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PERCEPÇÕES SOBRE INTERVENÇÕES GRUPAIS COM HOMENS AUTORES DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

PERCEPCIONES SOBRE INTERVENCIONES GRUPALES CON HOMBRES AUTORES DE VIOLENCIA CONTRA LAS MUJERES

PERCEPTIONS ABOUT GROUP INTERVENTIONS WITH MEN WHO ARE AUTHORS OF VIOLENCE AGAINST WOMEN

Resumo

O objetivo deste estudo foi compreender as percepções sobre a participação em grupo reflexivo voltado a autores de violência contra as mulheres. Participaram 20 homens encaminhados pela vara de violência doméstica de uma região administrativa do Distrito Federal a um serviço voltado a essa clientela. A partir de entrevistas pré e pós-grupo e da análise pelo modelo bioecológico, o grupo apresentou-se como lugar de acolhimento e escuta para o homem, além de importante ferramenta na desconstrução de ideias legitimadoras da violência e de um modelo de masculinidade hegemônico, heteronormativo e rígido. O grupo mostrou-se importante na construção de novas formas de subjetivação, socialização e sociabilidade masculinas para possíveis ressignificações de suas trajetórias. Os homens perceberam a participação como positiva e notou-se mudanças nos discursos sobre violência, relações conjugais, Lei Maria da Penha e em relação ao próprio engajamento no grupo reflexivo.

Palavras-chave:
Violência contra a mulher; Gênero; Homens; Processos grupais

Resumen

El objetivo de este estudio fue comprender las percepciones sobre la participación en grupo reflexivo para autores de violencia contra las mujeres. Participaron 20 hombres encaminados por la vara de violencia doméstica de una región administrativa del Distrito Federal a un servicio que atiende esa clientela. A partir de entrevistas pre y post-grupo y del análisis por el modelo bioecológico, el grupo se presentó como lugar de acogida y escucha para el hombre, además de importante herramienta en la deconstrucción de ideas legitimadoras de la violencia y de un modelo de masculinidad hegemónico, heteronormativo y rígido. El grupo se mostró importante en la construcción de nuevas formas de subjetivación, socialización y sociabilidad masculinas para posibles resignaciones de sus trayectorias. Los hombres percibieron la participación como positiva y se notaron cambios en los discursos sobre violencia, relaciones conyugales, Ley Maria da Penha y con relación al propio compromiso en el grupo reflexivo.

Palabras clave:
violencia contra la mujer; género; hombres; procesos de grupo

Abstract

This study aimed to understand perceptions about the participation in a reflexive group directed to authors of violence against women. The participants were twenty men who were referred by the domestic violence court of an administrative district of the Federal District to a service directed to this clientele. From pre and post-group interviews and analysis by the bioecological perspective, the group presented itself as a place of reception and listening to men, as well as an important tool in the deconstruction of legitimizing ideas of violence and of a hegemonic, heteronormative and rigid model of masculinity. The group proved to be important in the construction of new forms of male subjectivation, socialization and sociability for possible reframing of their trajectories. The men perceived the participation as positive and there were changes in the discourses about violence, marital relationships, Maria da Penha Law and in relation to the engagement in the reflective group.

Keywords:
Violence against women; Gender; Men; Group processes

Introdução

A violência contra as mulheres tem ganhado cada vez mais espaço nas investigações acadêmicas, sendo abordada por diferentes concepções analíticas. Nesse movimento, percebe-se também maior atenção aos cenários institucionais e às políticas públicas voltadas ao enfrentamento desse problema (Tonelli, Beiras, & Ried, 2017)Tonelli, M. J. F., Beiras, A., & Ried, J. (2017). Homens autores de violência contra mulheres: políticas públicas, desafios e intervenções possíveis na América Latina e Portugal. Revista de Ciências Humanas, 51(1), 174-193. DOI: 10.5007/2178-4582.2017v51n1p174
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. Para o modelo bioecológico do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 2011)Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed., a violência envolve ações e/ou omissões que podem cessar, impedir, deter ou retardar o desenvolvimento pleno dos seres humanos. Portanto, não só a pessoa vítima de violência, mas a família que testemunha e também o autor dessas ações estão em situação de risco (Koller, 2011)Koller, S. H. (Org.). (2011). Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.. O modelo bioecológico do desenvolvimento foi empregado no presente estudo como forma de possibilitar uma leitura sistêmica para um fenômeno que, por vezes, encontra-se ancorado em referências essencialmente clínicas e com pouca vinculação a uma discussão mais contextual. Esse modelo, portanto, permite uma abordagem menos individualista do homem autor de violência, daqui em diante nomeado como HAV, explorando como os cenários ecológicos se tornam não apenas repertórios, muitas vezes acessados como entidades fixas e meramente descritivas na Psicologia, mas que podem ser essencialmente ativos na compreensão de qualquer fenômeno social.

Compreende-se que a violência contra a mulher pode acontecer tanto em ambientes públicos quanto em locais privados, mas, de acordo com as estatísticas, é fundamentalmente no ambiente doméstico onde há maior ocorrência, ou seja, no microssistema, no ambiente proximal e mais potente para o desenvolvimento, segundo Bronfenbrenner (2011)Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed.. Ela é praticada, em sua maioria, por homens da família que exercem relações de poder sobre a vítima e, dentro da gama de possíveis autores de agressão, na maioria dos casos, a violência é cometida por homens com quem a mulher tem ou teve algum vínculo afetivo, como companheiros ou ex-companheiros (Beiras, Nascimento, & Incrocci, 2019Beiras, A., Nascimento, M., & Incrocci, C. (2019). Programas de atenção a homens autores de violência contra as mulheres: um panorama das intervenções no Brasil. Saúde e Sociedade, 28(1), 262-274, 2019. DOI: 10.1590/s0104-12902019170995
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; Madureira, Raimondo, Ferraz, Marcovicz, Labronici, & Mantovani, 2014Madureira, A. B., Raimondo, M. L., Ferraz, M. I. R., Marcovicz, G. V., Labronici, L. M., & Mantovani, M. F. (2014). Perfil de homens autores de violência contra mulheres detidos em flagrante: contribuições para o enfrentamento. Escola de Enfermagem Anna Nery, 18(4), 600-606. DOI: 10.5935/1414-8145.20140085
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; Política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres, 2011)Política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres. (2011). Enfrentamento à Violência contra as Mulheres no Brasil. Brasília, DF. Recuperado de http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:k9TSVOE_hfgJ:legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/ca07903d-2d2c-4db2-95f0-98d13c5635d2+&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk≷=br
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.

