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“E se o relatório fosse do Victor?” Pensando com o cinema a alteridade, a imaginação e a psicologia na formação de professores 1 1 Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite. https://orcid.org/0000-0001-8889-750X 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Junior – revisao@tikinet.com.br 3 Revisão (inglês): Andreza Aguiar – andreza@tikinet.com.br 4 4 Agradeço aos colegas do Seminário Temático Cinema e Educação da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), pelas contribuições ao texto em sua versão de resumo expandido apresentado em 2017.

“What if it was Victor’s report”? Thinking with the cinema the otherness, the imagination and the psychology in the formation of teachers

Resumo

O artigo compartilha uma experiência pedagógica com o cinema junto à disciplina psicologia da educação, oferecida para alunos de licenciaturas na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foram analisados dois trabalhos audiovisuais feitos após a proposta de imaginação sobre como seria o filme O garoto selvagem, de François Truffaut, se o relatório de inspiração para o roteiro fosse do personagem Victor e não do Dr. Itard. Para tanto, dialogamos com as contribuições recentes do campo de cinema-educação, do ensino de psicologia na formação de professores e do cinema. Neste contexto, a possibilidade de realizarmos experiências inventivas com o cinema no curso de psicologia se apresentou como práticas estéticas e políticas alternativas ao modelo curricular historicamente dominante nessa disciplina, o que nos permitiu identificar alguns impactos desse tipo de exercício na formação de professores, tais como a superação de apropriações pedagogistas do cinema, a legitimidade da imaginação na construção do conhecimento e articulações interdisciplinares.

Palavras-chave
psicologia da educação; formação de professores; cinema e educação

Abstract

The article shares a pedagogical experience with cinema with the discipline psychology of education offered to students of varied degrees at the Federal University of Rio de Janeiro. We analyzed two audiovisual works made after the imagination was proposed about what would be the movie The Wild Boy by François Truffaut if the inspirational report for the script was from the character Victor and not from Dr. Itard. For such purpose, we dialogue with the recent contributions of the field of Cinema-education, the teaching of Psychology in teacher education and cinema. In this context, the possibility of performing inventive experiences with cinema in the course of psychology presented itself as aesthetic practices and political alternatives to the historically dominant curricular model in this discipline, which allowed us to identify some effects of this type of exercise on teacher education, such as the overcoming of pedagogical appropriations of cinema, the legitimacy of imagination in the construction of knowledge and interdisciplinary articulations.

Keywords
educational psychology; teacher training; cinema and education

Introdução

Psicologia e educação entrelaçam-se em O garoto selvagem (1969Truffaut, F. (Diretor). (1969). O garoto selvagem [Filme]. França.) de François Truffaut. Teorias, conceitos e personagens famosos do campo, como as premissas de Lev Vigotski, defendidas por Jean Itard em cena que discorda do posicionamento de Philippe Pinel acerca das origens das dificuldades de Victor, nos conduzem ao nascimento das primeiras relações entre essas duas áreas. Para Itard, Victor não se desenvolveu porque foi abandonado e isolado do convívio humano, para Pinel, ele foi abandonado porque não tinha capacidade de se tornar um “humano”, uma escória da sociedade, portanto.

O filme conta a história real de um menino encontrado com aparentemente 11 anos de idade nos bosques de Aveyron, sul da França, no final do século XVIII e a tentativa do Dr. Itard em socializá-lo. Construído a partir de dois relatórios oficiais elaborados por Jean Pierre Itard, médico pesquisador que acompanhou pessoalmente a educação do menino após sua captura, a obra nos convida a análises interdisciplinares, que atravessam a teoria do bom selvagem, polêmicas acerca da inteligência, a educação como gesto civilizatório, a desnaturalização do fenômeno psicológico, o encontro com a alteridade…

As discussões com as quais pretendemos dialogar neste trabalho nos campos de cinema-educação e da psicologia, entretanto, nos instigam a pensar além das relações clássicas com que tradicionalmente os filmes são abordados em sala de aula e mais diretamente na formação dos professores. Sendo assim, o texto visa a pensar sobre práticas e epistemologias que atravessam a sétima arte em sua relação com a educação, examinando a obra de Truffaut dentro do contexto histórico em que foi produzida e destacando suas potências pedagógicas na exploração de relações e exercícios possíveis com esse filme numa perspectiva inventiva de aprendizagem e formação com o cinema.

Especificamente, será analisada uma experiência pedagógica (cinematográfica) que há quatro anos vem sendo realizada na disciplina psicologia da educação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)5 5 Neste artigo analiso a primeira edição desse exercício que foi realizado quando era professora substituta do Departamento de Fundamentos da Educação na Faculdade de Educação da UFRJ. Atualmente sou docente efetiva do Departamento de Ciências da Educação na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), onde continuo realizando e ampliando as possibilidades deste e outros exercícios com o cinema, lecionando psicologia da educação e outras disciplinas no campo da psicologia, do cinema-educação e da imagem-educação. oferecida para alunos de licenciaturas variadas.

Após a exibição completa do filme O garoto selvagem nas primeiras aulas e a continuidade de conversas sobre ele em diálogo com textos variados6 6 Os textos compõem algumas das sugestões teóricas do currículo da disciplina, tais como: a psicologia histórico-cultural de Vigotski, incluindo seus estudos sobre linguagem e imaginação, leituras sobre aprendizagem por condicionamento a partir do principais autores behavioristas e o ensino centrado no aluno, com destaque para as atitudes de facilitação da aprendizagem em Carl Rogers. Neste artigo, não aprofundaremos esta parte das aulas, apenas o exercício final. Vale ressaltar que na ocasião do exercício aqui analisado, a turma já havia estudado essas referências antes. no campo da psicologia da educação, é solicitado aos alunos, ao final do curso, que criem um pequeno filme (“refazendo” fragmentos do filme original) a partir de um roteiro imaginado “escrito” pelo personagem Victor, e não por seu professor, o Dr. Itard, como originalmente aconteceu.

Nesta análise, dialogamos proposições do campo do cinema-educação, que serão apresentadas a seguir, com conceitos e pesquisas sobre o ensino de psicologia e formação de professores, além de algumas reflexões iniciais no campo da etnografia, que os filmes das alunas e seus comentários sobre o processo nos instigaram a pensar. O que vislumbramos é uma alternativa pedagógica na relação com o filme que se aproxima de uma política inventiva da cognição – no que se refere ao ensino de psicologia – e de uma relação política e criadora com o cinema na educação, com foco na imaginação e nas escolhas intuitivas e sensíveis, com vistas à formação estética do futuro professor.

O cinema na educação

Desde seu nascimento no final do século XIX, a sétima arte atraiu olhares esperançosos e desconfiados de seu poder de educação, persuasão e domínio das massas. Apostava-se que o cinema levaria as imagens mais próximas à realidade, cabendo ao professor ordenar e elucidar os acontecimentos exibidos na tela, orientando a percepção do aluno para o que é visto e ouvido, tendo o audiovisual um papel de esclarecer e facilitar o entendimento dos conteúdos. De modo geral, sua função inicial não foi diferente dos demais “instrumentos” escolares, consistindo-se em mais uma tentativa de efetivar o modus operandi pedagógico. Adiantamos que reconhecemos a importância dessas primeiras aproximações entre cinema e educação para o campo, mas a relação que estabelecemos neste artigo não se alinha a essa perspectiva.

