Acessibilidade / Reportar erro

Desenvolvimento profissional de professores de Educação Física iniciantes: continuidades/descontinuidades entre a formação inicial e a iniciação à docência 1 1 Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Lucas Giron (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br 3 3 Apoio: Pró-Reitoria de Pesquisa, Universidade Federal de Minas Gerais (PRPq); Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig); Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Resumo

Este artigo relata os resultados de uma pesquisa que tem como objetivo central analisar as percepções que professores de educação física têm sobre o percurso formativo na licenciatura, tomando como referência os desafios e dilemas enfrentados no período da indução. Esta pesquisa é de cunho qualitativo, de caráter descritivo. Participaram da pesquisa 13 professores/as formados pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com no máximo três anos de exercício profissional na escola. Os professores relatam que a formação inicial foi fundamental para o enfrentamento dos primeiros anos da profissão; todavia, apontam fragilidades no que tange à formação didático-pedagógica.

Palavras-chave
formação de professores; formação inicial; iniciação à docência; educação física escolar

Abstract

This article presents the results of a research whose main objective was to analyze the perceptions that Physical Education teachers have about the Teacher undergraduate degree, taking in to account the challenges and dilemmas faced in the period of induction. This is a qualitative descriptive research. Thirteen teachers trained by Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) participated in the study, with a maximum of three years of professional practice in the school. Teachers report that pre-service training was fundamental to the early years of the profession, but they point out weaknesses in pedagogical didactic training.

Keywords
teacher training; pre-service formation; teaching induction; physical school education

Introdução

Nas últimas décadas, o tema relativo aos processos de inserção profissional de professores iniciantes tem sido objeto de preocupação de autoridades políticas vinculadas ao campo da educação, bem como de investigadores no âmbito das universidades. Tal preocupação se justifica porque há muito tempo as pesquisas têm constatado que os primeiros anos de inserção na carreira docente são críticos – seja pelos altos índices de abandono da profissão, seja pelas dificuldades encontradas pelos professores iniciantes para crescerem, desenvolverem-se e aprenderem as artes da profissão.

Dentro desse quadro geral, a problemática da iniciação à docência tem sido analisada sob diferentes ângulos, notadamente: desenvolvimento da identidade profissional; caracterização da fase de indução; problemas relativos à retenção de professores novatos; apreciação da formação inicial em relação à experiência da inserção profissional; programas de acompanhamento de retenção de professores iniciantes; aprendizagem docente.

Tomando como referência a diversidade temática desse campo investigativo, será tratado, neste artigo, o tema relativo ao processo de desenvolvimento profissional de professores iniciantes com foco na relação de continuidade/descontinuidade entre dois fenômenos de marcação da carreira docente: (i) a formação inicial (licenciatura) na universidade e (ii) a inserção profissional de professores de educação física (EF) iniciantes no lócus escolar. Particularmente, pretende-se relacionar processos de formação inicial, de iniciação à docência e do caráter da ação docente de professores de EF.

O objeto central de investigação proposto para este artigo vincula-se aos debates teóricos nacionais e internacionais, que tratam dos ciclos de desenvolvimento profissional docente. Essa subtemática no campo dos estudos sobre a formação de professores entende que a carreira docente é constituída por um contínuo formativo marcado por ciclos ou fases de desenvolvimento profissional. Sobre esse prisma analítico, há de se reconhecer que os docentes, do ponto de vista do “aprender a ensinar”, passariam por diferentes etapas, que representariam exigências pessoais, profissionais, organizativas, contextuais, pedagógicas específicas e diferenciadas (Marcelo, 2006Marcelo, C. (2006). Desenvolvimento profissional docente: passado e futuro. Revista Ciências da Educação, (8), 7-22.).

Nas análises em torno do tema do desenvolvimento profissional docente, é recorrente a visão de que esse é um processo de longo prazo, que integra diferentes tipos de oportunidades e de experiências, planificadas sistematicamente, de forma a promover o crescimento e o desenvolvimento profissional dos professores (Villegas-Reimers, 2003Villegas-Reimers, E. (2003). Teacher professional development: an international review of literature. Paris: Unesco.). Essas experiências diversas de formação, mediante o contato com diferentes sujeitos, práticas, processos reflexivos e contextos, intencionais ou não, teriam o potencial de promover a melhoria da formação e do exercício da prática docente. Nessas definições, parte-se da ideia de que o desenvolvimento profissional docente é um processo contínuo que tem início antes de ingressar na licenciatura, estendendo-se ao longo de toda sua vida profissional e acontece nos múltiplos espaços e momentos da vida de cada um, envolvendo aspectos pessoais (geracionais), familiares, institucionais (formação escolar básica, formação superior) e socioculturais (a cultura de um país e/ou de um contexto regional) (Fiorentini & Crecci, 2008Fiorentini, D., & Crecci, V. (2008). Desenvolvimento profissional docente: um termo guarda-chuva ou um novo sentido à formação? Formação Docente, 5(8), 1-6.).

