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Corpos, silêncios e disciplinas: sobre modos de confinamento e suas educações possíveis 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha – verah.bonilha@gmail.com. 3 3 Apoio: Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ).

Resumo

O texto analisa a questão do silêncio sob uma ambiência contemporânea, pensando-o a partir de sua dupla acepção latina: a de taceo, associada ao silenciamento; e a de sileo, silêncio que amplia espaços subjetivos de criação pela suspensão de codificações significantes previamente existentes. A análise percorre então, sobretudo a partir do pensamento de Michel Foucault e de José Gil, as relações entre modos de silenciar e de disciplinar(-se) e suas reverberações nos corpos, culminando no olhar sobre o silêncio que ora opera como pedagogia moralizante, ora como ato pedagógico que abre espaço para novos modos de existência.

Palavras-Chave
silêncio; silêncio e disciplina; corpo e educação; pedagogias do silêncio

Abstract

The text analyzes the issue of silence in a contemporary context, thinking from its double Latin meaning: that of taceo, as silencing; and that of sileo, as a silence that expands subjective spaces of creation, suspending previous significant codifications. The analysis goes through the relationships between ways of silence and discipline (of oneself or the other) and their reverberations in the bodies, based on the thoughts of Michel Foucault and José Gil. The reflection culminates thinking about the silence that sometimes operates as moralizing pedagogy, other times as a pedagogical act that opens space for new modes of existence.

Keywords
silence; silence and discipline; body and education; silence pedagogies

I

O corpo empurrado, amordaçado e vendado na cela. A cela que se abre, o outro que entra e lhe aperta o pescoço. A gasolina no balde, o saco plástico que asfixia o corpo. A gasolina no corpo. O corpo amedrontado, o pescoço apertado no cacetete. O corpo isolado, e a dificuldade de respirar. Tosse. Tosse. A visão turva através do saco. A roupa rota do corpo. A obrigação de ficar de pé, contra a parede, sem tocá-la. Desejo de exaurir o corpo, de apagá-lo em seu silêncio (Brechner, 2018Brechner, Á. (Diretor). (2018). Uma noite de 12 anos [filme]. Tornasol Films S.A.; Manny Films; Alcaravan Aie.).

II

O corpo que caminha na grama. O som da mata que se amplia junto com o dos pássaros, o corpo que passeia entre as folhas. O olhar que observa o campo vasto. O sentar-se e o contemplar: as mãos que se atritam e, depois, se colocam frente ao rosto, estupefato. O olhar parece atento ao distante. Correr no campo. Deitar no campo. A mão afaga um punhado de terra entre os dedos; o rosto nessa mesma terra se deleita. E sorri. E só então o cavalete é aberto, e a pintura pode começar. Em tudo, o silêncio (Schnabel, 2019Schnabel, J. (Diretor). (2019). No portal da eternidade [filme]. Iconoclast; Riverstone Pictures.).

Dois modos de corporeidade4 4 A noção de corporeidade remete diretamente à compreensão do corpo como processualidade. A despeito de todos os tensionamentos ligados a esse conceito – dos quais não desejamos tratar aqui –, vale ressaltar que seu uso aponta para o entendimento de que a dimensão “instável, heterogênea e múltipla” é primeira à condição corporal em si (Le Moal, 2008, p. 717). Sendo assim, ao falar em corporeidade, estamos afirmando nosso entendimento do corpo, sempre, como efeito de uma produção que se dá no âmbito dos discursos e das circulações afetivas; na ambiência, portanto, dos entrelaces entre historicidade e encontros. Valiosas nessa compreensão processual são, entre outras, muitas das reflexões propostas por Michel Foucault e José Gil, as quais apresentamos apenas brevemente neste trabalho. Para outras aproximações sobre a produção de corporeidades com o apoio desses autores, veja-se também Bocchetti (2017, 2019). De todo modo, o uso dos termos “corpo” e “corporeidade” se intercambiam nestas páginas, compreendendo-se que ambos podem ser usados com tal denotação. , duas maneiras de habitar o silêncio. Este é um texto que trata disso: dos modos de silenciar. Debruçamo-nos sobre alguns gestos de silêncio e silenciamento – a partir de escritas e políticas contemporâneas – que se forjam na relação entre linguagem e alteridade e que, ao fazê-lo, também definem e tensionam a ambas. O ensaio se soma a um conjunto de trabalhos que não param de se perguntar sobre o que a pandemia de Sars-Cov-2, a despeito de seu lamentável potencial destrutivo, termina por realçar acerca de nós mesmos. O que está em jogo de modo geral, aqui, é a produção de corpos silenciados e postos em silêncio diante de políticas de naturezas bem diversas, que podem ser colocadas a operar em situações de isolamento como a que estamos vivendo, mas não somente.

Talvez possamos dizer que a pandemia, em seu curso, tem gerado certas “corporeidades emergentes”; algo próximo daquilo que os saberes biológicos chamaram de “propriedades emergentes” (Morgan, 1923Morgan, C. L. (1923). Emergent evolution. Williams and Norgate., p. 03): aquilo que surge, de modo aprioristicamente imprevisível, ao colocarmos em associação dois entes ou mais, como característica que não pertenceria a nenhum deles, isoladamente. Da mesma maneira, na junção entre a pandemia e nossas existências, vimos surgirem novidades nos modos de produção de corporeidade, improváveis de existir fora desses tempos e em grande parte desconhecidas até que o advento da infestação viral global as colocasse à tona.

Entre outras coisas, a pandemia lançou muitos de nossos corpos no silêncio. E o silêncio carrega consigo a ambiguidade de sua própria presença; explica, no mesmo tempo do emudecimento. Ao não falar, ele significa em si mesmo (Orlandi, 2007Orlandi, E. P. (2007). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Ed. Unicamp., p. 56). Neste texto, o pensamos, sobretudo, a partir de sua ancoragem corporal, isto é, da interface entre modos de silenciar e regimes de produção dos corpos. Compreendemos, a partir de autores como Michel Foucault e José Gil, que as corporeidades humanas se forjam nos enlaces entre forças históricas e movimentos afetivos de constituição de si ante o mundo, e tomamos o silêncio como um dos elementos fundamentais nesses modos de nos constituirmos.

A língua latina tem duas terminologias que remetem ao silenciar. De um lado o taceo, um silêncio derivado do calar-se, da fala que por alguém é constrangida a cessar – algo próximo daquilo que poderíamos chamar “silenciamento”; de outro o sileo, que remete a uma ausência de linguagem, a uma tranquilidade externa, mas não alheia aos processos de significação (Matos, 2018Matos, M. P. S. R. (2018). Silêncio e sentido em Gilles Deleuze. O Manguezal, 1(2), 63-76.). Taceo e sileo são pensados, aqui, junto com os processos de produção de corporeidade que lhes instauram ou são por eles instaurados. O silêncio, portanto, é tomado nestas reflexões em seus movimentos políticos, se pudermos pensar o político, com Gilles Deleuze, como a “experimentação ativa” que faz as forças que nos constituem – produtoras de identidades, sensações, afetações etc. – funcionarem de certo modo (Deleuze & Parnet, 1998Deleuze, G., & Parnet, C. (1998). Diálogos. Escuta., p. 159).

Às formas de incidência política do silêncio estão integrados modos distintos de investimento sobre as subjetividades, muitos deles ligados à preparação dos corpos e de suas disposições para agirem no mundo. Nesse sentido, existem relações fundamentais entre modos de silenciar e maneiras de disciplinar(-se). Mesmo porque a disciplina, nos diferentes sentidos que buscaremos lhe dar aqui, opera justamente como reiteração do silêncio dos corpos. Fazer uma analítica da relação entre silêncio e produções de corporeidade passa por um olhar que, ao menos desde as elucidações de Michel Foucault em Vigiar e Punir (Foucault, 1987Foucault, M. (1987). Vigiar e Punir. Vozes.) – mas não somente, como se verá –, nos convoca a lidar com a questão disciplinar e suas possibilidades de tensionamento.