Como possibilidade de enfrentamento a esse cenário, houve a judicialização da violência, que criminaliza toda ação perpetrada a fim de prejudicar ou causar sofrimento a outrem (Waiselfisz, 2015)Waiselfisz, J. J. (2015). Mapa da violência 2015 - Homicídio de mulheres no Brasil. Brasília, DF. Recuperado de http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf
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. A Lei Maria da Penha (LMP) (Lei n. 11.340/2006 de 7 de agosto)Lei n. 11.340, 07 de agosto de 2006. (2006). Brasília, DF. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
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é um dos marcos dessa judicialização e confere grande avanço, ao propor tratar de forma integral o problema da violência doméstica, prevendo ações de atendimento à vítima, à família envolvida na relação violenta, bem como instâncias para o acompanhamento do autor de violência (Cerqueira, Matos, Martins, & Pinto, 2015Cerqueira, D., Matos, M., Martins, A. P. A., & Pinto, J. (2015). Texto para discussão - Avaliando a efetividade da Lei Maria da Penha. IPEA, Brasília, DF. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/a-efetividade-da-lei-maria-da-penha
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; Lei n. 11.340)Lei n. 11.340, 07 de agosto de 2006. (2006). Brasília, DF. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
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.

Embora iniciativas ou programas voltados a HAV sejam crescentes, tendo em vista que a LMP conferiu legitimidade para que esta modalidade de serviço pudesse ser prevista e incentivada (Tonelli, Beiras, & Ried, 2017)Tonelli, M. J. F., Beiras, A., & Ried, J. (2017). Homens autores de violência contra mulheres: políticas públicas, desafios e intervenções possíveis na América Latina e Portugal. Revista de Ciências Humanas, 51(1), 174-193. DOI: 10.5007/2178-4582.2017v51n1p174
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, eles ainda têm recebido bem menos atenção de órgãos governamentais, não governamentais e dos meios científicos (Lima, Buchele, & Clímaco, 2008Lima, D., Buchele, F., & Clímaco, D. (2008). Homens, gênero e violência contra a mulher. Saúde e Sociedade , 17(2), 69-81. DOI: 10.1590/S0104-12902008000200008
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; Novaes, Freitas, & Beiras, 2018)Novaes, R. C. P., Freitas, G. A. P., & Beiras, A. (2018). A produção científica sobre homens autores de violência - Reflexões a partir de uma revisão crítica da literatura. Barbarói, 51, 154-176. DOI: 10.17058/barbaroi.v51i1.8313
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, devido, entre outros fatores, à escassez de verbas destinadas aos projetos e à falta de força política dos gestores de recursos já existentes na priorização dessas práticas em seus estados e municípios, o que acaba fazendo com que essas políticas públicas sejam localizadas e pontuais (Beiras, 2014Beiras, A. (2014). Relatório Mapeamento de Serviços de atenção grupal a homens autores de violência contra mulheres no contexto brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto NOOS. Recuperado de http://www.noos.org.br/userfiles/file/Relat%C3%B3rio%20Mapeamento%20SHAV_site.pdf
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; Nothaft & Beiras, 2019)Nothaft, R. J. & Beiras, A. (2019). O que sabemos sobre intervenções com autores de violência doméstica e familiar? Revista Estudos Feministas , 27(3), e56070. DOI: 10.1590/1806-9584-2019v27n356070
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.

Os grupos que acompanham HAV são percebidos em alguns estudos (Abritta, Roque, & Ramos, 2015Abritta, S. D., Roque, F. C. F., & Ramos, M. E. C. (2015). A importância do acolhimento e do aquecimento em grupos sem demanda no contexto da Justiça. Revista Brasileira de Psicodrama, 23(2), 6-15. DOI: 10.15329/2318-0498.20150002
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; Guimarães & Pedroza, 2015Guimarães, M. C. & Pedroza, R. L. S. (2015). Violência contra a mulher: problematizando definições teóricas, filosóficas e jurídicas. Psicologia & Sociedade , 27(2), 256-266. DOI: 10.1590/1807-03102015v27n2p256
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; Mistura, 2015Mistura, T. F. (2015). Vivência de homens autores de violência contra a mulher em grupo reflexivo: memórias e significados presentes. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. Recuperado de https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-17092015-090601/publico/TalesFurtadoMistura.pdf
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; Oliveira, 2016)Oliveira, I. V. (2016). ‘Homem é homem’: narrativas sobre gênero e violência em um grupo reflexivo com homens denunciados por crimes da Lei Maria da Penha. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. Recuperado de https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-23082016-133509/pt-br.php
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que abordam a temática. De acordo com Oliveira e Gomes (2011)Oliveira, K. L. C. & Gomes, R. (2011). Homens e violência conjugal: uma análise de estudos brasileiros. Ciência & Saúde Coletiva, 16(5), 2401-2413. DOI: 10.1590/S1413-81232011000500009
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, que realizaram uma revisão bibliográfica sobre o assunto, as características mais encontradas nessas intervenções são: (a) predominam as formações grupais com HAV, mas também há relatos de atendimentos individuais a homens e mulheres, mediação familiar e atendimento às mulheres vítimas; (b) geralmente são grupos reflexivos/educativos e não terapêuticos; (c) os referenciais teóricos mais utilizados nos atendimentos estão situados na perspectiva sistêmica e no construcionismo social, mas também há a abordagem cognitivo-comportamental, a psicanálise e a mediação de conflitos; (d) os encaminhamentos dos homens para a intervenção são majoritariamente compulsórios, realizados pelo Judiciário e por instituições como abrigos, delegacias, conselhos, mas há relatos de práticas formadas por voluntários. Em pesquisa realizada no contexto brasileiro (Beiras, 2014)Beiras, A. (2014). Relatório Mapeamento de Serviços de atenção grupal a homens autores de violência contra mulheres no contexto brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto NOOS. Recuperado de http://www.noos.org.br/userfiles/file/Relat%C3%B3rio%20Mapeamento%20SHAV_site.pdf
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, que mapeou de forma não exaustiva (total de 19 programas responderam ao estudo) as experiências e os serviços de atenção grupal a HAV, percebe-se que, dentre as instituições jurídicas, destacam-se atuações realizadas em tribunais, prefeituras e secretaria de direitos humanos, em parceria com o Ministério Público (MP).

O serviço acompanhado no presente estudo realiza atendimentos psicossociais aos envolvidos (autor, vítima e familiares) em situações de violência doméstica contra a mulher tipificados pela LMP. Trata-se de um programa desenvolvido e ofertado pelo Governo do Distrito Federal (DF), por meio da Secretaria de Estado em parceria com o MP. O acompanhamento do HAV acontece normalmente em formato grupal e tem duração aproximada de três meses (10 a 12 encontros), realizados no intuito de promover reflexões acerca de questões sobre gênero, comunicação, reconhecimento e expressão dos sentimentos, Lei Maria da Penha, masculinidade(s), entre outras, utilizando-se dinâmicas e atividades que suscitem a participação efetiva dos participantes. Assim, podem ser descritos como grupos de caráter reflexivo.