Tendo essa leitura inicial em perspectiva, a literatura sobre o tema vem tentando, nas últimas décadas, designar ou especular sobre a existência de fenômenos de marcação que caracterizariam a evolução da carreira docente. Alguns autores desse campo de investigação apontam que a carreira docente pode ser definida como um contínuo formativo marcado por ciclos ou fases de desenvolvimento profissional. Para Feiman-Nemser (1983)Feiman-Nemser, S. (1983). Learning to teach. Institute for Research on Teaching, (64), 1-40., tais ciclos seriam quatro: pré-formação, formação inicial, indução e formação em serviço. Entretanto, em outro artigo, a autora aponta que seriam três estas fases: a formação inicial, a indução (fase de transição entre a formação inicial e a entrada na profissão) e o desenvolvimento profissional (Feiman-Nemser, 2001Feiman-Nemser, S. (2001). Helping novices learn to teach: lessons from an exemplary support teacher. Journal of Teacher Education, 52(1), 17-30.). Nóvoa (2017)Nóvoa, A. (2017). Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1106-1133. comunga com a visão de que a carreira docente seria marcada por três fases: a formação universitária, a iniciação à docência e a estabilidade na profissão. Flores e Day (2006)Flores, M. A., & Day, C. (2006). Contexts which shape and reshape new teachers’ identities: a multi-perspective study. Teaching and Teacher Education, 22(2), 219-232. reforçam a tese de que existiriam também três fenômenos de marcação que têm forte influência sobre o processo de construção, desconstrução e reconstrução da identidade profissional dos professores: a influência anterior à experiência de formação profissional, a formação acadêmica/profissional inicial (licenciatura) e o exercício profissional nos contextos de ensino.

Nesse debate teórico sobre os ciclos e as fases de desenvolvimento profissional, pode-se perceber que, sobre determinado ponto, há certo consenso de que a formação inicial e a iniciação à docência são dois momentos formativos singulares da trajetória dos docentes e potencialmente determinantes na construção de sua história profissional, atuando de forma a influir no tipo de relação a ser estabelecida com o trabalho. Tendo como referência esse pressuposto teórico, desenvolveremos, na parte seguinte do artigo, reflexões sobre esses dois momentos da trajetória de formação e atuação dos professores, com o objetivo de problematizar os processos de continuidade/descontinuidade entre esses dois momentos da trajetória profissional dos docentes.

Formação inicial versus iniciação à docência?

Como pudemos ver até aqui, o debate sobre o tema do desenvolvimento profissional docente traz embutida a ideia de evolução e continuidade que supera a tradicional e corrente justaposição entre formação inicial e formação contínua dos professores. Todavia os diagnósticos nacionais e internacionais revelam que a realidade é de evidente descontinuidade entre as experiências de formação inicial, os dilemas profissionais e os processos de aprendizagem docente que se engendram na iniciação à docência.

A discussão sobre a necessidade de investir em políticas e ações que garantam certa continuidade no processo de desenvolvimento profissional dos professores está largamente presente no debate teórico no campo da formação de professores e em relatórios internacionais de avaliação das políticas educacionais de governos. Em ambos os campos de reflexão tem se colocado em questão a qualidade e a pertinência dos modelos formativos dos cursos de formação inicial e de políticas de indução. De maneira geral, nota-se grande insatisfação, por parte tanto das instâncias políticas como da classe docente em exercício, acerca da capacidade de resposta das atuais instituições de formação às necessidades da profissão docente. As críticas que as consideram como tendo uma organização burocratizada, em que se assiste a um divórcio entre a teoria e a prática, uma excessiva fragmentação do conhecimento ensinado e um vínculo tênue com as escolas, estão a fazer com que algumas vozes proponham a redução temporal da formação inicial e o incremento da atenção dada ao período de inserção profissional dos professores (Cochran-Smith & Fries, 2005Cochran-Smith, M., Fries, K. (2005). Researching teacher education in changing times: Politics and paradigms. In M. Cochran-Smith, & K. Zeichner (Eds.), Studying teacher education: The report of the AERA panel on research and teacher education (pp. 69-107). Washington: American Educational Research Association.).

