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PRODUZINDO UM CURRÍCULO ESCOLAR PARA DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO EM UM INSTITUTO FEDERAL

PRODUCING A SCHOOL CURRICULUM FOR SEXUAL AND GENDER DIVERSITY IN A FEDERAL INSTITUTE

ELABORACIÓN DE UN CURRÍCULO ESCOLAR PARA LA DIVERSIDAD SEXUAL Y DE GÉNERO EN UN INSTITUTO FEDERAL

Resumo:

Esta pesquisa objetiva evidenciar como é produzido um currículo escolar que valorize a diversidade sexual e de gênero em um instituto federal. Para tanto, utiliza-se o conceito de trajetórias de vida como disparador teórico, metodológico e político dos objetivos desta pesquisa. Foram entrevistados 16 sujeitos que têm sua trajetória profissional marcada por ocuparem, em algum momento, uma representação dentro dos Núcleos de Gênero e Diversidade Sexual do Instituto Federal Sul-rio-grandense. A análise do material de pesquisa permite evidenciar que esses núcleos articulam processos políticos para a movimentação de diferentes mecanismos pedagógicos em prol do questionamento e/ou da manutenção de redes de sentidos sobre a diversidade. Por fim, compreende-se que esses núcleos operam espaços de abertura e fortalecimento político-pedagógico dos debates de gênero e de sexualidade nos institutos federais.

Palavras-chave:
Trajetórias de vida; Institutos federais; Sexismo; Educação sexual; Inclusão escolar.

Resumen:

Esta investigación tiene como objetivo resaltar cómo se produce en un instituto federal un currículo escolar que valora la diversidad sexual y de género. Para ello, se utiliza el concepto de trayectorias de vida como detonante teórico, metodológico y político de los objetivos de esta investigación. Fueron entrevistados 16 sujetos cuya trayectoria profesional estuvo marcada por haber sido, en algún momento, representante dentro de los Centros de Género y Diversidad Sexual del Instituto Federal de Rio Grande do Sul. El análisis del material de investigación muestra que estos centros articulan procesos políticos para el movimiento de diferentes mecanismos pedagógicos a favor de cuestionar y/o mantener redes de significados sobre la diversidad. Finalmente, se entiende que estos centros operan espacios para abrir y fortalecer debates político-pedagógicos sobre género y sexualidad en los institutos federales.

Palabras clave:
Trayectorias de vida; Institutos federales; Sexismo; Educación Sexual; Integración Escolar

Abstract:

This research aims to highlight how a school curriculum that values sexual and gender diversity is produced in a federal institute. To this end, the concept of life trajectories is used as a theoretical, methodological and political trigger for the objectives of this research. 16 subjects were interviewed whose professional trajectory were marked by having, at some point in their lives, been a representative within the Gender and Sexual Diversity Centers of the Federal Institute of Rio Grande do Sul. The analysis of the research material concludes that these centers articulate political processes towards the development of different pedagogical mechanisms in favor of questioning and/or maintaining networks of meanings about diversity. Finally, it is understood that the Gender and Sexual Diversity Centers operate spaces for opening and strengthening political-pedagogical debates on gender and sexuality in federal institutes in general.

Keywords:
Life trajectories; Federal institutes; Sexism; Sex education; Mainstreaming Education.

Introdução

Constituídos como autarquias, os institutos federais (IF) têm por objetivo promover educação básica e tecnológica gratuita e de excelência à população em diferentes regiões do Brasil. O Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSul) compõe essa rede, tendo diferentes ferramentas voltadas à inclusão e acessibilidade, geridas pelo Departamento de Educação Inclusiva (DEPEI). Os núcleos institucionais são parte delas, sendo espaços compostos por servidoras/es, estudantes e a comunidade acadêmica centrados em temáticas do campo dos direitos humanos.

Esta pesquisa se volta a um deles, o Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual (NUGEDS), partindo da suposição de que os sujeitos que dele participam afetam a maneira como os núcleos se constituem, da mesma forma que os núcleos afetam as trajetórias dessas pessoas. A partir da entrevista de 16 indivíduos que compõem esses núcleos nos diferentes câmpus do IFSul, exploramos suas narrativas biográficas na busca da compreensão de como é construído um currículo que promove o respeito à diversidade sexual e de gênero nos institutos federais.

Método

O desenho desta pesquisa se deu a partir da entrevista semiestruturada de 16 (dezesseis) pessoas, sendo estas: (a) 1 (um/a) representante estava ou esteve em contato com o NUGEDS de cada câmpus do IFSul (Bagé, Camaquã, Charqueadas, Gravataí, Jaguarão, Lajeado, Novo Hamburgo, Passo Fundo, Pelotas, Santana do Livramento, Sapiranga, Sapucaia do Sul, Venâncio Aires e Visconde da Graça - Pelotas), totalizando 14 (quatorze) entrevistados; b) 1 (um/a) representante do NUGEDS da Reitoria; (c) 1 (um/a) representante do Departamento de Educação Inclusiva (DEPEI). Requisitamos aos próprios núcleos que escolhessem qual pessoa deveria participar do processo de entrevista:

Tabela 1
Dados das/dos Representantes dos NUGEDS - 2021

Cada entrevistada/o será referenciada/o pela alcunha “representante” seguido por um número randomizado escolhido a partir de um sorteio em um site da internet específico para isso. As entrevistas foram realizadas de forma remota com duração média de 1 (uma) hora, tendo por roteiro as seguintes questões:

  1. 1.

    Como sua história pessoal se relaciona com a história do IFSul?

  2. 2.