O taceo e as disciplinas do silenciamento

Há o silenciar que asfixiou George Floyd5 5 Homem negro, asfixiado por um policial branco à luz do dia em Minneapolis, nos Estados Unidos, em maio de 2020, cuja morte repercutiu internacionalmente em movimentos em defesa das vidas negras ( e, muito antes dele, milhares de perseguidos em regimes ditatoriais, milhões de judeus diante do nazismo e nas práticas de tortura contemporânea, entre outros. O silêncio a que se refere o taceo é aquele do silenciamento existente no ato de ser calado ou em sua tentativa (Matos, 2018Matos, M. P. S. R. (2018). Silêncio e sentido em Gilles Deleuze. O Manguezal, 1(2), 63-76.). Tem a ver com políticas diversas, de níveis distintos de fatalidade, que impedem de falar, e que, nesse sentido, podem engasgar, censurar, silenciar por coerção. Sua proliferação mais recente parece materializada, sobretudo, por meio de uma série de políticas de sufocamento que operam entre apertos na garganta e mortes virais descontroladas. Parece que estamos em meio a um conjunto de modos de governar que encontram no impedimento da chegada de ar aos nossos pulmões uma espécie de base fisiológico-política de seu funcionamento.

É claro que esses modos mais letais de silenciamento não são, em si, uma novidade – Mbembe (2018)Mbembe, A. (2018). Necropolítica. N-1., por exemplo, os narra a partir de uma “industrialização da morte” (p. 21), fundamental ao próprio processo colonizador. Eles nascem de uma necrobiopolítica que não para, ainda hoje, de funcionar pela distribuição diferencial de modos de viver e morrer (Bento, 2018Bento, B. (2018). Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação?. Cadernos pagu [online], (53), e185305. https://dx.doi.org/10.1590/18094449201800530005.
https://doi.org/10.1590/1809444920180053...
). A face mais mortal do taceo está, antes de tudo, centrada na matriz orgânica dos corpos, como o ano de 2020 não parou de nos lembrar: o corpo que morre no joelho de seu estrangulador policial; os corpos que se amontoam, também asfixiados, nas caçambas e nas covas, testemunhas de um apagamento social cuja virulência do menor dos seres vivos só explica parcialmente. Reconhecemos os modos de governar aqui, alimentados ora por um “E daí?” presidencial6 6 A referência, aqui, é a frase do presidente da república Jair Messias Bolsonaro, interpelado por uma jornalista, em abril de 2020, diante da ultrapassagem do número de mortes da China pelo Brasil. A resposta presidencial: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre” (Garcia et al., 2020) – que, nos dias de precoce abertura de cidades ainda infestadas, se proliferaria por municípios e estados –, ora pela ação policialesca que ceifa vidas por métodos igualmente escandalosos.

Ao lado dessa mecânica planejada de silenciamento pelo sufocamento político, opera outra, que igualmente incide sobre os corpos sufocados, matando-os ou alinhando-os, como sobreviventes, no fortalecimento de suas linhas de ação. Essa outra política imprime palavras aos corpos, dessa vez lidos não apenas em sua organicidade, mas também em sua intensividade, povoando-lhes de metáforas e adjetivações capazes de destruir sua materialidade e viabilidade social. Ou de recuperá-las, se isso for conveniente: foi o que fez durante a pandemia o prefeito do Rio de Janeiro, ao modificar os critérios de definição dos mortos por Covid-19 e, assim, dar ao mesmo tempo números mais palatáveis de óbitos pela doença ao seu governo e um absurdo livramento transcendental a esses corpos, que escapam estatisticamente de um vírus depois de serem por ele vitimados (G1 Rio, 2020G1 Rio. (2020, 26 maio). Mudança em método da prefeitura faz Rio registrar menos 1.177 óbitos por Covid-19. G1. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/26/prefeitura-muda-metodo-e-rio-registra-menos-1177-obitos-por-covid-19.ghtml
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).

Obviamente, nem todos os processos de sufocamento pela atribuição semântica aos corpos são assim tão simplórios, e muitos deles funcionam por uma microfísica mais complexa que, inclusive, atua para além das instituições estatais. Útil na criativa produção estatística de nossos governantes, a adjetivação dos corpos sufoca também no quotidiano das relações sociais em isolamento. Nesses tempos confinados, há toda uma figuração do corpo viral – corporeidades fundadas pelos regimes de verdade produzidos na pandemia – que incide nas relações e nos encontros mais ou menos virtualizados que vivenciamos, operando distintos silenciamentos. Há, por exemplo, a figura do corpo doente que amedronta, criando afastamentos até dentro de casa e sendo alvo de certos modos de visibilidade social. Assim, receber o diagnóstico de Covid-19 pode imprimir de imediato uma relação consigo, comumente marcada pelo risco que impregna de medo a existência, ou uma relação com os outros que pode reverberar, inclusive, no até então protegido ato médico. O desabafo do diretor de um hospital privado, expresso em uma matéria jornalística em meio às exigências de uso da cloroquina, é marcante: “Estamos na época da medicina BBB, feita por votação. Você não consegue mais não dar cloroquina para um paciente meio grave. A família pressiona e, se você não der, no dia seguinte você não é mais médico” (Collucci, 2020Collucci, C. (2020, 9 abr.). Diretor do Einstein nega que hospital dê cloroquina no início da Covid-19 e diz que medicina virou BBB. Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/diretor-do-einstein-nega-que-hospital-de-cloroquina-no-inicio-da-covid-19-e-diz-que-medicina-virou-bbb.shtml.
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). Há também corpos curados, a serem aproveitados mais uma vez em estatísticas que viabilizam saídas precipitadas dos estados de quarentena. E corpos em rebanho, objetificáveis em favor de cálculos percentuais que secundarizam o sofrimento individual, convertido em via necessária de imunização coletiva. Todos silenciados pelos usos sufocantes dessas corporeidades em construção; sufocantes porque efetivamente nos tiram o ar, por asfixia, ansiedade ou estupefação diante daquilo que nos tornamos e que uma infestação nanométrica foi capaz de expor de modo tão escancarado.

De todos esses corpos nos falam os silenciamentos contemporâneos. Mas haveria evidentemente uma genealogia do taceo, bem mais complexa, a reconstruir, que passa por suas formas mais letais, mas, igualmente, por modos mais brandos de gerir o silêncio. Foucault já nos lembrara, por exemplo, da importância do silenciar pela atribuição da demência na instituição da linguagem psiquiátrica (Foucault, 1993Foucault, M. (1993). História da loucura. Perspectiva.); ou do silenciamento penitente para o modo cristão de guia das condutas (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). WMF Martins Fontes.).

Ao corpo silenciado, pois, remetem operações institucionais as mais diversas. Foucault chamou a essa força particularmente institucionalizada de fazer calar de disciplina. Sua imagem mais famosa no pensamento do filósofo francês é, sem sombra de dúvidas, a da docilização, como narrada em Vigiar e Punir (Foucault, 1987Foucault, M. (1987). Vigiar e Punir. Vozes.). Ali, Foucault se debruça sobre o disciplinamento que se materializa em elemento de conversão do corpo em “corpo útil” (p. 118). É no contexto dessa transformação que se localiza um conjunto de instituições características da sociedade disciplinar, que têm em comum uma maquinaria central de funcionamento, envolvendo modos de esquadrinhamento das relações espaciais e temporais às quais nossos corpos são submetidos quando nelas inseridos. O corpo, então, se forja profundamente individualizado em espaços como a escola, o exército, o hospício, a prisão, o hospital etc. Tome-se, por exemplo, o exército. Foucault (1987)Foucault, M. (1987). Vigiar e Punir. Vozes., reproduzindo uma ordenação militar do século XVIII, lembra que os recrutas são habituados a:

manter a cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvas as costas, a fazer avançar o ventre, a salientar o peito, e encolher o dorso; e a fim de que se habituem, essa posição lhes será dada [e aqui vem o cerne da questão da disciplina] apoiando-os contra um muro, de maneira que os calcanhares, a batata da perna, os ombros e a cintura encostem nele, assim como as costas das mãos, virando os braços para fora, sem afastá-los do corpo...ser-lhes-á igualmente ensinado a nunca fixar os olhos na terra, mas a olhar com ousadia aqueles de quem eles passam...a ficar imóveis esperando o comando, sem mexer a cabeça, as mãos nem os pés... enfim a marchar com passo firme, com o joelho e a perna esticados, a ponta baixa e para fora.