Os apontamentos acerca das potências e limites desta qualidade de “uso” do cinema na educação vêm sendo analisados por diferentes autores que destacam que o “pedagógico” está presente não apenas no tema, na história, na narrativa contada pelo filme, mas também na forma como as imagens são mostradas e naquilo que o enquadramento esconde. Assim, informações sobre os diretores, o contexto histórico, político e social em que as obras foram filmadas, o processo e os desafios da produção e distribuição para aquele cineasta e seu país são elementos propriamente cinematográficos que deveriam ser explorados pedagogicamente se almejamos uma relação cinema-educação como experiência estética e política na construção do conhecimento (Duarte Júnior, 1988Duarte Júnior, J. F. (1988). Fundamentos estéticos da Educação (5a ed.). Campinas: Papirus.; Fresquet, 2013Fresquet, A. (2013). Cinema e educação: reflexões e experiências com estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Rio de Janeiro: Autêntica.; Leandro, 2001Leandro, A. (2001). Da imagem pedagógica à pedagogia da imagem. Comunicação e Educação, (21), 29-36.).

O entendimento de que a imagem é um modo de pensamento e veículo de uma inteligência sempre esteve presente na teoria do cinema (Duarte, 2009Duarte, R. (2009). Cinema e educação. Belo Horizonte: Autêntica.). Trata-se, como em todas as artes, de não dissociar o conteúdo da obra das escolhas formais. Os recursos expressivos que o autor utiliza, as técnicas que emprega, a posição que enquadra, o tempo que dá a ver o mundo que filma, a composição, arrumação e distribuição das imagens filmadas, o modo como articula som e imagem, esses elementos compõem uma estética e, consequentemente, uma política do olhar.

Para Xavier (2012)Xavier, I. (2012). O discurso cinematográfico: entre a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra., o “esquecimento” do trabalho de criação realizado pelo autor da imagem, essa imposição da representação como realidade, é o sucesso do projeto burguês de sociedade. Há uma função de naturalização do discurso sobre o real, que celebra uma forma ideológica de representação, mas segundo ele esquecemos que “um sistema de representação não constitui a visão objetiva do mundo, mas a representação que dele elaborou um determinado grupo social” (Xavier, 2012Xavier, I. (2012). O discurso cinematográfico: entre a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra., p. 151).

É nesse sentido que Comolli (2008)Comolli, J. L. (2008). Ver e poder. Cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: UFMG. e Rancière (2009)Rancière, J. (2009). A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org; Ed. 34. apontam que as escolhas políticas e estéticas mantêm uma correspondência íntima. Existe uma estética na base da política na perspectiva de que a política se ocupa do que vemos, de como vemos e do que pode ser visto.

Nesse contexto, uma proposta que vem sendo exercitada por diferentes grupos de pesquisa e projetos de cinema-educação em ambientes diversos (escolas, universidades, hospitais, instituições socioeducativas, espaços comunitários, abrigos e/ou asilos) é uma abordagem do cinema como arte7 7 Como tem sido compartilhado em trabalhos apresentados nos Seminários Temáticos de Cinema-Educação da Socine, do Colóquio de Cinema e Arte da América Latina (Cocaal), e de encontros do Seminário de Educação da Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual (RedeKino) na Mostra de Cinema de Ouro Preto (CineOP) – três dos principais eventos de cinema-educação atualmente no Brasil. Mais informações em: http://www.socine.org/; https://cocaal2018.wordpress.com/2018/05/07/cinema-audiovisual-e-educacao/; e http://cineop.com.br/programacao-4/seminario?category=3 . Observamos que tanto a interlocução com a arte-educação quanto com cineastas e críticos do cinema apontam a importância de se destacarem as dimensões analítica, histórica e criadora das imagens em movimento.

Segundo Cohn (2013)Cohn, G. (2013). O ensino contemporâneo da arte e a hipótese de Bergala: diálogos e convergências. Pro-Posições, 24(1), 179-199., uma das principais metodologias em cinema-educação empregada em projetos contemporâneos, a “pedagogia da criação” do professor francês Alain Bergala, encontra pontos de convergência nos estudos e propostas de arte-educação, especialmente no que tange à abordagem triangular de Barbosa (2012)Barbosa, A. M. (2012). A imagem no ensino da Arte. São Paulo: Perspectiva. e às ações de ver, contextualizar e fazer. Ao pensar a aproximação da obra de arte pela leitura, pela contextualização e pelo fazer, Barbosa (2012)Barbosa, A. M. (2012). A imagem no ensino da Arte. São Paulo: Perspectiva. afirma a natureza tríplice da arte: linguagem, produto social e criação humana, todos passíveis de aprendizagem, reflexão e crítica – tarefas do educar.

Na pedagogia da criação, por sua vez, o filme é tratado como um quadro e cada plano é como a pincelada do pintor. Trata-se de estabelecer uma relação estética com o filme compartilhando não apenas as emoções de personagens, mas as de seu criador, abordando a obra como um processo de criação quando se cria e quando se contempla.

Observamos, portanto, que proporcionar um momento para a criação é uma etapa tanto da proposta de Bergala (2008)Bergala, A. (2008). A Hipótese-Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE-FE/UFRJ. para o cinema como da de Barbosa (2012)Barbosa, A. M. (2012). A imagem no ensino da Arte. São Paulo: Perspectiva. para o ensino de arte. Para o primeiro, quando tomamos os filmes desde o ponto de vista da arte, nos aproximamos do “ato de criação”, que é o “modo” como o cinema mostra, constrói e reinventa o mundo. Após as etapas de reflexão e análise – no caso da “leitura da obra” no ensino da arte e da “análise da criação”na proposta de Bergala –, o fazer é a oportunidade de se entrar em contato com uma dimensão do saber que não é traduzível em palavras, mas que possui uma força de sentido e existência – uma dimensão, portanto, estética.

Dessa forma, uma proposta pedagógica que contemple a criação audiovisual não se reduz à aprendizagem de habilidades técnicas no manuseio de equipamentos ou à aquisição de um linguajar predeterminado acerca de posicionamentos de câmera. Tomar o cinema desde sua dimensão artística implica acolher a experiência estética como fundamento do fazer pedagógico. Por experiência estética, entendemos a percepção e a relação direta com o mundo, numa etapa ainda pré-simbólica de nossas sensações, vibrações e afetações, que não tem a ver estritamente com linguagem e conceitos que medeiam e explicam a realidade ou o que sentimos, nem com o tempo cronológico que ordena o cotidiano (Duarte Júnior, 1988).

Nesse sentido, o cinema pode ser uma experiência estética, porque implica uma relação com o mundo que é a própria invenção de um mundo e de uma relação, no modo como se aproxima, faz contato, enquadra, interage, filma as paisagens, os acontecimentos, os objetos e as coisas todas – e especialmente no modo como se relaciona com as pessoas que filma e compartilha essas visões. Devido à forte impressão de realidade das imagens em movimento, o exercício de criação com o cinema é um gesto potente de sentir, perceber e impactar o mundo na invenção de novos processos de subjetivação.

A psicologia na formação de professores

A relação da psicologia com a educação confunde-se com a própria história da ciência psicológica, que nasceu ancorada na determinação de bases mensuráveis para as faculdades mentais e padrões de normalidade que caracterizaram por muito tempo uma psicologia da educação “ortopédica” e tecnicista. Como herança, estudos de ordens médica e normativa, legitimados pelo campo “psi”, ainda hoje são utilizados para justificar fracassos escolares e problemas de aprendizagem, mau comportamento e má adaptação social (Harayama, Souza, & Viégas, 2015Harayama, R., Souza, M. P., Viégas, L. (2015). Apontamentos críticos sobre estigma e medicalização à luz da psicologia e da antropologia. Ciência & Saúde Coletiva, 20, 2683-2692.; Kupfer, 1997Kupfer, M. C. M. (1997). O que toca à/a Psicologia Escolar. In A. M. Machado, & M. P. R. Souza (Orgs.), Psicologia escolar: em busca de novos rumos (pp. 55-65). São Paulo: Casa do Psicólogo.; Patto, 1984Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e ideologia. São Paulo: T.A. Queiroz Editor., 1999Patto, M. H. S. (1999). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia (4a ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.).