    Como você acredita que seus marcadores sociais (classe, raça, cor, sexualidade, gênero, etnia, origem, idade, por exemplo) influenciaram e influenciam suas práticas profissionais no IFSul?

  3. 3.

    Como se deu sua aproximação ao NUGED?

  4. 4.

    Como você acredita que o NUGED contribui para as políticas propostas pelo IFSul?

  5. 5.

    Como você acredita que o NUGED impacta a comunidade acadêmica?

  6. 6.

    Na sua visão, quais são as dificuldades que o NUGED enfrenta no IFSUL?

Esta pesquisa está construída a partir da narrativa como operador metodológico, reafirmando a pluralidade que o narrar pode assumir. Desejamos fortalecer o protagonismo das múltiplas vozes que tornam os institutos federais um projeto político que marcou a educação pública no Brasil. Acreditamos que os debates em torno da diversidade sexual e de gênero é um importante indicador desse processo. Para tanto, desejamos compreender como é produzido um currículo que valoriza os debates de gênero e de sexualidade em um instituto federal, a partir da atuação dos NUGEDS. Junto a isso, analisamos como a legislação educacional interfere nesse processo, em certos momentos fortalecendo e em outros enfraquecendo essas discussões.

A partir das entrevistas, desejamos explorar as narrativas biográficas de sujeitos que têm suas trajetórias entrelaçadas com a composição e atuação dos diferentes Núcleos de Gênero e Diversidade Sexual do IFSul. Para isso, desejamos utilizar o conceito de trajetórias de vida como elemento articulador dessa metodologia. A produção das trajetórias de vida é um operador conceitual complexo. Pierre Bourdieu (2006)Bourdieu, Pierre (2006). A ilusão biográfica. In Janaína Amado & Marieta de Moraes Ferreira (Orgs.), Usos e abusos da história oral (8a ed., pp. 183-192). Editora FGV. realiza uma leitura particular das trajetórias de vida, compreendendo-as como uma produção narrativa organizada pelo sujeito diante do momento de enunciação. O autor questiona a sucessão cronológica dada às narrativas de vida que visa estipular, por uma organização dos relatos em um conjunto coerente e orientado, um ponto de partida e chegada lineares e unidirecionais. Tal organização produz diferentes inteligibilidades a essas narrativas, fornecendo sentidos diversos para as diferentes experiências vivenciadas pelo sujeito no cotidiano. Nesse sentido, este trabalho não objetiva encontrar um sentido oculto nas narrativas aqui apresentadas que afirme sua capacidade de superação e progresso num intuito salvador. O que se deseja é evidenciar como essas enunciações se relacionam com os jogos de poder, ora reforçando-os, ora questionando-os, mas em constante relação com eles.

Por fim, os procedimentos adotados na produção desta pesquisa obedeceram aos Critérios de Ética na Pesquisa com Seres Humanos, conforme Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados e discussões

O ambiente escolar não se constitui como uma superfície onde a heterogeneidade de corpos se apresenta de forma estática. Como afirma Fernando Pocahy (2016)Pocahy, Fernando Altair (2016). Botando corpo, (des)fazendo gênero. Uma ferramenta para a pesquisa-intervenção na educação. Reflexão e Ação, 24(1), 289-308. https://doi.org/10.17058/rea.v24i1.6923
https://doi.org/10.17058/rea.v24i1.6923...
, a escola deveria ser um espaço agnóstico em que as instâncias culturais modelam diferentes engendramentos discursivos que deixam marcas evidentes.

Há diferentes materialidades que são produzidas nos processos de subjetivação que se organizam dentro do currículo escolar e que se traduzem em diferentes práticas pedagógicas, arranjos disciplinares estatais e saberes acadêmicos. Tal estrutura não foi construída sem resistência e/ou insubordinação pelos atores escolares. Logo, as visões de mundo altamente normativas que engessam os debates de gênero e de sexualidade serão nesses espaços, em alguma medida, questionadas.

A rede discursiva que circula pelos muros escolares reinventa diferentes saberes que são contextualmente culturais e localizados, assim não há uma absorção passiva ou uma força unilateral que incide sobre os saberes e, desse modo, censurar esses debates em torno da diversidade sexual e de gênero não impede que ocorram. É a comunidade escolar que fabrica seu currículo a partir de uma ampla rede de significações e de saberes-práticas.

Como afirma a professora Alissandra Hampel (2013)Hampel, Alissandra (2013). “A GENTE NÃO PENSAVA NISSO...”: Educação para Sexualidade, Gênero e Formação Docente na Região da Campanha/RS [Tese de Doutorado em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS]. , a inclusão da temática de gênero e de sexualidade nos currículos escolares não garante que essas temáticas serão trabalhadas considerando seus aspectos sociais, políticos e históricos. A ausência de uma perspectiva crítica produz a reafirmação de um gênero e de uma sexualidade calcada numa realidade “natural” e atemporal. Isso acarreta numa ausência crítica das discussões desses elementos, o que é crucial para o reconhecimento da complexidade desses campos (Hampel, 2013)Hampel, Alissandra (2013). “A GENTE NÃO PENSAVA NISSO...”: Educação para Sexualidade, Gênero e Formação Docente na Região da Campanha/RS [Tese de Doutorado em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS]. . Entender como esses debates se inserem no currículo é importante, uma vez que é nele que se materializa a intencionalidade das instituições escolares. Como bem conceitua uma representante, o currículo afirma uma intenção:

