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De Columbine a Suzano: uma análise sócio-histórica de atentados escolares

From Columbine to Suzano: a socio-historical analysis of school shootings

De Columbine a Suzano: un análisis sociohistórico de los ataques a escuelas

De Columbine à Suzano: une analyse socio-historique des attentats scolaires

Resumo

Apesar dos 11 atentados escolares registrados no Brasil, os debates acadêmicos sobre o assunto ainda são escassos. O objetivo deste ensaio foi identificar as categorias histórico-sociais que permeiam a formação da singularidade dos infratores. Consultamos os materiais publicados pela mídia sobre os atentados brasileiros e as categorias encontradas na literatura internacional sobre o tema. Nossa análise fundamentou-se na perspectiva marxista, destacando as condições sociais, históricas e materiais nas quais os atentados ocorreram. Apontamos a socialização masculina, a relação com grupos de extrema direita e a reprodução da violência estrutural como configurações histórico-sociais fundamentais. Identificamos, também, que a destruição dos postos de trabalho e a assimilação da noção de indivíduo neoliberal agravam a cisão entre as dimensões coletivas e particulares, produzindo sujeitos que reproduzem a competitividade do mercado como régua para outras relações. O processo de precarização da escola pública a torna um alvo dos atentados, devido à ruptura que estabelece entre sujeito, educação e trabalho.

Palavras-chave:
escola; violência; materialismo

Abstract

Despite the eleven school shootings registered in Brazil, academic debate on the subject is still scarce. This essay sought to identify the historical-social categories that inform the offenders’ singularity. We consulted media materials about the Brazilian shootings and the categories found in the international literature. Based on a Marxist analysis, we highlight the social, historical and material conditions of the attacks. Male socialization, association with far-right groups and reproduced structural violence emerge as fundamental historical-social configurations. Moreover, job precarization and the assimilation of the neoliberal individual aggravate the split between collective and private dimensions, producing subjects that use market competitiveness as a measure for other relations. The precarization of public school makes it a target of attacks due to the break it establishes between the subject, education and work.

Keywords:
school; violence; materialism

Resumen

Se han registrado 11 ataques a escuelas en Brasil, pero todavía los debates académicos son escasos. El objetivo de este ensayo fue identificar las categorías históricas y sociales que median la formación de la singularidad de los infractores. Consultamos los materiales publicados por los medios de comunicación sobre los ataques brasileños y las categorías encontradas en la literatura internacional sobre el tema. Nuestro análisis se basó en la perspectiva marxista, destacando las condiciones sociales, históricas y materiales en las cuales ocurrieron los ataques. Apuntamos a la socialización masculina, la relación con los grupos de extrema derecha y la reproducción de la violencia estructural como las configuraciones histórico-sociales fundamentales. Identificamos también que la destrucción de las posibilidades de trabajo y la asimilación de la noción del individuo neoliberal agravan la separación entre las dimensiones colectivas y particulares, produciendo sujetos que reproducen la competitividad del mercado como regla para otras relaciones. El proceso de precarización de la escuela pública la pone en mira de los ataques, debido a la ruptura que hay entre sujeto, educación y trabajo.

Palabras clave:
escuela; violencia; materialismo

Résumé

Malgré les onze attentats scolaires enregistrés au Brésil, le débat académique sur le sujet est encore rare. Cet essai a cherché à identifier les catégories socio-historiques qui informent la singularité des contrevenants. Nous avons consulté des documents médiatiques sur les attentats brésiliens et les catégories trouvées dans la littérature internationale. Sur la base d’une analyse marxiste, nous mettons en évidence les conditions sociales, historiques et matérielles des attentats. La socialisation masculine, l’association avec des groupes d’extrême droite et la violence structurelle reproduite apparaissent comme des configurations socio-historiques fondamentales. De plus, la précarisation du travail et l’assimilation de l’individu néolibéral aggravent le clivage entre les dimensions collectives et privées, produisant des sujets qui utilisent la compétitivité du marché comme mesure pour d’autres relations. La précarisation de l’école publique en fait une cible pour les attentats dû à la rupture qu’elle établit entre le sujet, l’éducation et le travail.

Mots-clés:
école; violence; matérialisme

Somente nos últimos três anos, quatro atentados escolares foram noticiados no Brasil. Embora seja considerado um evento raro, atentados escolares causam horror devido à falsa percepção da escola como ambiente seguro e harmônico (Gerard, Whitfield, Porter, & Browne, 2016Gerard, F. J., Whitfield, K. C., Porter, L. E., & Browne, K. D. (2016). Offender and offence characteristics of school shooting incidents. Journal of Investigative Psychology and Offender Profiling, 13(1), 22-38. doi: 10.1002/jip.1439
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). A compreensão dos atentados escolares por meio de notícias jornalísticas é distorcida, pois a apresentação dos fatos é fragmentada e, por vezes, os relatos geram interpretações incompatíveis entre si1 1 Muschert (2007) descreve essa distorção como Rashomon effect, em referência ao filme do diretor Kurosawa, no qual um crime é descrito pela perspectiva de quatro testemunhas diferentes, resultando em análises conflitivas. . A mídia tende transformá-los em espetáculos (Frymer, 2009Frymer, B. (2009). The media spectacle of columbine: Alienated youth as an object of fear. American Behavioral Scientist, 52(10), 1387-1404. doi 10.1177/0002764209332554
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), o que constrói um senso hiper-realista de uma juventude ameaçadora, rebelde e violenta que deve ser punida e eliminada (Oliveira & Rosa, 2010Oliveira, M. B. de, & Rosa, E. M. (2010). Juventude, violência e alteridade. Temas em Psicologia, 18(1), 113-121. Recuperado em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2010000100010&lng=pt&tlng=pt
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
).

Estudos sobre atentados escolares são mais comuns nos Estados Unidos da América (EUA), especialmente devido às novas características que assumiram após o Massacre de Columbine2 2 Massacre escolar ocorrido em 20 de abril de 1999 na Columbine High School, em Columbine, nos EUA. Dois atiradores alunos da escola mataram 12 alunos, um professor e feriram outras 21 pessoas. Logo após o ocorrido, houve suicídio dos autores do crime. . No Brasil, casos de atentados escolares são documentados desde 2002, mas sem receber o devido tratamento científico nos espaços de debates acadêmicos. Para preencher essa lacuna, apresentamos este ensaio teórico-documental, resultado de um estudo inicial sobre a temática. Os objetivos do ensaio são: (1) apresentar uma síntese dos atentados escolares brasileiros; (2) identificar e analisar os fatores histórico-sociais predominantes que influenciam na formação da singularidade dos infratores; e (3) identificar as possíveis razões para a escola ser o palco desses ataques.

Em contraste com a análise apresentada pela mídia, partimos dos pressupostos do materialismo histórico-dialético para compreender os atentados escolares como um fenômeno determinado histórica, social e culturalmente. Para isso, utilizamos os documentos jornalísticos produzidos pela cobertura midiática como ponto de partida.

Princípios teórico-metodológicos

A análise científica pautada no materialismo histórico-dialético difere a aparência do fenômeno de sua essência (Lefebvre, 1979Lefebvre, H. (1979). Lógica formal/Lógica dialética (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), a qual diz respeito às suas leis internas, ou seja, ao seu desenvolvimento enquanto objeto pertencente a uma realidade histórica e social mais ampla. Como dois lados da mesma moeda, a aparência e a essência formam uma unidade na qual a última corresponde aos traços mais gerais do fenômeno e a primeira aos seus aspectos singular-particulares (Lefebvre, 1979Lefebvre, H. (1979). Lógica formal/Lógica dialética (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.).

A essência representa o leque de possibilidades do ser, que são concretizadas em cada traço que o fenômeno assume no devir histórico e social, singularizando-o. Neste ensaio, as informações midiáticas correspondem ao conhecimento imediatamente produzido sobre a temática, mas é mediante a análise científica que podemos identificar os traços mais gerais do atentado escolar, apresentando-o como produto histórico-social.