Não é raro, portanto, que alunos de licenciaturas tenham como expectativa encontrar na disciplina de psicologia ferramentas que os auxiliem a identificar alunos com hiperatividade, déficit de atenção, traumas familiares ou algum atraso no desenvolvimento cognitivo, os quais possam justificar os insucessos da tarefa pedagógica. Frustrar essa expectativa intervencionista8 8 Para leituras críticas em torno da medicalização de crianças e jovens com supostos transtornos de aprendizagem e atenção, consultar Lima, R. C. (2005). Somos todos desatentos?: o TDA/H e a construção de bioidentidades. Rio de Janeiro: Relume; Caliman, L. V. (2009). A constituição sócio-médica do “fato TDAH”. Psicologia & Sociedade, 21(1), 135-144; e Meira, M. E. M. (2012). Para uma crítica da medicalização na educação. Psicologia Escolar e Educacional, 16(1), 135-142. na formação dos professores é a primeira tarefa da psicologia na reescritura a contrapelo de sua própria história. Aberto esse vácuo, é preciso em seguida perguntar sobre o lugar da psicologia, sobre qual psicologia e sobre outras relações possíveis de serem experimentadas com o saber “psi” nas licenciaturas. Trata-se de questões de fundos epistemológico e político.

Costa e Machado (2016)Costa, L., & Machado, C. (2016). Ensino de Psicologia na formação de professores. Uma aproximação com diálogos possíveis. Pro-Posições, 27(2), 221-234. e também Checchia (2015)Checchia, A. K. A. (2015). Contribuições da Psicologia para a formação de professores: um estudo sobre a disciplina Psicologia da Educação nas licenciaturas. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo., ao realizarem um levantamento de pesquisas mais recentes sobre o ensino de psicologia nas licenciaturas, destacam algumas ponderações que indicam dissonâncias entre o ensino e as práticas dos professores, o que demonstra que pouco do que se ensina contribui efetivamente para o trabalho em sala de aula. Além disso, de acordo com o observado nas pesquisas, as teorias são apresentadas descontextualizadas e acriticamente (Almeida, 2005; Guerra, 2002; Larocca, 2007 citados por Costa e Machado, 2016Costa, L., & Machado, C. (2016). Ensino de Psicologia na formação de professores. Uma aproximação com diálogos possíveis. Pro-Posições, 27(2), 221-234.).

Predomina um formato de aulas que atravessam sem correlações a diversidade teórica do campo psicológico com pouca articulação prática e pouco impacto no desenvolvimento e postura do futuro professor. De modo geral, os autores concordam que o foco é um paradigma teoricista e tecnicista e sugerem a necessidade de uma posição mais reflexiva que aprecie demandas de cada licenciatura em questão. Outra proposta é que os conteúdos da psicologia dialoguem com as demais disciplinas do curso e que se valorize a formação do aluno tanto do ponto de vista pessoal quanto profissional.

Ao que parece, então, as aulas de psicologia têm pouco efeito – estético – sobre os futuros professores, sendo o conteúdo memorizado e restrito ao acúmulo de informações e conceitos. Testemunhamos a ironia de se estudarem temas como aprendizagem, imaginação, atenção e desenvolvimento sem que os próprios alunos tenham de fato a experiência de imaginar, aprender e desenvolver uma atenção, percepção ou sensibilidade diferente daquela com que começaram o curso.

Kastrup (2005)Kastrup, V. (2005). Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir mestre. Educação e Sociedade, 26(93), 1273-1288. identifica essa condição predominante de formação de professores como pertencente a uma política de recognição. Nesse caso, a compreensão epistemológica é de que o conhecimento é uma representação do mundo e a aprendizagem gira em torno de conceitos, modelos teóricos e solução de problemas, cujas respostas já estão previstas. Um conteúdo é apresentado e conferido ao final do curso. A avaliação depende da comprovação de que ele foi adquirido. Quase nada de novo realmente se “forma” no futuro professor com essas práticas, porque elas se baseiam na estabilidade de um sujeito que conhece e na estabilidade de um mundo a ser conhecido.

Em contraponto, Kastrup (2005Kastrup, V. (2005). Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir mestre. Educação e Sociedade, 26(93), 1273-1288., 2007)Kastrup, V. (2007). A Invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica. apresenta outro entendimento do sujeito cognoscente, que atende a uma política inventiva da cognição. Nesse caso, a compreensão epistemológica é de que cognição, objeto e conhecimento emergem do encontro, sendo a subjetividade processo e produto de práticas pedagógicas. Não há de antemão uma estrutura cognitiva estável receptáculo dos conhecimentos. Todavia, sendo a cognição e o sujeito emergentes das práticas, estas que reincidem em sistemas input-output acabam por conformar essa subjetividade previsível e já conhecida de tendência adaptacionista. O potencial inventivo, entretanto, está sempre presente em virtualidade, dado ser a invenção condição da cognição.

Por isso, para que se implemente uma política inventiva, é necessário “conceber práticas que viabilizem o desencadeamento de processos de problematização que não se esgotem ao encontrar uma solução” (Kastrup, 2005Kastrup, V. (2005). Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir mestre. Educação e Sociedade, 26(93), 1273-1288., p. 1282). Sujeito, mundo e a própria cognição são transformados incessantemente no processo de aprendizagem – que deve ser entendida como experiência de estranhamento e suspensão, a qual se interpenetra com o gesto imprevisível de criação. Só assim, o professor em formação se movimenta num devir-mestre, em que a formação não se restringe nem se encerra nas respostas aos problemas colocados ou no acúmulo de técnicas, metodologias e conceitos, ideias dissociadas de sua prática e de sua vida. Devir-mestre é estar sempre inacabado como professor, propenso a criar e abrir novas dúvidas e perguntas a partir dos problemas colocados.

Como essas questões nos ajudam a pensar o ensino de psicologia na formação de professores? Como elas impactam as escolhas teóricas e as práticas curriculares? Como conceber experiências em psicologia da educação em consonância com uma política inventiva? Quais exercícios abrem para uma aprendizagem inventiva, quenão guardam as respostas nas próprias perguntas que formulamos e não se restringem ao reconhecimento e solução de problemas predeterminados? Quais experiências pedagógicas possibilitam aos futuros professores novas formas de conhecer e aprender?

Se aproximamos essas reflexões das proposições recentes no campo do cinema-educação que apontamos anteriormente, é nesse sentido que Xavier (2008, p. 17)Xavier, I. (2008). Um cinema que “Educa” é um cinema que nos faz pensar. Educação e Realidade, 33(1), 13-20. vai defender o combate às “imagens e sons que induzem a uma leitura pragmática geradora de reconhecimento do já dado e do que não traz informação nova, ou seja, do combate àquela forma de experiência na qual não se vê efetivamente a imagem e não se percebe a experiência”. Selecionar os filmes para exibir nos contextos educativos e quais abordagens e/ou atividades derivam destes é, portanto, uma tarefa de dimensões estética e política, porque diz respeito à manutenção ou não de determinada política cognitiva e também à conservação de uma hegemonia sobre aquilo que se vê, se inventa e compartilha (Rancière, 2009Rancière, J. (2009). A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org; Ed. 34.).