Eu acho que o currículo materializa a nossa intencionalidade, o que a gente quer enquanto formação, acho que contribui no sentido da intenção, de onde a gente quer ir, do rumo que a gente quer dar pra nossa instituição. Acredito que se eu pudesse resumir numa palavra seria intencionalidade, de que rumo a gente quer, pra onde a gente quer ir. Representante 5 (20-30 anos, TAE, mulher, cisgênero, heterossexual, branca)

Para as/os representantes entrevistadas/os, a ação dos NUGEDS no IFSul ainda é bastante limitada, em função da ausência de uma documentação institucional que dê subsídio aos debates de gênero e de sexualidade. Parte, então, do desejo das próprias pessoas interessadas que inserem essas discussões em seus câmpus, como pode se observar nestes relatos:

O NUGEDS teria potencial para contribuir, fazer uma reformulação completa dos currículos, incluindo temáticas de gênero e sexualidade. Quanto aos currículos, eles não têm nada sobre essa temática. Montamos um EJA [Educação de Jovens e Adultos] no nosso câmpus e como foi um PPC [Proposta Pedagógica Curricular] do zero, aí teve uma parte que menciona as questões de gênero e de sexualidade, os marcadores sociais da diferença. Tem toda uma parte lá de política de inclusão e outros momentos do PPC menciona isso nominalmente. Mas esse é a exceção. Outros PPCs que inclusive passaram por revisão recente não têm nada diretamente sobre gênero e sexualidade. Representante 1 (20-30 anos, TAE, homem, cisgênero, homossexual, branco)

No momento, ele impacta pouco. Agora a gente tem uma perspectiva de tentar rediscutir as matrizes curriculares então essa é uma das coisas que eu pretendo propor, porque os nossos cursos estão com as mesmas matrizes curriculares iguais desde a inauguração do câmpus, então, a gente pode repensar isso. Eu penso que isso tem que acontecer especialmente voltado pros professores das áreas técnicas porque são esses professores que mais precisam ter essa sensibilização. Representante 4 (30-40 anos, docente, mulher, cisgênero, heterossexual, branca)

O pequeno impacto do NUGEDS no currículo pode ser modificado pelo debate proposto pelas gestões do câmpus relacionado à modificação das matrizes curriculares dos cursos. A revisão desses documentos oportuniza ampliar a ação das/os docentes e do próprio ensino ofertado nos IFs, aumentando a ação para que se pense em uma formação para a cidadania. Para isso, é necessário fortalecer as/os membros desse núcleo para que essas/es também se tornem agentes de aprendizado.

A construção de um currículo pró-diversidade de gênero e de sexualidade envolve assumir uma posição diante do machismo e da LGBTfobia que acontecem no cotidiano da instituição. Para as/os representantes, para discutir o currículo é necessário abordar as violências do cotidiano:

O NUGEDS não impacta o currículo porque talvez institucionalmente ele não tenha uma cara institucional. Nos próximos anos, porque agora a extensão vai chegar obrigatória pros cursos em 2022. Tu pode ter ações de extensão do curso que ele vai precisar cumprir dentro do NUGEDs. No momento que o NUGED reconhecer seu espaço formativo pedagógico, ele vai dialogar com os coordenadores de curso, ele vai fazer essa aproximação, e essas coisas podem vir acontecer e acho que devem acontecer inclusive. Nas licenciaturas é fundamental, é muito mais que um saber das ciências sociais, ele é um saber pedagógico; se vocês verem uma piada racista, vocês têm que se posicionar, têm que se manifestar, não pode dar risada junto com os alunos. Representante 13 (30-40 anos, docente, homem, cisgênero, homossexual, branco)

É uma luta impactar os currículos. Já é uma luta o NUGEDS poder falar dos temas que se propõe a falar. Às vezes, já é encarado com terror pela comunidade acadêmica, agora influenciar os currículos acho que é uma coisa difícil de fazer. Por exemplo, eu vejo que há poucos professores interessados nos temas do NUGEDS. No IFSul, tem muita pouca pesquisa sobre gênero, sobre feminismo. Como que vai ter pesquisa? Tem que ter extensão pra poder refletir sobre o currículo para depois futuramente quando forem analisar os planos de ensino e verem que isso está faltando. Quanto à questão LGBT, acho que é um tema estranho aos professores, eles se acham incapazes de falar. Eles não conhecem nada do tema, fazem piada de “bicha”, de “viadinho”, de “mulherzinha”. Acho que as pessoas se sentem amedrontadas em trabalhar algo que elas mesmas não conheçam a fundo. Não veem como uma possibilidade pra aprender algo novo e acabam não se envolvendo. Representante 8 (40-50 anos, docente, mulher, cisgênero, heterossexual, branca)

Enquanto forem tratadas como um tabu destinado a ser debatido apenas entre quem as estuda, essas temáticas estarão distantes das atividades do dia a dia. Os NUGEDS podem produzir um impacto no cotidiano quando se voltam às violências que acontecem nos câmpus onde esses núcleos estão estruturados.

Conforme já dito, o currículo aponta para a intencionalidade pedagógica da instituição, a partir do qual a escola, em sua função socializadora, pode legitimar a discriminação de toda pessoa que destoa da cisheteronormatividade. Como apontado pelos representantes, os NUGEDS têm um impacto pequeno nos currículos acadêmicos, o que acaba se traduzindo na exclusão dos debates de Direitos Humanos das atividades de ensino-aprendizagem. Entretanto, não é algo específico à realidade do IFSul, já que esses debates são dificilmente inseridos nos currículos educacionais brasileiros. Diante disso, é importante compreender como os documentos que orientam a construção do currículo escolar afetam a discussão de gênero e sexualidade em uma produção localizada cultural e historicamente.