(Foucault, 1987Foucault, M. (1987). Vigiar e Punir. Vozes., p. 117)

Essa narrativa militar do corpo disciplinado foi acompanhada por estudos já bem reconhecidos que, inspirados no pensamento foucautiano, souberam encontrar reverberações importantes da produção disciplinar na fundação da própria instituição escolar e das pedagogias que lhes deram moldagem (Dussel & Caruso, 2003Dussel, I., & Caruso, M. (2003). A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. Moderna.; Narodovsky, 2001Narodovsky, M. (2001). Infância e Poder: conformação da pedagogia moderna. Editora da Universidade São Francisco.). De todo modo, se tomarmos a questão da disciplina pelo silenciamento do corpo por ela provocado, veremos também a complexidade inerente à produção de corporeidades adiante da tentativa institucional de fazer calar. Ante o disciplinamento emerge toda uma complexificação silenciosa, que ora dá lugar à docilização, mas que, também e muito frequentemente, funda um “espaço poderoso e transformativo”, como argumenta Stephanie Power-Carter (2020, p. 107)Power-Carter, S. (2020). Re-theorizing silence(s). Trab. Ling. Aplic., 59(1), 99-128., no qual a comunicação não verbal emerge com especial agudeza. Estudando as tentativas de silenciamento de meninas negras em meio a relações educacionais, a autora se vê diante do que compreende como uma trilogia de modos de silêncio. Narra, assim, um silenciamento (“silencing”) ligado às ações capazes de reproduzir imagens e estereótipos identitários ligados à mulher negra americana. Um silenciar-se (“silenced”) visto como “submissão a processos hegemônicos e aceitação de imagens e estereótipos negativos” produzidos (p. 117); mas também um silêncio (“silence”), associado à produção de espaços de apoio mútuo, como resposta aos modos de fazer calar, visíveis por exemplo, na comunicação, por meio de gestualidades mínimas como olhares e piscadelas (Power-Carter, 2020Power-Carter, S. (2020). Re-theorizing silence(s). Trab. Ling. Aplic., 59(1), 99-128.). Geram-se, então, ante às tentativas disciplinadoras de silenciamento, infinidades silenciosas outras:

Se o silêncio se faz notar na abstenção da fala ou na ausência de som, por diversas vezes o “não narrável” se metamorfoseia em outras modalidades: um debulhar em lágrimas, um riso nervoso, uma fala desconexa ou a recusa deliberada em expressar-se. Pode ser uma pausa, um suspiro, a respiração profunda ou ofegante. Por vezes, um olhar perdido ou desviado, um cerrar de pálpebras. Entendido em seu caráter produtivo, portanto, o ato de silenciar comunica aquilo que se esconde, aquilo que se evita fazer, aquilo que não se vê, não se diz, não se escuta e não pode ser preenchido, além de modelar mutuamente o que se verbaliza.

(Nadai et al., 2019Nadai, L., Cesar, R. N., & Veiga, C. (2019). De venenos, escutas e assombrações: caminhos para etnografar o silêncio. Mana, 25(3), 837-850., p. 844)

Pensada como uma convocação anatomopolítica à repetição, a disciplina, em seu jogo com os modos de silenciar os corpos, pode talvez nos trazer elementos de análise que se diferenciem daqueles que pensam o disciplinamento tão somente em suas reverberações docilizadoras. Pensemos novamente nos escritos foucaultianos, dessa vez produzidos como preparação das aulas para um belo curso dos anos finais da vida do historiador, chamado Do governo dos vivos (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). WMF Martins Fontes.). Sob a ambiência dos estudos das práticas de si na cultura grega e nos primeiros séculos do cristianismo, são narrados os procedimentos de ingresso na vida devota dos primeiros séculos da Igreja. Foucault (2014)Foucault, M. (2014). Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). WMF Martins Fontes. recorda então um dispositivo fundamental que surge entre os gregos e que está presente no cristianismo nascente: a “direção da consciência” (p. 208). Por meio dela, alguém decide – livremente, é importante dizer – que outro lhe diga o que deve querer; guie, portanto, a sua vontade. No interior desse dispositivo diretivo, reside ainda outro, particularmente valioso para pensarmos um pouco mais acerca do disciplinamento e de seus modos de silêncio, que é o “exame da consciência” (p. 214). No cristianismo, esse tipo de exame é conhecido e permanece de algum modo até hoje na prática da confissão. Ele está baseado, por um lado, na ideia de que precisamos ser conduzidos ao longo da vida por alguém; de que precisamos, para isso, ser obedientes – o que tem relação, na discursividade cristã, com a submissão ao outro e com a humildade –; e de que devemos, finalmente, reconhecer nossas faltas diante da moralidade cristã, o que significa analisar nossos atos e pensamentos a partir de sua capacidade de nos fazer sentir vergonha ou não, deixando tudo isso exposto para que, então, possamos nos livrar do mal. O exame de consciência cristão é, portanto, uma operação efetiva sobre si mesmo, na qual se somam códigos de moralidade, formas de condução, culpabilidade, vergonha e correção (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). WMF Martins Fontes.).

É curioso retomar a questão do exame de consciência cristã a partir das noções de disciplina e silenciamento. A perscrutação de si embutida na ação do penitente adquire particular efetividade no momento mesmo em que, à semelhança dos mecanismos disciplinares, “se torne uma espécie de comportamento recorrente e iterativo que deve ser estabelecido, provocado, incitado cada vez que o indivíduo peca” (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). WMF Martins Fontes., p. 205). E isso, sobretudo, na vida monástica, na qual tal manifestação pessoal da verdade aponta para “uma estrutura fortemente contínua, pois se tratará, para o sujeito, de caminhar dia a dia, de momento em momento, de instante em instante, rumo a uma perfeição cada vez maior” (p. 206).

Ao lado desse exercício reiterado de vigilância de conduta, o exame de consciência cristã e a disciplina parecem se aproximar, também, no tipo de individualização que procuram promover: ambas tencionam forjar o indivíduo, a partir das minúcias envolvidas na conduta, embora de modo distinto. Enquanto a operação disciplinar se debruça sobretudo sobre o esquadrinhamento gestual do corpo – Foucault (1987)Foucault, M. (1987). Vigiar e Punir. Vozes. nos lembrará sempre de que “a disciplina é uma anatomia política do detalhe” (p. 120) – aquela do exame cristão encontra no detalhamento dos pensamentos seu cerne de atividade. O cristão dos primeiros séculos realiza sobre si um exercício contínuo de exegese do próprio pensar, o que é “evidentemente o problema central da vida do monge” (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). WMF Martins Fontes., p. 270). Tal atenção a si está baseada no “pensamento que vem à mente com tudo o que ele pode ter de incerto quanto à sua origem, quanto à sua natureza, quanto ao seu conteúdo, por conseguinte quanto ao resultado que dele podemos tirar” (p. 271).