Vigotski (1989Vigotski, L. S. (1989). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo, SP: Martins Fontes .) sintetiza os fundamentos da análise científica marxista em três itens: (1) a superação da mera descrição pela análise do processo; (2) a investigação do desenvolvimento do fenômeno que, na aparência, se apresenta como “fossilizado”; e (3) a análise do processo de formação de determinado fenômeno e não de objetos estáticos.

Definição e caracterização do fenômeno

Não há consenso na literatura sobre a definição de atentado escolar (Gerard et al., 2016Gerard, F. J., Whitfield, K. C., Porter, L. E., & Browne, K. D. (2016). Offender and offence characteristics of school shooting incidents. Journal of Investigative Psychology and Offender Profiling, 13(1), 22-38. doi: 10.1002/jip.1439
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). Há dúvidas, por exemplo, se seria um tipo de atentado em massa (Capellan, Johnson, Porter, & Martin, 2018Capellan, J. A., Johnson, J., Porter, J. R., & Martin, C. (2018). Disaggregating mass public shootings: a comparative analysis of disgruntled employee, school, ideologically motivated, and rampage shooters. Journal of Forensic Sciences, 64(3), 814-823. doi: 10.1111/1556-4029.13985
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; Rocque & Duwe, 2018Rocque, M., & Duwe, G. (2018). Rampage shootings: an historical, empirical, and theoretical overview. Current Opinion in Psychology, 19, 28-33. doi: 10.1016/j.copsyc.2017.03.025
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) ou se mereceria uma classificação à parte (Muschert, 2007Muschert, G. W. (2007). Research in School Shootings. Sociology Compass, 1(1), 60-80. doi: 10.1111/j.1751-9020.2007.00008.x
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). O que há de semelhante nas definições é que os atentados escolares envolvem um perpetrador que é um estudante ou ex-estudante e mata múltiplas vítimas em uma instituição escolar. São considerados uma forma de violência simbólica, pois a intenção é mandar uma mensagem para a audiência em geral, não somente às vítimas (Rocque & Duwe, 2018Rocque, M., & Duwe, G. (2018). Rampage shootings: an historical, empirical, and theoretical overview. Current Opinion in Psychology, 19, 28-33. doi: 10.1016/j.copsyc.2017.03.025
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).

Neste ensaio, utilizaremos a classificação de Muschert (2007Muschert, G. W. (2007). Research in School Shootings. Sociology Compass, 1(1), 60-80. doi: 10.1111/j.1751-9020.2007.00008.x
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). Segundo o autor, os atentados escolares podem ser divididos em rampage shooting e targeted shooting3 3 Traduzimos livremente rampage shooting como tiroteio violento e targeted shooting como tiroteiro direcionado (com alvo específico). Essa tradução visa a melhor compreensão do conceito. Ao longo do texto, manteremos a tradução original. : Rampage shooting se refere aos atentados que buscam atingir a instituição em si, escolhendo vítimas por sua significância simbólica, frequentemente almejando a demonstração e conquista de poder diante da comunidade. Targeted shooting caracteriza atentados nos quais procura-se saciar o sentimento de vingança ao causar danos em pessoas previamente estabelecidas, que são escolhidas como alvo devido a alguma percepção de maltrato pelo infrator, em uma história prévia entre atirador e vítima.

Duas particularidades dos casos brasileiros em relação à classificação utilizada são que: (1) é comum o uso de armas brancas em conjunto com armas de fogo; e (2) alguns dos atentados deixaram apenas feridos. Apesar da definição norte-americana incluir a morte como critério, aqui levamos em consideração também a intenção do infrator.

Objetivo 1: levantamento dos atentados escolares brasileiros

Ao todo, foram 11 ataques em escolas, ocorridos entre 2002 e 2021. O primeiro aconteceu em 2002, em Salvador (BA). Um menino de 17 anos cometeu atentado a uma escola particular, da qual era aluno. Duas meninas foram mortas. Em seguida, foi preso. Na época, foi alegado bullying por parte das meninas como a principal motivação (“Estudante mata duas”, 2002Estudante mata duas colegas dentro de escola em Salvador. (2002, 28 de outubro). UOL . Recuperado de https://noticias.uol.com.br/inter/reuters/2002/10/28/ult27u27985.jhtm
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). Antes do atentado, avisou aos colegas que as mataria. Foi utilizada a arma de fogo do pai.

Em 2003, Taiúva, norte do estado de São Paulo (SP), um garoto de 18 anos, aluno da escola pública, atirou em sete pessoas e cometeu suicídio depois. Foi alegado que ele sofria bullying e que os ataques foram direcionados (“‘Piores memórias’,”, 2019“Piores memórias”, diz professor ao lembrar ataque ocorrido há 16 anos em escola de Taiúva, SP. (2019, 13 de março). G1 . Recuperado de https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2019/03/13/piores-memorias-diz-professor-ao-lembrar-ataque-ocorrido-ha-16-anos-em-escola-de-taiuva-sp.ghtml
https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-f...
). O atirador guardava documentos sobre Hitler e identificava-se com os princípios nazistas. A investigação associou o atentado a crimes de ódio contra minorias (“Moradores de Taiúva”, 2003Moradores de Taiúva estão chocados com atentado a escola. (2003, 29 de janeiro). Folha de Londrina. Recuperado de https://www.folhadelondrina.com.br/geral/moradores-de-taiuva-estao-chocados-com-atentado-a-escola-432987.html
https://www.folhadelondrina.com.br/geral...
). Não se sabe a origem da arma, mas o adolescente praticava tiros com arma de chumbinho (Henrique, 2011Henrique, B. (2011). ‘‘Ele me traiu”, diz mãe de autor do ataque em Taiuva em 2003. Estadão. Recuperado de https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,ele-me-traiu-diz-mae-de-autor-de-ataque-em-taiuva-em-2003-imp-,704265
https://sao-paulo.estadao.com.br/noticia...
).

Em 2011, dois ataques aconteceram. O primeiro, em Realengo, Rio de Janeiro (RJ). Um garoto de 23 anos, ex-aluno da escola pública, atirou somente em garotas. Houve suicídio em seguida. Disseram que ele sofria bullying na época do colégio e tinha relações com ideias religiosas fundamentalistas (“Manuscritos de atirador”, 2011Manuscritos de atirador mostram fixação por terrorismo. (2011, 10 de abril). G1 . Recuperado de http://g1.globo.com/Tragedia-em-Realengo/noticia/2011/04/manuscritos-de-atirador-mostram-fixacao-por-terrorismo.html
http://g1.globo.com/Tragedia-em-Realengo...
). O jovem atirou em braços e pernas de meninos, já nas meninas, atirou exclusivamente na cabeça. A investigação também descobriu que o garoto admirava os ataques de 11 de setembro4 4 Ataques terroristas contra os EUA, realizados em 11 de setembro de 2001 e coordenados pela organização fundamentalista islâmica al-Qaeda. . Após esse atentado, muitas comunidades no Orkut foram criadas para apoiar e incentivar atos semelhantes, além de defender estupro como prática corretiva para mulheres homossexuais e morte a negros, gays e andarilhos (“Massacre de Realengo”, 2022Massacre de Realengo. (2022, 2 de fevereiro). Wikipedia. Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Realengo
https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_d...
).