Produzindo um currículo sobre e para a diversidade sexual e de gênero

Há diferentes documentos que regem a Educação Básica no Brasil e que afetam a maneira como o currículo é construído e operacionalizado nos IFs. Destacamos a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Nesse sentido, é importante compreender como esses documentos abordam (ou não) a temática da diversidade sexual e de gênero, apontando alguns efeitos que a presença/ausência desse tema causa nos NUGEDs, como também na própria formação escolar e acadêmica que é proposta no IFSul. Esses documentos podem influenciar positivamente ou negativamente o combate ao preconceito.

Existem documentos centrais que orientam a construção dos currículos nos IFs. A partir da promulgação da Constituição Federal do Brasil em 1988, fica prevista a fixação de conteúdos mínimos para o Ensino Fundamental. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica (LDB) foi a primeira lei que objetivou regulamentar a Educação Básica no Brasil. Baseadas na LDB, são criadas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) que estabelecem normas obrigatórias na composição curricular na Educação Básica (Ministério da Educação, 2013)Ministério da Educação (2013). Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Autor. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13448-diretrizes-curiculares-nacionais-2013-pdf&Itemid=30192
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
. Sequencialmente, são produzidos os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que irão operacionalizar as DCNs a partir de orientações que visam nortear os conteúdos das disciplinas sem a necessária obrigatoriedade de sua aplicação.

Em 2014, a partir da Lei n° 13.005, é instituído o Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece 20 metas para a melhoria da qualidade da Educação Básica, dentre elas a criação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). No período de 2015 a 2018, foram produzidas três versões do documento com as contribuições de gestores, professores, organizações específicas da sociedade civil e do próprio Ministério da Educação. O documento foi finalizado e publicado em dezembro de 2018, contemplando a Educação Básica com especificações para a Educação Infantil, Ensino Fundamental e o Novo Ensino Médio (Ministério da Educação, 2018)Ministério da Educação (2018). Plano Nacional da Educação (PNE) em Movimento. Autor. http://pne.mec.gov.br/
http://pne.mec.gov.br/...
. Esse documento de caráter normativo define o conjunto de aprendizagens que todos os alunos devem desenvolver ao longo de sua passagem em todas as etapas e modalidades da Educação Básica. Vale destacar que existem outras leis, orientações e pareceres que norteiam a construção dos currículos, porém os documentos aqui citados são os considerados centrais para o desenho que irá determinar a presença ou ausência de certas discussões. Diante disso, é importante compreender como esses documentos abordam (ou não) a discussão da diversidade sexual e de gênero.

A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro 1996Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (1996). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, que estabelece as principais diretrizes e bases da educação nacional, aborda de forma geral o respeito à diversidade (Art. 27), especificando elementos que compõem a diversidade étnico-racial (Art. 3, Art. 26, § 4º, Art. 26-A e Art. 78) e a diversidade cultural religiosa do Brasil (Art. 33). A LDB também prevê a necessidade de ações que previnam quaisquer formas de violência contra crianças e adolescentes sem especificar a quais tipos de violência estão se referindo. Em nenhum ponto da LDB a discussão da diversidade sexual e de gênero é citada, mesmo que indiretamente.

De forma muito similar, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), definidas a partir da Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010, abordam de forma bastante ampla e bem pouco específica o respeito às diferenças. O documento descreve em diferentes artigos elementos que são próprios das discussões dos direitos humanos, tais como a cidadania e dignidade da pessoa (Art. 3º); inclusão e valorização das diferenças (Art. 9º); pluralidade cultural (Art. 10; § 1º) e solidariedade humana (Art. 22; § 3º), entre outras. As DCNs também informam a necessidade do estudo das Culturas Afro-Brasileiras e Indígenas (Art. 14; § 1º). Já as questões de gênero, etnia e diversidade cultural são citadas como componentes integrantes do projeto político-pedagógico (Art. 43; § 3º), mas novamente não é feita nenhuma especificação. Nos DCNs, a diversidade sexual e de gênero não está presente.

Enquanto na LDB e nos DCNs a discussão em torno da diversidade sexual e de gênero é abordada muito superficialmente, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tal questão é gradualmente removida durante a construção do documento. Entre as diferentes alterações realizadas durante a escrita das três versões do documento, destaca-se a escrita da competência 9, que na primeira versão do documento estava descrita da seguinte forma:

Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, orientação sexual, idade, habilidade/necessidade, convicção religiosa ou de qualquer outra natureza, reconhecendo-se como parte de uma coletividade com a qual deve se comprometer. (Ministério da Educação, 2017a, p. 19)Ministério da Educação (2017a). Base Nacional Comum Curricular: Educação é a Base - Educação Infantil e Ensino Fundamental - Primeira Versão de 2017. Autor. https://observatoriogeohistoria.net.br/primeira-versao-da-bncc/
https://observatoriogeohistoria.net.br/p...

Já na versão final, a mesma competência aparecia descrita desta forma:

Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza. (Ministério da Educação, 2018, p. 10)Ministério da Educação (2018). Plano Nacional da Educação (PNE) em Movimento. Autor. http://pne.mec.gov.br/
http://pne.mec.gov.br/...