Assim, partindo das recentes proposições do campo do cinema-educação que desenvolvemos anteriormente e das pesquisas acerca do ensino de psicologia na formação dos professores, o que pretendemos descrever a seguir é uma alternativa pedagógica na relação com o filme que se aproxima de uma política inventiva da cognição – no que se refere ao ensino de psicologia – e de uma relação política e criadora com o cinema na educação, com o foco na imaginação e nas escolhas intuitivas e sensíveis do artista ao compor uma obra com vistas à formação estética do futuro professor. Não se trata de um método nem receita, mas de um exercício em que compartilhamos experiências de problematização, concordando com Kastrup (2005, p. 1287)Kastrup, V. (2005). Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir mestre. Educação e Sociedade, 26(93), 1273-1288. que “no domínio da formação é preciso encontrar estratégias de constante desmanchamento da tendência a ocupar o lugar do professor que transmite um saber”.

O filme: questões de cinema, de psicologia, de educação

Seus olhos viam e não olhavam; seus ouvidos ouviam e não escutavam nunca; e o órgão do tato, restrito à operação mecânica da apreensão dos corpos, nunca fora empregado para verificar a forma e a existência deles. Esse era enfim o estado das faculdades físicas e morais desse menino ….

(Itard, 2001Itard, J. (2001). Relatório feito a Sua Excelência o Ministro do Interior sobre os novos desenvolvimentos e o estado atual do Selvagem do Aveyron, 1806. In L. Banks-Leite, & I. Galvão (Orgs.), A educação de um selvagem. As experiências pedagógicas de Jean Itard (pp. 181-229). São Paulo: Cortez., p. 184).

O garoto selvagem (1969), de François Truffaut, narra a história real de um menino encontrado com cerca de 11 anos de idade nos bosques de Aveyron, sul da França, no final do século XVIII, e a tentativa de Jean Marc-Gaspard Itard em socializá-lo. O filme foi roteirizado a partir da leitura de dois relatórios oficiais elaborados pelo Dr. Itard, o médico pesquisador que acompanhou pessoalmente a educação do menino após sua captura.

Se os textos do relatório, escritos em 1801 e 1806, já nos convidam a análises e leituras interdisciplinares, expondo clássicas polêmicas do campo das ciências humanas, a forte impressão de realidade da cinematografia intensifica os questionamentos sobre quais são as particularidades que caracterizam o homem moderno e como as desenvolvemos. Com os personagens de Itard e Philippe Pinel, por exemplo, nos deparamos com a dualidade natureza x cultura (Itard atribui ao isolamento social do menino o não desenvolvimento da fala, do andar bípede, da escuta ativa, de hábitos culturais; enquanto Pinel o compara às crianças com deficiências mentais congênitas, maculando a capacidade de aprendizagem do menino); a figura de Madame Guerin (a governanta que cuida de Victor9 9 Nome que posteriormente será dado ao selvagem. ) nos leva a perguntas sobre o lugar do afeto e emoções nos processos de aprendizagem e socialização; polêmicas acerca da supremacia da razão, do desenvolvimento dos sentidos e da teoria do bom selvagem, e inevitáveis alusões à educação do “não civilizado” com a colonização das Américas e a imposição do cristianismo, seus “bons modos e costumes”, são imagens que nos convocam a pensar na multiplicidade humana, ainda que insistamos em legitimar apenas um modo de sentir, pensar e viver.

Atravessados por esses e outros olhares, os relatórios de Itard já foram analisados sob uma variedade de perspectivas teóricas, algumas mais enérgicas, outras mais compreensivas, mas todas críticas da postura do médico-pedagogo (Banks-Leite & Galvão, 2001Banks-Leite, L., & Galvão, I. (Orgs.). (2001). A educação de um selvagem. As experiências pedagógicas de Jean Itard. São Paulo: Cortez.). No entanto, segundo Cordeiro (2006)Cordeiro, A. (2006). Relações entre educação, aprendizagem e desenvolvimento humano: as contribuições de Jean Marc-Gaspard Itard (1774-1838). Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo., ainda são poucos os estudos brasileiros sobre o trabalho de Itard.

Se por um lado ele é crucificado pela emblemática postura positivista na educação do menino, por outro se reconhece nele a desnaturalização do fenômeno psicológico ao se propor, como herdeiro da ciência de seu tempo, ensinar ao menino hábitos e comportamentos humanos, com especial ênfase na aprendizagem da fala. Ainda que isso o afaste, num primeiro olhar, de uma visão essencialista, seus métodos acabam por revelar uma compreensão do humano restrita ao europeu branco centrado numa racionalidade instrumental. Por esses motivos, Lajonquière (2001, p. 109, grifo do autor)Lajonquière, L. (2001). Itard Victor! Ou do que não deve ser feito na educação das crianças. In L. Banks-Leite, & I. Galvão (Orgs.), A educação de um selvagem. As experiências pedagógicas de Jean Itard (pp. 105-116). São Paulo: Cortez, 2001. considera Itard “um verdadeiro pioneiro daquilo que chamamos o ‘discurso (psico)pedagógico hegemônico’ na atualidade”.

Nesse contexto, nos remetendo ao trecho do relatório que abre este artigo, podemos nos perguntar: seus olhos viam e não olhavam o quê? Seus ouvidos ouviam e não escutavam o quê? Seu tato não sentia o quê? Observa-se que todas as pontuações de Itard acusam um déficit em relação a um modo de ser característico da civilização urbana contemporânea. O que pode ser afirmado em Victor é o que se pretende retirar dele: o que há de “selvagem”.

O que essas posturas pedagógica e psicológica, mas sobretudo política, revelam de nossa relação com a infância e com subjetividades outras para além desse e de tantos outros casos de “crianças selvagens”10 10 Um frenesi científico e curiosidade popular sempre acompanharam histórias de pessoas isoladas do convívio social denominadas “crianças selvagens”. Outros casos reais conhecidos são: Kaspar Hauser, as gêmeas Amala e Kamala, encontradas na Índia em 1920, Oxana Malaya na Ucrânia em 1991 (a garota cachorro), Marcos Rodrigues Pantoja (espanhol que afirma ter vivido 12 anos com lobos afastado da convivência humana), Genie (Susan Wiley), encontrada em 1970, Rochom, Natasha (a menina que late), na Sibéria em 2009. ? De modo geral, o que elas revelam de nossa compreensão sobre o humano?

Recordemos que Truffaut tomou como referência um relatório técnico para contar a história, colocando em evidência a perspectiva do adulto sobre a criança. Afinal, ao longo do filme, temos acesso direto aos pensamentos e reflexões de Itard, que, algumas partes, são extratos fidedignos de seu relatório original. Se chegamos ao menino e às suas emoções, é sempre pelas observações de seu tutor: “Victor se mostra reconhecido pelos cuidados que se têm com ele, suscetível de uma amizade carinhosa, sensível ao prazer de agir certo, envergonhado de seus enganos e arrependido de suas impetuosidades” (Itard, 2001Itard, J. (2001). Relatório feito a Sua Excelência o Ministro do Interior sobre os novos desenvolvimentos e o estado atual do Selvagem do Aveyron, 1806. In L. Banks-Leite, & I. Galvão (Orgs.), A educação de um selvagem. As experiências pedagógicas de Jean Itard (pp. 181-229). São Paulo: Cortez., p. 229). Mas o que será que ele realmente sentia, percebia, experimentava? Do que era capaz? Quais eram suas virtuosidades?