No mesmo ano, em São Caetano do Sul (SP), um menino de 10 anos, aluno da escola pública, utilizou a arma de fogo do pai para matar a professora e a si mesmo logo em seguida. Há poucas informações sobre esse crime (“Aluno de 10”, 2011Aluno de 10 anos atira em professora dentro da escola em São Caetano, SP (2011, 22 de setembro). G1. Recuperado de https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/09/aluno-atira-em-professora-dentro-da-sala-de-aula-no-abc.html.
https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2...
), mas, dias antes, o menino levou a arma de fogo do pai à escola para mostrar ao amigo e, no dia do ataque, avisou aos colegas que mataria a professora (Abudd, 2011Abudd, B. (2011, 3 de outubro). Polícia ouve colegas e professora de menino que se matou em São Caetano do Sul. Veja. Recuperado de https://veja.abril.com.br/brasil/policia-ouve-colegas-e-professora-de-menino-que-se-matou-em-sao-caetano-do-sul/
https://veja.abril.com.br/brasil/policia...
). Relatos dos alunos descrevem a professora como “grossa”, o que poderia indicar que o aluno se sentiu humilhado ou rejeitado pela docente (Vargas & Abudd, 2011Vargas, A., & Abudd, B. (2011, 29 de setembro). Professora baleada por estudante deixa o hospital. Veja . Recuperado de https://veja.abril.com.br/brasil/professora-baleada-por-estudante-deixa-o-hospital/
https://veja.abril.com.br/brasil/profess...
).

Em 2012, dois adolescentes, de 13 e 16 anos, em João Pessoa (PB), alunos de uma escola pública, atiraram em três alunas. Não houve suicídio (“Folha destaca escola”, 2019Folha destaca escola da Paraíba entre alvos de atentados. (2019, 13 de março). ClickPB. Recuperado de https://www.clickpb.com.br/paraiba/folha-destaca-escola-da-paraiba-entre-alvos-de-atentados-256575.html
https://www.clickpb.com.br/paraiba/folha...
). O ciúme da namorada com um outro garoto pode ter sido a motivação do atentado (Santos & Pessoa, 2012Santos, A.B., & Pessoa, J. (2012, 12 de abril). Aluno invade escola pública da Paraíba; atira e fere três jovens. Estadão . Recuperado de https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,aluno-invade-escola-publica-da-paraiba-atira-e-fere-tres-jovens-imp-,859921
https://sao-paulo.estadao.com.br/noticia...
).

Em 2017, outro ataque aconteceu, no Colégio Goyases, escola particular localizada em Goiânia (GO). Um adolescente de 14 anos teve acesso à arma da mãe, matando dois colegas e ferindo outros quatro. Não houve suicídio. Ele sofria bullying e os ataques foram, na maior parte, direcionados. Também tinha ligação às ideias nazistas (Gonçalves, 2017Gonçalves, E. (2017, 30 de outubro). As conversas do atirador de Goiânia com um amigo. Veja . Recuperado de https://veja.abril.com.br/brasil/as-conversas-do-atirador-de-goiania-com-um-amigo/
https://veja.abril.com.br/brasil/as-conv...
).

Em 2018, em Medianeira, no Paraná, dois adolescentes de 15 anos, alunos de escola pública, realizaram outro ataque direcionado, inspirados em Columbine (Niederauer et.al., 2018Niederauer, A. P., et. al. (2018, 28 de setembro). Aluno atira em colegas e fere 2 alunos em escola do Paraná. Estadão . Recuperado de https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,estudante-atira-e-fere-2-alunos-em-escola-do-parana,70002523457
https://brasil.estadao.com.br/noticias/g...
). Não houve suicídio. O que nos leva a Suzano (SP), em 2019, quando dois jovens de 17 e de 25 anos, ex-alunos do colégio, realizaram um ataque aleatório e cometeram suicídio em seguida. Não há informações suficientes para afirmar que a principal motivação foi um histórico de bullying. Estavam ligados diretamente com um grupo de extrema direita chamado dogolachan, tal qual Realengo. Esse grupo os ajudou a realizar o ataque, oferecendo instruções e conselhos sobre o modus operandi necessário para o sucesso do atentado (“Atiradores de Suzano”, 2019Atiradores de Suzano viram heróis em fórum brasileiro de extremistas. (2019, 13 de março). Pragmatismo Político. Recuperado de https://www.pragmatismopolitico.com.br/2019/03/atiradores-massacre-suzano-dogolachan.html
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2...
).

Ainda em 2019, um ex-aluno de 17 anos da escola pública localizada em Charqueadas (RS) feriu quatro alunas, dois alunos e uma professora. Não usou arma de fogo para o crime. O atentado foi inspirado no massacre de Suzano (Gonçalves, 2021Gonçalves, E. (2021, 26 de março). Autor de ataque em Charqueadas diz ter se inspirado no massacre de Suzano. Veja . Recuperado de https://veja.abril.com.br/brasil/autor-de-ataque-em-charqueadas-diz-ter-se-inspirado-no-massacre-de-suzano/
https://veja.abril.com.br/brasil/autor-d...
). No mesmo ano, no Vale do Jequitinhonha (MG), um aluno de 17 anos da escola pública da região usou a arma do padrasto para atirar em dois alunos. O crime foi caracterizado como passional (Pereira & Oda, 2019Pereira, M., & Oda, M. (2019, 7 de novembro). Alunos de escola alvo de ataque a tiros relatam momentos de pânico: ‘A gente só ouvia os gritos e os tiros’. G1 . Recuperado de https://g1.globo.com/mg/vales-mg/noticia/2019/11/07/alunos-de-escola-alvo-de-ataque-a-tiros-relatam-momentos-de-panico-a-gente-so-ouvia-os-gritos-e-os-tiros.ghtml
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), mas sem mais detalhes. Ele matou dois adolescentes e tentou entrar em outra sala de aula, na qual teria como alvo outras duas meninas (“Aluno entra em escola”, 2019Aluno entra em escola e atira contra colegas na zona rural de Caraí; dois ficam feridos. (2019, 7 de novembro). G1 . Recuperado de https://g1.globo.com/mg/vales-mg/noticia/2019/11/07/homens-entram-em-escola-e-atiram-contra-alunos-dois-ficam-feridos.ghtml
https://g1.globo.com/mg/vales-mg/noticia...
).

Por fim, o último atentado escolar desta análise foi realizado em 2021, em Santa Catarina, por um sujeito de 18 anos sem vínculo institucional com a creche na qual matou duas professoras e três bebês, além de ferir gravemente uma quarta criança. Cada vítima foi morta com, ao menos, cinco facadas (Souza, 2021Souza, F. (2021, 4 de maio). Ataque em creche: o que se sabe sobre ato que matou adultos e crianças em SC. BBC News Brasil. Recuperado de https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56949063
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56...
). O atentado foi planejado por um ano (Borges & Martins, 2021Borges, C., & Martins, V. (2021). Polícia conclui inquérito sobre ataque em creche de SC; três crianças e duas adultas foram mortas. G1 . Recuperado de https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2021/05/14/policia-conclui-inquerito-sobre-ataque-em-creche-de-sc-tres-criancas-e-duas-adultas-foram-mortas.ghtml
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) e o infrator disse que queria “matar o máximo possível”. O principal plano era invadir sua antiga escola, na qual alega que sofria bullying. Devido às dificuldades do plano, escolheu a creche (Martins, 2021Martins, T. (2021. 14 de maio). Por “ódio”, autor de ataque em creche queria atingir “o máximo de pessoas”. Correio Braziliense. Recuperado de https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/05/4924474-por-odio-autor-de-ataque-em-creche-queria-atingir-o-maximo-de-pessoas.html
https://www.correiobraziliense.com.br/br...
).