Aparentemente, o objetivo dessa alteração é ocultar essa discussão. Anterior à finalização do documento, preconceito e discriminação apareciam como elementos, mesmo que de forma indireta; já na versão final, esses termos foram totalmente omitidos. Entre as alterações está a remoção do termo “orientação sexual” e a alteração de certas descrições que, em sua versão final, são referidas como “preconceitos de qualquer natureza”. Por último, é removido o trecho “reconhecendo-se como parte de uma coletividade com a qual deve se comprometer”. O conceito vago de “diversidade” assume aqui também a assustadora figura do respeito a minorias e, por essa razão, deve ser extirpado do documento. Do ponto de vista político, tal modificação aponta para uma postura comum adotada pelos governos Temer e Bolsonaro de cercear ao máximo os debates progressistas da educação. Isso aponta para a importância que os debates sociopolíticos assumem na construção das políticas educacionais, já que governantes que militam contra direitos humanos irão invariavelmente afetar a construção dos programas sociais que são de sua responsabilidade.

Nessa direção, há outras alterações relativas aos tópicos e conteúdo das disciplinas. Um exemplo delas está nas habilidades previstas para as Ciências da Natureza do oitavo ano. Na segunda versão da BNCC, constava: “Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética) e a necessidade de respeitar, valorizar e acolher a diversidade de indivíduos, sem preconceitos baseados nas diferenças de gênero” (Ministério da Educação, 2017b, p. 301)Ministério da Educação (2017b). Base Nacional Comum Curricular: Educação é a Base - Educação Infantil e Ensino Fundamental - Segunda Versão de 2017. Autor. https://undime-sc.org.br/download/2a-versao-base-nacional-comum-curricular/
https://undime-sc.org.br/download/2a-ver...
. Na versão final do documento, é retirado o trecho que afirma “sem preconceitos baseados nas diferenças de gênero”. Na disciplina de Geografia para o oitavo ano, a habilidade “Identificar diferentes manifestações culturais de minorias étnicas, como forma de compreender a multiplicidade cultural na escala mundial, defendendo o princípio do respeito às diferenças” (Ministério da Educação, 2017b, p. 341)Ministério da Educação (2017b). Base Nacional Comum Curricular: Educação é a Base - Educação Infantil e Ensino Fundamental - Segunda Versão de 2017. Autor. https://undime-sc.org.br/download/2a-versao-base-nacional-comum-curricular/
https://undime-sc.org.br/download/2a-ver...
foi totalmente removida na versão final do documento.

Essas alterações pontuais anulam possíveis incentivos à discussão sobre preconceito e discriminação que poderiam ocorrer nessas disciplinas. Se o debate em torno da orientação sexual é removido na versão final do documento, a discussão relativa à identidade de gênero não é sequer mencionada ao longo das três versões da BNCC (Ministério da Educação, 2018)Ministério da Educação (2018). Plano Nacional da Educação (PNE) em Movimento. Autor. http://pne.mec.gov.br/
http://pne.mec.gov.br/...
. Foi constatada apenas uma alteração positiva ao longo desse processo, que é o acréscimo de uma habilidade na disciplina de História do 9º ano: “Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas” (Ministério da Educação, 2018, p. 431)Ministério da Educação (2018). Plano Nacional da Educação (PNE) em Movimento. Autor. http://pne.mec.gov.br/
http://pne.mec.gov.br/...
. Esse é um acréscimo interessante, um dos poucos que contempla a discussão sobre diversidade sexual e de gênero. De forma geral, o documento silencia esse debate, omitindo qualquer menção à terminologia que remete ao combate ao preconceito e discriminação sobre as expressões de gênero e de sexualidade.

Os principais documentos que orientam as políticas educacionais brasileiras abordam superficialmente a discussão do respeito às diferenças. Quanto ao debate relativo à diversidade sexual e de gênero, nos documentos analisados dificilmente esses elementos aparecem contemplados, quando não são ativamente removidos da escrita dessas legislações.

Seria de grande importância que legislações atuais, como a BNCC, versassem abertamente sobre o combate ao preconceito e à discriminação, pois oportunizaria uma abertura ao diálogo, à reflexão e à problematização desses temas. Em explicação posterior, o MEC afirma que as modificações na BNCC ocorreram para evitar redundâncias e repetições (Ministério da Educação, 2017c)Ministério da Educação (2017c). Base Nacional Comum Curricular. Autor. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/...
. Essa afirmação é um tanto discutível, considerando que as demais formas de preconceito estão devidamente identificadas ao longo da redação do texto e o preconceito referente à orientação sexual não é citado em nenhum outro ponto dessa legislação. Os representantes entrevistados apontam as mesmas limitações nas legislações educacionais e veem no NUGEDS um espaço de questionar essas ausências e silenciamentos, como é possível observar nestes relatos:

Eu vejo o NUGEDS como uma resistência, especialmente porque ele coloca em questionamento o que tá nos documentos. Eu sei que na BNCC não tem nada sobre esses debates. Representante 5 (20-30 anos, TAE, mulher, cisgênero, heterossexual, branca)

Acho que o NUGEDS é fundamental. Vou te dar um exemplo. Eu lembro que de 2006 a 2010 estava se discutindo a obrigação de uma lei para abordar no currículo a cultura e a história afro-brasileira e indígena. Precisa ter uma lei pra isso? Sim precisa. Produz efeitos essas questões de ter uma lei, como a gente ter núcleos nos câmpus porque aí isso mexe com a nossa própria prática educacional. Representante 6 (40-50 anos, docente, mulher, cisgênero, homossexual, branca)

A discussão dos aparatos educacionais que sustentam os debates em favor dos direitos humanos no currículo permite reconhecer os limites impostos e superá-los. Além de uma documentação voltada ao respeito à diferença, a ação de quem está dentro do ambiente educacional é primordial. Nessa direção, a representante 7 descreve uma atividade que realizou com os seus alunos que produziu um impacto inesperado.

