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MULHERES NO TRABALHO MILITAR: UMA REVISÃO BIBLIOMÉTRICA E CRÍTICA

MUJERES EN EL TRABAJO MILITAR: UNA REVISIÓN BIBLIOMÉTRICA Y CRÍTICA

WOMEN IN MILITARY WORK: A BIBLIOMETRIC AND CRITICAL REVIEW

Resumo:

O trabalho militar, historicamente, é uma profissão predominantemente masculina. A crescente inserção das mulheres nas instituições militares tem enfrentado entraves importantes. A presente revisão bibliométrica objetivou mapear e analisar criticamente a literatura indexada sobre gênero no contexto militar, pretendendo especificamente identificar características, tendências e lacunas da produção científica sobre o tema nos últimos 10 anos na psicologia. Além da ausência de estudos brasileiros ou em língua portuguesa, identificou-se predominância de métodos quantitativos e de participantes homens nas pesquisas. O tema mais abordado foi o trauma sexual militar. Aponta-se a necessidade de mais investigações com mulheres militares em contexto brasileiro.

Palavras-chave:
Trabalho; Estudos de gênero; Militares; Mulheres trabalhadoras; Psicodinâmica do Trabalho

Resumen:

El trabajo militar ha sido históricamente una profesión predominantemente masculina. La creciente inserción de la mujer en las instituciones militares ha enfrentado importantes obstáculos. La presente revisión bibliométrica tuvo como objetivo mapear y analizar críticamente la literatura indexada sobre género en el contexto militar, con el objetivo de identificar características, tendencias y vacíos en la producción científica sobre el tema en los últimos 10 años. Además de la ausencia de estudios brasileños o en lengua portuguesa, se identificó predominio de métodos cuantitativos y participantes del sexo masculino en la investigación. El tema más discutido fue el trauma sexual militar. Se destaca la necesidad de más investigaciones con mujeres militares en el contexto brasileño.

Palabras clave:
Trabajo; Estudios de Género; Militar; Mujer Trabajadora; Psicodinámica del trabajo

Abstract:

Military work is, historically, a predominantly male profession. The growing insertion of women in military institutions has faced important obstacles. This bibliometric review aimed to map and critically analyze the indexed literature on gender in the military context, specifically intending to identify characteristics, trends and gaps in scientific production on the topic in the last 10 years. In addition to the absence of Brazilian or Portuguese-language studies, a predominance of quantitative methods and male participants was identified. The most discussed topic was military sexual trauma. The need for more research with military women in the Brazilian context is highlighted.

Keywords:
Work; Gender Studies; Military; Working women; Psychodynamics of work

Introdução

A inserção de mulheres em instituições militares, ocorrida de forma mais significativa nas sociedades ocidentais a partir de 1970, fruto de intensas lutas do movimento feminista por direitos políticos e sociais igualitários no século XX, derrubou mais uma das barreiras relacionadas ao avanço feminino em campos profissionais dominados por homens.

Segundo a Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança político-militar criada em 1949 que reúne países ocidentais liderados pelos Estados Unidos, a média de mulheres nas carreiras militares dobrou nos últimos 20 anos nos países membros do bloco (NATO - [North Atlantic Treaty Organisation], 2019)NATO - North Atlantic Treaty Organisation (2019). Annual Summary of the National Reports of NATO Member and Partner Nations to the NATO Committee on Gender Perspectives. Author. https://www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/2021/9/pdf/NCGP_Full_Report_2019.pdf
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. Em 2019, 41% desses países tinham políticas de promoção específicas para o recrutamento feminino, sendo que 22% relataram possuir os mesmos requisitos de alistamento para ambos os sexos e 78% dos países informaram que há formas diferenciadas de alistamento para homens e mulheres (NATO, 2019)NATO - North Atlantic Treaty Organisation (2019). Annual Summary of the National Reports of NATO Member and Partner Nations to the NATO Committee on Gender Perspectives. Author. https://www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/2021/9/pdf/NCGP_Full_Report_2019.pdf
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. O Resumo dos Relatórios Nacionais das Nações Membros e Parceiros da OTAN (NATO, 2019)NATO - North Atlantic Treaty Organisation (2019). Annual Summary of the National Reports of NATO Member and Partner Nations to the NATO Committee on Gender Perspectives. Author. https://www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/2021/9/pdf/NCGP_Full_Report_2019.pdf
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informa que a representação média de mulheres nas forças armadas das nações membros era de 12% entre ativos(as) e 14% na reserva no ano de 2019. Comparado ao ano de 2018, o número de mulheres nesse campo teve um aumento de 6%, e o número de homens caiu 1%. Entretanto, de acordo com o relatório, os homens ainda representam 9 em cada 10 indivíduos pertencentes às forças armadas. A Figura 1, com dados extraídos do Resumo dos Relatórios Nacionais das Nações Membros, mostra a porcentagem (%) de mulheres nas forças armadas em 27 dos 29 países representados pela OTAN no ano de 2019.