O HAV chega ao serviço por meio de encaminhamento da vara de violência doméstica, fruto de um acordo realizado entre ele e o juiz, que determina a Suspensão Condicional do Processo (SCP). Mesmo com proibição da LMP, em seu artigo 41, e de decisão favorável do Supremo Tribunal Federal sobre não se aplicar os institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099 (de 26 de setembro de 1995) aos crimes de violência doméstica, na época da coleta de dados, ou seja, o ano de 2017, o serviço em questão utilizava a SCP como forma de encaminhar o homem. Essa suspensão é entendida como forma de solução alternativa para problemas penais de menor grau ofensivo, que confere caráter obrigatório à participação do HAV, devido aos possíveis prejuízos judiciais implicados ao não comparecimento (Lei n. 9099/95Lei n. 9099, de 26 de setembro de 1995. (1995). Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Brasília. 1995. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm
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; Tozatte, 2015)Tozatte, L. M. (2015). Medidas despenalizadoras nos Juizados Especiais Criminais Estaduais-Lei n. 9.099/1995. Recuperado de http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10007
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. Em contrapartida, há várias críticas realizadas sobre esse assunto, tais como as sumarizadas por Campos (2015)Campos, C. H. (2015). A CPMI da violência contra a mulher e a implementação da Lei Maria da Penha. Revista Estudos Feministas, 23(2), 519-531. DOI: 10.1590/0104-026X2015v23n2p519
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, de que o uso da PSC beneficia muito mais o autor dos fatos do que a vítima, reproduzindo, assim, uma lógica ainda muito presente na legislação.

Levando-se em conta que a violência de gênero é um fenômeno multifacetado e que o debruçar-se neste campo de estudos requer um olhar para os fatores relacionais, sociais, políticos e histórico-culturais (Garcia & Beiras, 2019)Garcia, A. L. C. & Beiras, A. (2019). A Psicologia Social no estudo de justificativas e narrativas de homens autores de violência. Psicologia: Ciência e Profissão, 39(2), 45-58. DOI: 10.1590/1982-3703003225647
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, este estudo utilizará o modelo bioecológico do desenvolvimento humano entendendo que seu aporte teórico pode auxiliar a compreender esses fatores e a pensar em possibilidades de cuidar dos aspectos que sustentam as práticas violentas na busca por rupturas e mudanças. Nesse sentido, percebe-se que o modelo bioecológico vai na contramão de perspectivas que reduzem a complexidade da problemática ao usar certa psicologização ou patologização no fenômeno da violência, pois resgata o papel ativo, interativo e protagonista do indivíduo como agente de mudança, evidenciando grande importância aos processos proximais do sujeito com os ambientes dos quais faz parte, sejam eles mais imediatos ou não (Koller, 2011)Koller, S. H. (Org.). (2011). Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.. O olhar para esses processos, portanto, ajuda a identificar formas de romper com o ciclo da violência e as condições geradoras da mesma, no diálogo com os estudos da Psicologia Social sobre o assunto.

Ao considerar os serviços que realizam acompanhamento psicossocial a HAV, integrar as vozes desses autores é possibilitar a compreensão de como eles percebem a violência e se percebem diante dela, dando voz a narrativas de construções das subjetividades que fazem parte de processos pessoais, relacionais, sociais e políticos que estão em constante interação, o que permite também uma leitura sobre quais são as percepções da participação dos homens nesses contextos institucionais. Entendendo que esses sujeitos não devem ser vistos apenas como autores - que estão em situação de risco e de vulnerabilidade, aos quais a violência os expõe -, mas também pelas possibilidades de saúde e proteção e pelos recursos que dispõem para superação dessa situação, o objetivo deste estudo foi compreender as percepções sobre a participação no grupo de reflexão por HAV.

Método

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo exploratório, amparado na abordagem de pesquisa qualitativa, de corte longitudinal e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem da primeira autora (CAAE n. 67578117.1.0000.5154).

Participantes

Participaram da pesquisa 20 HAV encaminhados pela vara de violência doméstica de uma região administrativa do Distrito Federal a fim de serem acompanhados por um serviço que atende essa clientela. Durante a coleta de dados houve perda amostral devido à desistência de alguns homens da participação grupal, que ocorreu tanto no início (participantes que não compareceram em nenhum encontro) ou no andamento do processo grupal (participantes que faltaram a mais de três vezes, que, de acordo com as regras do serviço, são desligados do acompanhamento e reencaminhados para o fim da fila de espera). A tabela 1 traz a caracterização da amostra e se o homem finalizou ou não o acompanhamento grupal. Alguns entrevistados não participaram do mesmo grupo reflexivo, sendo que, no serviço, mais de uma formação grupal acontece concomitantemente. Durante a apresentação dos resultados serão utilizados nomes fictícios, em respeito às disposições éticas.

Tabela 1:
Identificação dos Participantes (N=20)

Instrumentos

Utilizou-se dois roteiros de entrevista semiestruturados e o Diário de Campo, no qual foram registradas informações sobre a inserção ecológica (Koller, Morais, & Paludo, 2016)Koller, S. H., Morais, N. A., & Paludo, S. S. (Eds.). (2016).Inserção ecológica: Um método de estudo em desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo . da pesquisadora no serviço (contato, impressões, sentimentos e reflexões). A utilização de dois instrumentos diferentes foi pensada, também, para a triangulação dos dados.

Os dois roteiros foram aplicados face a face e de forma individual com cada um dos participantes. O primeiro foi aplicado antes do início do processo grupal no intuito de investigar aspectos relacionados à vida do sujeito, à sua possível participação no grupo e suas expectativas quanto ao serviço. Já em relação ao segundo, a aplicação se deu após os 10 encontros, ocasião na qual questionamentos foram feitos sobre a participação do sujeito, suas percepções acerca do programa e da equipe, bem como planejamentos futuros pós-intervenção.

Os roteiros foram construídos pelos pesquisadores a partir dos objetivos do estudo e tendo como referência a literatura consultada acerca do assunto. Esses roteiros também foram apreciados pela equipe coordenadora dos grupos reflexivos, que sugeriu alguns ajustes. Apenas o roteiro pré-participação passou por aplicação piloto para adequações necessárias.

Procedimento

Coleta de dados. Após contato e anuência da Secretaria de Estado e da equipe do núcleo acompanhado, e em conformidade com sugestões da equipe do serviço, as entrevistas pré-participação grupal foram realizadas após o acolhimento do HAV pelos profissionais da instituição, momento no qual o possível participante obtinha informações e tirava dúvidas sobre o acompanhamento psicossocial. A pesquisadora, logo após, adentrava a sala para realizar o convite de participação, ressaltando as questões éticas, tais como: o caráter voluntário, anonimato, possível interrupção da participação a qualquer momento e não obrigatoriedade. Após esclarecimento das dúvidas e anuência do homem, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) era assinado e a entrevista iniciada. Todos os convidados concordaram em participar do estudo.

