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Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer

LEITURAS E RESENHAS

Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer

Alex Barreiro

Mestrando em Educação, Linguagem e Arte no Programa de Pós-Graduação em Educação e membro do Grupo Interdisciplinar em Sexualidade Humana (Geish) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, Campinas, SP. Brasil. barreiro_alex@ig.com.br

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 1. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. 90 p.

Desenvolvida a partir dos estudos teóricos franceses, comumente denominados "pós-estruturalistas1 1 . Os trabalhos de Michel Foucault e Jacques Derrida contribuíram amplamente para o desenvolvimento de uma filosofia que, a posteriori, culminaria na Teoria Queer. ", a Teoria Queer, elaborada no final dos anos 1980, por intelectuais norte-americanos, ganha notoriedade e relevância social no que se refere aos estudos sobre lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, etc., ao buscar problematizar aquele que está intimamente ligado ao significado de seu termo, ou seja, o esquisito, o estranho, aquele que habita o "entre lugares".

No Brasil, ainda são poucos os intelectuais que se debruçam sobre tais estudos teóricos, a fim de utilizá-los em suas pesquisas, o que faz com que a Teoria Queer seja desconhecida em muitas comunidades acadêmicas.

Neste âmbito, com o intuito de convidar o leitor a uma visita pelas ideias, sugestões, problemas e enunciados da Teoria Queer, Guacira Lopes Louro, cuidadosamente, sem classificar, definir ou delimitar o campo de estudos Queer - o que viria a descaracterizar a teoria -, chama a atenção, em seu primeiro ensaio, intitulado "Viajantes pós-modernos", para uma análise metafórica entre os filmes de estradas (road movies) e uma perspectiva queer para perceber as atuações performáticas dos sujeitos em sociedade.

Os filmes Deus é brasileiro e Bye Bye Brasil, ambos dirigidos por Cacá Diegues, tornam-se exemplos, para a autora, daquilo que seriam elementos da Queer Teory, dizendo:

[...] Nesse gênero de filme, o personagem ou os personagens estão em trânsito, em fuga ou na busca de algum objetivo frequentemente adiado e, ao longo do caminho, veem-se diante de provas, encontros, conflitos. Ao se deslocarem, também se transformam e nessa transformação é, muitas vezes, caracterizada como uma evolução. (Louro, 2008, p.12)

Desta forma, a argumentação da autora é construída acerca da ideia de viagem, de movimento, de mudanças. No entanto, para desenvolver a lógica pretendida por Louro, "é preciso abandonar qualquer pressuposto de um sujeito unificado, que vá se desenvolvendo de modo linear e progressivo" (Louro,2008, p.12). A imagem da viagem é utilizada, na medida em que ela agrega ideias de deslocamento, desenraizamento, trânsito, o que, na pós-modernidade, parece necessário não só por refletir os processos mais confusos, difusos e plurais, mas, especificamente por "supor que o sujeito que viaja é, ele próprio, dividido, fragmentado e cambiante" (Louro, 2008, p. 13).

Assim, a imagem metafórica da viagem explica a transformação do corpo, do caráter, a instabilidade identitária, o próprio modo de ser e/ou estar em sociedade. As mudanças perpassam as alterações da superfície da pele, do envelhecimento, da aquisição de novas formas e da visão do mundo, das pessoas e das coisas. "As mudanças de viagem podem afetar corpos e identidades em dimensões aparentemente definidas e decididas desde o nascimento (ou até mesmo antes dele)" (Louro, 2008, p. 15).

Portanto, a autora, ancorada na filosofia de Judith Butler (1999), infere que a viagem que, supostamente, deveria seguir um determinado rumo, caminho e direção, começa a partir de afirmativas como É uma menina! ou É um menino! Conforme Louro, esse projeto construído sob um olhar clínico biológico, que, ao verificar o sexo, "naturaliza" o gênero e a "sexualidade", utilizando de dispositivos heteronormativos, pode se desmantelar nos percursos e nas trajetórias dessa viagem, isto é, "tal como numa viagem, pode ser instigante sair da rota fixada e experimentar as surpresas do incerto e do inesperado. Arriscar-se por caminhos não traçados. Viver perigosamente." (Louro, 2008, p. 16).

Para a autora, desde o nascimento, há um trabalho pedagógico contínuo, repetitivo e interminável para inscrever nos corpos o gênero e a sexualidade normatizada, conferindo ao sujeito uma viagem com direções planejadas, sem acidentes, percalços e instabilidades. Tal projeto, seus mecanismos e dispositivos de regulamentação acabam por deslizar e por escapar dos sentidos que lhe são atribuídos, uma vez que o corpo, o gênero e a sexualidade "guardam a inconstância de tudo o que é histórico e cultural" (Louro, 2008, p. 17). Faz-se necessário, então, inventar práticas mais sutis para repetir o já sabido caminho e reconduzir os desviantes à estrada e à viagem "permitida".