Figura 1
Participação militar feminina - OTAN

Especificamente no Brasil, as mulheres começaram a ocupar os quadros das forças armadas em 1980, com a criação do Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha e do Corpo Feminino da Reserva da Força Aérea Brasileira em 1982. Por último, no Exército Brasileiro, a primeira turma de formação envolvendo mulheres foi aberta na Escola de Administração do Exército (EsAEx) somente em 1992 (D’Araújo, 2004)D’Araujo, M. C. (2004). Mulheres, homossexuais e Forças Armadas no Brasil. In C. Castro, V. Izecksohn, & H. Kraay (Orgs.), Nova história militar brasileira (pp. 439-459). FGV.. Segundo o Ministério da Defesa, atualmente a Marinha conta com 8.413 mulheres em suas carreiras (13%), a Força Aérea com 12.538 (19,23%) e o Exército com 13.009 (10,2%) militares do sexo feminino (Nóbrega & Oliveira, 2021)Nóbrega, Isabela & Oliveira, Viviane (2021, 08 de março). Ministério da Defesa conta com mais de 34 mil mulheres em seus quadros. Defesanet. https://www.defesanet.com.br/defesa/noticia/39924/Ministerio-da-Defesa-conta-com-mais-de-34-mil-mulheres-em-seus-quadros/
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Não obstante, apesar da crescente inserção feminina no contexto militar global, este ainda é um tema delicado, sendo muitos os atravessamentos relacionados a questões de gênero que a presença das mulheres em ambientes militares tendem a suscitar, devido ao fato de o militarismo estar amplamente associado ao gênero masculino e, também, posto como espaço substancial ao aparecimento de conteúdos atrelados ao machismo e sexismo no trabalho.

Harold Braswell e Howard Kushner (2012)Braswell, H., & Kushner, H. I. (2012). Suicide, social integration, and masculinity in the U.S. military. Social Science & Medicine, 74(4), 530-536. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2010.07.031
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relatam que o campo militar pressupõe altos níveis de coesão social e uma consequente unidade entre os(as) integrantes, efetivada através de um certo culto à masculinidade, sendo esta transformada em uma espécie de capital social nas forças armadas. Destarte, estudos apontam que, mesmo a mulher estando presente no universo militar, parece haver uma tentativa de supressão do modo de “ser feminino” nessas organizações, através de um constante rechaço a qualquer repertório comportamental aproximado a este gênero. Matthew Kerrigan (2012)Kerrigan, Matthew F. (2012). Transgender discrimination in the military: The new don’t ask, don’t tell. Psychology, Public Policy, and Law, 18(3), 500-518. https://doi.org/10.1037/a0025771
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denota a existência de uma ideologia do “masculinismo” nas forças armadas, usando de tal conceito para apontar que alguns grupos em específico (aqueles marcados com os traços do feminino) acabam por ser excluídos das narrativas organizacionais, a fim de promover a constância moral e a coesão das instituições militares:

Embora as mulheres não sejam mais categoricamente excluídas do serviço, os militares ainda valorizam as características masculinas tradicionais. Os militares tradicionalmente procuram “homens de verdade” para servir, o que apresenta desafios para mulheres, gays e qualquer pessoa que não esteja em conformidade com o gênero. (Kerrigan, 2012, p. 505, tradução livre)Kerrigan, Matthew F. (2012). Transgender discrimination in the military: The new don’t ask, don’t tell. Psychology, Public Policy, and Law, 18(3), 500-518. https://doi.org/10.1037/a0025771
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Estudos de gênero e cultura são importantes para o entendimento das barreiras de assimilação das mulheres nas trincheiras do militarismo, ao promoverem discussões sobre as construções identitárias das pessoas na sociedade e as implicações desses processos no trabalho militar (Demers, 2012)Demers, Anne L. (2013). From Death to Life: Female Veterans, Identity Negotiation, and Reintegration Into Society. Journal of Humanistic Psychology, 53(4), 489-515. https://doi.org/10.1177/0022167812472395
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. Entendida como uma densa teia simbólica onde estão emaranhados os costumes, princípios e valores de grupos sociais, a cultura constitui-se como parte importante da edificação do eu dos sujeitos inseridos em contextos determinados (Zanello, 2018)Zanello, Valeska (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Appris.. Percebe-se uma espécie de “pedagogia dos afetos’’ (Zanello, 2018, p. 32)Zanello, Valeska (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Appris., ou colonização afetiva, já que determinados contextos culturais determinam também scripts de acordo com os quais as pessoas devem ser, sentir e expressar emoções.