No Brasil, os estudos realizados sobre a formação inicial oferecida nas instituições superiores não é muito diferente do diagnóstico internacional. As pesquisas sobre os cursos e as licenciaturas brasileiras têm mostrado uma série de dilemas e limites que dificultam o desenvolvimento de ações de formação em sintonia com os desafios colocados pela realidade da escola e do trabalho docente no Brasil: a separação entre disciplinas de conteúdo e disciplinas pedagógicas; a dicotomia bacharelado e licenciatura (decorrente da desvalorização do ensino na universidade, inclusive pelos docentes da área de educação); a desarticulação entre formação acadêmica e realidade prática de escolas e professores, que dedicam parte exígua de seu currículo às práticas profissionais docentes e às questões da escola, da didática e da aprendizagem escolar; e o descaso com os estágios supervisionados, que acabam não se constituindo em práticas efetivas e fonte de reflexão sobre ações pedagógicas para os estagiários (Diniz-Pereira, 2011Diniz-Pereira, J. E. (2011). O ovo ou a galinha: a crise da profissão docente e a aparente falta de perspectiva para a educação brasileira. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 92(230), 34-51.; Gatti, 2014Gatti, B. A. (2014). A formação inicial de professores para a educação básica: as licenciaturas. Revista USP, (100), 33-46. Recuperado de https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i100p33-46
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036....
).

Esse diagnóstico sombrio sobre a qualidade da formação obtida nas licenciaturas e sua questionável repercussão no processo de desenvolvimento profissional dos professores é referendado em relatórios internacionais de organismos multilaterais, como se pode verificar nas conclusões do relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2006Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. (2006). Professores são importantes: atraindo, desenvolvendo e retendo professores eficazes. São Paulo: Moderna.):

As etapas da formação inicial, inserção e desenvolvimento profissional deveriam estar muito mais inter-relacionadas, de forma a criar aprendizagens coerentes e um sistema de desenvolvimento da profissão docente. O assumir a perspectiva de aprendizagem ao longo da vida obriga a maioria dos países a darem um maior apoio aos seus professores nos primeiros anos de ensino e a proporcionarem-lhes incentivos e recursos para um desenvolvimento profissional contínuo. De uma maneira geral, seria mais adequado melhorar a inserção e o desenvolvimento profissional dos professores ao longo da sua carreira, em vez de aumentar a duração da formação inicial. (p. 13)

Por contraponto a essa visão pessimista, que chega a relativizar a importância da formação inicial como etapa fundamental do processo contínuo de tornar-se professor, há autores que têm defendido a tese de que esse ciclo de formação pode ser fundamental ao enfretamento dos dilemas da inserção profissional em etapas posteriores da carreira docente. Sobre isso, Berliner (2000)Berliner, D. C. (2000). A personal response to those who bash teacher education. Journal of Teacher Education, 51(5), 358-371. refuta parte das críticas que habitualmente se faz à formação inicial de professores (que para ensinar basta saber as matérias, que ensinar é fácil, que os formadores de professores vivem numa torre de marfim, que as disciplinas de metodologia e didática são dadas de forma superficial, que no ensino não há princípios gerais válidos etc.). Do ponto de vista do autor, são críticas não isentas que refletem uma visão bastante limitada sobre a contribuição da formação inicial para o desempenho dos professores. Para o autor, dá-se pouca atenção ao desenvolvimento dos aspectos evolutivos do processo de aprender a ensinar, desde a formação inicial até a inserção e a formação contínua.