Eu acho que os alunos têm se aberto mais para discutir assuntos que antes achavam tabu, por exemplo, eu sempre proponho de forma alternada no final do ano que eles analisem filmes, séries ou construam seu próprio personagem a partir de superpoderes da física, e teve grupos agora em 2019 que criaram super-heróis LGBTQIA+. Teve um herói comunista que combatia o capitalismo, coisas assim, coisas que eu nunca falei em aula. O currículo papel é muito burocrático. Agora o currículo vivido eu acredito que professoras mulheres, professores LGBTQIA+ nas áreas técnicas, principalmente, que atuam no NUGEDS, já levam pra sala de aula dentro do currículo da sua disciplina. Representante 7 (20-30 anos, docente, mulher, cisgênero, heterossexual, branca)

Na perspectiva dessa representante, há dois currículos. Existe um currículo burocrático que está pautado em diferentes documentações e normativas; e outro que é vivo, pois se baseia no cotidiano da escola. Ao irem além do solicitado, as/os estudantes rompem as limitações impostas aos aparatos educacionais e fazem as experiências de suas trajetórias de vida vazar para além dos objetivos daquela atividade. O Representante 13 afirma que a BNCC é um desses limitadores. Para ele, esse documento reafirma uma visão retrógrada de construção de conhecimento científico.

O que eu vejo é o seguinte: a gente veio com os PCNs [Parâmetros Curriculares Nacionais] numa tentativa gradual de inserção dessas temáticas na educação básica, mas historicamente as ciências sociais vêm morrendo do currículo. O que a gente tem uma direita que assumiu o poder e que a todo custo tenta silenciar essas questões por uma questão puramente ideológica. A BNCC é uma prova porque além de silenciar as questões de direitos humanos, ela é uma base que silencia o próprio conteúdo das ciências. Partindo dessa perspectiva, tu olhas pra BNCC e não enxerga isso. Tu fica centrado naquelas habilidades e competência e acaba esquecendo o conteúdo cultural das ciências. Esse saber que foi construído culturalmente ao longo dos últimos séculos da nossa existência como humanidade. Tu não vai desenvolver cidadãos capazes de se posicionar criticamente. Acho que os NUGEDs dentro do IFSul, todos os núcleos que debatem isso dentro de instituições públicas e privadas são movimentos de resistência e de identidade. Representante 13 (30-40 anos, docente, homem, cisgênero, homossexual, branco)

Também acreditamos que a BNCC limita o desenvolvimento de atividades no ambiente escolar, uma vez que acaba operando como um mecanismo orquestrado pela extrema-direita nos últimos quatro anos para deslegitimar os fazeres científicos a partir do esvaziamento de seu processo de construção. Não são apenas os debates a favor dos direitos humanos que são afetados por isso, mas toda forma de produção de conhecimento que acaba cindida de seus elementos políticos, históricos e sociais. Presente na BNCC, o conceito de uma “democracia social” que afirma que todos são iguais não reconhece que existem marcas específicas que nos levam a determinadas vivências de violência, opressão e privilégio. A ausência dessa reflexão abre um campo de possibilidades para a violência contra todos que, em alguma medida, destoam desses ideais normativos.

Nesses termos, diferentes estudos apontam que ambientes nocivos à diversidade sexual e de gênero produzem múltiplas formas de violência contra a comunidade acadêmica. Em pesquisa realizada em 500 escolas brasileiras, com 18.599 membros da comunidade escolar, 87,3% dos participantes afirmam ter preconceito relacionado à orientação sexual; e 98,9% buscam manter alguma distância social de homossexuais. Os achados dessa pesquisa permitem afirmar que os alunos mais propensos a sofrerem preconceitos são os homossexuais, seguidos dos alunos negros e dos alunos com menor poder aquisitivo (Mazzon, 2009)Mazzon, José Afonso (2009). Projeto de estudo sobre ações discriminatórias no âmbito escolar, organizadas de acordo com áreas temáticas, a saber, étnico-racial, gênero, geracional, territorial, necessidades especiais, socioeconômica e orientação sexual. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira; Ministério da Educação. http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relatoriofinal.pdf
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Tal circunstância ainda se mostra presente em estudo realizado no ano de 2016 pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Em um universo de 1.016 estudantes, foram coletadas informações referentes à orientação sexual e à identidade de gênero. Como resultado, 53,9% dos participantes afirmam que a escola nunca interviu diante de comentários preconceituosos; e 55,9% avaliam como pouco eficazes as medidas tomadas pela escola diante de agressões e violências. Logo, 60,2% dos participantes relatam se sentirem inseguros no ambiente escolar devido à sua orientação sexual; e 42,8% em função de sua expressão de gênero. Ainda quanto aos discentes, estudantes LGBTQIA+ relatam vivenciarem na escola diferentes formas de violências de cunho homofóbico e transfóbico, mais do que experienciariam em casa ou em suas comunidades (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2017)Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO (2017). Jogo aberto: Respostas do setor de educação à violência com base na orientação sexual e na identidade/expressão de gênero. Autor. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000244652
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Além disso, jovens homossexuais apresentam maior índice de absenteísmo por relatarem sentimento de insegurança e ameaças de agressão no ambiente escolar (Friedman et al., 2006)Friedman, Mark S., Koeske, Gary F., Silvestre, Anthony J., Wynne S. Korr, & Sites, Edward W. (2006). The impact of gender-role nonconforming behavior, bullying, and social support on suicidality among gay male youth. Journal of Adolescent Health, 38(5), 621-623. https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.2005.04.014
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Os estudantes que não se encaixam em uma determinada norma social relativa ao gênero e à sexualidade tendem a sofrer mais violência escolar em comparação a outros estudantes (Pinheiro, 2006)Pinheiro, Paulo Sergio (2006). World report on violence against children. United Nations.. A situação não é diferente quanto aos docentes no contexto brasileiro. Em um levantamento do perfil docente de escolas da educação básica realizado pela UNESCO no ano de 2004, com 5.000 participantes, 59,7% dos professores relatam ser inadmissível ter experiências homossexuais. Um dos representantes entrevistados afirma a dificuldade de manejar as experiências de violência que presencia em sala de aula:

É muito difícil entrar em uma sala depois de um professor fazer bullying, uma LGBTfobia e ver uma sala inteira de adolescentes muitos atentos a essa prática de violência e replicando isso contra um colega. Foi algo que eu presenciei. Pensar que naquele momento eu tinha os 90 minutos para tentar administrar uma situação, pra fazer com aquele estudante que sofria a violência pudesse respirar, pudesse falar. Como vou produzir efeitos positivos nesse aluno depois de uma manhã inteira de violência? Eu lembro dele dizer “Eu gosto de sua aula e da fulana porque a gente pode falar”. Mais tarde ele abandonou o curso, ele não foi até o fim. A sexualidade dos outros não era apontada, mas a sexualidade dele era apontada o tempo todo. Representante 3 (40-50 anos, docente, homem, cisgênero, homossexual, branco)

Ser uma pessoa do grupo LGBTQIA+ significa estar marcado como alvo de múltiplas formas de preconceito, especialmente a violência escolar. Mesmo em legislações pertinentes, isso é pouco discutido. O Art. 3, inciso IV da Constituição Federal de 1988, afirma que “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” e o Art. 5º, inciso XLI, que “A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Já nessas garantias constitucionais, há uma ênfase à liberdade e às garantias das pessoas LGBTQIA+ à vida longe do preconceito e da discriminação.

A inexistência da discussão da diversidade sexual e de gênero na BNCC age como um empecilho ao livre debate sobre essas temáticas. A invisibilidade dessa discussão na escola aumenta o desconhecimento dos estudantes, o que pode reforçar o preconceito e a violência, prejudicando os próprios processos de ensino-aprendizagem. Ações como as dos núcleos institucionais facilitam a criação de espaços abertos para esses debates. O NUGEDS opera como uma importante estratégia de resistência e enfrentamento ao preconceito e à discriminação.

A Lei nº 13.185 de 2015 institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying), que configura o que é bullying no contexto escolar como também elenca ações prioritárias que devem ser executadas por diferentes órgãos governamentais no combate à violência contra crianças e adolescentes. A lei obriga que as escolas se posicionem diante de situações de bullying, já que existe um caráter legalista por trás disso a partir de agora. Contudo, é interessante notar que nas definições apresentadas de bullying não é referido em nenhum momento o preconceito ou violência contra a diversidade sexual e de gênero. A ausência de documentações claras e objetivas que combatam o preconceito sofrido diante expressões sexuais e de gênero consideradas desviantes facilita a produção de ambientes em que a violência se torne invisível.

Os IFs como ambientes escolares operam como importante local de socialização e formação da cidadania. A ausência de documentos que orientem as políticas educacionais nacionais no âmbito da diversidade sexual somada à ignorância em relação a essas temáticas na comunidade escolar danifica o processo de ensino-aprendizagem ofertado às/aos estudantes. Esse misto de ausência e confusão não pode legitimar a omissão da instituição em produzir um ambiente seguro à plena formação integral e crítica dos sujeitos que transitam por ela. É de suma importância que as/os educadoras/es trabalhem para tornar a escola um local seguro a todas/os as/os estudantes.

Um dos primeiros efeitos de um ambiente mais tolerante à diversidade é a efetiva melhora do clima escolar. Em pesquisa realizada com 9.937 alunos e 1.330 professores de 84 escolas da rede pública do Distrito Federal, as pesquisadoras Miriam Abramovay, Anna Lúcia Cunha e Priscila Pinto Calaf destacam que a discriminação mais presenciada na escola pelos sujeitos foi a de ser ou parecer homossexual tanto no grupo de alunos (63,1%) quanto no de professores (56,5%) (Abramovay, Cunha, & Calaf, 2015)Abramovay, M., Castro, M. G., & Waiselfisz, J. J. (2015). Juventudes na escola, sentidos e buscas: Por que frequentam? Flacso/Brasil. . Ainda segundo as autoras, quando as normas de convivência das escolas afirmam a intolerância frente ao preconceito contra a diversidade sexual e de gênero, se torna mais fácil identificar sua ocorrência. Logo, ambientes escolares em que a temática da diversidade sexual e de gênero sequer é debatida, o preconceito contra as existências não cis-heteronormativas se torna ainda mais naturalizado.