Saindo de uma ótica macro, vislumbra-se também o funcionamento de processos culturais menores, como a cultura organizacional específica do ambiente militar, a qual tem se sustentado ao longo da história no ideal do guerreiro masculino, recompensando o autocontrole, a agressividade e a determinação, contrastando e negativando o feminino (Demers, 2012)Demers, Anne L. (2013). From Death to Life: Female Veterans, Identity Negotiation, and Reintegration Into Society. Journal of Humanistic Psychology, 53(4), 489-515. https://doi.org/10.1177/0022167812472395
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. Assim, revestida de viés político e instrumento de poder, “a cultura que une é também a cultura que separa e que legitima as distinções” (Bourdieu, 2001, p. 11)Bourdieu, Pierre (2001). O poder simbólico (4ª ed.). Bertrand Brasil., colocando os gêneros como opostos inigualáveis em âmbitos diversos nos espaços militares.

No que tange a estudos de gênero, importantes autores(as) têm se debruçado sobre as questões envoltas no tornar-se mulher e tornar-se homem, a partir de constructos histórico-político-sociais e o impacto destes fatores em diferentes aspectos da vida, incluindo o trabalho. Joan Scott (1995)Scott, J. W. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99. https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721
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descreve o conceito de gênero como um apoderamento social sobre um corpo sexuado e, por conseguinte, uma constituição sócio-histórica, em que os lugares determinados como sendo de homens e mulheres são representações de gênero, sendo tributadas aos indivíduos performances que terão consequências práticas também na vida profissional, ao apontar quais os lugares adequados para cada gênero na sociedade e no trabalho. Danièle Kergoat (2010)Kergoat, Danièle (2010). Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estudos, 29(1), 93-103. https://doi.org/10.1590/S0101-33002010000100005
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lança luz sobre o problema da divisão sexual do trabalho, construída sobre os princípios de separação (entre o que é considerado trabalho de homem ou de mulher) e de hierarquização (atribuindo mais valor ao trabalho do homem), denunciados pela “destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares etc.)” (p. 100)Kergoat, Danièle (2010). Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estudos, 29(1), 93-103. https://doi.org/10.1590/S0101-33002010000100005
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Considerando os impactos dos atravessamentos do gênero na saúde mental, e na vida como um todo, de mulheres militares, a psicodinâmica do trabalho pode ser pensada como rico arcabouço teórico na compreensão do sofrimento feminino acarretado pelas diferenças concretas e simbólicas de gênero nas instituições afetas ao militarismo. A teoria pressupõe que “trabalhar é preencher a lacuna existente entre o prescrito e o efetivo” (Dejours, 2012Dejours, Cristhophe (2012). Trabalho vivo: Tomo I. Sexualidade e trabalho. Paralelo 15., p. 38) e que o adoecimento psíquico aconteceria quando o sujeito se dá conta da impossibilidade de negociações e mudanças concretas na organização do trabalho, assim como a falta de reconhecimento. Pascale Molinier (2004)Molinier, Pascale (2004). Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo: um itinerário interdisciplinar 1988-2002. Production, 14(3), 14-26. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65132004000300003
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assinala que “quando a organização do trabalho faz obstáculo à elaboração do sofrimento e a sua transformação em prazer, então o trabalho pode ser prejudicial para a saúde mental. Não há neutralidade do trabalho defronte à saúde mental” (p. 15)Molinier, Pascale (2004). Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo: um itinerário interdisciplinar 1988-2002. Production, 14(3), 14-26. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65132004000300003
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Embora haja um crescente interesse sobre a intersecção entre questões de gênero e a progressiva presença das mulheres no militarismo, nesta pesquisa não foram identificados estudos que retratem e consolidem sob quais aspectos o tema tem sido explorado pela ciência nas temáticas pesquisadas, ou seja, qual olhar as mais recentes pesquisas têm lançado sobre os desafios da incorporação feminina ao campo militar e a cultura masculina dominante característica desses espaços.

Diante do exposto, o presente artigo, através de estudo bibliométrico, objetivou analisar as principais características dos trabalhos que se propuseram a estudar gênero no contexto militar e, ainda, discorrer criticamente sobre a produção científica produzida na última década sobre o tema, verificando-se quais aspectos desse campo de pesquisa têm se destacado na literatura científica dos últimos 10 anos. Dessa forma, objetivou-se também a apresentação conjuntural sobre o estado da arte na psicologia, pretendendo consubstanciar importante contribuição de caráter social, ao possibilitar a percepção de lacunas para novos estudos a serem realizados sobre análises de gênero no militarismo e seus desdobramentos, assim como a construção de políticas públicas que abarquem questões tão complexas e delicadas.

Método

Trata-se este estudo de uma revisão bibliométrica da publicação científica dos últimos 10 anos sobre gênero em contexto de trabalho militar no campo da psicologia.