Os sujeitos que ultrapassam os limites dessa travessia viajante, ou seja, aqueles que cruzam as definições de fronteiras do gênero e da sexualidade talvez não optem livremente por esse caminho.Eles podem ser movidos por muitas razões, podem atribuir a esse deslocamento distintos significados. Parafraseando Louro (2008, p.19), "eles podem, tal como quaisquer outros viajantes, ver sua travessia restringida, repudiada ou ampliada por suas marcas de classe, raça ou por outras circunstâncias de sua existência".

Na viagem que empreendem, ao longo da vida, alguns sujeitos deixam-se tocar profundamente pelas possibilidades de toda ordem oferecidas pelo trajeto. Aproveitam livremente o inesperado, vivenciam os conflitos, os encontros e os desencontros, talvez - conforme a autora - por adivinharem que a trajetória em que estão metidos não é linear, nem ascensional, nem constantemente progressiva.

Nas inconstantes tentativas de delimitar, de definir e de impor o rumo a ser traçado nas viagens, o ser humano constrói sofrimentos ao se deparar com aqueles que se esquivam do percurso, que vivem "entre lugares", que encontram na fronteira um abrigo provisório. Assim, os diferentes mecanismos e seus dispositivos buscam governar os caminhos que percorreremos e as viagens que realizaremos.

No segundo e no terceiro ensaios, "Uma política pós-identitária para a Educação" e "Estranhar o currículo", Louro se apropria da filosofia pós-estruturalista de autores como Jacques Derrida e Michel Foucault para descrever os conceitos e os métodos empregados pelos teóricos queer a partir da década de 1990. De forma geral, as obras deles que forneceram sustentação para a teoria queer foram, respectivamente, Gramatologia (1967) e História da Sexualidade I: A Vontade de Saber (1976).

Em História da Sexualidade I, Foucault desconsidera a hipótese repressiva que fortemente marcava os estudos até a década de 1970. Para o filósofo, a sexualidade não é proibida, antes produzida por meio de diferentes discursos. Desta forma, o homossexual é uma invenção, e suas identidades sociais "são efeitos da forma como o conhecimento é organizado e que tal produção social é naturalizada nos saberes dominantes" (Miskolci, 2009, p. 153).

A partir dos referenciais descritos acima, a autora Guacira Lopes Louro (2008, p. 29) descreve

A homossexualidade e o sujeito homossexual são invenções do século XIX. Se antes as relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram consideradas como sodomia (uma atividade indesejável ou pecaminosa à qual qualquer um poderia sucumbir), tudo mudaria a partir da segunda metade daquele século: a pratica passava a definir um tipo especial de sujeito que viria a ser assim marcado e reconhecido.

Categorizado e nomeado como um desvio da norma estabelecida, o destino dos homossexuais estaria ou no sigilo de suas práticas ou na sua segregação, condicionado a um lugar incômodo para viver.

Arriscando-se a viverem diversas formas de violência, muitos homens e mulheres passaram a interrogar a sexualidade legitimada, contestando a norma e vivendo fora dos limites estabelecidos. A homossexualidade, discursivamente produzida, adquire uma dimensão social relevante, tornando-se objeto das ciências, da justiça e de instituições como igrejas e família. Entendida como prática desmoralizante, os homossexuais deveriam ser corrigidos, por corromperem a naturalidade e por fugirem da norma.

Nesta empreitada contra o sexo antinatural, Guacira Lopes Louro nos mostra como os sujeitos praticantes são deslocados do espaço de reconhecimento de direitos, o que acaba, sob uma perspectiva binária, criando simultaneamente um "lugar homossexual".

O conceito de suplementaridade e a perspectiva metodológica da desconstrução, elaborada por Jacques Derrida, buscam explicar esse fenômeno, dizendo que os "significados são organizados por meio de diferenças em uma dinâmica de presença e ausência, ou seja, o que parece estar fora de um sistema já está dentro dele e o que parece natural é histórico" (Miskolci, 2009, p. 153).

Por meio desse processo e da aquisição da sexualidade como categoria definida, será possível a organização de grupos sociais em combate à discriminação pelas distintas "identidades" de gênero e sexualidade. "A ação política empreendida por militantes e apoiadores torna-se mais visível e assume caráter libertador. Suas críticas voltam-se contra a heterossexualização da sociedade" (Louro, 2008, p. 31).