Objetivo 2: os fatores histórico-sociais na formação da singularidade dos infratores

2.1. Definindo singularidade

A singularidade é o que diferencia um sujeito de outros, tornando-o único no processo de ontogênese humana (Silva, 2009Silva, F. G. (2009). Subjetividade, individualidade, personalidade e identidade: concepções a partir da psicologia histórico-cultural. Psicologia Da Educação, (28), 169-195. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-69752009000100010&lng=pt&tlng=pt.
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). Ela é produto da história e, portanto, reflete as relações sociais e materiais de determinada época (Silva, 2009Silva, F. G. (2009). Subjetividade, individualidade, personalidade e identidade: concepções a partir da psicologia histórico-cultural. Psicologia Da Educação, (28), 169-195. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-69752009000100010&lng=pt&tlng=pt.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
). A singularidade humana é definida pela forma como o sujeito se relaciona com a natureza e com os outros (Silva, 2009Silva, F. G. (2009). Subjetividade, individualidade, personalidade e identidade: concepções a partir da psicologia histórico-cultural. Psicologia Da Educação, (28), 169-195. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-69752009000100010&lng=pt&tlng=pt.
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), a qual denominamos atividade5 5 Aqui nos referimos ao trabalho, a atividade vital humana e a protoforma do ser social (Lukács, 2013). “O trabalho é antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza... Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (Marx, 2010a, p. 326-327).” . Podemos destacar duas principais características da atividade: a dimensão teleológica e o caráter coletivo6 6 Na atividade de caça, por exemplo, a ação de espantar o animal é desprovida de sentido se não se considera que há outro sujeito para abatê-lo (Leontiev, 2004). As ações da atividade estão entrelaçadas entre si e delas participam múltiplos atores sociais. . O processo de formação da singularidade humana só é possível na relação com outros sujeitos, pois é por meio dela que o sujeito atribui sentido (Asbahr & Souza, 2014Asbahr, F. da S. F., & Souza, M. P. R. de. (2014). “Por que aprender isso, professora?” Sentido pessoal e atividade de estudo na psicologia histórico-cultural. Estudos de Psicologia, 19(3), 157-238. doi: 10.1590/S1413-294X2014000300002
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) às apropriações que realiza das objetivações sociais ao longo de seu processo de socialização (Duarte, 2013Duarte, N. (2013). A individualidade para-si: contribuição a uma teoria histórico-crítica da formação do indivíduo. (3a ed.). Campinas, SP: Autores Associados.).

As objetivações sociais, apropriadas como “órgãos de sua individualidade”, pertencem à esfera da universalidade, que se refere às possibilidades construídas historicamente pelo gênero humano (Silva, 2009Silva, F. G. (2009). Subjetividade, individualidade, personalidade e identidade: concepções a partir da psicologia histórico-cultural. Psicologia Da Educação, (28), 169-195. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-69752009000100010&lng=pt&tlng=pt.
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). É pela universalidade que o sujeito se reproduz socialmente, pois representa seu corpo inorgânico (Duarte, 2013Duarte, N. (2013). A individualidade para-si: contribuição a uma teoria histórico-crítica da formação do indivíduo. (3a ed.). Campinas, SP: Autores Associados.). A particularidade é a categoria que medeia a relação entre a singularidade e a universalidade, concretizando o universal no particular (Oliveira, 2005Oliveira, B. (2005). A dialética do singular-particular-universal. In A. A. Abrantes, N. R. da Silva, & S. T. F. Martins (Eds.), Método histórico-social na psicologia social (pp. 25-51). Rio de Janeiro, RJ: Vozes.). Essas mediações do particular são determinadas pelas condições materiais e sociais específicas de dada sociedade (Oliveira, 2005Oliveira, B. (2005). A dialética do singular-particular-universal. In A. A. Abrantes, N. R. da Silva, & S. T. F. Martins (Eds.), Método histórico-social na psicologia social (pp. 25-51). Rio de Janeiro, RJ: Vozes.). O sujeito é síntese de múltiplas determinações e, por isso, não é possível compreendê-lo pela soma de suas partes, mas sim por sua totalidade.

2.2. Socialização masculina, violência estrutural e ultraconservadorismo: os três fatores histórico-sociais da singularidade dos infratores

Nesta seção apresentaremos a socialização masculina, a violência estrutural e a relação com grupos ultraconservadores como os traços mais gerais que se singularizam nos casos previamente sintetizados. Partimos de uma perspectiva histórica da violência, segundo a qual a elaboração da violência se faz coletivamente, no e pelo processo de sociabilidade (Martín-Baró, 1990Martín-Baró, I. (1990). Accion e Ideologia: psicología social desde Centroamerica. (4a ed.). El Salvador: UCA.).

Na Tabela 1, é possível observar a síntese dos atentados apresentados. Classificamos cada um de acordo com a nomenclatura de Muschert (2007Muschert, G. W. (2007). Research in School Shootings. Sociology Compass, 1(1), 60-80. doi: 10.1111/j.1751-9020.2007.00008.x
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), como uma maneira de identificar a função social do ataque na narrativa singular do infrator.

Tabela 1
Síntese dos dados dos atentados

A idade média dos infratores é de 15,7 anos, todos do sexo masculino. Todos tinham vínculo com a instituição, com exceção do ataque à creche em Santa Catarina. 81,8% das escolas atacadas eram públicas. Dos atentados que tivemos informações sobre o sexo da vítima, é possível notar que mulheres foram o principal alvo. Em 36,3% dos casos, o adolescente utilizou a arma de algum familiar.

Também descrevemos os ataques segundo sua narrativa. O bullying é citado como possível motivação em 54% dos casos e a rejeição e/ou sentimento de humilhação por parte de uma mulher (professora, colegas de sala ou namorada) aparece em 45% dos casos. Essa porcentagem se aproxima da análise de estudos norte-americanos (Gerard et al., 2016Gerard, F. J., Whitfield, K. C., Porter, L. E., & Browne, K. D. (2016). Offender and offence characteristics of school shooting incidents. Journal of Investigative Psychology and Offender Profiling, 13(1), 22-38. doi: 10.1002/jip.1439
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; Ioannou, Hammond, & Simpson, 2015Ioannou, M., Hammond, L., & Simpson, O. (2015). A model for differentiating school shooters characteristics. Journal of Criminal Psychology, 5(3), 188-200. doi: 10.1108/JCP-06-2015-0018
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). Para a discussão dos eixos identificados, focaremos especialmente na relação entre o sexo do agressor, o sexo da vítima e o discurso que justifica o ataque (i.e., a narrativa). A construção dessa relação também está de acordo com a proposta de Martín-Baró (1990Martín-Baró, I. (1990). Accion e Ideologia: psicología social desde Centroamerica. (4a ed.). El Salvador: UCA.), para quem a análise do ato de violência deve levar em consideração o agente da ação, a vítima, o grau de dano e a situação em que o ato é produzido.

2.3. Atentados do tipo targeted

Consideramos que o atentado escolar é um ato violento e, como tal, expressa os conflitos sociais e que, para compreendê-lo, é preciso identificar seu sistema de justificativa (Martín-Baró, 1990Martín-Baró, I. (1990). Accion e Ideologia: psicología social desde Centroamerica. (4a ed.). El Salvador: UCA.). A narrativa é o que fornece a justificativa para os atentados: 100% dos ataques classificados como targeted tiveram como narrativa o bullying ou a rejeição. Embora a rejeição, seja ela crônica (e.g., bullying) seja aguda (e.g., rejeição amorosa), apareça como principal fator motivacional (Timm & Aydin, 2020Timm, J. D., & Aydin, N. (2020). Culturally independent risk factors of school and campus rampages: An analysis of international case studies of educational institution violence. Aggression and Violent Behavior , 55, 101514. doi: 10.1016/j.avb.2020.101514
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), não é possível apontá-la como razão única para os atentados escolares (Raitanen, Sandberg, & Oksanen, 2019Raitanen, J., Sandberg, S., & Oksanen, A. (2019). The bullying-school shooting nexus: Bridging master narratives of mass violence with personal narratives of social exclusion. Deviant Behavior, 40(1), 96-109. doi: 10.1080/01639625.2017.1411044
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). Em muitos casos, não é possível identificar a extensão e a gravidade da rejeição (Ioannou et al., 2015Ioannou, M., Hammond, L., & Simpson, O. (2015). A model for differentiating school shooters characteristics. Journal of Criminal Psychology, 5(3), 188-200. doi: 10.1108/JCP-06-2015-0018
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) e a sensação de ser perseguido ou rejeitado nem sempre reflete a realidade (Raitanen et al., 2019Raitanen, J., Sandberg, S., & Oksanen, A. (2019). The bullying-school shooting nexus: Bridging master narratives of mass violence with personal narratives of social exclusion. Deviant Behavior, 40(1), 96-109. doi: 10.1080/01639625.2017.1411044
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).