As entrevistas pós-grupo foram realizadas após a devolutiva individual que a equipe faz com cada participante, oportunidade na qual são questionados sobre a participação, quais foram suas percepções sobre as discussões e sobre o processo de acompanhamento. As entrevistas foram realizadas em sala reservada e assegurou conforto material e psicológico ao participante. Essas entrevistas pré e pós-grupo foram audiogravadas e transcritas na íntegra e literalmente.

A primeira autora do artigo também acompanhou 10 encontros do grupo de reflexão (que não foram audiogravados, mas registrados no diário de campo), que foram coordenados por dois profissionais membros da equipe, um homem e uma mulher. Uma estagiária de Psicologia também esteve presente. Cada sessão grupal durava em torno de duas horas e acontecia semanalmente no mesmo espaço institucional, sendo que a média de participantes por encontro foi de 13 homens. A coleta de dados foi realizada de maio a dezembro de 2017 e o corpus analítico deste estudo foi composto pelos registros no diário de campo e pelas transcrições das entrevistas pré e pós-participação.

Análise dos dados. As entrevistas foram organizadas pelos procedimentos da análise reflexivo-temática de Braun e Clarke (2019)Braun, V. & Clarke, V. (2019). Reflecting on reflexive thematic analysis. Qualitiative Research in Sport, 11(1), 1-9. DOI: 10.1080/2159676X.2019.1628806
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. As referências dos registros do diário de campo foram trazidas de modo complementar às entrevistas. A interpretação dos dados foi pautada na literatura da área e no Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano (MBDH) de Bronfenbrenner (2011)Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed., que estuda o desenvolvimento humano por meio da interação mútua e progressiva do indivíduo ativo e as propriedades em transformação dos meios imediatos que ele vive em quatro níveis: Pessoal, Processual, Contextual e Temporal (Bronfenbrenner, 2011). Sendo assim, essa teoria concebe que o desenvolvimento ocorre por meio de processos de interação recíproca e progressivamente mais complexa do ser humano ativo com pessoas, objetos e símbolos presentes no seu ambiente imediato, ou seja, o foco principal são os processos e as interações que o indivíduo realiza no ambiente em que se encontra (Bronfenbrenner, 2011; Koller, 2011)Koller, S. H. (Org.). (2011). Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo..

Resultados e Discussão

De acordo com a Tabela 1, os participantes têm, em média, 37,9 anos, sendo 40% da mostra (n = 8) com ensino fundamental incompleto e apenas 5% (n = 1) com pós-graduação. A profissão mais recorrente foi a de comerciante (3 vezes mencionada) e 19 homens foram encaminhados pela primeira vez ao serviço, ou seja, não são frutos de reencaminhamentos. Seis (30%) participantes não finalizaram a participação grupal, sendo que dois nunca foram a algum encontro e quatro faltaram mais que três vezes e foram desligados pela equipe. A partir dos resultados da análise de conteúdo, dois grandes eixos temáticos foram construídos, permitindo apreender como os HAV compreendem suas participações grupais. São eles: (a) Os autores de violência, suas percepções e expectativas sobre a participação no grupo de reflexão; e (b) O autor de violência pós-participação grupal. Salienta-se que, ao mencionar os autores das falas na íntegra, além do nome fictício, constarão a profissão e idade, respectivamente.

Os autores de violência, suas percepções e expectativas sobre a participação no grupo de reflexão

Os HAV encaminhados pela vara de violência doméstica chegam ao serviço de formas variadas, revelando que se sentem humilhados: “Eu acho particularmente humilhante, nunca prestei queixa de nada, nunca ninguém prestou queixa de mim, porque eu nunca fiz um ‘A’ na minha vida” (Weder, comerciante, 62 anos); constrangidos: “Pra mim é constrangedor, não é fácil” (Rodolfo, militar, 51 anos); incomodados: “Incomoda muito, porque cê [sic] tem que vim [sic]” (Íres, pedreiro, 47 anos); revoltados e prejudicados: “Prejudicado assim, como que teve os dois, os xingamento das duas partes, então tinha que revê, o dois tinha que pagar” (Ivan, ajudante de motorista, 30 anos). Em contrapartida, uma parte da amostra afirma se sentir tranquila com o cumprimento das medidas estipuladas, ao passo que Felipe (servidor público, 31 anos) justifica esse posicionamento afirmando: “Isso pode acontecer com qualquer um, é só um momento de perder a cabeça. Eu não me vejo como uma pessoa de má índole por isso”.

Os sentimentos descritos ajudam a compreender os resultados obtidos sobre a concordância em participar do grupo, com ou sem o acordo judicial. A Tabela 2 traz esses dados e inclui os motivos pelos quais os participantes estão no programa.

Tabela 2:
Justificativas para a participação no grupo

Conforme os dados da Tabela 2, 15 dos entrevistados concordam com a participação, porém, destes, oito justificaram suas respostas dizendo que concordam “Porque eu assinei” (Carlos, vidraceiro, 30 anos), já que “foi um acordo que eu fiz com a Justiça né, quando a gente responde criminalmente pela Maria da Penha” (Guilherme, servidor público, 37 anos). Os demais (n=7) afirmaram que a participação estava sendo motivada pelo fato de ser uma oportunidade de aprender, de conhecer pessoas e histórias, conversar e receber conselhos.

Os que não concordaram (n=5) alegaram justificativas que podem assim ser agrupadas: (a) não eram os únicos responsáveis pela briga, mas também a vítima da violência deveria ser responsabilizada; (b) sentimento de injustiça derivado do fato de não terem sido ouvidos; (c) disponibilidade de tempo para participarem dos grupos reflexivos; (d) crença de que não precisariam participar dos grupos. Os números mudam quando questionados se o fator da não obrigatoriedade estivesse presente, mas, mesmo assim, afirmam que o grupo pode ser uma ferramenta que os levaria a mudanças positivas.

Compreender como se dá a inserção do homem no serviço se faz importante no sentido de contextualizar os sentimentos e expectativas sobre a participação e, consequentemente, como cada um poderá experienciar e interpretar o acompanhamento psicossocial. Nota-se, portanto, que os sentimentos negativos sobre o encaminhamento estão ligados, também, a queixas relevantes sobre como ele acontece desde o momento que tiveram que ir à delegacia até o dia da audiência. A sensação de que não foram ouvidos em nenhum dos lugares que passaram, tal como Alexandre (conferente, 47 anos) e outros 11 participantes alegam: “porque desde o começo eu achei injusto, que eu não ser ouvido no dia que fui na delegacia”, gera neles sentimento de revolta e insatisfação por terem que comparecer ao serviço. Durante os primeiros encontros esses sentimentos ainda permeiam as discussões, fato que levou a equipe a convidar um representante da promotoria e da defensoria pública para participar de um dia de encontro, a fim de possibilitar aos HAV um momento para tirar suas dúvidas sobre a Lei Maria da Penha.