Pouco a pouco se constrói a ideia de uma comunidade homossexual: gays e lésbicas, representados como um grupo minoritário, com direitos e identidade própria - gerida a partir dos mecanismos de exclusão -, demarcam suas fronteiras. Na construção da identidade homossexual, a comunidade funciona como lugar de acolhida, representando os direitos dessa minoria, uma espécie de lar, conforme Louro. A sexualidade transcende o campo pessoal e suas reivindicações consolidam-se no plano político.

No ensaio posterior, "Uma pedagogia queer", Louro desloca sua preocupação para a possibilidade da produção de um currículo/pedagogia queer. É com esse título interrogativo que a autora provoca os leitores, arguindo se existiria uma possibilidade de articulação entre uma teoria que remetesse ao "estranho", ao "esquisito", ao indefinível por si só; e a Educação, tradicionalmente o espaço da normalização e do ajustamento.

Nas tentativas de ensaiar respostas para tal questão, Louro diz que é preciso ter em mente não apenas o alvo mais imediato e direto da teoria queer - o regime de poder-saber que, assentado na oposição heterossexual/homossexual dá sentido às sociedades contemporâneas -, mas também considerar as estratégias, os procedimentos e as atitudes que ela implica (Louro, 2008, p. 47). Conforme a autora, a teoria queer abre possibilidades para pensar e repensar a multiplicidade, a ambiguidade e a fluidez das identidades, sejam elas sexuais ou de gênero, mas, além disso, também possibilita novas vicissitudes para pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a própria educação.

"Uma pedagogia e um currículo queer se distinguiriam de programas multiculturais bem-intencionados, em que as diferenças (de gênero, sexuais ou étnicas) são toleradas ou são apreciadas como curiosidades exóticas" (Louro, 2008, p. 48). Desta forma, uma pedagogia e um currículo espelhados na teoria queer estariam voltados para o processo de produção das diferenças e, de acordo com a autora, trabalhariam centralmente com a instabilidade e com a precariedade de todas as identidades.

Uma proposta queer nos currículos escolares faria com que o aluno percebesse que a diferença não habita um espaço externo ao seu meio e realidade, pelo contrário, está ao seu redor, junto a todos. Além disso, problematizar as estratégias normalizadoras, as identidades e os marcadores de definições, como os de raça, de nacionalidade ou de classe, também é um ponto importante, que caracterizaria esse currículo.

Louro acredita que a apropriação do mecanismo de desconstrução, utilizado pelos teóricos queer, serviria para perturbar até mesmo o mais caro binarismo do campo educacional, aquele que opõe o conhecimento à ignorância (Louro, 2008, p. 50) e, seguindo o pensamento de Eve Sedgwick, para "demonstrar que a ignorância não é "neutra", nem é um "estado original", mas, em vez disso, que ela é um efeito - não uma ausência - de conhecimento" (Britz-Man, 1996, p.91, apud Louro, 2008, p.50).

As reflexões propostas por um currículo queer causariam uma reviravolta epistemológica, perturbando as formas convencionais do conhecimento e do pensamento. A autora esclarece, entretanto, que tal pedagogia não poderá ser reconhecida como uma pedagogia dos oprimidos, ou como uma pedagogia libertária e libertadora, uma vez que enquadrá-la e definir suas funcionalidades, acabaria por restringi-la. Evitar operar com o dualismo tradicional ocidental, que acaba por manter a lógica da subordinação, seria parte da empreitada proposta pelo currículo queer.

Assim, a partir de uma pedagogia queer, a dúvida deixaria de ser algo desconfortável e nocivo para se tornar estimulante e produtivo. Certamente, essas estratégias, conforme as palavras da própria autora, também acabam por contribuir com a produção de determinado "tipo" de sujeito (Louro, 2008, p. 52), mas, neste caso, longe de projetar um modelo ideal.

Pensar na elaboração de um modelo curricular queer é uma tarefa arriscada, uma vez que se contrapõe aos usuais e vigentes. Dessa forma, tal proposta é um ato de criação, por não se valer de pressupostos, mas, sim, de uma teoria desconcertante, provocativa e perturbadora.

  • BUTLER, Judith. Meramente cultural. Trad. Alicia de Santos. El Rodaballo Buenos Aires, ano 5, n.9, 1998-99.
  • LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho - ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 1. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
  • MISKOLCI, Richard. Do desvio às diferenças. Teoria & Pesquisa, v. 9, p. 9-41, 2005.
  • 1
    . Os trabalhos de Michel Foucault e Jacques Derrida contribuíram amplamente para o desenvolvimento de uma filosofia que, a posteriori, culminaria na Teoria
    Queer.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013
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