A compreensão de uma narrativa não implica identificar o que há de verdadeiro ou falso, mas sim apreender como a história contada reflete, de forma multideterminada, a singularidade do sujeito, seus valores e as normas culturais (Raitanen et al., 2019Raitanen, J., Sandberg, S., & Oksanen, A. (2019). The bullying-school shooting nexus: Bridging master narratives of mass violence with personal narratives of social exclusion. Deviant Behavior, 40(1), 96-109. doi: 10.1080/01639625.2017.1411044
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). Há um roteiro delineado culturalmente que dita como se deve resolver determinados problemas. Em nossa análise, esse roteiro se refere a um dos traços mais gerais da construção da singularidade dos infratores. A socialização masculina tem sido apontada como fator relevante na construção das narrativas dos atentados (Farr, 2018Farr, K. (2018). Adolescent rampage school shootings: responses to failing masculinity performances by already-troubled boys. Gender Issues, 35, 73-97. doi: 10.1007/s12147-017-9203-z
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; 2019Farr, K. (2019). Trouble with the Other: The Role of Romantic Rejection in Rampage School Shootings by Adolescent Males. Violence and Gender, 6(3), 147-153. doi: 10.1089/vio.2018.0046
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; Kalish & Kimmel, 2010Kalish, R., & Kimmel, M. (2010). Suicide by mass murder: Masculinity, aggrieved entitlement, and rampage school shootings. Health Sociology Review, 19(4), 451-464. doi: 10.5172/hesr.2010.19.4.451
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). Em nossa perspectiva, isso significaria que, embora haja pontos de encontro entre o fenômeno do bullying e dos atentados escolares, eles diferem no nível da particularidade. O primeiro se refere aos processos de violência escolar (Silva, 2006Silva, N. R. (2006). Relações sociais para superação da violência no cotidiano escolar e processos formativos de professores [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica]. Pós-Graduação em Psicologia da Educação, Repositório PUCSP: São Paulo. Recuperado de https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/16246
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), ao passo que o segundo tem relação mais ampla com o processo de socialização masculina na nossa sociedade.

Kalish e Kimmel (2010Kalish, R., & Kimmel, M. (2010). Suicide by mass murder: Masculinity, aggrieved entitlement, and rampage school shootings. Health Sociology Review, 19(4), 451-464. doi: 10.5172/hesr.2010.19.4.451
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) reportam sobre a questão da masculinidade presente no conteúdo dos ataques americanos: muitos dos atiradores norte-americanos justificam suas ações devido à percepção de rejeição amorosa e/ou de terem sido alvo de homofobia ao longo de sua trajetória escolar. O conceito sociológico aggrievied entitlement (Kalish & Kimmel, 2010Kalish, R., & Kimmel, M. (2010). Suicide by mass murder: Masculinity, aggrieved entitlement, and rampage school shootings. Health Sociology Review, 19(4), 451-464. doi: 10.5172/hesr.2010.19.4.451
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), que em nossa tradução livre significaria “o direito de se sentir enfurecido”, elucida que os fatores emocionais dos casos não se limitam a um perfil individual, mas abrangem a forma como os sentimentos são elaborados ao longo do processo de socialização. Segundo esse conceito, está reservado aos homens o direito de, ao sentir rejeição e raiva, vingança contra aqueles que lhe causaram algum dano (Farr, 2018Farr, K. (2018). Adolescent rampage school shootings: responses to failing masculinity performances by already-troubled boys. Gender Issues, 35, 73-97. doi: 10.1007/s12147-017-9203-z
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; 2019Farr, K. (2019). Trouble with the Other: The Role of Romantic Rejection in Rampage School Shootings by Adolescent Males. Violence and Gender, 6(3), 147-153. doi: 10.1089/vio.2018.0046
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). Ainda, adolescentes norte-americanos que reportaram experienciar bullying, baseado na discriminação de gênero ou sexual, apresentaram maiores chances de portar armas nas escolas (Ganson & Nagata, 2021Ganson, K. T., & Nagata, J. M. (2021). Gender and sexual orientation bullying victimization are associated with gun carrying among adolescent boys. Child and Adolescent Social Work Journal, 38, 631-640. doi: 10.1007/s10560-020-00689-x
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). O atentado escolar seria uma via heteronormativa para enfrentar o sentimento de humilhação, entendido como a ausência da virilidade.

No Brasil, como aspecto particular desse fenômeno, a vitimização de mulheres é um problema social grave. O Brasil está no 5º lugar entre os países que mais matam mulheres (Gustafson, 2020Gustafson, J. (2020, 17 de junho). Brasil caminha para liderar ranking mundial da violência contra mulher. Diálogos do Sul. Recuperado de https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/direitos-humanos/65247/brasil-caminha-para-liderar-ranking-mundial-da-violencia-contra-mulher
https://dialogosdosul.operamundi.uol.com...
). Embora o Atlas da Violência (Cerqueira & Bueno, 2020Cerqueira, D., & Bueno, S. (Coords.). (2020). Atlas da Violência 2020. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. doi: 10.38116.riatlasdaviolencia2020
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) aponte uma redução nos casos desse tipo de violência, essa foi garantida apenas para as mulheres brancas. Destacamos a importância, na história brasileira, da Lei n. 13104, de 9 de março de 2015 (Brasil, 2015Brasil. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. (2015). Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da lei nº 8.702, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.. Diário Oficial. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm
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), que passa a reconhecer crimes de ódio contra as mulheres como feminicídio. Nesse sentido, atentados que tiveram como alvo exclusivamente mulheres devem ser discutidos pela perspectiva de gênero, incluindo as questões legais envolvidas.

2.4. Atentados do tipo rampage

Cinco ataques foram classificados como rampage. O que caracteriza os ataques sob essa denominação é a composição das vítimas, escolhida aleatoriamente, o contato com grupos de extrema direita e/ou o fascínio por atentados como o de Suzano e de Columbine. No caso de Realengo, as vítimas foram escolhidas ao azar, porém se aproxima dos casos do tipo targeted por ter a rejeição por meninas como um dos elementos da narrativa.

A relação dos atentados com grupos de extrema direita está de acordo com a pesquisa de Malkki (2014Malkki, L. (2014). Political elements in post-Columbine school shootings in Europe and North America. Terrorism and Political Violence, 26(1), 185-210. doi: 10.1080/09546553.2014.849933
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), que aproxima os casos de rampage com os de atentados terroristas, devido ao possível fundo ideológico e/ou religioso contido nas narrativas dos ataques. Segundo o autor, ambos envolvem o envio de uma mensagem para uma audiência mais ampla. Em Realengo (RJ), podemos notar essa intenção pela seguinte fala do atirador em vídeo: “A luta. . . não é exclusivamente pelo que é conhecido como bullying. A nossa luta é contra pessoas cruéis, covardes, que se aproveitam da bondade, da inocência, da fraqueza de pessoas incapazes de se defenderem” (“A nossa luta”, 2011“A nossa luta é contra pessoas cruéis e covardes”. (2011, 13 de abril). Brasil 247. Recuperado de https://www.brasil247.com/brasil/a-nossa-luta-e-contra-pessoas-crueis-e-covardes
https://www.brasil247.com/brasil/a-nossa...
).

Nos casos de rampage, podemos identificar o interesse ou a relação direta do infrator com grupos de extrema direita, como o dogolachan em Suzano e/ou o contato com grupos fundamentalistas em Realengo (Malkki, 2014Malkki, L. (2014). Political elements in post-Columbine school shootings in Europe and North America. Terrorism and Political Violence, 26(1), 185-210. doi: 10.1080/09546553.2014.849933
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). Além disso, há também o fascínio por atentados anteriores, especialmente Columbine. Causar horror a partir de atos brutais de violência é, inclusive, uma maneira de garantir a cobertura midiática e alcançar a fama (Silva & Greene-Colozzi, 2019Silva, J. R., & Greene-Colozzi, E. A. (2019). Fame-seeking mass shooters in America: Severity, characteristics, and media coverage. Aggression and Violent Behavior, 48, 24-35. doi: 10.1016/j.avb.2019.07.005
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), comparando a si mesmos com o episódio de Columbine. É o caso do atentado à creche em Santa Catarina, na qual o autor do crime diz que “queria matar o máximo possível”.