Mesmo que os HAV percebam suas participações como oportunidade de mudança, há certa dificuldade em aceitarem que estão respondendo a um processo judicial, fruto de uma desresponsabilização do ato cometido, e consequentemente terem que participar do grupo, entendendo que o envolvimento com a Justiça os tornam mal vistos pela família e sociedade. Portanto, há também relação dos sentimentos mencionados à não concordância da participação com essa sensação de mudança da autoimagem perante seus pares. Além disso, dificuldades como ter que sair de seus serviços mais cedo para participar também foi mencionado por eles. Tudo isso corrobora com a sensação de que, por mais que tenham manifestado a anuência em relação ao acordo da SCP, essa participação é vista como uma forma de condenação e punição, pois terão que cumprir as determinações estipuladas: “Pra mim foi uma pena. Já que eu tô [sic] aqui, tem que pagar, né” (André, autônomo, 35 anos).

Por meio desses relatos, fica notório que os elementos de força, recursos biopsicológicos e de demanda, que abarcam as características de “Pessoa” do modelo bioecológico (Bronfenbrenner, 2011)Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed., balizam os processos proximais futuros, como a participação no grupo. As características geradoras, tais como a curiosidade e disposição para engajar-se nas atividades, bem como as características desorganizadoras, como apatia, desânimo e revolta, são indicadores importantes a serem observados pela equipe no sentido de buscar entender as trajetórias que esses homens trazem ao chegarem no núcleo. Esses indicadores traduzem também aspectos voltados ao “Contexto” (níveis ambientais) nos quais estão inseridos, por exemplo, os microssistemas - família, trabalho, rede de amigos - na forma com que eles se organizam e são experienciados pelos homens no que diz respeito à situação de cumprimento da determinação judicial (Bronfenbrenner, 2011; Koller, 2011)Koller, S. H. (Org.). (2011). Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.: “Fui julgado, todo mundo me julgou, entendeu? Senti na pele a discriminação” (Rodolfo, militar, 51 anos). Essa participação, desse modo, acaba possuindo significados diversos nos microssistemas dos quais esses homens são parte, desde um sentimento de condenação pela família e até de humilhação em seus trabalhos, devido à necessidade de pedirem flexibilização do horário para que cumpram a medida em tela.

Ainda, sobre a tabela 2, o principal motivo do encaminhamento do HAV foi por cometimento de agressão física contra suas companheiras ou ex-companheiras (12): “Aí eu tava batendo nela, dei uma pedrada nela, aí saiu sangue, aí os vizinho [sic] chamo a polícia” (Francisco, pedreiro, 36 anos). Percebe-se, pelas falas dos participantes, as estruturas do macrossistema, ao culpabilizar as mulheres pelo cometimento da violência, alegando que elas os “provocaram”, fazendo com que se sentissem ofendidos e humilhados: “porque se a gente se sente provocado, humilhado, ofendido, a gente pode responde no reflexo” (Vinícius, motorista, 40 anos). Pesquisas afirmam que isso se deve ao fato de que há na cultura heteronormativa patriarcal uma necessidade dos homens de afirmação da masculinidade, que é percebida no repúdio e desqualificação do que é feminino e do que os coloca em vulnerabilidade (Blay, 2014Blay, E. A. (Coord.). (2014). Feminismos e masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica. Recuperado de https://apublica.org/wp-content/uploads/2016/03/Feminismos_e_masculinidades-WEB-travado-otimizado.pdf
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; Banin & Beiras, 2016)Banin, S. A. & Beiras, A. (2016). A categoria homem nas políticas públicas e leis brasileiras. Psicologia em Estudo, 21(3), 523-535. DOI: 10.4025/psicolestud.v21i3.32256
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, fazendo com que eles lancem o olhar para a violência cometida como reação normal ao que foi provocado neles, se desresponsabilizando também das consequências da agressão.

Como essa violência acaba sendo justificada culturalmente como sendo algo provocado pela vítima e a sua condição de mulher, reforça-se a explicação que novamente violenta a vítima, permitindo ao homem ocupar uma posição que justifica as suas ações e que é validada dentro de uma cultura machista, que cria a ilusão de que a sua reação violenta é, na verdade, uma resposta possível. Essa cultura, representada pelo macrossistema, é um nível ecológico que possui um tempo de mudança maior. Por isso, as iniciativas que se referem aos microssistemas, aos espaços em que esses homens estão presentes, podem se mostrar mais potentes para a mudança do que buscar uma transformação social que parta de uma ruptura com o modelo que organiza não só a sociedade como as relações de gênero no contexto brasileiro.

Em alguns casos, a agressão foi justificada pelo fato de um ou ambos estarem sob efeito de álcool: “Não vou mentir, tá, esse dia a gente bebeu um pouco mais a cerveja” (Artur, encarregado de pedreiro, 54 anos). De forma geral, todos declaram que a situação que causou a ocorrência policial foi um episódio isolado, ao passo que seis dos participantes estão no mesmo relacionamento.

Em contrapartida, os homens associam características biopsicológicas também como um dos fatores responsáveis pela violência ocorrida, tais como a dificuldade em expressar seus sentimentos, bem como em controlar o nervosismo em situações estressantes e de conflito, lembrando que nenhuma característica exerce influência no desenvolvimento de forma isolada, pois precisa ser compreendida no entrejogo das características da pessoa e do ambiente (Koller, 2011)Koller, S. H. (Org.). (2011). Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.. Ao nomearem serem “nervosos”, “ansiosos” e “explosivos”, por exemplo, manifestam haver sentimentos que não podem ser controlados e com pouca possibilidade de manejo, justificando a violência como a expressão desses elementos que não podem ser barrados, compreendidos e redirecionados. Nessas explicações, partem de características individuais, desconsiderando os meios em que vivem e as socializações de gênero que os atravessam desde a infância, acompanhando-os no estabelecimento de suas relações amorosas da vida adulta. Ao explicarem a violência por motivos “intrapsíquicos”, mostram-se descolados de um contexto ecológico no qual a assimetria de gênero e a naturalização da violência por parte do homem contribuem para a composição dessas chamadas “características pessoais”.

Essa dificuldade de manejo é naturalizada em suas histórias, sendo atribuídas também a pessoas do seu entorno, inclusive às mulheres que sofreram violência. Essas explicações trazem à baila um caráter irascível fortemente veiculado em seus contextos de referência como sendo uma característica pessoal, algo aceito como verdadeiro, fixo, quase imutável.