Podemos afirmar que o filme enquadra o olhar adulto sobre esse acontecimento, porque tem como referência de roteiro o relatório de Itard? Que outros filmes poderiam ser produzidos a partir desse mesmo relatório? Ou quantos “relatórios” poderiam ser escritos a partir da experiência do encontro com Victor? Que outras narrativas e imagens sobre o encontro com uma “criança selvagem” poderiam ser colocadas em circulação? Afinal, o que diria Victor de tudo isso se pudesse falar?

Na experiência de que aqui tratamos, essas problematizações foram levantadas em um curso de psicologia da educação para alunos de licenciaturas variadas (história, ciências sociais, artes, filosofia, pedagogia, matemática, educação física) e foi proposto à turma o exercício de imaginar que Victor pudesse contar/escrever um relatório sobre o acontecimento, legitimando a imaginação como função humana na construção do conhecimento (Vigotski, 2012Vigotski, L. (2012). Imaginación y creación en la edad infantil. Lanús Oeste: Nuestra América.). Os alunos tiveram duas semanas para pensar e criar a proposta. Não era necessário que escrevessem um relatório, apenas que tomassem a experiência de Victor como referência para descrever o que havia acontecido e imaginar que outras imagens, outros filmes, outras cenas e outros diálogos teriam sido gerados a partir disso.

Vale destacar que registros em vídeo não era uma obrigatoriedade do exercício. Entretanto, ao longo do curso, que durou um semestre letivo, juntamente com as leituras da área que já sinalizamos anteriormente, realizamos um clássico exercício de criação cinematográfica – denominado “Minutos Lumière”11 11 Exercício iniciático de criação cinematográfica realizado em diferentes projetos de cinema-educação, o qual propõe a reprodução das condições de filmagem dos inventores do cinematógrafo Louis Lumière e Auguste Lumière: filmar um plano de no máximo um minuto de duração, com a câmera fixa e sem utilização do zoom. Mais informações em: cinead. org e http://www.inventarcomadiferenca.org/wp-content/uploads/2017/05/Cadernos_do_Inventar_com_Diferenca.pdf – que envolve a aprendizagem de alguns conceitos de cinema, tais como plano e enquadramento. Isso provavelmente contribuiu para incentivar duas alunas, Giuliana e Renata, a optarem por filmar e exibir para a turma o que imaginaram. Os demais alunos elaboraram desenhos, poesias, narrativas variadas que não abordaremos aqui.

Assim, seguimos no próximo item com a análise dos dois filmes criados por cada uma das alunas levando em consideração tanto o produto audiovisual final que exibiram para a turma no dia da entrega, quanto comentários12 12 Na ocasião de apresentação de uma versão preliminar resumida deste texto no Seminário Temático de Cinema- Educação da Socine em 2017, foi solicitado às alunas que enviassem por e-mail comentários sobre o processo de produção do exercício. Mantive o nome verdadeiro das alunas, em respeito e reconhecimento do trabalho de criação e autoria que realizaram. Ambas foram consultadas e consentiram em participar fornecendo informações sobre o processo de produção de seus trabalhos com vistas a análise e publicações. que elas mesmas teceram sobre o processo.

E se o relatório fosse do Victor?

“A data de entrega estava próxima e eu não parava de pensar em como poderia ser o trabalho. Minha preocupação era não ter palavras. Fiquei imaginando como ele poderia ter vivenciado aquilo. Como ele não tinha uma língua, pensei que a melhor forma de mostrar seria através do que ele viu, e tentar passar por meio da imagem e do áudio suas sensações, já que ele não falava” (comentário de Giuliana sobre a realização de seu filme).

Figuras 1, 2 e 3
Três primeiros planos do filme de Giuliana.

“A próxima cena representa como o Dr. Itard era visto por Victor: ele era estranho, amorfo e os sons que emitia eram ininteligíveis. Esse vídeo eu fiz aqui em casa, filmando meu pai através da porta de vidro jateado do banheiro … o Dr. Itard, que fala, fala, e não é compreendido, pois não está ‘entrando’ no mundo do Victor (comentário de Renata sobre realização de seu filme).

Figuras 4, 5 e 6
Planos do filme de Renata comentados por ela.

As duas alunas, ao contarem sobre as primeiras decisões para a criação das imagens, descrevem um momento precedente à escolha do que filmar, de paralisação e delicadeza na tentativa de compreender uma perspectiva com a qual aparentemente não compartilhamos signos. Ambas partem da ausência de fala de Victor como uma diferença que, em seus juízos, deveria estar marcada nesse relato imaginário. Sua não-fala age como um desafio que “paralisa” ao mesmo tempo em que impulsiona escolhas inventivas.

Uma primeira problematização – que podemos entender como um breakdown – causada pelo exercício pode ser vista nessa reflexão das alunas, quando o pensamento é interrompido pela ausência de respostas prontas e vagueia na busca de invenções criativas. “O conceito de ‘perturbação’ ou de ‘breakdown’ responde pelo momento da invenção de problemas, que é uma rachadura, um abalo, uma bifurcação no fluxo recognitivo habitual” (Kastrup, 2005Kastrup, V. (2005). Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir mestre. Educação e Sociedade, 26(93), 1273-1288., p. 1276).

Desconhecendo discussões da linguagem e história do cinema, elas demonstram perceber sensivelmente uma narrativa clássica predominante nos filmes, a “forma cinema” e a situação particular que a indústria cinematográfica inventou para sua fruição (Parente, 2009Parente, A. (2009). A forma cinema: variações e rupturas. In K. Maciel (Org.), Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.) – que se expressa em uma estrutura linear correspondente ao encadeamento da fala e a qual não queriam reproduzir, a fim de serem fiéis à subjetividade de Victor. Como filmar, então, sentimentos, sensações e emoções pré-simbolizados? Essa parece ser a pergunta que elas se fazem. Como usar a linguagem do cinema para expressar uma mente sem linguagem?

Indagações que tangenciam dimensões de ordens estética e técnica presentes no campo do cinema experimental. Experimental é a vida de Victor e experimental foi também o cinema com o qual seus filmes dialogaram. Uma perspicaz e intuitiva escolha, com uso de imagens interrompidas, planos fixos independentes e conceituais que abrem diferentes compreensões e sensações em vez de encadearem e encerrarem informações fatuais.

O assim chamado “cinema experimental” atende a um modo de relação com a câmera e o real, que, para muitos pesquisadores e artistas, é o próprio gesto que deu origem à sétima arte. Trata-se de um modo de produzir imagens a partir do manuseio e combinação de diferentes elementos cinematográficos: luz, sombra, sons, contrastes, texturas, e com diferentes suportes, como o vídeo, celulares, handcam, Super 8 etc.

Não tendo como meta a exclusividade de contar uma história, esse tipo de cinema visa, literalmente, a uma “experiência” com a câmera e com o mundo, produzindo imagens e sons difusos, instigantes, de contornos e formas que desconfiguram o real e confrontam nosso olhar de espectador acostumado a normas e protocolos. É um cinema que produz variações no modo de organizar as imagens em movimento, rompendo com a situação cinema convencional e compondo narrativas sensoriais (Gonçalves, 2014Gonçalves, O. (2014). Introdução. In Narrativas sensoriais. Ensaio sobre cinema e arte contemporânea (pp. 9-26). Rio de Janeiro: Circuito.).

Os filmes de Giuliana e de Renata apresentam essas marcas. Giuliana organiza uma imagem após a outra sem que elas tenham uma costura progressiva. O que elas parecem reunir é uma sensação comum, já que todas foram filmadas em ambiente externo e retratam paisagens e acontecimentos da natureza. São imagens-poesia sem espetáculo, que, ao serem filmadas, colocam as sutilezas e o ordinário do cotidiano no centro do enquadramento, ensinando-nos a olhar com beleza e admiração para uma pequena formiga a subir num tronco, para crianças que brincam na margem da praia num dia de chuva, para meninos jogando bola.