Quanto ao IFSul, a ação dos NUGEDS auxilia para que as atitudes preconceituosas não passem despercebidas. Em certos casos, também auxilia no desenvolvimento da empatia frente à diferença tanto nas/nos alunas/os quanto nas/nos servidoras/es. Nessa direção, o Representante 3 pode mostrar a uma colega outra forma de manejar uma situação do cotidiano escolar:

Aconteceu uma situação que um aluno diz pro outro que achava ele bonito e queria beijar ele. A mãe desse aluno vai à escola reclamar. A escola não pode fazer nada. A escola tem que dizer “Olha, tu tem que namorar quem tu quiser”. No meu câmpus anterior, tinha uma assistente de aluno que encontrou duas gurias se beijando no pátio. A preocupação dela era saber o que fazer vendo duas alunas se beijando dentro da escola e a chefe de ensino respondeu para ela: “Nada. Faria alguma coisa se fosse um aluno e uma aluna se beijando? Então não faz nada.” Ela reviu muitas coisas das práticas dela. A pergunta ingênua dessa colega localiza um processo de violência histórica contra nós. Não aceita que um aluno está no período da efervescência. A escola tá aí pra isso, pra ser esse espaço de encontro. Representante 3 (40-50 anos, docente, homem, cisgênero, homossexual, branco)

Mesmo que haja pouco impacto no currículo, o que se percebe é que professoras/es e servidoras/es que transitam pelos NUGEDS intencionalmente levam os debates de gênero e de sexualidade às suas realidades diárias. Há uma importante tomada de decisão que, nas palavras de bell hooks, transforma a sala de aula em um espaço de múltiplos aprendizados. Nele, não é apenas o/a professor/a que ensina, mas as/os alunas/os ensinam uns aos outros, formando uma rede de construção heterogênea e crítica do conhecimento. Resgatando Paulo Freire, bell hooks afirma que o processo educativo deve ser acima de tudo um engajamento crítico e ativo sobre os processos de ensino-aprendizagem, o que nomeia como “pedagogia engajada” (hooks, 2013, p. 28)hooks, bell (2013). Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. WMF/Martins Fontes. . A sala de aula se torna um espaço de crescimento, de ampliação da capacidade de viver, tanto para as/os alunos quanto para os/as professores/as.

Conclusão

O reconhecimento de um campo da diferença passa pela desmitificação da sala de aula como um local seguro, neutro e harmonioso. Isso resgata o próprio processo de produção de conhecimento ao longo da história que se deu a partir do choque de diferentes antagonismos sociais. Às vezes, de forma oculta, paira nos processos educacionais um constante medo da descentralização do conhecimento que ainda gira em torno do homem branco europeu colonizador. Isso produz um rechaço a qualquer produção que traga a voz das/os ditas/os excluídas/os. Entretanto, os estudos que valorizam debates que tomam como premissa ética o respeito aos direitos humanos não desejam por si estabelecerem uma nova verdade estagnada e cristalizada, mas sim abrir construtivamente a academia à presença de outros saberes.

As experiências presentes nas trajetórias de vida daquelas/eles que circulam pelos NUGEDS afetam a maneira como a escola aborda os debates de gênero e sexualidade. É a partir delas que é evidenciada a fronteira dessas discussões, questionando a instabilidade dos arranjos, das práticas e dos destinos sociais que se colocam como universais, estáveis e indiscutíveis. A existência de núcleos com esses princípios está alinhada com uma visão de sociedade que respeita os valores democráticos e pluralistas de ser e existir. É a visão de uma escola-comunidade que está inscrita nessa perspectiva de produzir a educação.

Analisando os documentos que gerem a Educação Básica e a Educação Profissional e Tecnológica, percebemos que são poucos aqueles que efetivamente embasam a construção de um currículo que valorize as discussões da diversidade sexual e de gênero. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que em seus objetivos explícitos visa qualificar as instituições de ensino com tecnologias educacionais modernas, opera na verdade um importante retrocesso na formação para a cidadania.

Sabemos que a construção curricular não é pacífica, pois é produzida pela disputa de inúmeras redes discursivas, inclusive pelas que engessam os debates progressistas. Mesmo que aparentemente o NUGEDS tenha pouco impacto nos currículos, é nítido que sua existência causa certas tensões, especialmente nos ambientes em que as pessoas se sentem tão confortáveis em seus privilégios.

Nessa perspectiva, os NUGEDS são uma das muitas ferramentas para a construção de um espaço escolar onde imperem as condições de igualdade de acesso e permanência dos sujeitos, como também o respeito ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. A existência de núcleos com esses princípios está alinhada com uma visão de sociedade que respeita os valores democráticos e pluralistas de ser e existir.

Referências

  • Abramovay, M., Castro, M. G., & Waiselfisz, J. J. (2015). Juventudes na escola, sentidos e buscas: Por que frequentam? Flacso/Brasil.
  • Bourdieu, Pierre (2006). A ilusão biográfica. In Janaína Amado & Marieta de Moraes Ferreira (Orgs.), Usos e abusos da história oral (8a ed., pp. 183-192). Editora FGV.
  • Friedman, Mark S., Koeske, Gary F., Silvestre, Anthony J., Wynne S. Korr, & Sites, Edward W. (2006). The impact of gender-role nonconforming behavior, bullying, and social support on suicidality among gay male youth. Journal of Adolescent Health, 38(5), 621-623. https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.2005.04.014
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  • Hampel, Alissandra (2013). “A GENTE NÃO PENSAVA NISSO...”: Educação para Sexualidade, Gênero e Formação Docente na Região da Campanha/RS [Tese de Doutorado em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS].
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    » https://doi.org/10.17058/rea.v24i1.6923
  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) DS, Bolsa Doutorado recebido por Willian Guimarães.
  • Consentimento de uso de imagem

    Não se aplica.
  • Aprovação, ética e consentimento

    Os procedimentos adotados na produção dessa pesquisa obede ceram aos Critérios de Ética na Pesquisa com Seres Humanos, conforme Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto de pesquisa foi registrado na Plataforma Brasil sob o processo de número 43264921.0.0000.5334 e submetido à aprecia ção do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da UFRGS. Após uma correção solicitada pela Comissão de Ética, o projeto foi aprovado a partir do parecer de número 4.638.670. Todos os entrevistados assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2023
  • Revisado
    10 Ago 2023
  • Aceito
    22 Ago 2023
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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