A fim de coletar uma amostra representativa da literatura científica, a busca foi realizada em quatro das principais bases de dados de maior relevância no campo da psicologia: Lilacs, Web of Science, PubMed e Scopus. Os mesmos descritores em língua inglesa foram utilizados nas quatro bases de dados: (women OR gender) and (military OR army) and psychology. Apenas na base Scopus, devido ao grande número de resultados obtidos na busca, utilizou-se adicionalmente o filtro da própria plataforma para publicações na área da psicologia. Com os procedimentos descritos até aqui, a busca retornou um total de 839 resultados (Lilacs: 23; Web of Science: 362; PubMed: 234; Scopus: 220).

Na primeira etapa de coleta, a partir da leitura dos títulos e dos resumos, foram considerados inicialmente os artigos científicos revisados por pares, em língua inglesa, espanhola ou portuguesa, publicados nos últimos 10 anos (2012-2022), realizados com público militar (ativo e/ou inativo) e que envolvessem análise de gênero. Optou-se por não considerar teses, dissertações, monografias ou outros tipos de publicação. Apesar do valor científico encontrado na literatura cinzenta, atualmente a publicação científica tem priorizado a citação de fontes indexadas, motivo pelo qual esse recorte norteou a presente investigação. Essa busca inicial nas bases de dados foi realizada no período de 15/02/2022 a 04/03/2022.

Uma segunda etapa de refinamento da coleta foi realizada revisando os registros previamente selecionados, a fim de descartar textos repetidos, bem como aqueles que envolvessem público não militar (ex: amostras mistas de profissionais militares e civis) e que não apresentassem o gênero como variável relevante de análise (ex: estudos que caracterizam a distribuição de gênero na amostra mas que não se propõem a discutir as implicações do gênero para a compreensão do problema e interpretação dos resultados). Ao final, 109 artigos atenderam aos critérios de inclusão e exclusão, compondo a amostra definitiva da presente pesquisa.

Os estudos selecionados foram classificados conforme as seguintes categorias: distribuição de gênero entre os(as) autores(as), país de origem do estudo, delineamento de pesquisa, foco da investigação, status militar dos(as) participantes, distribuição de gênero entre os(as) participantes, método de pesquisa e idioma. Para cada um dos artigos selecionados, foi coletado também o índice H (H-index) do periódico de publicação conforme a classificação da Scimago Journal & Country Rank (SJR), bem como a área de conhecimento predominante de cada periódico. Por fim, foram identificados os principais conceitos ou variáveis que nortearam cada uma das pesquisas, a fim de mapear tendências e lacunas temáticas.

Resultados

Dos 109 artigos que compuseram a amostra final, 57% (n=62) foram encontrados na Web of Science, 30% (n=33) na Scopus e 13% (n=14) na PubMed. Nenhum dos artigos encontrados na Lilacs atendeu aos critérios de inclusão/exclusão estabelecidos. Não foram encontrados estudos em língua portuguesa ou espanhola dentro dos parâmetros de pesquisa em nenhuma das bases, de forma que a amostra foi totalmente caracterizada por pesquisas publicadas em língua inglesa (100%), realizadas predominantemente nos Estados Unidos (94%). A distribuição dos artigos por ano de publicação pode ser visualizada na Figura 2.

Figura 2
Artigos por ano de publicação

Pesquisas com delineamento empírico compuseram a maior parte da amostra (n= 90, 83%); com menor número de revisões sistemáticas (n=9, 8%) e estudos teóricos e/ou de revisão de literatura não sistemática (n=10, 9%). Dentre as pesquisas empíricas, os métodos quantitativos (n= 77, 86%) predominaram frente aos qualitativos (n=13, 14%).

Quanto ao status militar dos(as) participantes, constatou-se que a maioria dos estudos empíricos optou por pesquisar público estritamente veterano (n=46, 51%), ou seja, indivíduos que haviam servido às Forças Armadas anteriormente, mas que no momento da pesquisa não estavam mais em serviço militar ativo. Outros 31% (n=28) envolveram somente militares em serviço ativo, e 18% (n=16) envolveram público misto - veteranos(as) e militares ativos(as). Em relação à distribuição de gênero na autoria dos trabalhos, a maioria dos estudos apresentaram uma mulher como primeira autora (n=85, 78%). Identificou-se ainda que, em boa parte das publicações, todas as autoras eram mulheres (n=40, 37%), ao passo que apenas 5% (n=5) dos estudos foram publicados exclusivamente por homens. Não foi possível identificar se alguma das autoras fazia parte de carreira militar, uma vez que esse dado não apareceu como informação em nenhum dos estudos. Quanto à distribuição de gênero entre os(as) participantes, a maior parte das pesquisas empíricas utilizou amostra mista (n=55, 61%), enquanto 27% (n=24) utilizaram amostra composta somente por mulheres e 12% (n=11) pesquisaram somente homens. Em números gerais, a amostra de artigos (com exceção de 3 estudos, que apresentaram números inespecíficos ou inconsistentes quanto às variáveis demográficas) contemplou 912.588 homens (81,94%) e 201.106 mulheres.