Mesmo no filme de Renata, que possui uma linearidade de acontecimentos, o modo como ela filma não é fatual nem informativo. A filmagem de seu pai sobre o vidro jateado, por exemplo, é bastante conceitual e não reproduz cena alguma do filme de Truffaut. O que ela parece transmitir é o embaçamento de nossa visão e o entendimento sobre Victor, servindo de alegoria da miopia cultural que nos acomete diante daqueles que não falam, não vestem, não comem, não são como nós. Uma expressão de imagem-sensação, que é ainda tencionada pelo limite do vidro entre ele e nós; uma comunicação ineficaz e bloqueada.

Assim também são as letras embaralhadas e amorfas que ela faz da palavra leite para expressar as cenas em que Itard tenta ensinar o menino a compreender o francês. Ainda que retrate em seu exercício episódios reais e repetitivos do filme, seu ponto de vista é a da experiência de Victor, a de uma interioridade. Articulando técnica e criatividade, Renata pixeliza letras escritas sobre um quadro branco para nos colocar em contato com outra subjetividade perspectiva. Por alguns segundos, temos a oportunidade de ver o que aqueles rabiscos tão significativos em nossa cultura representam para o menino.

Encontramos características experimentais não apenas nos filmes das alunas, mas também na postura delas diante da produção, o que talvez possa ser estimado como uma ressonância estética do exercício na formação. Há uma prática artesanal nos filmes, bastante comum também nessa qualidade de cinema, em que o realizador se ocupa de todas as etapas do processo e articula-se afetivamente com aqueles que convida a participar. Renata chamou seu pai para “interpretar” Victor atrás do box do banheiro e desenhou as letras em seu próprio quadro branco de estudo. Giuliana pediu ajuda a um amigo para editar as imagens que filmou. É o que o artista plástico e realizador audiovisual Cao Guimarães (2008, p. 2)Guimarães, C. (2008). Cinema de Cozinha. São Paulo: Sesc São Paulo; Sesc Vila Mariana. Recuperado de http://www.caoguimaraes.com/wordpress/wp-content/uploads/2012/12/cinema-de-cozinha.pdf
http://www.caoguimaraes.com/wordpress/wp...
chama de cinema de cozinha: “esta coisa que fermenta no tempo, que irradia e potencializa uma existência, o cinema que vem de dentro de casa, da luz da tarde que brilha no azulejo, do grão de feijão que cai da peneira …”.

Vale lembrar de outro artifício do vídeo experimental utilizado por Renata, que é a manipulação de imagens prontas filmadas por outros. Além de gravar em casa com seu próprio celular, ela retirou algumas imagens da internet, combinando-as com músicas e sons também do YouTube. A escolha dessas imagens e sons expressa um olhar e escuta atentos à experiência violenta de Victor, que ela entende como de fascinação, fertilidade e impacto. Não à toa, as imagens que abrem seu filme revelam ritmos, susto, agressividade e perseguição mais intensos do que no filme de Truffaut. Dessa forma, ainda que mantendo uma certa cronologia da história contada na obra de referência, com o filme de Renata acompanhamos os acontecimentos pelo avesso, isto é, pelo ponto de vista da “caça” e do aluno, e não dos caçadores ou do professor.

A palavra “leite” foi a primeira palavra que Victor falou. Coloquei então um vídeo (que peguei do YouTube) com a imagem em câmera lenta de um copo de leite transbordando, e uma peça de Bach. É uma leitura poética disso aqui que falei. É belo, é fascinante, transbordante, fértil, iluminado, é impactante, nos leva a uma experiência estética talvez de sublime que pode também ter acometido Victor

(Renata).

Identificamos que nos seus modos de filmar, as alunas se aproximaram de uma compreensão de cinema como composição de emoção e afetos (Machado, 2003Machado, A. (2003). O filme-ensaio. Concinnitas, 4(5), 63-75.). Assim, mesmo desconhecendo as pesquisas e proposições recentes no campo do cinema-educação, realizaram o que Mayor e Miranda (2015, p. 138)Mayor, A. L., & Miranda, C. (2015). Fronteiras do imaginário: cinema-poesia nas escolas de educação básica. In A. Fresquet (Org.), Cinema e Educação: a Lei 13.006 (pp. 132-139). Belo Horizonte: Universo Produções. chamam de cinema-poesia, “uma possibilidade de discurso com imagens e sons para a produção de sentido no reverso do cinema narrativo hegemônico”. Diante dos desafios da regulamentação da Lei nº 13. 006/2014, que obriga a educação básica a transmitir ao menos duas horas mensais de cinema nacional, diferentes autores vêm discorrendo sobre qual cinema deveria estar presente nas escolas e na formação dos professores e quais as formas e articulações possíveis para tanto. Na opinião das autoras:

A escolha dos filmes que devem povoar as salas de aula precisa caminhar no sentido da exceção, ou seja, da arte. Assim, a fruição estética do cinema pode ser trabalhada, na apresentação da sua linguagem, de suas diferentes formas de contar histórias com imagens e com sons e nas suas possíveis leituras, tornando a relação cinema/educação uma experiência artística

(Mayor & Miranda, 2015Mayor, A. L., & Miranda, C. (2015). Fronteiras do imaginário: cinema-poesia nas escolas de educação básica. In A. Fresquet (Org.), Cinema e Educação: a Lei 13.006 (pp. 132-139). Belo Horizonte: Universo Produções., p. 138).

Também Oliveira Júnior (2015)Oliveira Júnior, W. M. (2015). Uma educação e um cinema no terreno? O especial e as imagens verdadeiras em Fernand Deligny e Cao Guimarães. In A. Fresquet (Org.), Cinema e Educação: a Lei 13.006 (pp. 120-131). Belo Horizonte: Universo Produções., ao pensar as possibilidades do cinema na educação no contexto da Lei nº 13. 006/2014, se refere a artistas e filmes brasileiros que vêm apontando para a dissolução da narrativa como principal forma de fruição das imagens. Em suas análises, algumas dessas obras contribuem para dissociar as imagens que parecem “condenadas” à linguagem, abrindo espaço para os intervalos entre o mundo e as conclusões prontas sobre o real. “O que opera nesse modo de fazer cinema, nessa expansão do cinema pela vida afora (não só pela arte afora), pelo que está aí, é uma exigência no reparar dos detalhes e também na criação de vãos e passagens …” (Oliveira Júnior, 2015Oliveira Júnior, W. M. (2015). Uma educação e um cinema no terreno? O especial e as imagens verdadeiras em Fernand Deligny e Cao Guimarães. In A. Fresquet (Org.), Cinema e Educação: a Lei 13.006 (pp. 120-131). Belo Horizonte: Universo Produções., p. 129).

Agindo, portanto, na contramão de modos ordenados e condicionados de filmar, os comentários de Giuliana e de Renata nos indicam exatamente uma preocupação por imagens pré-linguagem que pudessem estar mais próximas de Victor e uma atenção refinada a singularidades de seu estilo de vida. Nesse processo de produção dos vídeos, quando Giuliana comenta que ficou imaginando como o menino teria vivenciado a situação e que tentou passar através da imagem e do áudio essas sensações, e quando Renata recombina imagens anteriormente isoladas da rede para expressar o que poderiam ser as sensações de Victor, elas fazem uso de funções basilares da atividade criadora: a imaginação e a recombinação, o que aponta uma atitude estética no processo do exercício, e não apenas em seu resultado (Vigotski, 2012Vigotski, L. (2012). Imaginación y creación en la edad infantil. Lanús Oeste: Nuestra América.).