Ainda, sobre as questões da violência, 11 dos participantes relataram já terem vivido em ambientes violentos. Essa realidade foi presenciada em suas famílias de origens, em locais que frequenta ou já frequentou (ruas, bares, comunidade, local de trabalho, cadeia). A exposição à violência na família de origem é trazida não como uma justificativa para as ações violentas contra as mulheres, mas compõem um repertório de vulnerabilidades, assim como destacado pela literatura científica (Carvalho-Barreto, Bucher-Maluschke, Almeida, & DeSouza, 2009)Carvalho-Barreto, A., Bucher-Maluschke, J. S. N. F., Almeida, P. C., & DeSouza, E. (2009). Desenvolvimento humano e violência de gênero: uma integração bioecológica.Psicologia: Reflexão e Crítica,22(1), 86-92. DOI: 10.1590/S0102-79722009000100012
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, apresentando a violência como uma possibilidade de resposta a um determinado conflito, no caso, em relação ao gênero.

A categoria “Tempo”, nos estudos ecológicos, identifica estabilidade e instabilidade nos ambientes, e consequentemente, no ciclo vital da pessoa, refletindo questões do processo de desenvolvimento em si, permitindo uma visão contextualizada das experiências, das sucessivas transições nas relações pessoa-ambiente e da interdependência das influências sociais e históricas. Dessa forma, pode-se pensar que o macrotempo está permeado de histórias de violências, de vivências de relações nas quais os homens tiveram que lidar com o fator da agressão física, do xingamento, da ameaça, entre outros durante seu ciclo de vida. Além disso, percebe-se que no nível de microtempo há uma continuidade de processos proximais balizados por práticas violentas, tendo em vista que seis participantes alegaram que as relações conjugais eram/são difíceis e muito conturbadas, fazendo com que as brigas fossem mais recorrentes e com grandes chances de gerar consequências mais sérias (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed.; Koller, 2011)Koller, S. H. (Org.). (2011). Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo..

É importante salientar o caráter relacional, complexo e interdisciplinar da violência contra as mulheres (Banin & Beiras, 2016)Banin, S. A. & Beiras, A. (2016). A categoria homem nas políticas públicas e leis brasileiras. Psicologia em Estudo, 21(3), 523-535. DOI: 10.4025/psicolestud.v21i3.32256
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. Dessa forma, cabe trazer à discussão a necessidade de também incluir a mulher ofendida no acompanhamento, a fim de buscar um trabalho sistêmico, possibilitando um cuidado e a prevenção de novas situações de violência. Obviamente que essa inclusão deve ser pensada e manejada, a fim de não expor novamente a mulher a situações constrangedoras e fonte de sofrimento emocional.

De forma geral, eles esperam que no grupo possam sentir-se mais aliviados, aprender a lidar melhor com seus conflitos e relações, fazer novas amizades, contribuir com os demais participantes e serem ouvidos em suas queixas, principalmente em relação à LMP. Seus imaginários sobre o funcionamento dos encontros envolvem ideias de arranjos grupais conhecidos, como os que são transmitidos em programas televisivos, os de apoio a dependentes químicos, os religiosos, palestras, reuniões e ações voltadas para “reabilitação social no sentido de ficarem aptos a relacionarem com nossas esposas” (André, autônomo, 35 anos).

Diante dessas falas, percebe-se que os HAV têm dificuldades em significar suas participações a fim de discutirem questões sobre o que é ser homem, sobre a construção da(s) masculinidade(s), sobre sentimentos, e sobre assuntos que tangenciam gênero e a desconstrução de papéis sociais de homens e mulheres que legitimam a violência. Esse movimento não é comum ao universo masculino, já que a constituição da masculinidade ideal e hegemônica exige deles a repressão das emoções, a força física, a virilidade, a garantia do seu sustento e da família, e a agressividade (Lima, Buchele, & Climaco, 2008)Lima, D., Buchele, F., & Clímaco, D. (2008). Homens, gênero e violência contra a mulher. Saúde e Sociedade , 17(2), 69-81. DOI: 10.1590/S0104-12902008000200008
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, o que aparece de modo corporificado no macrossistema. As motivações para a participação envolvem, principalmente, do cumprimento da determinação judicial, já que eles demonstram interesse em terminar o cumprimento do acordo logo para poderem “mostrar pras pessoas e pra mim mesmo que não sou uma pessoa ruim” (Rodolfo, militar, 51 anos).

Assim, mais do que um caráter punitivo, educativo ou de recebimento de informações, o grupo é significado como um espaço a partir do qual o homem pode alçar a sua redenção, como se os atos praticados pudessem ser perdoados e pudesse haver uma certificação social de que haveria ali uma nova pessoa. As expectativas, portanto, sinalizam para um movimento no qual o grupo possa contribuir com a situação, em um movimento que parte do externo (outros homens, equipe), mais do que do próprio autor, em uma perspectiva de responsabilização, de amadurecimento pessoal e de assunção de comportamentos sociais mais adequados e protetivos. Aventa-se, portanto, que essa participação, muitas vezes, constitui-se como um espaço para a reafirmação desses homens, mais do que potências para uma revisão identitária e consequente manejo de sentimentos e emoções que possam ser gatilhos para a violência contra a mulher.

O autor de violência pós-participação grupal

Dos 20 entrevistados inicialmente, apenas 14 finalizaram o acompanhamento e dois desses decidiram não conceder a entrevista final alegando falta de tempo. Por fim, a entrevista pós-participação grupal foi realizada com 12 participantes. Ao fim dos encontros e durante as entrevistas finais, percebeu-se mudanças de olhares sobre alguns temas discutidos, embora tais alterações não possam ser justificadas apenas em função dos grupos. Em relação a como eles percebem a violência contra as mulheres, seis dos doze homens que finalizaram reconhecem que anteriormente não percebiam que haviam feito algum tipo de violência e hoje sua concepção está mais clara: “não via que tinha feito violência, e hoje tenho vergonha de ser mais um homem desses” (Vinicius, motorista, 40 anos). Quatro dos participantes, que antes já percebiam que haviam realizado um ato violento, permaneceram acreditando em suas ideias e dois não mudaram suas percepções, reafirmando que não cometeram a violência.

Há que se discutir os efeitos desses grupos, haja vista que entre as estratégias grupais desenvolvidas estão aspectos informacionais (como a palestra sobre a Lei Maria da Penha), momentos de autorreflexão, de compartilhamento de experiências, de identificação com o outro, de instilação de esperança, tal como podemos observar em formações grupais com outras configurações e propostas, mais próximas de modelos terapêuticos (Santos, Scorsolini-Comin, & Gazignato, 2014)Santos, M. A., Scorsolini-Comin, F., & Gazignato, E. C. S. (2014). Aconselhamento em saúde: fatores terapêuticos em grupo de apoio psicológico para transtornos alimentares. Estudos de Psicologia (Campinas), 31(3), 393-403. DOI: 10.1590/0103-166x2014000300008
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. O grupo em apreço, embora não tenha explicitamente um caráter terapêutico, também pôde funcionar como um espaço no qual esses homens expressaram mais os seus sentimentos e puderam ser acolhidos sem julgamento, em uma postura de aceitação e de potencialidade para a mudança.