Nesses casos, é comum que se crie uma rede na web que idolatre e incentive novos ataques. Além do dogolachan, o Orkut foi a plataforma utilizada por “fãs” de Realengo. No último caso, ocorrido em 2021, a investigação desarticulou a comunicação entre outros infratores que tinham a intenção de realizar ataques semelhantes em pelo menos outros quatro estados brasileiros.

Whaley (2020Whaley, A. L. (2020). The massacre mentality and school rampage shootings in the United States: Separating culture from psychopathology. Journal of Community and Applied Social Psychology, 30(1), 3-13. doi: 10.1002/casp.2414
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) indica que, nos EUA, a “mentalidade de massacre”7 7 Desde o século XX, os EUA já participaram de 33 guerras, o que aponta sua característica imperialista. é relevante para a discussão da reprodução particular da violência imperialista nos atentados escolares. “Mentalidade de massacre” faria parte da justificativa cultural que o sujeito dá a si mesmo para cometer crimes em defesa da honra ou da eliminação do que ele identifica como ameaçadores da ordem natural.

No Brasil, essa mentalidade não viria das práticas imperialistas, mas da reprodução de uma violência estrutural (Martín-Baró, 1990Martín-Baró, I. (1990). Accion e Ideologia: psicología social desde Centroamerica. (4a ed.). El Salvador: UCA.; Vázquez, 1980Vázquez, A. S. (1980). Filosofía de la praxis. Ciudade de México: Grijalbo.) que acompanha a história do país desde a colonização, no massacre e na escravização da população nativa e, posteriormente, da população negra. No capitalismo, a violência estrutural assume características particulares. Tendo a mercadoria como sua categoria essencial de reprodução, reifica as relações humanas, transformando tanto o agente da violência como a vítima em “coisas”. Destacamos a violência policial como característica crucial da mentalidade de massacre no Brasil. Em 2021, podemos citar, por exemplo, o Massacre de Jacarezinho (Welle, 2021Welle, D. (2021, 11 de maio). O que já se sabe sobre o massacre do Jacarezinho. IstoÉ. Recuperado de https://istoe.com.br/o-que-ja-se-sabe-sobre-o-massacre-do-jacarezinho/
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), a “operação” mais violenta da polícia militar no Rio de Janeiro. O acesso às armas é também relevante para a ocorrência desses atentados (Chade, 2019Chade, J. (2019, 8 de setembro). ONU conclui que maior acesso às armas gera mais violência, não segurança. UOL. Recuperado de https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/09/08/onu-conclui-que-maior-acesso-a-armas-gera-mais-violencia-nao-seguranca/
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).

Objetivo 3: a escola como palco dos atentados

Nesta seção, refletimos sobre o porquê a escola pública é alvo dos atentados por parte de alunos e ex-alunos. Utilizamos a metáfora do edifício, trabalhada didaticamente por Althusser (1980Althusser, L. (1980). Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. São Paulo, SP: Martins Fontes.). Segundo o autor, a sociedade seria como a construção de um edifício, pois sua estrutura depende das características de sua base. A base do edifício é equivalente à base da nossa sociedade: sua estrutura econômica. “Acima”, determinadas pela organização da base, “erguem-se” duas instâncias que podemos chamar de superestrutura: a instância jurídico-política e a instância ideológica.

Nesta análise, citamos os seguintes aspectos de nossa infraestrutura: (1) a intensificação da perda de direitos trabalhistas nos últimos anos; e (2) a luta de classes no contexto escolar brasileiro. Já na superestrutura, identificamos: (1) o crescente culto à performance individual; e (2) a função ideológica da escola desde o fim do século XX. A partir disso, estabelecemos relações entre a superestrutura e a infraestrutura.

3.1. A destruição dos direitos trabalhistas e a produção da singularidade humana

Para compreender porque a organização do modo de produção determina a formação da consciência e, em última instância, da singularidade humana, é necessário elucidar a relação entre a atividade de trabalho e a consciência. Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II. São Paulo, SP: Boitempo.) compreende o trabalho como a protoforma do agir humano e, por essa razão, é uma atividade vital. Pela perspectiva marxiana, é a atividade de trabalho enquanto base material que engendra a consciência (Marx & Engels, 2001Marx, K., & Engels, F. (2001). A ideologia alemã (2a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes .).

Entenderemos a consciência como o reflexo ideal da realidade material (Leontiev, 1978Leontiev, A. N. (1978). Actividade, consciência e personalidade. Recuperado de https://www.marxists.org/portugues/leontiev/1978/activ_person/index.htm
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), ou seja, ela reproduz, no nível intrapsíquico, todas as características do movimento do fenômeno concreto, especialmente suas contradições. Esse processo nunca ocorre da mesma forma para todo indivíduo, uma vez que somos capazes de atribuir sentido pessoal para os significados sociais que internalizamos.

A determinação da materialidade sobre a existência da consciência humana indica que a última reproduz as contradições da primeira. Para Leontiev (2004Leontiev, A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo (2a ed.). São Paulo, SP: Centauro.), no capitalismo, os assalariados têm somente uma única propriedade: a venda da sua capacidade de trabalho. Nessas condições, o trabalho está alienado, alienando “o conteúdo da própria vida” (Leontiev, 2004Leontiev, A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo (2a ed.). São Paulo, SP: Centauro., p. 129). Entenderemos alienação por estranhamento entre o trabalhador e o produto de seu trabalho (Marx, 2010aMarx, K. (2010a). Manuscritos econômicos-filosóficos (4a ed.). São Paulo, SP: Boitempo .).

No sistema do Capital, o significado social que diz respeito à dimensão universal humana construída historicamente está alienado do sentido pessoal que o sujeito atribui à sua atividade social e produtiva, de modo que o operário tem qualquer representação sobre as ações de seu trabalho, como saber o que é fiar e tecer (Leontiev, 2004Leontiev, A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo (2a ed.). São Paulo, SP: Centauro.). No entanto, ele não o faz para atender às necessidades sociais e coletivas, mas pelo salário.

O sentido pessoal, que traduz a relação entre o motivo e a finalidade da atividade, passa a se reduzir à necessidade mínima de sobrevivência do trabalhador. Isso tem uma determinação essencial na consciência do sujeito. “A penetração na consciência destas relações [de contradição] traduz-se psicologicamente pela ‘desintegração’ de sua estrutura geral que caracteriza o aparecimento de uma relação de alienação entre os sentidos e as significações. . .” (Leontiev, 2004Leontiev, A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo (2a ed.). São Paulo, SP: Centauro., p. 133). Reforçamos que a alienação8 8 Alienação tem sentido negativo. É o processo de estranhamento do sujeito em relação ao produto de sua atividade e à própria atividade. Tem como consequência a alienação face a outros e a autoalienação (Marx, 2010a; Mészáros, 2016). não tem origem na consciência, mas na organização social da produção.

As crises estruturais do capitalismo passaram a demandar uma nova reestruturação produtiva a partir das décadas de 1960/1970, processo que se intensificou no Brasil a partir da década de 1990 e resultou em modificações na totalidade da vida em sociedade e na articulação com o neoliberalismo (Boschetti, 2019Boschetti, I.S. (2019, 14 de maio). Crise do capital e agravamento da desigualdade social no Brasil. In G. Toassa, T. M. C. Souza & D. J. S. Rodrigues (Orgs.), Psicologia sócio-histórica e desigualdade social: do pensamento à práxis (pp. 42-57). Goiânia, GO: Imprensa Universitária.). O “mercado”, postulado pela ideologia neoliberal enquanto mediação social insuperável, é tido como sinônimo de liberdade civil, política e econômica e as relações de trabalho estão individualizadas no limite do possível, com exigências de competitividade cada vez mais altas (Marconsin, Forti, & Marconsin, 2012Marconsin, C., Forti, V., & Marconsin, A. F. (2012). Neoliberalismo e reestruturação produtiva: debatendo a flexibilização dos direitos trabalhistas no Brasil. Serviço Social Em Revista, 14(2), 2346. doi: 10.5433/1679-4842.2012v14n2p23
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).