Entendendo com Rancière (2009)Rancière, J. (2009). A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org; Ed. 34. que toda estética configura uma política, na medida em que a estética compartilha visibilidades e sensibilidades de, a partir de e para uma comunidade, outro aspecto que precisa ser abordado na postura das alunas é ao modo como tentaram se aproximar do universo de Victor. Seus comentários sobre o estopim para a produção inicial chama atenção para o cuidado que investiram na criação dessas imagens pela responsabilidade que pareciam sentir em olhar com os olhos do outro, exercitando um “outrar-se”, ou “descondicionamento” da nossa humanidade autocentrada e intuitivamente problematizando o olhar europeu sobre Victor como um não humano, o que Viveiros de Castro (2011, p. 904) chama de solipisismo – “problema constitutivo da modernidade ocidental, na qual pensamos que o outro não passa de um corpo sem alma”.

Teria sido isso o que Itard pensou de Victor? “Se pode dizer de certo modo que só diferia de uma planta pelo fato de que tinha, a mais que ela, a faculdade de se mover e de gritar”, escreveu afinal o “iluminado e inventivo (psico)médico”, como define ironicamente Lajonquière (2001, p. 106). Sob o ponto de vista de Itard, portanto, tudo a Victor precisava ser ensinado.

As alunas, por sua vez, parecem questionar essa perspectiva a ponto de uma delas inverter em seu trabalho a mão única do aprendizado. Se no filme Dr. Itard fica entusiasmado com Victor fazendo tarefas banais pela primeira vez (um banho, o corte de unhas, de cabelos, calçar sapatos, vestir roupas, usar talheres) – que representam nossa humanidade –, Giuliana é quem aprende a (re)ver com Victor – como se fosse a primeira vez – cenas ordinárias do cotidiano.

Decidi fazer alguns “Minutos Lumière” de bons momentos que esse filme me fez perceber que eu tinha. Diante de tantas tecnologias e pressa, deixamos de lado o que há de “selvagem” em nós. A beleza que a simplicidade carrega, viver sem se preocupar com bens materiais, tampouco com o tempo, as experimentações, perceber a riqueza de sabores e cores das plantas. Estas foram algumas das lições que aprendi com Victor (Giuliana).

Os comentários da aluna revelam o desenvolvimento de um olhar detalhado que aprendeu a ter a partir da simplicidade da vida de Victor. Um gesto que muitos cineastas atribuem também ao exercício do cinema, que ao filmar nos exige selecionar o mundo que fica dentro e fora do enquadramento, nos fazendo, então, ver e ouvir o que antes não víamos e criando uma moldura de destaque.

O caminho escolhido pela aluna parece expressar ainda sua abertura a um devir-mestre, já que se sentiu à vontade para não responder diretamente ao exercício proposto, e sim problematizar sua própria vida a partir do exercício colocado. Sua docência em formação não se conteve em responder à pergunta “E se o relatório fosse do Victor?”, porque esta lhe desdobrou novas perguntas, outros olhares, novas questões e perspectivas.

O apreço que as alunas demonstraram por Victor para a realização do exercício nos leva a pensar sobre a possibilidade de terem vivenciado o conceito de “perspectivismo”: cada povo é uma consciência do universo, do mundo. Nosso olhar “objeta” aquilo que vê, mas também somos objetados pelo olhar do outro. Diante do julgamento de que Victor não era civilizado, ele é objetado, não humano, mas as alunas se perguntam: e ele? Como vê? Como vê a si? Como nos vê? Como encontramos o outro? O que aprendo com ele?

Não se trata de cada espécie identificar a si mesma como uma humanidade culturalmente definida. O perspectivismo significa que cada espécie possui um modo particular de compreender a alteridade. Você não sabe o que o outro está vendo quando ele diz que está vendo a mesma coisa que você

(Viveiros de Castro, 2011Viveiros de Castro, E. (2011). O medo dos outros. Revista de Antropologia, 54(2), 885-917., p. 897).

Diferente de outros alunos, cujas respostas ao exercício tentaram de um modo folclórico e romantizado escrever e/ou falar “como se” fosse Victor, “colocando[-se] no lugar de Victor”, esses dois percursos audiovisuais que selecionamos parecem ter arriscado uma proximidade de outra qualidade com a alteridade. E arriscar não é metáfora, mas expressão do risco real que o encontro com o desconhecido implica.

De modo geral, o medo suscitado no encontro com o estranho em nossa cultura é motivo de eliminação, e isso fica claro no filme de Truffaut, no qual os personagens, diante do garoto selvagem, querem eliminá-lo. Parece ser algo insuportável. Seja uma eliminação para retirar dele o que o caracteriza (pelo processo de educação) ou uma supressão expressa em comportamentos hostis e agressivos, como quando esteve internado na escola de surdos. Como alguém tão parecido comigo é ao mesmo tempo incomunicável, intraduzível, revelador de modos de vida que ignoro?

Quando Giuliana, entretanto, diz ter aprendido com Victor, ela ensaia uma relação com a diferença e com a experiência do medo diante do estranho que se aproxima daquela estudada por Viveiros de Castro (2011, p. 889)Viveiros de Castro, E. (2011). O medo dos outros. Revista de Antropologia, 54(2), 885-917.: “Uma forma de medo que implica necessariamente a inclusão ou a incorporação do outro ou pelo outro como forma de perpetuação do devir-outro que é o processo do desejo nas socialidades amazônicas”. Nesse caso, o encontro com o estranho e o medo daí proveniente não são motivos de eliminação, mas de constituição de si, como no comentário de que Victor a ajudou a ver o que nela havia de selvagem, livre, simples – os bons momentos que tinha.

Créditos finais

Temos a hipótese de que o percurso desenvolvido com o exercício aponta perspectivas inventivas e estéticas no campo da psicologia, na formação de professores e em cinema-educação. Em primeiro lugar, no que se refere a conteúdos curriculares, ela dialoga com proposições epistemológicas que interrogam a naturalização da infância e do humano, e a díade autoritária adulto-criança, colocando em suspensão subjetividades dominantes.

Além disso, durante a análise observamos uma criticidade etnocêntrica na postura das alunas, a qual nos inclinou à busca de referências e conceitos em outros campos das ciências humanas e sociais, como a antropologia. Pensamos que este diálogo nos ajudou a ampliar os impactos do exercício na formação política e psicossocial das alunas e pode apontar para possíveis articulações curriculares e práticas interdisciplinares na formação de professores com o cinema.

Ainda no que diz respeito à formação de professores, os questionamentos suscitados com a proposta abrem perguntas que não possuem respostas prontas, que não se instalam em um saber predeterminado que o docente vai conferir se o aluno aprendeu, porque nem mesmo o docente poderia respondê-las. Trata-se de perguntas que, num primeiro momento, geram breakdowns (Kastrup, 2005Kastrup, V. (2005). Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir mestre. Educação e Sociedade, 26(93), 1273-1288.). Há muitos caminhos possíveis a serem percorridos a partir do exercício e eles demandam a imaginação, a intuição e a criação para além de processos recognitivos fixos em memorização.

Ao convocar a imaginação em uma atividade avaliativa, a proposta legitima essa função como constituinte do humano e da construção do conhecimento. Ao permitir que se convoquem outros atores a participar (lembrando que Renata convidou seu pai e Giuliana um amigo) e outros instrumentos e fontes de pesquisa (imagens prontas da internet), ela desintegra e subverte o modus operandi do fazer pedagógico individual e mnemônico.