Quanto ao foco das investigações, foram identificados os principais temas que nortearam cada estudo (sendo que um mesmo artigo pode ter sido categorizado em mais de um tema). Constatou-se forte predominância do trauma sexual militar (military sexual trauma, ou MST) como foco de investigação, presente em 42% dos estudos (n=46). A Tabela 1 apresenta a quantidade de estudos que abordaram cada um dos principais temas dentro da amostra.

Tabela 1
Temas

Apesar do desenho da pesquisa ter se focado em estudos de psicologia, o contexto de interdisciplinaridade entre as áreas de saúde se revelou na diversidade de periódicos de origem dos artigos. Em relação à área de conhecimento, 59% dos artigos (n=64) foram publicados em periódicos voltados predominantemente para a psicologia, 26% (n=28) em periódicos interdisciplinares, 9% (n=10) em periódicos de medicina e 5% (n=5) em periódicos de psiquiatria, além de 1 artigo em periódico de enfermagem e 1 artigo em periódico da área de serviço social.

O índice H (H-index) dos periódicos identificados na amostra teve média de 93,56 e desvio-padrão de 46,96. A distribuição dos periódicos dentro da amostra quanto à relevância científica pode ser visualizada na Tabela 2.

Tabela 2
Índice H-Index

Discussão

Os estudos que propõem algum tipo de análise de gênero nas instituições militares chamam a atenção por apresentarem questões que apontam diferenças nas experiências vividas por mulheres em relação aos homens neste contexto. Percebe-se que o feminino está posto a partir de uma ótica de alteridade ao que se considera “normal” neste ambiente de trabalho, trazendo consequências para a vida e a subjetividade das mulheres que se colocam profissionalmente nesses espaços. De acordo com Braswell e Kushner (2012)Braswell, H., & Kushner, H. I. (2012). Suicide, social integration, and masculinity in the U.S. military. Social Science & Medicine, 74(4), 530-536. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2010.07.031
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, “é enfatizando a masculinidade - e separando rigidamente o masculino do feminino - que os militares criam capital social a partir de um grupo de soldados cujos status econômicos, etnias e ideologias poderiam colocá-los em conflito uns com os outros” (p. 532, tradução livre).

Entretanto, mesmo demonstradas na literatura substanciais diferenças entre as formas de se perceber e se vivenciar o trabalho masculino e feminino no militarismo (Kerrigan, 2012Kerrigan, Matthew F. (2012). Transgender discrimination in the military: The new don’t ask, don’t tell. Psychology, Public Policy, and Law, 18(3), 500-518. https://doi.org/10.1037/a0025771
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; Lehavot & Simpson, 2014Lehavot, Keren & Simpson, Tracy L. (2014). Trauma, posttraumatic stress disorder, and depression among sexual minority and heterosexual women veterans. Journal of Counseling Psychology, 61(3), 392-403. https://doi-org.ez54.periodicos.capes.gov.br/10.1037/cou0000019
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; McGraw, 2016McGraw, Kate (2016). Gender Differences Among Military Combatants: Does Social Support, Ostracism, and Pain Perception Influence Psychological Health?. Military Medicine, 181(1), 80-85. https://doi.org/10.7205/MILMED-D-15-00254
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), a análise da amostra final coletada neste estudo (109 artigos) destacou um primeiro fator importante. Não foi identificado nenhum estudo realizado em instituições militares brasileiras, sugerindo uma importante lacuna nas publicações indexadas nos últimos 10 anos que envolvam análise de gênero em contexto militar no Brasil. Destarte, a partir de tal constatação, pode-se hipotetizar que há certa negligência no que tange a estudos de gênero e saúde mental sobre uma classe trabalhadora importante da sociedade brasileira, a qual se beneficiaria do olhar atento da ciência neste campo laborativo que tem no gênero um fator de atravessamento importante.

Essa insuficiência de estudos brasileiros sobre o tema deixa de lado as especificidades da carreira militar no Brasil, com as legislações e nuances da profissão militar afetas ao território e à cultura nacional, trazendo problemas quanto à aplicação da teoria e da pesquisa realizada em ambiente internacional para o contexto brasileiro. Em 2003, Maria Celina D’Araújo, pesquisadora brasileira renomada no estudo de fenômenos pertinentes às forças militares, já tratava dos óbices enfrentados pelo gênero feminino nas forças armadas brasileiras, quando dizia que as mulheres, a partir de 1980, foram:

Incorporadas aos quadros permanentes, não exclusivamente femininos, mas mesmo nesta condição não podem galgar o topo da carreira pois os postos mais altos ainda estão associados a qualidades masculinas. Mais especificamente, os postos superiores estão condicionados ao exercício do comando, área ainda limitada para as mulheres. (D’Araújo, 2003, pp. 73-74)D’Araujo, M. C. (2003). Pós-modernidade, sexo e gênero nas Forças Armadas. Security and Defense Studies Review, 3(1), 69-108.