No âmbito ideológico, há a consolidação do discurso do “sucesso” a qualquer custo, assentando a competitividade como valor humano primordial. Nesse discurso, predomina o homme burgeois, que se coloca como falso representante universal de toda a humanidade (Marx, 2010bMarx, K. (2010b). Sobre a questão judaica. São Paulo, SP: Boitempo .). Para o sujeito burguês, o individualismo é a substância de sua reprodução, pois a propriedade privada é o que organiza todas as outras relações.

No Capital, a humanidade é entendida como composta de singularidades individuais, sendo a concorrência a única relação com potência para ser universal. O mercado é a síntese da totalidade das relações entre sujeitos singulares. Na consciência humana, opera a ruptura categórica entre as dimensões universal e particular: toda atividade social e produtiva é identificada na dimensão mais imediata do singular-particular.

No nível particular, os sujeitos passam a se identificar com as pautas da ideologia dominante, que surge para a consciência do sujeito como algo “prescrito” (Freire, 2019Freire, P. (2019). Pedagogia do oprimido. (84a ed.). Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra.). A ideologia não é apenas a representação imaginária do real, mas um sistema de representações e de normas que ensinam como conhecer e agir (Chauí, 2017Chauí, M. (2017). Cultura e democracia. O discurso competente e outras falas. (13a ed.). São Paulo, SP: Cortez.) universalizando o particular.

A ideologia dominante provoca a ilusão de que as ideias, as representações e os discursos sempre existiram (Chaui, 2016Chaui, M. de S. (2016). Ideologia e educação. Educação e Pesquisa, 42(1), 245-257. doi: 10.1590/S1517-97022016420100400
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), de modo a justificar a exploração da classe oprimida. É o processo de cristalização e fossilização da ideologia dominante que passa a adquirir o status de verdade eterna e absoluta sobre os fenômenos políticos, históricos, econômicos e sociais (Marx & Engels, 2001Marx, K., & Engels, F. (2001). A ideologia alemã (2a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes .). As riquezas produzidas pelo sistema capitalista, enquanto riquezas sociais, são apropriadas individualmente pelos poucos pertencentes à classe burguesa (Boschetti, 2019Boschetti, I.S. (2019, 14 de maio). Crise do capital e agravamento da desigualdade social no Brasil. In G. Toassa, T. M. C. Souza & D. J. S. Rodrigues (Orgs.), Psicologia sócio-histórica e desigualdade social: do pensamento à práxis (pp. 42-57). Goiânia, GO: Imprensa Universitária.), o que revela o agravamento da cisão entre interesses particulares e coletivos.

O sistema do Capital, por ter a produção de riqueza como pressuposto de sua reprodução, estabelece um grande potencial para o crescimento quantitativo e qualitativo do patrimônio genérico humano (Markus, 2015Markus, G. (2015). Marxismo e antropologia. O conceito de “essência humana” na filosofia de Marx. São Paulo, SP: Expressão Popular.). No entanto, toda riqueza produzida socialmente tem status de “coisa” que é estranha, alienada aos indivíduos (Markus, 2015Markus, G. (2015). Marxismo e antropologia. O conceito de “essência humana” na filosofia de Marx. São Paulo, SP: Expressão Popular.). A coisificação da atividade produtiva apresenta-se como algo que é para o outro, como atividade que lhe explora - “a atividade como miséria” (Marx, 2010aMarx, K. (2010a). Manuscritos econômicos-filosóficos (4a ed.). São Paulo, SP: Boitempo ., p. 83) -, o que produz, na consciência, o estranhamento-de-si.

A reificação da singularidade produz estereotipação e alienação (Heller, 1985Heller, A. (1985). O Cotidiano e a Historia (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.). A primeira se refere à redução do sujeito às prescrições normativas dos papéis sociais. A segunda, à plena identificação do sujeito com o papel social que lhe é conferido. Ambas se referem à inescapabilidade dos lugares sociais cristalizados com os quais os sujeitos são, por fim, aprisionados pela internalização das narrativas previamente construídas. Esse processo trata do empobrecimento dos valores verdadeiramente humanos (Martins, 2001Martins, L. M. (2001). Análise sócio-histórica do processo de personalização de professores. [Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista]. Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP: Marília. Recuperado de https://formacaodocente.files.wordpress.com/2012/09/martins_ligia_-_analise_socio-historica_do_processo_de_personalizacao_de_professores.pdf
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), tais como a liberdade de autodeterminar-se (Almeida, 2017Almeida, J. A. M. de. (2017). Identidade e emancipação. Psicologia & Sociedade, 29, 1-7. doi: 10.1590/1807-0310/2017v29170998
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; Markus, 2015Markus, G. (2015). Marxismo e antropologia. O conceito de “essência humana” na filosofia de Marx. São Paulo, SP: Expressão Popular.), e resulta no sujeito pseudoconcreto, a quem somente resta o desempenho segmentado de papeis (Martins, 2001Martins, L. M. (2001). Análise sócio-histórica do processo de personalização de professores. [Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista]. Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP: Marília. Recuperado de https://formacaodocente.files.wordpress.com/2012/09/martins_ligia_-_analise_socio-historica_do_processo_de_personalizacao_de_professores.pdf
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).

No caso dos atentados, os infratores, que internalizaram a narrativa heteronormativa como única saída possível, coisificam-se como um personagem que deve seguir um script, relacionando-se de forma instrumental com outras vidas humanas. Podemos identificar, também, que a competição entre os casos de rampage com Columbine indica a extensão da reprodução do sujeito altamente competitivo requisitado pelo mercado capitalista para as relações além do trabalho.

3.2. A luta de classes na escola pública

Para o sujeito jovem, a repercussão da luta de classes no desenvolvimento de sua subjetividade passa pela socialização escolar. A instituição escolar teria o papel fundamental de desenvolvimento da sociabilidade desses indivíduos e da socialização dos conhecimentos genéricos humanos, responsáveis pelo processo de humanização dos sujeitos (Saviani, 1995Saviani, D.. (1995). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. São Paulo, SP: Autores Associados.). Para Libâneo (2012Libâneo, J. C. (2012). O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Educação e Pesquisa , 38(1), 13-28. doi: 10.1590/S1517-97022011005000001.
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), no entanto, há, atualmente, uma confusão acerca do papel da escola pública na sociedade contemporânea. Segundo o autor, na década de 1990, o Banco Mundial organizou e patrocinou diversas conferências sobre o futuro da educação, organizando princípios que ocultavam a ideologia neoliberal, com o desmonte progressivo da escola pública como projeto educacional (Libâneo, 2012Libâneo, J. C. (2012). O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Educação e Pesquisa , 38(1), 13-28. doi: 10.1590/S1517-97022011005000001.
https://doi.org/10.1590/S1517-9702201100...
). Ao longo das últimas duas décadas, no Brasil, as necessidades básicas de aprendizagem se converteram em necessidades mínimas, transformando a escola pública em espaço de mero acolhimento social (Libâneo, 2012Libâneo, J. C. (2012). O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Educação e Pesquisa , 38(1), 13-28. doi: 10.1590/S1517-97022011005000001.
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).