No entanto, a própria função primária do grupo reflexivo, de acompanhamento e de caráter judicial, já promove um efeito quanto à participação. Assim, os grupos se configuram em torno de uma imposição, o que também pode afastá-los de uma perspectiva mais vivencial, de construção de um espaço propriamente “deles” e para “eles”. Essa consideração talvez explique alguns posicionamentos pós-grupo, reforçando que tais espaços não foram construídos por eles, mas para eles e em função de atos cometidos e que nem sempre são interpretados como sendo “errados”, “equivocados”, “criminosos” ou mesmo passíveis de reflexão. Ainda assim, o espaço para falar sobre resolução de conflitos, por exemplo, ainda que não seja terapêutico, pode ser educativo, promovendo ganhos para além do grupo e da denúncia que motivou a participação.

Alguns participantes (n = 4) expressaram que após a participação compreendem melhor a Lei Maria da Penha e o motivo pelo qual foram encaminhados, mas trazem ainda discordância do fato dela beneficiar mais as mulheres, tendo em vista que a situação que gerou a briga também foi causada por elas. De forma geral, acreditam que a lei cumpre um papel importante na proteção das mulheres perante a violência, mas em contrapartida mencionaram que a mulher deveria ser incluída no acompanhamento, também a partir da realização de grupos reflexivos semelhantes. A violência cometida, nesse sentido, mostra-se um elemento a mais em uma discussão que, a priori, refere-se, para eles, ao manejo das diferenças entre um casal, por exemplo. Percebe-se, portanto, que as informações oferecidas em grupo acerca do que constitui a violência nem sempre são suficientes para a promoção de uma reavaliação de suas condutas.

Cinco participantes acreditam que suas concepções de masculino e feminino mudaram: “eu já tinha uma concepção bastante equilibrada, né, mas mudou. Só que eu levava mais um pouco do lado do homem” (Tiago, comerciante, 21 anos), afirmando que as relações conjugais melhoraram, tendo em vista que houve mudanças na forma de tratamento e de enfrentamento das questões cotidianas que pudessem vir a gerar conflitos. De forma complementar, algumas respostas passaram a ideia que estão utilizando do diálogo ou de estratégias para evitar o que o conflito gere episódios de violência: “se for brigar, é melhor sair, depois voltar” (Breno, comerciante, 29 anos). Esta substituição de reações imediatistas por momentos de reflexão, na tentativa de resolver o conflito por outra via que não a da violência, já torna suas participações positivas (Blay, 2014)Blay, E. A. (Coord.). (2014). Feminismos e masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica. Recuperado de https://apublica.org/wp-content/uploads/2016/03/Feminismos_e_masculinidades-WEB-travado-otimizado.pdf
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.

Beiras (2012)Beiras, A. (2012). La (de)construcción de subjetividades em um grupo terapêutico para hombres autores de violência em sus relaciones afectivas. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Universitat Autónoma de Barcelona. Barcelona, Espanha. Recuperado de https://www.tdx.cat/bitstream/handle/10803/117621/ab1de1.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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salienta que o processo de intervenção grupal para HAV é um espaço de visibilidade e desconstrução do masculino tradicional, idealizado e heteronormatizado, além de possibilitar sociabilidade/socialização e subjetividades alternativas a esse modelo. Compreender que os conceitos de gênero, masculinidade e feminilidade são construções sociais e que o ser humano é um ser ativo em seu desenvolvimento é conceber que mudanças são possíveis diante do cenário de violência entre homens e mulheres.

Nesse sentido, é importante confrontar ideias clássicas e fixadas como a de vítima/agressor, já que reforçar essa dicotomia é continuar reproduzindo estereótipos de gênero que legitimam as práticas violentas (Banin & Beiras, 2016Banin, S. A. & Beiras, A. (2016). A categoria homem nas políticas públicas e leis brasileiras. Psicologia em Estudo, 21(3), 523-535. DOI: 10.4025/psicolestud.v21i3.32256
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; Beiras, Moraes, Alencar-Rodrigues, & Cantera, 2012; Beiras, 2012)Beiras, A., Moraes, M., Alencar-Rodrigues, R., & Cantera, L. M. (2012). Políticas e leis sobre violência de gênero - reflexões críticas. Psicologia & Sociedade, 24(1), 36-45. DOI: 10.1590/S0102-71822012000100005
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. É urgente a necessidade de pensar as relações pela via do respeito e do reconhecimento do outro (Beiras, Moraes, Alencar-Rodrigues, & Cantera, 2012)Beiras, A., Moraes, M., Alencar-Rodrigues, R., & Cantera, L. M. (2012). Políticas e leis sobre violência de gênero - reflexões críticas. Psicologia & Sociedade, 24(1), 36-45. DOI: 10.1590/S0102-71822012000100005
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.

Os participantes relataram que se sentiram acolhidos e seguros no grupo, pois puderam relatar sentimentos, dificuldades, anseios e desejos sem medo de serem julgados, sugerindo que o número de encontros pudesse aumentar. Observa-se que durante os encontros grupais houve movimentos de empatia uns com os outros à medida que foram se ajudando em suas fragilidades e histórias de vida. Eles demonstraram interesse em discutir por mais tempo o tema de sentimentos, enfatizar mais questões sobre gênero e alguns participantes evidenciaram preocupação em reproduzir os aprendizados para pessoas que fazem parte dos seus relacionamentos: “o que eu aprendi, vou passar pras pessoas que eu acho que é necessário” (Joaquim, caminhoneiro, 53 anos).

O grupo reflexivo se mostrou instrumento importante não somente nas mudanças em nível microssocial, mas também macrossocial, na medida em que os diversos níveis ambientais estão inter-relacionados em estruturas concêntricas de articulação e interação (Koller, 2011)Koller, S. H. (Org.). (2011). Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo., embora as mudanças macrossociais não possam ser analisadas como decorrentes exclusivamente dessa participação, em uma relação causal. Assim, deve-se promover intervenções ecológicas direcionadas não somente ao sujeito, mas objetivando mudanças relacionais, sociais e políticas (Blay, 2014)Blay, E. A. (Coord.). (2014). Feminismos e masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica. Recuperado de https://apublica.org/wp-content/uploads/2016/03/Feminismos_e_masculinidades-WEB-travado-otimizado.pdf
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que podem ser acompanhas a longo prazo, sobretudo aquelas que incidam sobre os microssistemas, ou seja, espaços nos quais essas pessoas estão presentes e, efetivamente, podem operacionalizar mudanças, a exemplo do ambiente doméstico, do trabalho, do círculo de amigos mais próximos e do trabalho.