Apesar das informações relatadas por D’Araújo sobre os obstáculos relacionados ao gênero nas casernas, a amostra que compõe este artigo, não tendo alcançado estudos em língua portuguesa e/ou realizados no país, demonstra que tais problemas parecem não terem sido debatidos com a devida atenção por parte da comunidade científica brasileira. Diferentemente do contexto de publicação em língua inglesa, que tem crescido ao longo dos últimos 10 anos, em território brasileiro o tema ainda não é devidamente explorado, justamente no momento em que tais questões deveriam ser examinadas à lupa, na década de maior avanço feminino nas forças armadas brasileiras, as quais, segundo o Ministério da Defesa, contam atualmente com 33.690 mulheres (Nóbrega & Oliveira, 2021)Nóbrega, Isabela & Oliveira, Viviane (2021, 08 de março). Ministério da Defesa conta com mais de 34 mil mulheres em seus quadros. Defesanet. https://www.defesanet.com.br/defesa/noticia/39924/Ministerio-da-Defesa-conta-com-mais-de-34-mil-mulheres-em-seus-quadros/
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Outro resultado digno de aprofundamento é a predominância das mulheres como primeiras autoras dos artigos (n=85, 78%), o grande número de trabalhos em que todas as autoras são mulheres (n=40, 37%) e o fato de que somente 5% (n=5) dos artigos foram publicados exclusivamente por homens. A presença dessa configuração relacionada à autoria da amostra suscita hipóteses quanto ao interesse de pesquisadores homens sobre o tema, pelo menos neste campo de estudo. Nesse sentido, em que pese o fato das discussões em torno das diferenças de gênero e suas decorrências estarem cada vez mais presentes na contemporaneidade, os dados mostram que o maior interesse sobre o tema parte das mulheres que, não coincidentemente, são os sujeitos mais oprimidos pelas estruturas patriarcais discriminatórias de gênero.

Bourdieu (2021)Bourdieu, Pierre (2021). A dominação masculina (19ª ed.). Bertrand Brasil., ao enfatizar que o trabalho é sempre sexuado em sua estrutura e inferiorizado quando realizado por mulheres (mesmo em profissões identicamente ocupadas por homens em que ambos os sexos desempenham as mesmas tarefas), discorre também sobre o fato de que os homens, consciente e/ou inconscientemente, não se dispõem a perceber as violências que cometem contra o feminino. Nessa perspectiva, pode-se indagar se o discreto quantitativo de autores homens estaria relacionado a um desinteresse por questionamentos científicos que promovam alterações nos pactos sociais que lhes favorecem, questionando e tensionando relações de poder das quais os mesmos têm sido historicamente beneficiados.

Apesar da predominância de mulheres na autoria dos estudos, verificou-se que a grande maioria dos(as) participantes das pesquisas (81,94%) foram identificados como do gênero masculino. Ainda que 61% (n=55) das pesquisas empíricas tenham utilizado amostra mista, 27% (n=24) amostra somente feminina e 12% (n=11) amostra exclusivamente masculina, dado o fato de o trabalho militar ser composto majoritariamente por homens, tem-se como consequência que os estudos de gênero no meio militar revelam uma narrativa preponderantemente masculina, ou seja, grande parte do que tem sido investigado e publicado neste campo provém de um discurso expressivamente narrado por homens. Apesar das mulheres serem maioria entre os(as) autores(as), é dos(as) participantes que provêm os dados que informam a pesquisa e seus resultados. Partindo da compreensão das relações sociais de gênero enquanto uma construção histórico-cultural sobre a lógica de oposição, hierarquização e dominação (Kergoat, 2010)Kergoat, Danièle (2010). Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estudos, 29(1), 93-103. https://doi.org/10.1590/S0101-33002010000100005
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, é possível denunciar o problema que se instala quando o conhecimento científico sobre gênero é desenvolvido a partir do discurso masculino.

De acordo com Bourdieu (2021)Bourdieu, Pierre (2021). A dominação masculina (19ª ed.). Bertrand Brasil., os grupos dominantes têm como característica a prontidão para fazer reconhecer sua maneira de ser particular como universal. Desta feita, o que se define como excelente está impregnado de implicações masculinas, mas que não se mostram dessa maneira. Para o autor, “em outros termos, as normas pelas quais as mulheres são medidas nada têm de universais” (Bourdieu, 2021, p. 106)Bourdieu, Pierre (2021). A dominação masculina (19ª ed.). Bertrand Brasil.