Se a disciplina é a intervenção anatômica pelo detalhe, o exame de consciência cristã pode ser percebido como a reflexão, igualmente detalhista, sobre a conduta, um outro tipo de disciplina. E embora se trate de operadores de produção de subjetividade distintos, nos parece possível chamar a ambas de disciplina, porque os elementos de individualização, repetição, perscrutação e modelagem da conduta, centrais à operação disciplinar as unem.

Mas e quanto ao silêncio que tais modos disciplinares operam? Ele parece evidente na prática escolar que aquieta e nos modos militares que subalternizam. Mas o que dizer de uma disciplina que, à guisa do que mostraram os estudos foucaultianos sobre o cristianismo, não para de fazer falar, de constranger o corpo até a exposição completa de seus mais profundos segredos7 7 Vide ainda os exercícios de publicização corporal do pecado cometido, ordenados pela igreja cristã dos primeiros séculos e também narrados por Foucault (2014). ? O silenciamento que eles carregam talvez resida, paradoxalmente, nesse efeito expositivo que possuem – e que está, por sinal, também na visibilidade panóptica de Vigiar e Punir8 8 Vale a pena retomarmos rapidamente a já bem conhecida estrutura panóptica, aqui: uma arquitetura na qual, por meio de uma torre que se ergue entre um conjunto de celas dispostas em uma estrutura anelar, faz dessas compulsoriamente visíveis aos que habitam a coluna central: “tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível”, como assinalaria Foucault (1987, p. 166). . É que, pelo evidenciamento que provocam, tais mecanismos disciplinares conduzem os corpos a uma crescente debilitação da vontade. Silenciam-no, portanto, pelo renunciar da mensagem singular que, em si, essas existências seriam capazes de afirmar diante do mundo. No caso da disciplina institucional multiplicada a partir do século XVII na Europa, esse manuseio da vontade é inerente à sua docilização produtiva: ela está na extração do tempo dos corpos, na segmentação do que devem aprender e na definição daquilo pelo qual devem se interessar para serem mais úteis (Foucault, 1987Foucault, M. (1987). Vigiar e Punir. Vozes.). No caso dos exames cristãos, esse abandono da própria vontade é inerente à obediência voluntária central à direção da consciência por esse outro com o qual se estabelece uma relação de discipulado. Os três elementos dessa atitude obediente, narrada por Foucault (2014)Foucault, M. (2014). Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). WMF Martins Fontes., são bastante elucidativos: “a subditio, a submissão, o que quer dizer: quero o que o outro [que me dirige] quer; a patientia, que quer dizer: quero não querer algo diferente do que quer o outro; e a humilitas, que consiste em dizer: não quero querer” (p. 248).

Dizer que as disciplinas que operam pelo silenciamento incidem diretamente na vontade é afirmar que elas atuam pela retirada daquilo que “fixa para o sujeito a sua própria posição” (Foucault, 2018Foucault, M. (2018). O enigma da revolta: entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana. N.-1., p. 84). Elas procuram gerar, portanto, um profundo silêncio existencial, que pode ser lido como a tentativa de tornar ausente a força afirmativa de um si mesmo que acompanha o existir. Curiosamente, como o vimos no caso das práticas cristãs mais remotas, isso pode ser operado, inclusive, pela incitação à fala. Razão pela qual o próprio Foucault (1988)Foucault, M. (1988). História da sexualidade 1: a vontade de saber. Graal. adverte, em outro texto, acerca dos cuidados a serem tomados em relação ao dito e ao não dito nos jogos discursivos:

Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são distribuídos s que podem e os que não podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de discrição é exigida a uns e outros. Não existe um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam os discursos.

(p. 34)

O que torna a analítica do silenciamento, do taceo, particularmente complexa, é a necessidade de se atentar para os modos de operar as forças moralizantes pelas quais ele se estabelece. A todo silenciamento corresponde uma codificação moral que faz a existência abandonar suas afirmações singulares, e que precisa mais bem ser mapeada em sua maquinaria, a fim de que os lugares dos silêncios operados sejam indiciados.

O sileo e a disciplina ética do silêncio

Olhemos, mais uma vez com Foucault, para o exame da consciência; agora, porém, à maneira como realizado pelos estoicos, séculos antes do cristianismo, na Grécia. Dessa vez, o formato e as finalidades de tal exercício são bastante distintos. Não havia um código moral apriorístico a seguir. A prática do exame se dava em momentos distintos. Os estoicos a faziam, comumente, para dormir melhor, por exemplo. Entre eles, o exame era uma atividade que se focalizava no futuro. Por meio dele se dava um modo de controle e verificação das ações, feito tendo como pano de fundo os objetivos pessoais que o sujeito propunha a si mesmo para aqueles dias. Nesse sentido, buscavam-se por esse exercício as ações malsucedidas e não os erros em um sentido moral (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). WMF Martins Fontes.). A partir daí, o que se desejava produzir era uma nova formulação de regras pessoais, baseada nos sentidos que o indivíduo que se examinava produzia para sua existência. Um movimento, portanto, que se dava a partir de uma ética singular, voltado à construção de modos de existência específicos, próximos daquilo que Foucault chamaria de uma “estética da existência” (Dreyfus & Rabinow, 1995Dreyfus, H., & Rabinow, P. (1995). Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. In H. Dreyfus, & P. Rabinow, Michel Foucault: uma trajetória filosófica – Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Forense Universitária, 253-278., p. 260): um modo ético de conceber o lugar das escolhas pessoais, que passava necessariamente pela atenção do sujeito a si mesmo. Atenção essa alheia a um código moral apriorístico, mas atenta aos modos de existir singulares, que permitissem “viver da melhor maneira possível” (p. 259).

Do exame de consciência grego emerge um terceiro mecanismo disciplinar, bastante distinto daqueles do detalhamento anatômico e da conduta. E com ele um outro silêncio, capaz de interromper as codificações prévias que as relações com o mundo nos trazem. Vale nos determos sobre ele. Lembremos que os elementos de individualização, repetição, perscrutação e modificação da existência permanecem nesse modelo: há sempre um indivíduo a, reiteradamente, debruçar-se sobre si mesmo visando à sua própria transformação e sendo modificado na presença de um outro que, de algum modo, o dirige. Todavia, essa outra disciplina, na medida em que se constitui a partir de uma relação ética e estética que o sujeito estabelece com o mundo, traz consigo modos distintos de produção de subjetividade. Pensemos tal disciplina e seu imbricamento com outras formas disciplinares a partir de uma relação específica com um dado tipo de confinamento, já presente neste texto: aquele das prisões e seus encarceramentos. Em seu livro A pequena prisão, Igor Mendes (2017)Mendes, I. (2017). A pequena prisão. N-1., um dos participantes das manifestações realizadas durante os jogos da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, narra sua experiência como detento durante os oito meses que esteve em diversos presídios do complexo carcerário de Bangu, no Rio de Janeiro. A partir de suas experiências, alguns dos elementos desse mecanismo disciplinar podem ser assinalados, ainda que em um ambiente carcerário no qual a noção clássica de disciplina, como colocada por Foucault em Vigiar e Punir, seja bem mais evidente.

Muito da produção da disciplina penitenciária se faz a partir do olhar do sujeito sobre sua própria condição. Mendes narra a monstruosidade e enormidade das algemas que inauguram sua detenção; a vida nua construída desde os instantes iniciais de relação com sua existência como presidiário. Há um desnorteamento que parece fundamental à produção do corpo disciplinado no espaço onde Mendes permanece cerceado:

Nos primeiros dias, ficamos atordoados, como se estivéssemos em choque. Tudo nos parece terrivelmente caótico e os guardas surgem como bestas-feras, sádicos. Custamos a acreditar no que dizem nossos olhos, ou melhor, custamos a crer que a prisão seja exatamente tudo aquilo que dela se diz.

