, Isabel. 2012. “Ach’ kuxlejal: el nuevo vivir. Amor, carácter y voluntad en la modernidad tzotzil”. In: PITARCH, Pedro & OROBITG, Gemma (eds.). Modernidades indígenas. Madri, Iberoamericana Vervuert.).
  • 21
    Outra distinção em relação ao perspectivismo, interessante de ser aprofundada em trabalhos futuros, é a existência de multiplicidade como algo interno à pessoa ( Pitarch, 1996PITARCH, Pedro. 1996. Ch’ulel: una etnografía de las almas tzeltales. México, Fondo de Cultura Económica.). A constituição da pessoa e da sociedade indígena na região seria marcada fundamentalmente pela presença interiorizada dos estrangeiros inimigos.
  • 22
    Os trabalhos de Gossen ( 1974GOSSEN, Gary. 1974. Chamulas in the World of the Sun: Time and Space in a Maya Oral Tradition. Cambridge, Harvard University Press.), por exemplo, apontam como as profecias mayas fazem do futuro algo já conhecido; Le Guen ( 2012LE GUEN, Olivier. 2012. “An Exploration in the Domain of Time: from Yucatec Maya Time Gestures to Yucatec Maya Sign Language Time Signs”. In: ZESHAN, Ulrike & VOS, Connie de (orgs.). Sign Languages in Village Communities: Anthropological and Linguistic Insights. Berlim, Boston, Mouton de Gruyter & Ishara Press, pp. 209-250. https://doi.org/10.1515/9781614511496.209.
    https://doi.org/10.1515/9781614511496.20...
    ) mostra como há um retorno circular nos gestos.
  • 23
    Vapnarksy ( 2017VAPNARSKY, Valentina. 2017. “Futuros en contrapunto: proyección, predicción y deseo en maya yucateco”. Journal de la Société des Américanistes. https://doi.org/10.4000/jsa.15387.
    https://doi.org/10.4000/jsa.15387...
    ) aponta para a variedade de formas possíveis de futuro entre os mayas.
  • 24
    A primeira referência a essa tormenta que se aproxima apareceu no comunicado de convocação para o Seminário do Pensamento Crítico frente à Hidra Capitalista (disponível em: http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2015/04/01/la-tormenta-el-centinela-yel-sindrome-del-vigia/).
  • 25
    O ConCiencias foi um encontro organizado pelos zapatistas que reuniu cientistas de diversos lugares do mundo em Chiapas. Para conhecer mais, ver: http://conciencias.org.mx.
  • 26
    É interessante reparar como não são poucas as associações feitas entre o problema da “aceleração descontrolada” do tempo e a atual situação de crise planetária ( Danowski & Viveiros de Castro, 2014DANOWSKI, Déborah. & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2014. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro, Florianópolis, Editora Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental.).
  • 27
    A teologia da libertação se desenvolveu em Chiapas como teologia índia, que tem seu foco nos povos indígenas. Se na sua fase inicial a teologia da libertação é marcada pela categoria “pobres”, sendo os indígenas incluídos dentro dessa maioria empobrecida, nesse outro momento abre-se espaço para uma atenção especial aos povos indígenas, o que se exprime na criação dessa nova tendência, a teologia índia. A religiosidade dos povos indígenas, historicamente combatida pela igreja católica, agora passa a ser reinterpretada a partir de Cristo ( Lupo, 2012LUPO, Alessandro. 2012. “La indianización del Evangelio: los protagonistas de la transformación posconciliar del catolicismo indígena mexicano”. In: PITARCH, Pedro. & ORBITZ, Gemma. Modernidades indígenas. Madri, Iberoamericana Vervuert.).
  • 28
    Os yajval são os deuses, donos dos lugares importantes do mundo: há os deuses da terra, da montanha, dos rios etc. Segundo uma definição dada por Carlos Montemayor (2004), é também o antagonista. Vogt ( 1969VOGT, Evon. 1969. Zinacantan: A Maya Community in the Highlands of Chiapas. Cambridge, The Belknap Press (of Harvard University Press).) aponta como a relação dos seres humanos com os yajval balamil (deuses da terra) é marcada por uma ambivalência entre a admiração e o terror.
  • 29
    Como são chamados os moradores de Chiapas mexicanos e não indígenas.
  • 30
    Segundo o autor, “Modelos são como Ideias platônicas, que se pode (que se deve) apenas copiar, sempre, é inevitável, imperfeitamente – os povos são sempre atrasados, ignorantes, recalcitrantes –, como os “modelos de desenvolvimento” impostos a ferro e a fogo pelos Bancos Mundiais, os FMI, os Estados Unidos e a Comunidade Europeia, e, por último, mas não por menos autoritários, os Governos de nosso trágico país. Exemplos instigam à experimentação e à criação. Modelos, à obediência e à servidão. Exemplos se seguem, como se segue uma pista que nos leva aos nossos próprios lugares; modelos se aplicam – sempre aos outros, aos menores, aos menos, aos que se obriga serem aplicados nos modelos que lhes empurram goela abaixo” (2016b: 49).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2023
  • Aceito
    17 Out 2023
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