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COMENTÁRIO A “PSYCHOLOGY THROUGH CRITICAL AUTO-ETHNOGRAPHY”, DE IAN PARKER

COMENTARIO A “PSICHOLOGY THROUGH CRITICAL AUTO-ETHNOGRAPHY”, DE IAN PARKER

COMMENTARY TO “PSYCHOLOGY THROUGH CRITICAL AUTO-ETHNOGRAPHY”, BY IAN PARKER

Resenha de Parker, Ian. (2020). Psychology through critical auto-ethnography: academic discipline, professional practice and reflexive history.Routledge.

Fiquei sabendo a respeito do livro mais recente de Ian ParkerParker, I. (2020). Psychology through critical autoethnography: academic discipline, professional practice and reflexive history. Routledge. através do Facebook: Parker postou, em fevereiro deste ano, uma foto de uma pilha de exemplares do livro, anunciando que estava pronto, que tinha alguns exemplares disponíveis para divulgação e que os interessados poderiam entrar em contato (ele dispunha de alguns exemplares para distribuição, a título de divulgação). Como você já deve imaginar, escrevo este texto porque fui um dos interessados: falei com ele pelo comunicador do Facebook, ele pegou meu endereço e, três semanas depois, chegava em minha casa um exemplar em capa mole (“paperback”, como eles dizem na Inglaterra), enviado pela editora, a Routledge.

A primeira coisa que me chamou atenção na postagem de Parker foi a menção, já no título, à autoetnografia - metodologia em que tenho estado interessado desde que tive notícia de sua existência uns meses atrás, num dos capítulos do livro “Branquitude” (Müller & Cardoso, 2017Müller, T. M. P. & Cardoso, L. (2017). Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Appris.). No contato inicial com Parker, no entanto, já fiquei sabendo que a autoetnografia não era discutida em profundidade no trabalho, e que o foco do livro não era esse (ele, apesar disso, gentilmente complementou a informação oferecendo indicações e arquivos digitais de materiais a respeito do método).

O trabalho do livro efetivamente passa longe de qualquer discussão metodológica: trata-se de uma espécie de autobiografia intencional, um relato de trajetória, que serve como plataforma para uma análise crítica da Psicologia - é justo dizer, então, que o objeto do livro é a Psicologia, tomada enquanto disciplina acadêmica, campo de pesquisa científica e campo de intervenção individual e social.

O livro é dividido em cinco partes, e cada parte é dividida em quatro capítulos (sim, bem “simétrico”), acompanhando basicamente a trajetória pessoal do autor. Assim, a primeira parte enfatiza o lugar do aluno e a forma como a Psicologia acolhe, formata e domestica aqueles que escolhem estudar na área; a segunda parte foca na experiência de pesquisadores ou “alunos de pós-graduação” (strictu sensu, no caso), analisando a forma como a Psicologia sustenta um discurso com pendor científico (ou cientificista) e a forma como negocia permanência e prestígio no campo científico; a terceira aborda o ensino e a coordenação de práticas de pesquisa e extensão, analisando como se estabelecem as redes de negociação e disputa de poder que regulam o campo e constrangem seus atores a subscrever pressupostos e práticas; a quarta parte aborda as perspectivas de engajamento crítico no campo da Psicologia, oriundas da teoria (como no caso da desconstrução e das perspectivas teóricas pós-coloniais e pós-estruturalistas) e da prática (como no caso dos grupos de Psiquiatria Democrática e demais perspectivas críticas e de resistência no campo da “saúde mental”); a quinta parte, por fim, aborda as dinâmicas institucionais em contextos universitários, de coordenação regional e de pesquisa, a coordenação de grupos e outros loci de hierarquia relativamente elevada dentro da burocracia da Psicologia enquanto disciplina universitária. Todo o texto colige uma erudição notável, uma memória impressionante e uma análise crítica balizada pelo “relato de memórias”.

Entendo o livro, então, como uma complexa peça de tapeçaria, em que a trajetória pessoal de Parker, o panorama da Psicologia em seu tempo (com destaque evidente para o que se passava no Reino Unido) e as perspectivas críticas que permitem analisar os impasses e limites de cada área de manifestação do “complexo psi” se entrecruzam na composição do texto.