(Mendes, 2017Mendes, I. (2017). A pequena prisão. N-1., p. 138)

A disciplina da prisão, como narrada por Mendes, é densamente silenciadora, e nasce de uma espécie de produtividade que emerge pela penúria do real. Ser tratado ou poder ser tratado “como um animal” (p. 80) tem uma grande importância na elaboração que se pode fazer sobre si mesmo em um espaço como esse, e a narrativa de Mendes é cheia de situações nas quais os presidiários atuam sobre si mesmos a partir da moral de desqualificação de si que se produz ali. O uso quase generalizado de medicamentos antidepressivos pelos presos que conseguem a eles ter acesso, a necessidade de apresentar-se aos agentes como um aliado da polícia para garantir a própria sobrevivência e a naturalização da precariedade da própria existência são somente alguns dos exemplos de tal força destrutiva do espaço carcerário, narrada pelo autor.

A moral da desqualificação e sua força disciplinadora operam também a partir de um uso perverso do inesperado na experiência prisional de Mendes (2017)Mendes, I. (2017). A pequena prisão. N-1.: “não saber o que te espera a cada passo: essa é a terrível sensação de entrar na cadeia, pela primeira vez” ( p. 69). Em sua “monotonia cinzenta, opressiva” (p. 127), o regime penitenciário de que fala o autor parece povoado por imersões no escuro, notáveis sobretudo nas transferências de um presídio a outro, mas também presentes no cotidiano de uma vida comandada pelos desmandos dos agentes penitenciários.

Mas há ainda uma outra resposta nas situações vivenciadas por Igor Mendes, igualmente disciplinar, que não pode escapar a essa análise: aquela que lhe mantém as condições mínimas necessárias à sobrevivência no espaço que habitava. Ele relata:

Por mais absurda e tosca que fosse aquela rotina, busquei o mais rapidamente possível habituar-me a ela, como tática para vencê-la. Como já disse, dividia meu dia em quadrantes rígidos, buscando ter momentos bem definidos para conversar, esvaziar o tanque, exercitar-me, dormir e até refletir. Cada um desses gestos, pequeninos, minúsculos até, transformavam-se, naquele universo comprimido, quase que em um ritual. Essa regularidade e disciplina me foram fundamentais para manter a estabilidade psicológica e física, na dura disputa contra o enclausuramento cruel, pensado para quebrar almas e vontades.

(Mendes, 2017Mendes, I. (2017). A pequena prisão. N-1., p. 133)

Veja-se que é um outro lugar para a ação disciplinar que surge aqui, certamente mais próximo daquele dos gregos em seus exames de consciência. Não mais uma disciplina que emerge institucionalmente, com vistas à docilização, mas uma operação sobre si mesmo que afirma e mantém a possibilidade da relação singular com a exterioridade. Ela talvez nos fale de um outro silêncio, não mais definível em termos de silenciamento, mas compreensível como uma espécie de “tranquilidade alheia à própria linguagem” (Matos, 2018Matos, M. P. S. R. (2018). Silêncio e sentido em Gilles Deleuze. O Manguezal, 1(2), 63-76., p. 78), pela qual o barulho do mundo parece verdadeiramente interrompido.

Uma outra obra, dessa vez produzida como narrativa autobiográfica pelo escritor japonês Haruki Murakami, nos dá outras pistas para pensar a disciplina ética, e esse silêncio que, aliado a ela, corta o mundo em favor de modos singulares de afirmação da conduta. Murakami é um premiado escritor e também um maratonista de longas distâncias. Em seu livro Do que falo quando falo de correr (Murakami, 2010Murakami, H. (2010). Do que eu falo quando eu falo de corrida. Objetiva.), ele assinala outro desses silêncios que interrompe o que está posto na produção de modos de existir. Ao retomar suas memórias acerca da experiência vivida em uma ultramaratona de cem quilômetros de extensão, realizada em Hokkaido, ele recorda seus próprios exercícios de produção de si para se manter na pista de corrida em seus extenuantes 40 quilômetros finais. Agregado ao silêncio comum de quem corre, um curioso modo de efetivar a si mesmo se evidenciava:

Não sou humano. Sou uma máquina. Não preciso sentir coisa alguma. Apenas seguir em frente. Isso era o que eu dizia a mim mesmo. Isso era só no que eu pensava, e isso foi o que me fez ir até o fim. Se eu fosse uma pessoa de carne e osso, teria desmaiado de dor. Havia definitivamente um ser chamado eu ali presente. E acompanhando-o está uma consciência que é o em-si. Mas, nesse ponto, tive de me forçar a pensar que ambos eram formas convenientes, e nada mais. É uma forma estranha de pensar e, definitivamente, um sentimento bastante estranho – a consciência tentando negar a consciência. Você tem de se forçar a ocupar um lugar inorgânico. Instintivamente, eu percebi que era o único modo de sobreviver [ênfases no original].

(Murakami, 2010Murakami, H. (2010). Do que eu falo quando eu falo de corrida. Objetiva., p. 96)

Da leitura de Murakami advêm ao menos dois elementos que nos falam desse modo de silenciar aliado a uma disciplina ética, que nasce de um “não dito que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições do significar” (Matos, 2018Matos, M. P. S. R. (2018). Silêncio e sentido em Gilles Deleuze. O Manguezal, 1(2), 63-76., p. 80) e de ver gerados sentidos outros no corpo. O primeiro deles fala da construção de um estilo de existir que se dá não com relação a modelos apriorísticos de conduta, mas que se forja na medida mesma em que continuamos a viver e a estar em contato com o mundo. Nesse contato, reconhecemos em nossos encontros algo como um conjunto de modos de ser que nos move e passamos a nos habilitar para ele. É daí que se torna possível, então, pensar em uma disciplina que nada tenha de docilizadora. Se nela se mantêm elementos como a repetição e o esquadrinhamento de tempo e espaço – como no caso dos treinamentos físicos mais intensos ou das estratégias de sobrevivência a condições adversas –, é porque os sentidos que dela emergem àquele que a vivencia se evidenciam mais convenientes do que aqueles ligados a seu abandono. Murakami o diz claramente; perguntando-se pelas motivações que o levam a correr, a suportar as dores e os cansaços dessa atividade, ele diz tão somente: corro porque “me cai bem” (Murakami, 2010Murakami, H. (2010). Do que eu falo quando eu falo de corrida. Objetiva., p.42). Há aqui, veja-se, uma decisão pessoal envolvida em afetos que de algum modo testemunham a abertura ao intempestivo do mundo. Esse cair bem dá testemunho de algo que parece decidir por nós, que nos move no sentido de uma prática repetitiva que viabiliza o recebimento da situação vivida –um desejo que ata à pista, como em Murakami, ou à força de continuar sobrevivendo, como em Igor Mendes. Nesse contexto, o que se pode ver no silêncio de quem se exercita por vontade própria, por exemplo, é a produção de uma corporeidade bastante distinta daquelas vencidas pela penúria programada da prisão ou à moral apassivadora da obediência cristã. O que se nota, nos casos em que se evidencia uma forma ética de disciplina, é um silêncio atrelado a um corpo usado, em si, como filtro das próprias experiências.

Essa filtragem, a partir da corporeidade, diz respeito ao próprio elemento de escuta contido nesse silêncio, que coloca em xeque as significações apriorísticas da linguagem. O silenciar, nesse caso, é a “disposição de ressonância”, como nos diz Jean-Luc Nancy (2014, p. 41), pela qual se entra nesse escutar que não é nunca uma forma de permanência (como no caso da imagem que vemos), mas um “vir”, um “passar”, um “estender-se” e um “penetrar” (p. 29). A escuta é uma espécie de navegação, que nos coloca numa relação intrínseca com o que nos é exterior. Penetramos e somos penetrados pelo espaço sonoro na qual ela se dá. E o silêncio, diz Nancy, é o que abre para tal relação. O que ele faz? Transforma o corpo numa caixa de ressoar, que vibra inteiro pelo que escuta.