Diante da conjuntura atual de instabilidade política e econômica, devemos questionar qual sentido a escola pública vem adquirindo para os estudantes. Não se reconhecendo no conteúdo escolar, em sua função genérica humanizadora, a atividade de estudo (Asbahr & Souza, 2014Asbahr, F. da S. F., & Souza, M. P. R. de. (2014). “Por que aprender isso, professora?” Sentido pessoal e atividade de estudo na psicologia histórico-cultural. Estudos de Psicologia, 19(3), 157-238. doi: 10.1590/S1413-294X2014000300002
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) aliena-se: as pessoas estudam para conseguir alguma colocação melhor no mercado de trabalho. No entanto, com o desaparecimento dos postos de trabalho e o desmonte da escola pública, o discurso meritocrático não é capaz de manter a realidade dos fatos: a qualidade da formação educacional não garante mais a possibilidade de ascensão social por meio da empregabilidade. No Brasil, há um crescente aumento do número de desempregados e, em 2020, alcançamos um número histórico: 13,4 milhões de pessoas (“Desemprego bate recorde”, 2021Desemprego bate recorde no Brasil em 2020 e atinge 13,4 milhões de pessoas. (2021, 26 de fevereiro). UOL . Recuperado de https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2021/02/26/desemprego---pnad-continua---dezembro-2020.htm?cmpid=copiaecola
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).

A escola, como local que sintetiza as contradições contemporâneas, torna-se palco dos principais acontecimentos sociais e históricos, expressando-os de forma sintomática em seu cotidiano, fato que é representado, por exemplo, pelos atentados escolares. Devemos considerar o atentado escolar como o ápice da reprodução da violência nas relações sociais dentro da escola, mas também fora de seus muros: violência policial, violência televisionada, negligência estatal, desigualdade racial, misoginia, entre outras. A violência mantém a vida circulando no Capital enquanto mercadoria, desumanizando tanto as vítimas como os agressores e naturalizando-se como norma cotidiana (Martín-Baró, 1990Martín-Baró, I. (1990). Accion e Ideologia: psicología social desde Centroamerica. (4a ed.). El Salvador: UCA.).

A escola neoliberal perde sua função social e, cada vez mais precarizada, não pode mais se estabelecer como local de referência para os infratores. Há uma desconexão entre o sujeito e o espaço escolar. A questão da escola pública é importante, nos casos brasileiros, porque implica na questão de classe. Enquanto, nos EUA, a maior parte dos atiradores são garotos brancos (Gerard et al., 2016Gerard, F. J., Whitfield, K. C., Porter, L. E., & Browne, K. D. (2016). Offender and offence characteristics of school shooting incidents. Journal of Investigative Psychology and Offender Profiling, 13(1), 22-38. doi: 10.1002/jip.1439
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) da classe média (Whaley, 2020Whaley, A. L. (2020). The massacre mentality and school rampage shootings in the United States: Separating culture from psychopathology. Journal of Community and Applied Social Psychology, 30(1), 3-13. doi: 10.1002/casp.2414
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), no Brasil, a composição socioeconômica e racial dos alunos de escola pública aponta que os infratores pertenceriam às classes mais pobres. As classes sociais mais baixas são as mais afetadas pelo desmantelamento da escola pública e pela destruição dos postos de trabalho, o que pode ter contribuído para a ruptura entre o sujeito e o espaço institucional.

Considerações finais

O objetivo deste ensaio foi avançar na contribuição cientifica sobre os atentados escolares no Brasil. Para isso, apresentamos uma síntese dos casos noticiados, identificamos os principais eixos histórico-culturais que condicionam a formação da singularidade dos infratores e, por fim, discutimos como a destruição dos postos de trabalho, a precarização da escola pública e a ideologia dominante estão relacionados com essa forma particular de reprodução da violência.

Onze atentados escolares foram analisados. A socialização masculina, a reprodução da violência estrutural e a relação com grupos ultraconservadores foram os traços histórico-sociais considerados relevantes para a formação da singularidade dos infratores. Além disso, exploramos as relações entre a infraestrutura econômica, a superestrutura ideológica e a formação da singularidade para refletir sobre como a organização das relações de produção capitalistas, o desmonte das escolas públicas e o individualismo estariam relacionados com a ocorrência dos atentados escolares. Na infraestrutura, identificamos dois fatores: a intensificação da perda de direitos trabalhistas nos últimos anos e a luta de classes no contexto escolar brasileiro. Em relação à superestrutura, trabalhamos os seguintes aspectos: o crescente culto à performance individual e a função ideológica da escola a partir do fim do século XX.

Concluímos que o sujeito responsável por atentados escolares é aquele que internalizou os roteiros culturais heteronormativos e a ideologia hegemônica da performance individual, atuando de maneira instrumental em suas relações, desempenhando papeis sociais reificados. Além disso, é aquele que conserva os valores do mercado capitalista - e não aqueles verdadeiramente humanos - como fundamentais.

A destruição dos postos de trabalho restringe o acesso às possibilidades máximas de humanização e não garante mais a ascensão social. A escola pública precarizada pela ideologia neoliberal torna-se, também, o lócus no qual predomina a precariedade e a incerteza. Ambos os processos provocam uma ruptura entre o sujeito, a generecidade, o próprio espaço escolar e o mundo do trabalho. Com a pandemia ocorrida entre 2020 e 2021, fica em aberto a gravidade e a extensão dessa ruptura, visto que muitos adolescentes não poderão completar o ensino médio pela falta de acesso à internet e pelo desemprego (“Abandono escolar afeta”, 2021Abandono escolar afeta 4 milhões de brasileiros na pandemia. (2021, 26 de janeiro). Revista Ensino Superior. Recuperado de https://revistaensinosuperior.com.br/pandemia-abandono-escolar-fo/
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).

Referências

  • 1
    Muschert (2007Muschert, G. W. (2007). Research in School Shootings. Sociology Compass, 1(1), 60-80. doi: 10.1111/j.1751-9020.2007.00008.x
    https://doi.org/10.1111/j.1751-9020.2007...
    ) descreve essa distorção como Rashomon effect, em referência ao filme do diretor Kurosawa, no qual um crime é descrito pela perspectiva de quatro testemunhas diferentes, resultando em análises conflitivas.
  • 2
    Massacre escolar ocorrido em 20 de abril de 1999 na Columbine High School, em Columbine, nos EUA. Dois atiradores alunos da escola mataram 12 alunos, um professor e feriram outras 21 pessoas. Logo após o ocorrido, houve suicídio dos autores do crime.
  • 3
    Traduzimos livremente rampage shooting como tiroteio violento e targeted shooting como tiroteiro direcionado (com alvo específico). Essa tradução visa a melhor compreensão do conceito. Ao longo do texto, manteremos a tradução original.
  • 4
    Ataques terroristas contra os EUA, realizados em 11 de setembro de 2001 e coordenados pela organização fundamentalista islâmica al-Qaeda.
  • 5
    Aqui nos referimos ao trabalho, a atividade vital humana e a protoforma do ser social (Lukács, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II. São Paulo, SP: Boitempo.). “O trabalho é antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza... Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (Marx, 2010aMarx, K. (2010a). Manuscritos econômicos-filosóficos (4a ed.). São Paulo, SP: Boitempo ., p. 326-327).”
  • 6
    Na atividade de caça, por exemplo, a ação de espantar o animal é desprovida de sentido se não se considera que há outro sujeito para abatê-lo (Leontiev, 2004Leontiev, A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo (2a ed.). São Paulo, SP: Centauro.). As ações da atividade estão entrelaçadas entre si e delas participam múltiplos atores sociais.
  • 7
    Desde o século XX, os EUA já participaram de 33 guerras, o que aponta sua característica imperialista.
  • 8
    Alienação tem sentido negativo. É o processo de estranhamento do sujeito em relação ao produto de sua atividade e à própria atividade. Tem como consequência a alienação face a outros e a autoalienação (Marx, 2010aMarx, K. (2010a). Manuscritos econômicos-filosóficos (4a ed.). São Paulo, SP: Boitempo .; Mészáros, 2016Mészáros, I. (2016). A teoria da alienação em Marx. São Paulo, SP: Boitempo .).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2021
  • Aceito
    16 Fev 2023
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