O leitor brasileiro tem de buscar recursos próprios, evidentemente, para transpor o oceano que separa a narrativa de Ian do cenário que nos determina - e isso constitui uma limitação importante para o impacto do livro nesse contexto (para não mencionar o evidente abismo do ponto de vista da língua e da acessibilidade de um livro comercializado por uma editora inglesa). Para aqueles que dispõem de condições para uma jornada como essa, no entanto, parece-me que o esforço vale a pena: afinal, a distância entre a narrativa de Parker e a realidade do leitor brasileiro oferece, aposto, tantos potenciais quanto entraves (a alteridade sendo, como de hábito, fonte de inquietação tanto quanto de inspiração e insight).

Chamaria atenção, nesse contexto, para um elemento de alteridade que me parece decisivo: a presença, nos países de língua inglesa, de uma comunidade estabelecida e participativa de “sobreviventes” do complexo psi; entendo que esse elemento cumpre um papel decisivo na jornada de Parker e na própria condição de possibilidade de uma publicação como essa (o que significa dizer que é difícil imaginar uma publicação equivalente no Brasil, inclusive por força dessa diferença contextual).

Para quem não sabe: as comunidades de sobreviventes são estabelecidas e compostas por pessoas que foram submetidas a tratamentos “psi” (psicossociais, psiquiátricos e psicológicos, mas sobretudo psicofarmacológicos), que eventualmente se apropriam da percepção de que o tratamento os limita e determina de forma ruim, e que então angariam recursos (pessoais e ambientais) para romper com essas propostas de tratamento; uma vez “do outro lado”, elas se engajam em militância ativa contra a dimensão de poder e submissão envolvida no “complexo psi” e a favor de formas de cuidado que se ofereçam como alternativa e contraponto ao “complexo” (formas usualmente, mas não necessariamente, de base comunitária). Os movimentos de sobreviventes, é bom que fique claro, não podem ser subsumidos aos movimentos de Reforma Psiquiátrica nem de antipsiquiatria, e ainda que haja movimentos de sobreviventes no Brasil (como o movimento dos Ouvidores de Vozes, por exemplo), parece evidente que se trata de uma forma de militância menos consolidada no país.

E por que estou falando disso? Porque me parece claro que o livro de Parker, além de dialogar frequentemente com movimentos desse tipo, depende da existência de uma comunidade como essa como condição de possibilidade. Isso porque o livro pode ser entendido como a “despedida” de Parker em relação ao complexo psi - num dado momento no final do livro ele chega a relatar um encontro em que um sujeito o intitula como “antipsicólogo” e ele, após hesitação, aceita o título. No entanto, mais do que um antipsicólogo, trata-se de uma obra escrita por um ex-psicólogo: Ian faz diversas menções à sua “saída” do complexo psi e declara explicitamente, na conclusão do livro, que acredita ser necessário abandonar a Psicologia e o psicologismo em busca de novos campos de luta. Nessa medida, ainda que seja em grande medida uma obra marxista e foucaultiana (termos que o autor adota reiteradamente ao longo do livro), compreendo que se trata acima de tudo da narrativa de um sobrevivente - a grande peculiaridade nesse sentido, talvez, é que nesse caso temos um sobrevivente que, tendo sido psicólogo e professor pesquisador de destaque na área, habitou altos escalões do complexo psi.

Mas acredito que haja mais do que isso em jogo - mais do que o relato de um sobrevivente, encontramos em “Psychology through autoethnography” um trabalho semelhante ao whistleblowing: um relato de alguém que esteve dentro de uma instituição e se propõe a denunciar os abusos e malfeitos que percebeu em seu funcionamento. Nesse sentido, a obra apresenta diversos relatos - colhidos pelo autor ao longo de décadas de participações em eventos, laboratórios, grupos de pesquisa, ensinando na graduação e na pós-graduação - acerca de como o maquinário psi se organiza e se reproduz. Para Parker, as instituições psi não são muito diferentes de qualquer outra instituição, no sentido de serem dispositivos de coaptação e concentração de poder em redes relacionais geridas de forma a se perpetuar; o que elas têm de peculiar, no entanto, é o fato de serem baluarte central no desenvolvimento e implementação das tecnologias leves (e pesadas, eventualmente) que viabilizam o avanço dos governos neoliberais. Segundo Parker, a psicologia é crucial para o neoliberalismo na medida em que permite avançar em relação à lógica disciplinar clássica, articulando o que ele refere como “feminização” do trabalho às práticas de administração meticulosa da gestão do tempo e da força dos trabalhadores, dentro e fora do espaço de trabalho propriamente dito.