Podemos dizer, então, que Murakami faz uso desse “silêncio fundante” (Orlandi, 2007Orlandi, E. P. (2007). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Ed. Unicamp., p. 29): mergulha em sua experiência intimista de corredor, ao mesmo tempo fugindo de sua significação, para poder com ela compor e nela sobreviver:

tento o máximo que posso reduzir o mundo sensível aos parâmetros mais estreitos. Tudo que posso ver é o chão três metros adiante, nada além. Todo o meu mundo consiste no chão três metros adiante. Não há necessidade de pensar além disso. O céu e o vento, a grama, as vacas mastigando a grama, os espectadores, gritos de incentivo, lago, romances, realidade, passado, memória – tudo isso nada significa para mim.

(Murakami, 2010Murakami, H. (2010). Do que eu falo quando eu falo de corrida. Objetiva., p. 97)

Curiosamente, então, o silêncio de que nos fala Murakami – e a resistência de Igor Mendes, e o exame ético dos estóicos – produz na continuidade da afirmação ética de uma experiência o próprio desfazimento daquele que a vivencia. Para que tal silenciar opere, devemos estar disponíveis para sermos em alguma medida desmanchados pelo acontecimento até chegarmos à radicalidade muda da existência, anterior inclusive à individualidade. Foi isso que permitiu a Murakami “ocupar um lugar inorgânico” (Murakami, 2010Murakami, H. (2010). Do que eu falo quando eu falo de corrida. Objetiva., p. 96), existir “enquanto máquina” (p.97):

dimensão mais profunda da silentude, o caráter radicalmente discreto e mudo da existência, muitas vezes imperceptível e tido como desprezível, mas que possui uma força ativa, persistente e virulenta; um “não significar” que não se confunde com o “não significar ainda”, mas se configura como o “não significar jamais”, “não poder significar”, “não possuir significado”. Essa falha da linguagem é estruturante, porque, se por um lado, ela limita a significação, por outro lado, motiva-a e impulsiona-a [ênfases no original].

(Matos, 2018Matos, M. P. S. R. (2018). Silêncio e sentido em Gilles Deleuze. O Manguezal, 1(2), 63-76., p. 86)

Com Murakami, podemos pensar um silêncio inaugurador de outros modos de experienciar a si mesmo a partir do mergulho disruptivo no acontecimento, que interrompe significados e produz sentidos outros à existência; interrupções pelas quais o acontecimento nos toma inteiramente e nos emudece por completo diante de sua a-significância apriorística, abrindo espaço para processos de criação de novos sentidos para nossas relações singulares com o mundo.

Das pedagogias do silenciamento ao silêncio como ato pedagógico: corporeidades do agora

Entre taceo e sileo, parece possível pensar em uma gama de nuanças disciplinares e seus silêncios, que reverberam diretamente no modo como as corporeidades são constituídas em suas relações com o mundo. Há uma matriz visceral do silenciar que não pode, portanto, ser menosprezada. Visceralidade a ser lida não apenas como uma base anatomofisiológica de incisão dos acontecimentos, mas como modos de fundação de uma interioridade sempre paradoxal pela qual se constituem as fronteiras sensíveis daquilo que o sujeito compreende como si mesmo.

Os silenciamentos contemporâneos, como vimos, produzem sempre uma visceralidade em sufocamento. Vejam-se, como mais um exemplo, as tentativas de cerceamento corporal notáveis em propostas legislativas que procuram imprimir às manifestações antibolsonaristas um caráter criminoso. O projeto de lei 3019/2020 é uma delas: “Parágrafo único. Considera-se organização terrorista os grupos denominados antifas (antifascistas) e demais organizações com ideologias similares” (Projeto de lei 3019, 2020). O projeto faz parte de uma política de criminalização que, vista de modo geral, não apresenta muita novidade: encarna, em uma figura específica, um grande mal, para em seguida, a partir dele, produzir sua inviabilidade social e a necessária perseguição visando ao seu desaparecimento – foi assim com “o comunista” em diversos momentos da história recente e com a fragilização seletiva de certas figuras políticas com a alcunha de “corrupto”, colocada em operação em ações judiciais como a da Lava-Jato (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição. N-1.). Mas, no contexto da pandemia, a produção do cerceamento à resistência antifascista se torna particularmente ordenadora: devolve paulatinamente aos corpos sua possibilidade de deslocamento, mas torna delinquente o corpo que se dirige a qualquer espaço de contestação à presidência da república, na medida em que ele pode ser compreendido, à luz desse dispositivo legal, como o responsável pela “incitação à violência e prática da violência propriamente dita sob o falso viés da defesa da democracia” (Projeto de lei 3019, 2020).

No caso do corpo antifascista, as políticas de sufocamento contemporâneas parecem inaugurar uma outra linha de ação, particularmente importante para os modos de governar nos períodos que se seguirão à pandemia. Em um tempo no qual as economias nacionais rangem com uma sonoridade de fazer tremer os mais intrépidos governantes, importa devolver os corpos ao mercado com a máxima urgência, mas apenas na medida em que operem sua produtividade. É particularmente valioso, então, esse sufocar seletivo dos corpos, capaz de liberá-los para seus deslocamentos cotidianos e, ao mesmo tempo, manter seu distanciamento das ruas, hoje particularmente profícuas à derrubada de líderes nacionais. As manifestações precisam se manter inaceitáveis, sobretudo adiante da bancarrota nacional de governos como os de Trump e Bolsonaro, e o sufocamento antifascista que se seguirá pode produzir com inegável velocidade a inaceitabilidade e a destruição desses corpos em agenciamento, em seu “direito de aparecer” (Butler, 2018Butler, J. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Civilização Brasileira., p. 31).

Os modos de silenciamentos institucionalizados, portanto, continuam em reedição. Eles têm muito a ensinar; são de modo geral ligados a regimes pedagógicos, concebidos aqui, com Masschelein e Simons (2014)Masschelein, J., & Simons, M. (2014). A pedagogia, a democracia, a escola. Autêntica., como modos de instaurar uma “posição deficitária daquele que não sabe, não tem a competência” (p. 36) – ou daquele, talvez possamos ampliar, que não tem a legitimidade social, a condição política entendida, em alguma instância, como necessária. São, portanto, pedagogias de silenciamento. Esse caráter educacional embutido nas operações de fazer calar, já o sabemos pelo menos desde Foucault, não funciona por simples coerção. Amparados nas análises políticas do filósofo moçambicano José Gil (2018)Gil, J. (2018). Caos e ritmo. Relógio d’Água. sobre o populismo, podemos dizer que tal pedagogia silenciadora atua comumente em um jogo que coloca em relação a já discutida despotencialização da vontade de alguns e a “força da crença” (p. 438) em outros. Assim, o silenciamento contemporâneo pode ser pensado, politicamente, em dois níveis: um primeiro, que absorve dos corpos indesejados a vontade que funda sua efetivação – como o faz com Igor Mendes, com os corpos docilizados ou com a debilitação da resistência que, de insurgente, passa a debilitada e desmotivada; e um segundo, que imprime crenças fortalecidas nos corpos que devem funcionar como silenciadores.

Quando é que uma ideia ganha uma adesão suficientemente forte para se tornar um artigo de fé? Quando é incorporada. ... Quando é que ocorre a incorporação de uma ideia, ou se forma a crença total com que a ela se adere? Quando ela e as práticas que induz devêm necessidade vital. E quando isso acontece? Quando a utilidade ganha um valor imprescindível, um poder de que depende a vida humana.