Quanto ao delineamento, percebeu-se predominância de pesquisas empíricas (83%, n= 90), das quais 86% (n= 77) classificavam-se como quantitativas, demonstrando que há, na literatura, uma carência de estudos de vertente qualitativa que possam trazer mais aprofundamento sobre o trabalho militar feminino, alcançando maior detalhamento e compreensão das informações obtidas nas pesquisas de campo, e orientando a própria interpretação dos dados quantitativos.

Informação importante também encontrada na análise da amostra é que 51% (n= 46) dos estudos empíricos foram realizados com público estritamente veterano, e somente 18% (n= 28) com militares em serviço ativo. O dado é relevante ao mostrar que a maioria dos(as) pesquisadores(as) escolheu investigar questões de gênero no trabalho militar através de indivíduos que prestaram serviço anteriormente, mas que, no momento do estudo, já não estavam mais vinculados às instituições militares. A situação que se apresenta é instigante e levanta a indagação: a pesquisa com veteranos(as) é uma escolha deliberada ou uma conveniência?

Dado que 94% dos estudos selecionados foram realizados com militares estadunidenses, faz-se necessário compreender as especificidades do contexto cultural. Os EUA estão entre as maiores potências militares mundiais, e contam com um aparato governamental particularmente robusto para gerenciar esta força. Em 2022, suas forças armadas contam com mais de 1,3 milhões de militares em serviço ativo (International Institute for Strategic Studies, 2022)International Institute for Strategic Studies (2022). The Military Balance 2021. Routledge. e um orçamento estimado em 715 bilhões de dólares (U.S. Department of Defense, 2021)U.S. Department of Defense (2021). National Defense Budget Estimates for FY 2022. Author. https://comptroller.defense.gov/Portals/45/Documents/defbudget/FY2022/FY22_Green_Book.pdf
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. Estima-se que, em 2018, o país contava com 18 milhões de veteranos(as), representando 7% da população adulta naquele ano (Vespa, 2020)Vespa, J. E. (2020). Those Who Served: America’s Veterans From World War II to the War on Terror. United States Census Bureau. https://www.census.gov/content/dam/Census/library/publications/2020/demo/acs-43.pdf
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. O país conta ainda com o U.S. Department of Veterans Affairs (VA), uma seção do governo dedicada à prestação de assistência a veteranos(as) quanto à saúde mental e física e questões socioeconômicas.

O próprio termo “veterano(a)”, utilizado para referir-se a quem serviu às forças armadas estadunidenses, é diferente do termo “reservista”, utilizado no Brasil para referir-se a quem pode ser convocado(a) a servir, incluindo tanto aqueles(as) que já serviram como aqueles(as) que cumpriram alistamento obrigatório mas não foram convocados(as). Cabe observar que, ao contrário do Brasil, o alistamento militar nos EUA não é obrigatório.

Além dos números, o emprego militar norte-americano também se distingue pelo serviço em si, caracterizado por longos períodos de missão e atuação direta em zonas de guerra ativas fora do país. Esse contexto diferencia o impacto do serviço na saúde dos(as) militares a médio e longo prazo e amplia o desafio de se reintegrar à sociedade civil. Para assessorar os(as) veteranos(as) no enfrentamento desse desafio, o VA desenvolve ações contínuas de diagnóstico e tratamento, incluindo o rastreio obrigatório de trauma sexual militar (implementado por lei federal) dentre todos os(as) veteranos(as) usuários(as) do serviço.

Pode-se então levantar a hipótese de que, no contexto estadunidense, a realização de pesquisas com informações de militares veteranos(as) seja mais frequente devido à maior disponibilidade (ou facilidade de acesso) a dados. Entretanto, não se pode descartar outras hipóteses, como a escolha deliberada por participantes veteranos(as) frente à dificuldade de abordar questões sensíveis junto a militares em serviço ativo. Constatou-se, por exemplo, que o trauma sexual militar figurou como foco de investigações em 53% dos estudos empíricos realizados com público estritamente veterano, 53% dos realizados com público misto e apenas 24% dos realizados exclusivamente com público em serviço ativo.