Como um possível viés, há que se considerar os elementos de desejabilidade social. Embora a pesquisadora tenha destacado desde o início que estava fazendo uma pesquisa independente e que não compunha formalmente a equipe psicossocial, aventa-se que alguns participantes possam ter reconhecido em sua figura um locus de avaliação formal do processo. Assim, a pesquisadora pode ter sido considerada membro da equipe, de modo que as suas perguntas podem ter sido interpretadas como uma avaliação do serviço ou do próprio participante, o que também poderia interferir em seu processo de judicialização. Essas observações foram construídas a partir de dados disponíveis em diário de campo. De tal modo, há que se considerar a possibilidade de que os endereçamentos dessas avaliações positivas não sejam neutros. Essas considerações, no entanto, não invalidam as reflexões aqui tecidas sobre o grupo e seus efeitos.

Retomado a ideia de que a pessoa tem um papel ativo no seu desenvolvimento, percebe-se que os participantes visualizaram possíveis mudanças em seus contextos de vida e relações, tomando como base os aprendizados que tiveram durante a participação grupal. O microssistema grupal, portanto, cumpre um papel importante no processo de mudança de trajetórias desenvolvimentais e influencia outros microssistemas os quais cada sujeito faz parte, como a relação conjugal, o núcleo familiar, o trabalho, entre outros (Bronfenbrenner, 2011)Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed..

Por fim, percebe-se que a construção de novas alternativas de resolução de conflitos foi possível e que há certa mudança nos discursos e nas práticas que os homens produzem. O grupo é um espaço importante na oferta de escuta e acolhimento ao masculino, para possíveis ressignificações de suas trajetórias e narrativas de vida. Este espaço, portanto, pode ser visto para além de uma alternativa de enfrentamento à violência contra as mulheres, mas também como promoção de saúde de homens que, pela cultura vigente, não encontram espaço para expressar sentimentos, dúvidas e anseios, nem mesmo se sentem autorizados a possuírem tais elementos em suas rotinas devido a uma socialização machista e que reserva ao homem a posição daquele que decide, que não pode titubear e, principalmente, ceder às emoções.

Considerações finais

Observou-se que antes da participação no grupo reflexivo os homens tendiam a afirmar que não eram responsáveis pelo ocorrido e que não mereciam nenhuma punição, pois apontavam a mulher como culpada por ter provocado a briga geradora do episódio violento. Além disso, questionavam a lei, que não foi corretamente cumprida, tendo em vista que não sentiam que foram ouvidos na delegacia e no judiciário da maneira mais adequada. Cabe, portanto, maior investigação sobre como acontece a oitiva do autor de violência nesses espaços e como o encaminhamento é realizado, devido à forma que chegam ao núcleo, sem compreender exatamente o que é o acordo judicial e buscando uma via discursiva para exporem suas próprias ideias, justificativas e compreensões. Há que se problematizar que essa tentativa de culpabilização do outro (a mulher, a polícia, a justiça) e a compreensão da violência como um traço individual, pré-grupo, também reforçam estereótipos construídos em sociedade e que podem, em uma intervenção grupal, serem suspensos e postos em perspectiva, a fim de que novas inteligibilidades estejam habilitadas a emergir durante o processo grupal.

De forma geral, o grupo se apresenta como espaço de acolhimento e escuta para o homem, além de representar importante ferramenta na desconstrução de ideias legitimadoras da violência e construção de identidades pautadas em modelos de masculinidades que sejam menos rígidos na definição dos papéis que os eles precisam preencher. Além disso, o processo de acompanhamento possibilita cuidado à saúde, na medida que eles podem falar sobre situações difíceis e que, quando não expressadas e compreendidas, podem vir a gerar sofrimento.

Os homens percebem que a participação é positiva e gera reflexões importantes de temáticas relacionadas à violência contra as mulheres. Cabe ressaltar que as respostas dos participantes sobre o serviço e o acompanhamento podem ser tendenciosas, já que a participação é obrigatória e que estão em contexto judicial. Assim, uma limitação do estudo foi justamente ter acesso a esses discursos sem que a pesquisadora fosse associada a um membro da equipe psicossocial, com um claro objetivo avaliativo acerca do participante. Paradoxalmente, o engajamento da pesquisadora nos encontros grupais constituiu um elemento essencial para a sua inserção ecológica e consequente produção dos dados. Ainda assim, esses efeitos podem ser melhor controlados adotando-se outros procedimentos metodológicos em estudos vindouros. Em uma perspectiva na qual o pesquisador não é neutro, há que se problematizar tal presença mais do que sugerir que possa haver uma coleta de dados com menor abertura a vieses de desejabilidade social, por exemplo. Assim, a presença da pesquisadora em campo permitiu o acesso a esses sentidos pré e pós-grupo, o que foi discutido tendo como ponto de referência a sua inequívoca participação, tal como abordado no modelo bioecológico a partir do conceito de inserção ecológica. Essa inserção, assim, permitiu uma apropriação desses discursos pré e pós-grupo tendo como lente analítica também as práticas que foram observadas nos grupos, ainda que o objetivo do presente estudo não tenha sido o de narrar esses encontros grupais, apenas os seus efeitos.

Mesmo assim, percebeu-se mudanças nos olhares, discursos e ações no que diz respeito à violência, às relações conjugais, à Lei Maria da Penha e à participação no grupo. Estudos que investiguem essa pós-participação grupal dentro de um intervalo de tempo maior se fazem necessários, a fim de não só poder perceber se os aprendizados e reflexões geradas fizeram com que os participantes não se envolvessem mais em situação de violência contra a mulher, o que constitui apenas um dos indicadores possíveis, mas também se houve uma efetiva equidade e igualdade de gênero em suas relações. Para além disso, outros efeitos podem ser investigados que não a reincidência em atos violentos, mas as comunicações estabelecidas nas relações interpessoais, o modo de resolução de conflitos e demais aspectos discutidos no grupo, em uma interface com os microssistemas dos quais esses homens fazem parte.

Assim, sugere-se que novos estudos possam fazer o acompanhamento desses casos a curto e médio prazos, seguindo as orientações das pesquisas bioecológicas, haja vista que a metodologia grupal desenvolvida não pressupõe encontros de seguimento, o que poderia ser útil não apenas em uma perspectiva de verificação de eficácia da intervenção, mas de favorecimento da manutenção dos aspectos educativos trabalhados nos grupos, potencializando os aprendizados e a constante postura autorreflexiva. A partir desses apontamentos, considera-se que tais aspectos possam disparar novas intervenções psicossociais e de caráter interdisciplinar, contribuindo para o combate à violência e a construção de posturas menos machistas, sexistas, excludentes e de exposição a vulnerabilidades.

Referências

  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.
  • Aprovação, ética e consentimento: O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e pela Secretaria de Estado do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do Distrito Federal - SEDESTMIDH.
  • Financiamento: Não houve financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2019
  • Revisado
    16 Abr 2020
  • Aceito
    15 Maio 2020
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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