(Gil, 2018Gil, J. (2018). Caos e ritmo. Relógio d’Água., pp. 438-439)

Os modos pelos quais se relacionam fortalecimentos de crença e cerceamentos da vontade na comunicação entre os corpos dão, portanto, pistas importantes para compreendermos os elementos viscerais do taceo em sua versão política contemporânea. A coreografia9 9 A noção de coreografia, como assinala André Lepecki (2012), é tida aqui como a “matriz expressiva da função política” (p. 46), materializando composições de corpos que são, ao mesmo tempo, temporárias e instauradoras de outros devires. dos corpos que habitam espaços que conglomeram diferentes perspectivas, como manifestações ou debates calorosos, por exemplo, depende em muito desse jogo. Mesmo porque há uma espécie de regime de envolvências recíprocas pelos quais os corpos se capturam (ou se livram) uns aos outros em meio às relações de força que circulam entre eles. No caso do silenciamento, se trata sempre de um fechamento da crença que opera “quando uma visão mais forte capta e devora a visão do mais fraco dissolvendo-a em si” e fazendo derivar disso uma “perspectiva hegemônica única” (Gil, 2018Gil, J. (2018). Caos e ritmo. Relógio d’Água., p. 444), encarnada. Podemos, nesse sentido, pensar as operações que fazem calar como a ação de uma “má envolvência” entre os corpos (p. 322), na medida em que visam “aprisionar e submeter o outro, destruindo a sua afirmação de si” (p. 322).

Mas há também, pelas lentes corpo-políticas de Gil (2018)Gil, J. (2018). Caos e ritmo. Relógio d’Água., um outro modo de envolvência. A boa envolvência “não fecha a visão numa totalidade acabada” (p. 443). Ela abre o espaço de relação entre corpos e desses com o mundo, ampliando-o como “meio afetivo de reconhecimento mútuo, selvagem, pré-verbal, imediato” (p. 322). E isso também pode dizer respeito a certos modos de encarar o silêncio como “pedagógico” (Masschelein & Simons, 2014Masschelein, J., & Simons, M. (2014). A pedagogia, a democracia, a escola. Autêntica., p. 33), não mais ligado a uma pedagogia moralizante, mas como exercício de abertura a outros possíveis, de “conduzir para fora” (p. 39) ao mesmo tempo em que se faz “recordar que se está, a si mesmo, implicado no que se faz” (p. 38). As forças de envolvência estão dessa vez, portanto, correlatas à força fundadora do sileo, a sua potência disruptiva e inovadora. Um último exemplo, mais localizado, mas de reverberações igualmente políticas, pode somar alguns elementos a essa reflexão acerca do que podemos chamar de um ato pedagógico do silêncio. Trata-se de um breve relato, resultante de um exercício corporal que propusemos em um curso de extensão universitário adaptado às condições recentes de pandemia e isolamento social. O exercício convidava a reproduzir um gesto cotidiano qualquer, que fazemos repetidamente, nos detendo então em seus elementos constitutivos. Solicitava, portanto, um se demorar em seus detalhes a partir da atenção silenciosa às suas convocações anatomofisiológicas e aos afetos que emergem na ativação do movimento. Num desses textos, uma participante narra o a ato simples de pegar o celular na estante, checá-lo e deixá-lo de novo em algum lugar:

Ombros abaixados e tensionado o trapézio. Quase sempre o ombro direito, mini-guindaste até cotovelo, catapulta a mão e pega. O queixo beirando o peito. A nuca, dura, permanece. Pescoço em riste, a cabeça pesa para o chão, a pálpebra caída. Olhos parados, pouco lúcidos, para baixo. O que sustenta o corpo todo é a energia das omoplatas a tensão nos trapézios. A cabeça vaga. Dedos e olhos, agora, tudo num corpo, portanto, esquecidos. Sustentados pelas omoplatas, pelos quadris, pela lentidão das pernas, o dedão direito se move muito, sobe desce, a mão em garra força o próprio sumiço. O maxilar contido, tensionado. A boca se afina, o nariz se estreita em respiração incompleta. Andando devagar, esticando o braço de novo até a ponta dos dedos, deixa um peso. O corpo se ergue, mais unido, caminha.

O que se deu no silêncio desse gesto? O corpo é, aqui, envolvido durante sua quietude pelo próprio gesto, que toma o pensamento – lembrando que o pensar “concerne ao que vem de outro lugar, circunscreve o que passa, o que se passa nos pedindo para lhe fornecer uma resposta” (Masschelein & Simons, 2014Masschelein, J., & Simons, M. (2014). A pedagogia, a democracia, a escola. Autêntica., p. 38). Essa envolvência, então, ainda que ligada a um gesto do corpo sobre si mesmo, está pautada na abertura subjetiva que alarga a experiência. Surge, então, um espaço que é

o território do corpo criador, espaço envolvente sem contornos definidos, espaço-sombra do corpo que o acompanha sem o prender, que se dilata e encolhe, se molda e metamorfoseia, prolongando-se para além do corpo próprio como puro corpo de espaço sem órgãos, pronto a incorporar novos órgãos do exterior ou a produzi-los do interior.

(Gil, 2018Gil, J. (2018). Caos e ritmo. Relógio d’Água., p. 444)

É isso o que faz com que um outro corpo, efetivamente, se forje no relato – dotado de uma atenção não só aos movimentos anatômicos, mas também àquilo que faz perceber o que é “pouco lúcido”, endurecido, incompleto ou “mais unido”. A captação silenciosa da corporeidade, aqui, ultrapassa então o já existente e funda uma outra compreensão de si mesmo.

Esse talvez seja o núcleo operativo desse silêncio fundamental: ao interromper o já dado, ele abre espaço para o alargamento do próprio corpo em seus gestos e pensamentos. Isso acontece na expansão de Murakami pelas pistas, na ampliação dos modos de sobreviver de Igor Mendes e em todo ato pedagógico, de si para consigo ou de si para o outro, que possa ser visto “não como aquele que transmite o saber, mas como aquele que sustenta a vontade” (Masschelein & Simons, 2014Masschelein, J., & Simons, M. (2014). A pedagogia, a democracia, a escola. Autêntica., p. 39). Eis aí a grande diferença entre os dois silêncios: à força de desencantamento e de supressão da vontade do taceo está contraposta outra, a do sileo, de fortalecimento, pela interrupção que causa, dessa mesma vontade – que é ela mesma potência de movimento (p. 34).

O valor pedagógico do sileo está pautado, portanto, em dois movimentos por ele provocados: por um lado, como vimos, ele faz com que o instante funcione como ponto de ancoragem e produção de corporeidade, no momento em que passamos, pelo silêncio e escuta por ele aberta, a navegar de modo cada vez mais profundo no mundo, no que tensiona as fronteiras fundantes do sujeito. Nesse sentido, o silêncio fundamental tende àquilo que José Gil (2019)Gil, J. (2019). Trajectos filosóficos. Relógio d’Água., em alguns de seus textos, chama de “vazio”, alcançado mais plenamente em práticas meditativas, por exemplo:

Ao abolir todo o conteúdo mental (ideias, imagens, volições, sentimentos, emoções, o próprio eu ... afunda-se, desintegra-se e desaparece por não ter mais objeto em que se aplicar, nem mesmo em si próprio. Nada fica e, no espaço do nada, nasce o vazio. O vazio não é pensado – pois nada há a pensar –, nem vivido – pois não há sujeito –, é apenas o espaço da energia impessoal e vital que atravessa o indivíduo e o sustém.