A rigidez das organizações militares com relação aos(às) profissionais em serviço pode ter se apresentado como empecilho de investigação junto a estes(as), por medo de que fossem punidos(as) por suas declarações? Nesse sentido, uma hipótese a ser considerada e que deve ser averiguada em estudos futuros é que a escassez de tais estudos em instituições brasileiras pode ser fruto da dificuldade de acesso que o tema das pesquisas de gênero encontra em ambiente tão masculinizado e conservador. O rigor que essas instituições impõem sobre as relações estabelecidas com os(as) membros, quer seja nas regras disciplinares ou no modus operandi geral das organizações, possibilitam a emergência de um corpo técnico pronto a reagir com rapidez necessária a circunstâncias emergenciais, necessárias à proteção das sociedades. Contudo, o excesso de padronização do trabalho pode também ser fonte de ansiedade e enrijecimento de condutas, trazendo por consequência sofrimento e adoecimento dos(as) trabalhadores(as) (Molinier, 2004)Molinier, Pascale (2004). Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo: um itinerário interdisciplinar 1988-2002. Production, 14(3), 14-26. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65132004000300003
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.

Por fim, julga-se pertinente destacar que o trauma sexual militar (military sexual trauma, ou MST) teve amplo destaque dentre os temas que nortearam as pesquisas, representando 42% dos estudos (n=46) da amostra. Na literatura em questão, o termo se refere ao trauma psicológico decorrido de agressão sexual ou assédio sexual sofrido durante o serviço militar ativo ou treinamento militar (Brownstone, Holliman, Gerber, & Monteith, 2018)​​Brownstone, L. M., Holliman, B. D., Gerber, H. R., & Monteith, L. L. (2018). The phenomenology of military sexual trauma among women veterans. Psychology of Women Quarterly, 42(4), 399-413. https://doi.org/10.1177/0361684318791154
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.

Considera-se notável o fato de que, ao contrário do que foi observado na amostra total, as mulheres foram maioria dentre os(as) participantes dos estudos empíricos que abordaram o tema do trauma sexual militar, uma vez que estiveram presentes em 90% desses artigos e predominaram em número de participantes em 63%.

Os dados denunciam a gravidade dos problemas enfrentados por mulheres nos ambientes militares, mostrando que o sofrimento feminino tem em sua origem desde violências simbólicas de gênero a atos físicos de assédio e violência sexual. Ademais, uma vez que os descritores utilizados para a busca não são termos diretamente relacionados à violência, torna-se necessário questionar tanto a alta frequência deste tema na amostra quanto a baixa frequência de outros tópicos que poderiam ser considerados importantes focos de pesquisa, como a liderança, por exemplo.

A vivência particular da mulher militar só ganha visibilidade quando marcada pela violência? Não se pode negar a importância de pesquisar sobre o tema, mas pode-se indagar: qual é a vivência, dentro dos espaços militares, das mulheres que não entram nas estatísticas de violência? Será que não sofrem violência, ou apenas não puderam ainda nomeá-la? E para além da violência, quais outras vivências caracterizam a dinâmica de trabalho dessas profissionais e que ainda escapam ao discurso narrado pela literatura?

Com base nos resultados aferidos, o que os dados apontam é que o saber científico desconhece, em grande parte, a realidade das mulheres militares para além da sua condição de vítimas.

Considerações finais

A importância de uma revisão bibliométrica se revela na possibilidade de descrever o conhecimento científico produzido até então em uma determinada área de estudo. Se admitirmos que qualquer tentativa de intervenção real, tanto em termos de práxis profissional quanto de políticas públicas, precisa se embasar no saber científico, torna-se imprescindível entender potenciais vieses e limitações desse saber, uma vez que se traduzem em vieses e limitações na realidade concreta das pessoas.

Ao apresentar um panorama sobre as principais características dos estudos que abordam questões de gênero no ambiente militar nos últimos 10 anos, foi possível verificar que a narrativa deste campo de trabalho é massivamente obtida através do discurso masculino, haja vista que homens representam a grande maioria dos(as) participantes das pesquisas (81,94%). Nesse sentido, o presente estudo denuncia limitações por parte da ciência quanto à apreensão da realidade em termos de diferenças de gênero nas instituições militares, uma vez que a assimetria demográfica nas amostras das publicações indexadas leva a uma exacerbação da voz masculina no militarismo, trazendo um tom de opacidade à experiência feminina.

Ainda, a constatação da ausência de pesquisas brasileiras indexadas em relevantes bases de dados afeta à psicologia na última década revela uma importante lacuna na agenda científica e no olhar sobre as especificidades das instituições militares no país, consequentemente deixando um hiato na revisão bibliométrica aqui proposta. Desse modo, considera-se imprescindível fomentar a publicação e publicização de estudos de gênero nas instituições militares, principalmente no Brasil, dedicando maior atenção à experiência vivida e aos modos de ser e estar da mulher militar nesse ambiente de trabalho, ainda tão emaranhado às discrepâncias de gênero.

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  • Financiamento

    Não houve financiamento
  • Consentimento de uso de imagem

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  • Aprovação, ética e consentimento

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2022
  • Revisado
    28 Ago 2023
  • Aceito
    08 Nov 2023
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