Por último, as perguntas expressam outra qualidade de relação pedagógica e estética em cinema-educação, pois não se limitam a debates sobre o conteúdo do filme em si. Elas apontam para a possibilidade de outros filmes serem feitos a partir do que foi visto e de como elementos cinematográficos que o antecederam impactam em sua produção. São perguntas que tomam o filme e seu diretor como uma relação atravessada por escolhas, pontos de vista e afetos, sem neutralidade. Trata-se, portanto, de uma abordagem do cinema como arte e produto de uma época, de um contexto, de uma determinada política de visibilidade que nos permite perfurar abordagens do cinema “transparente”, aquele que diz retratar a realidade tal como ela é, na construção de uma aprendizagem e exercícios que nos auxiliem a compreender que as imagens constroem o real (Xavier, 2012Xavier, I. (2012). O discurso cinematográfico: entre a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra.).

Por fornecer elementos reais e polêmicos no campo “psi”, que remetem às nossas origens e à constante busca de compreensão da construção do fenômeno psicológico, o filme de Truffaut permite uma série de abordagens que não foram desenvolvidas neste texto, incluindo a relação com alguns autores trabalhados antes da proposta do exercício que foi nosso foco. Cientes de que há muitas outras possibilidades de estudos com esse filme, reconhecemos nosso recorte e limite no que aqui nos propomos compartilhar, destacando o desejo de que possamos conhecer outras experiências com essa e demais obras da sétima arte.

O que acontece durante a experiência da fruição estética coletiva em sala de aula com esse filme? O quão e como O garoto selvagem está presente nos cursos de psicologia e formação de professores? Que outras atividades se desdobram desse filme na ocasião de sua exibição? Que outras obras audiovisuais os professores de psicologia utilizam em suas aulas? Como trabalham com esses materiais?

Acreditamos que essas investigações são necessárias para contribuir com reflexões no pensamento crítico sobre o ensino de psicologia e para ampliar modos de relação com o cinema e com as artes em geral nas licenciaturas. É preciso, sem dúvida, uma discussão em torno dos conteúdos e teorias que constituem os currículos de psicologia na formação de professores, mas, especialmente, uma reflexão das práticas, no modo como lemos, estudamos, nos relacionamos com as teorias, aprendendo com o cinema e sua arte a não dissociar forma e conteúdo.

É um desafio, porque a questão da política cognitiva13 13 Para mais detalhes sobre política cognitiva, consultar Kastrup, V. (2007). A Invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica. tem menos a ver com o que se ensina e mais com o modo como se faz. Podemos ver muitos filmes ou ler sobre políticas de invenção e sermos extremamente cognitivistas, assim como podemos ter uma postura inventiva diante de textos herméticos.

O exercício proposto, feito de dúvidas, riscos e incertezas, foi uma travessia ao longo de todas essas questões. Reiteramos que ele não é um método nem receita, mas uma tentativa de criar oportunidades para uma experiência estética em que o próprio docente propositor precisa estar aberto a novas relações com o conhecimento, com os alunos, com a tarefa da formação e com o cinema na educação. Só assim garantimos que os alunos possam ensaiar suas próprias docências num exercício de experimentação e formação estética para sempre incompleto, sempre a se inventar.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Junior – revisao@tikinet.com.br
  • Revisão (inglês): Andreza Aguiar – andreza@tikinet.com.br
  • 4
    Agradeço aos colegas do Seminário Temático Cinema e Educação da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), pelas contribuições ao texto em sua versão de resumo expandido apresentado em 2017.
  • 5
    Neste artigo analiso a primeira edição desse exercício que foi realizado quando era professora substituta do Departamento de Fundamentos da Educação na Faculdade de Educação da UFRJ. Atualmente sou docente efetiva do Departamento de Ciências da Educação na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), onde continuo realizando e ampliando as possibilidades deste e outros exercícios com o cinema, lecionando psicologia da educação e outras disciplinas no campo da psicologia, do cinema-educação e da imagem-educação.
  • 6
    Os textos compõem algumas das sugestões teóricas do currículo da disciplina, tais como: a psicologia histórico-cultural de Vigotski, incluindo seus estudos sobre linguagem e imaginação, leituras sobre aprendizagem por condicionamento a partir do principais autores behavioristas e o ensino centrado no aluno, com destaque para as atitudes de facilitação da aprendizagem em Carl Rogers. Neste artigo, não aprofundaremos esta parte das aulas, apenas o exercício final. Vale ressaltar que na ocasião do exercício aqui analisado, a turma já havia estudado essas referências antes.
  • 7
    Como tem sido compartilhado em trabalhos apresentados nos Seminários Temáticos de Cinema-Educação da Socine, do Colóquio de Cinema e Arte da América Latina (Cocaal), e de encontros do Seminário de Educação da Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual (RedeKino) na Mostra de Cinema de Ouro Preto (CineOP) – três dos principais eventos de cinema-educação atualmente no Brasil. Mais informações em: http://www.socine.org/; https://cocaal2018.wordpress.com/2018/05/07/cinema-audiovisual-e-educacao/; e http://cineop.com.br/programacao-4/seminario?category=3
  • 8
    Para leituras críticas em torno da medicalização de crianças e jovens com supostos transtornos de aprendizagem e atenção, consultar Lima, R. C. (2005). Somos todos desatentos?: o TDA/H e a construção de bioidentidades. Rio de Janeiro: Relume; Caliman, L. V. (2009). A constituição sócio-médica do “fato TDAH”. Psicologia & Sociedade, 21(1), 135-144; e Meira, M. E. M. (2012). Para uma crítica da medicalização na educação. Psicologia Escolar e Educacional, 16(1), 135-142.
  • 9
    Nome que posteriormente será dado ao selvagem.
  • 10
    Um frenesi científico e curiosidade popular sempre acompanharam histórias de pessoas isoladas do convívio social denominadas “crianças selvagens”. Outros casos reais conhecidos são: Kaspar Hauser, as gêmeas Amala e Kamala, encontradas na Índia em 1920, Oxana Malaya na Ucrânia em 1991 (a garota cachorro), Marcos Rodrigues Pantoja (espanhol que afirma ter vivido 12 anos com lobos afastado da convivência humana), Genie (Susan Wiley), encontrada em 1970, Rochom, Natasha (a menina que late), na Sibéria em 2009.
  • 11
    Exercício iniciático de criação cinematográfica realizado em diferentes projetos de cinema-educação, o qual propõe a reprodução das condições de filmagem dos inventores do cinematógrafo Louis Lumière e Auguste Lumière: filmar um plano de no máximo um minuto de duração, com a câmera fixa e sem utilização do zoom. Mais informações em: cinead. org e http://www.inventarcomadiferenca.org/wp-content/uploads/2017/05/Cadernos_do_Inventar_com_Diferenca.pdf
  • 12
    Na ocasião de apresentação de uma versão preliminar resumida deste texto no Seminário Temático de Cinema- Educação da Socine em 2017, foi solicitado às alunas que enviassem por e-mail comentários sobre o processo de produção do exercício. Mantive o nome verdadeiro das alunas, em respeito e reconhecimento do trabalho de criação e autoria que realizaram. Ambas foram consultadas e consentiram em participar fornecendo informações sobre o processo de produção de seus trabalhos com vistas a análise e publicações.
  • 13
    Para mais detalhes sobre política cognitiva, consultar Kastrup, V. (2007)Kastrup, V. (2007). A Invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica.. A Invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica.

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Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite. https://orcid.org/0000-0001-8889-750X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2019
  • Revisado
    29 Out 2019
  • Aceito
    04 Jan 2020
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