O argumento básico de Parker, nesse sentido, apesar de ser esmiuçado em diversos aspectos ao longo do livro, é relativamente simples: o autor expande o entendimento do regime disciplinar apresentado por Foucault em Vigiar e Punir (1984Foucault, M. (1984). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis. Vozes.), de uma dimensão de vigilância ostensiva (em que o “guarda no centro da torre” observa os comportamentos de todos os detentos, na proposta/metáfora do Panóptico de Bentham) a uma dimensão de “interiorização da vigilância”, através da qual os detentos se comportam conforme esperado independentemente de o vigia estar ou não ali; essa expansão se dá no reconhecimento de que o “complexo psi” (e a Psicologia em particular) se presta ao desenvolvimento de estratégias para a “interiorização da vigilância” - fazendo com que nos compreendamos e nos refiramos a nós mesmos e aos demais em termos “psi”, submetendo-nos assim a uma lógica que seria, propriamente, disciplinar.

É daí que vem a contundência de Parker ao defender a ideia de que a Psicologia deve ser abandonada enquanto plataforma de resistência, crítica e militância; em seu entendimento, todo e qualquer empreendimento “psi” estará a serviço do poder disciplinar e, por extensão, do neoliberalismo e do governo dos homens; assim, a busca por plataformas críticas e revolucionárias passaria necessariamente por outros lugares - essa é a conclusão (um tanto melancólica) a que Parker chega ao final de sua longa trajetória pelo complexo psi em todos seus níveis (enquanto aluno e professor, pesquisador, orientador, coordenador e ativista). A ideia de uma Psicologia Crítica, para Parker, teria se tornado um oximoro.

Independente de concordarmos ou não com a posição do autor (só posso supor que os leitores desta Revista não concordem, posto que estão lendo uma revista que leva “Psicologia” em seu próprio título), faremos bem em reconhecer a coragem do autor e em acolher com cuidado a relevância dos pontos críticos que levanta, os ensinamentos que traz e as reflexões que propicia.

Hank Stam, um dos autores de recepção crítica citados na quarta capa do livro, afirma que o livro opera como “cautionary tale” (conto de advertência talvez seja uma tradução apta para a expressão idiomática); Michelle Fine, autora de outro desses trechos, chama a obra de “walk off song” (canção de despedida seria minha tentativa de tradução aqui); ambas as expressões apontam para o caráter alegórico, cativante e eventualmente encantatório envolvido no texto de Parker. Eu, concordando com o que as expressões denotam em termos de elogio ao apelo estético e literário do texto, e reforçando sua qualidade enquanto testemunho e texto crítico, vejo-me pouco preocupado com as perspectivas de uma onda de defecções de psicólogos arrependidos ou seduzidos pelo “chamado” de Parker; pelo contrário: entendo que a obra reforça a vinculação potencial dos estudantes e psicólogos com a importância de uma crítica consistente, contundente e sem concessões - afinal, a coragem de um homem de empenhar-se nessa direção por toda sua vida e seguir capaz de pensar criticamente serve, a meu ver, não só como canção de despedida e conto de advertência, mas como um exemplo de rigor e coragem, a servir mais como inspiração que como exemplo.

Referências

  • Foucault, M. (1984). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis. Vozes.
  • Müller, T. M. P. & Cardoso, L. (2017). Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Appris.
  • Parker, I. (2020). Psychology through critical autoethnography: academic discipline, professional practice and reflexive history. Routledge.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2020
  • Aceito
    28 Maio 2020
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