(p. 145)

Obviamente, essa e uma situação de limite; em nossos silêncios cotidianos, tal desfazimento não será necessariamente alcançado em plenitude. De todo modo, trata-se sempre, no caso do sileo, de uma operação sobre si mesmo que produz uma abertura que nos joga nesse espaço vazio que “é o ‘puro exprimível’, antes da linguagem, de onde jorra o sentido” [ênfase no original], “jorram as singularidades” (Gil, 2019Gil, J. (2019). Trajectos filosóficos. Relógio d’Água., p. 147). Por dissolver fronteiras corporais apriorísticas, a escuta derivada desse silêncio primeiro confunde também os limites entre o que chamamos organismos e o que pensamos como corpo sensível: no silêncio, ouvimos o mar e respiramos melhor, ouvimos um grito e nos preenchemos da angústia que parece lhe dar forma, ouvimos um gemido e entramos no prazer que ele delineia. É que pelo corpo-caixa de ressonância que o silenciar produz, somos mar, grito e gemido; mergulhamos nos afetos que o encontro com eles derivam, donde então se fundam corporeidades e existências que não estavam, até então, presentes.

Por outro lado, é nesse ressoar com o mundo que entra em cena um outro movimento possível, pautado na vontade. Proveniente do próprio encontro, ela remarca a condição do sujeito, estando acima, porém, de “todo cálculo de interesse” (Foucault, 2018Foucault, M. (2018). O enigma da revolta: entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana. N.-1., p. 84); não se trata, portanto, de um querer calcado na pura intencionalidade individualizada, mas, ao contrário, de uma réplica, organizadora da própria experiência de si, que se dá pelo engajamento obrigatório nos quais os acontecimentos do mundo nos implicam. Não por acaso, Masschlein e Simons (2014) a associam à infância, lida não como faixa etária, mas exatamente como um “vácuo” que “implica uma carga ou uma dívida de resposta” (p. 35) pela exposição ao mundo.

De um lado, portanto, uma pedagogia silenciadora, que investe no jogo entre crenças legitimadas e esvaziamento da vontade – mantendo a ambas como marcadoras de uma individualidade desejável ou não diante das relações com o outro. De outro, um silêncio como ato pedagógico, marcado pela relação de escuta com o mundo e de retomada da vontade que deriva dos encontros com ele. É pela lida com esses dois lugares ocupados pelo agir pedagógico que fundamos muito daquilo que cotidianamente concebemos como nossos espaços educativos. Como vimos, esses regimes silenciosos estão densamente associados aos modos disciplinares que fazemos operar, o que faz com que a pergunta acerca da natureza das disciplinas e dos silêncios que nos interessam em nosso fazer educativo se torne incontornável. E se pudéssemos pensar em uma sala de aula com o mínimo de silenciamento e repleta de oportunidades de silêncio? E se nossos encontros educacionais, nesses tempos remotos que marcam este agora, fossem elementos instauradores de um silenciar fundamental, capazes de lançar os estudantes e a nós mesmos em um modo ético de produção de si? Talvez os silêncios tenham, ainda aqui, algo de revolucionário a nos ensinar.

Silenciando...

As políticas de sufocamento produzem modos de existência e inexistência. Quando suficientemente asfixiantes, surrupiam a vida, como o fizeram com Floyd e com os muitos e muitas que, diante de uma incapacidade talvez inédita mesmo na história de um Estado constantemente fragilizado como o brasileiro, continuam a perecer nas salas e antessalas de internamento pandêmico. Mas, felizmente, não é incomum que o gosto pelo sufocamento encontre a teimosia de corpos que mantêm potência de vida. E, nesses casos, a perseverança em existir comumente se reverte em força descomunal, em anseio afirmativo adiante da frustração do algoz. Precisamos dessa vingança que, comumente, é gestada no silêncio, por meio desse sair de si a que chamamos, aqui, vontade: elemento produtor de uma insurgência incontrolável sustentada na vibração comum, anterior aos indivíduos, que inquieta corpos em espaços compartilhados de insurreição. É dela que podem derivar não apenas as possibilidades de escapatória dos braços fortes do autoritarismo, mas também os contágios capazes de multiplicar a adesão dos corpos. Estamos aqui perante essa capacidade corporal de emanar forças microscópicas que, agenciadas, produzem atmosferas, densidades materiais sensíveis, que capturam e produzem sentido frente aos que delas se aproximam. Precisamos de uma constelação de corpos antifascistas, suficientemente densa, para incomodar fisicamente aqueles que tentam depô-la. Um corpo-em-comum, forte o suficiente não para tomar para si a mesma lógica de sufocamento, mas para tornar o ar rarefeito aos que hoje tentam constrangê-lo, obrigando-lhes a respirar em outro lugar.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha – verah.bonilha@gmail.com.
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    Apoio: Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ).
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    A noção de corporeidade remete diretamente à compreensão do corpo como processualidade. A despeito de todos os tensionamentos ligados a esse conceito – dos quais não desejamos tratar aqui –, vale ressaltar que seu uso aponta para o entendimento de que a dimensão “instável, heterogênea e múltipla” é primeira à condição corporal em si (Le Moal, 2008Le Moal, P. (2008). Dictionnaire de la danse. Larrousse., p. 717). Sendo assim, ao falar em corporeidade, estamos afirmando nosso entendimento do corpo, sempre, como efeito de uma produção que se dá no âmbito dos discursos e das circulações afetivas; na ambiência, portanto, dos entrelaces entre historicidade e encontros. Valiosas nessa compreensão processual são, entre outras, muitas das reflexões propostas por Michel Foucault e José Gil, as quais apresentamos apenas brevemente neste trabalho. Para outras aproximações sobre a produção de corporeidades com o apoio desses autores, veja-se também Bocchetti (2017Bocchetti, A. (2017). O furor como método: sentidos educacionais de uma prática somática. Cocar, 4(esp), 28-56., 2019)Bocchetti, A. (2019). De toques sutis a voadoras: por uma ética educacional a partir dos corpos. Artes de Educar, 5(3), 475-490. https://dx.doi.org/10.12957/riae.2019.45745.
    https://doi.org/10.12957/riae.2019.45745...
    . De todo modo, o uso dos termos “corpo” e “corporeidade” se intercambiam nestas páginas, compreendendo-se que ambos podem ser usados com tal denotação.
  • 5
    Homem negro, asfixiado por um policial branco à luz do dia em Minneapolis, nos Estados Unidos, em maio de 2020, cuja morte repercutiu internacionalmente em movimentos em defesa das vidas negras (
  • 6
    A referência, aqui, é a frase do presidente da república Jair Messias Bolsonaro, interpelado por uma jornalista, em abril de 2020, diante da ultrapassagem do número de mortes da China pelo Brasil. A resposta presidencial: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre” (Garcia et al., 2020Garcia, G., Gomes, P, H., & Viana, H. (2020, 28 abr.). “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”, diz Bolsonaro sobre mortes por coronavírus; “Sou Messias, mas não faço milagre”. G1. https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-mortes-por-coronavirus-no-brasil.ghtml
    https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
    )
  • 7
    Vide ainda os exercícios de publicização corporal do pecado cometido, ordenados pela igreja cristã dos primeiros séculos e também narrados por Foucault (2014)Foucault, M. (2014). Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). WMF Martins Fontes..
  • 8
    Vale a pena retomarmos rapidamente a já bem conhecida estrutura panóptica, aqui: uma arquitetura na qual, por meio de uma torre que se ergue entre um conjunto de celas dispostas em uma estrutura anelar, faz dessas compulsoriamente visíveis aos que habitam a coluna central: “tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível”, como assinalaria Foucault (1987, p. 166)Foucault, M. (1987). Vigiar e Punir. Vozes..
  • 9
    A noção de coreografia, como assinala André Lepecki (2012)Lepecki, A. (2012). Exaurir a dança: performance e a política do movimento. Annablume., é tida aqui como a “matriz expressiva da função política” (p. 46), materializando composições de corpos que são, ao mesmo tempo, temporárias e instauradoras de outros devires.

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Editado por

1
Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2020
  • Aceito
    21 Dez 2021
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