A relevância das experiências de formação nas licenciaturas, tanto a inserção nos primeiros anos da profissão (período da indução) como o desenvolvimento contínuo na profissão, é retratada em um conjunto significativo de pesquisas nacionais e internacionais. Análises feitas em diversos programas de formação inicial têm apontado que esse tempo e locus de formação podem proporcionar: o desenvolvimento da identidade docente e/ou de uma identidade docente mais positiva; o refinamento da percepção do senso de autoeficácia docente no interior da sala de aula; o desenvolvimento da capacidade de reflexão desenvolvida em meio ao encorajamento de ações de pesquisa em situações práticas; experiências de estágio capazes de apresentar leituras mais realísticas sobre a escola e o trabalho docente que fundamentariam escolhas mais seguras sobre a continuidade ou não na carreira docente; e experiências de compartilhamento de autobiografias dos professores e estudantes capazes de ressignificar a percepção inicial sobre a docência e da função social da escola (Barreto, André, & Passos, 2012Barreto, G., André, M., & Passos, L. F. (2012). O papel das práticas de licenciatura no desenvolvimento profissional de professores em início de carreira. In Anais do III Congreso Profesorado Principiante e Inserção profesional a la docência. Recuperado de http://congressoprinc.com.br/artigo?id_artigo=263.
http://congressoprinc.com.br/artigo?id_a...
; Beauchamp & Thomas, 2009Beauchamp, C., & Thomas, L. (2009). Understanding teacher identity: an overview of issues in the literature and implications for teacher education. Cambridge Journal of Education, 39(2), 175-189.;).

Mesmo reconhecendo os limites da formação inicial como momento de simulação e antecipação da realidade profissional, há que se reconhecer que ela exerce papel importante e insubstituível no processo de desenvolvimento profissional dos professores, pressuposto radicalmente diverso daquele que alguns grupos ou instituições têm sugerido. Como lembra Gatti (2014)Gatti, B. A. (2014). A formação inicial de professores para a educação básica: as licenciaturas. Revista USP, (100), 33-46. Recuperado de https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i100p33-46
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036....
,

Os professores desenvolvem sua condição de profissionais, tanto pela sua formação básica na graduação, como por suas experiências com a prática docente, iniciada na graduação e concretizada no trabalho das redes de ensino. Mas é preciso ressaltar que esse desenvolvimento profissional parece, nos tempos atuais, configurar-se com condições que vão além das competências operativas e técnicas associadas ao seu trabalho no ensino, tornando-se uma integração de modos de agir e pensar, implicando um saber que inclui a mobilização não só de conhecimentos e métodos de trabalho, como também de intenções, valores individuais e grupais, da cultura da escola; inclui confrontar ideias, crenças, práticas, rotinas, objetivos e papéis, no contexto do agir cotidiano, com as crianças e jovens, com os colegas, com os gestores, na busca de melhor formar os alunos, e a si mesmos. Aprendizagens iniciais, básicas, para a concretização dessa configuração deveriam ser propiciadas pelas licenciaturas, em sua graduação. (p. 36)

O consenso de que uma boa formação inicial tem papel fundamental a uma compreensão mais realística do trabalho docente nos leva a reconhecer que esse ciclo de formação profissional pode exercer, também, um papel fundamental na construção de experiências de indução que favoreçam a retenção de novos professores, bem como o seu pleno amadurecimento profissional. A relação de continuidade/descontinuidade entre esses dois fenômenos de marcação da carreira (formação inicial e indução) constitui um elemento crítico ao desenvolvimento profissional dos professores.

Isso porque o encontro com a realidade profissional é muitas vezes descrito na literatura em termos duros, como “crise com a profissão”, uma espécie de “batismo de fogo” (Kelchtermans & Ballet, 2002Kelchtermans, G., & Ballet, K. (2002). Micropolitical literacy: reconstructing a neglected dimension in teacher development. International Journal of Educational Research, 37(8), 755-767.). A entrada na profissão é designada também como “choque de realidade” e “choque de transição”. Tais termos são utilizados para se referir à situação que muitos professores vivem nos primeiros anos de docência, que corresponde ao impacto do contato inicial com meio socioprofissional e da ruptura da imagem ideal de ensino. Trata-se do colapso das ideias missionárias forjadas durante a formação dos professores, em virtude da dura realidade de ter de lidar com desafios oriundos da vida quotidiana na sala de aula; da relação com os pais e com os pares; da diversidade dos alunos e suas dificuldades de aprendizagem; e da falta de recursos e apoio da comunidade escolar. Em alguns casos, esse período traumático se estende por mais ou menos tempo; isso dependerá da assimilação e da compreensão da realidade complexa que o professor tem de enfrentar (Veenman, 1984Veenman, S. (1984). Perceived problems of beginning teachers. Review of Educational Research, 54(2), 143-178.).

Tal dimensão de crise na vida profissional experimentada pelos professores iniciantes é motivada por aspectos de ordem pessoal (baixo comprometimento com a profissão em função de uma escolha equivocada da carreira), falta de apoio da comunidade escolar e de suporte administrativo, inexistência de projetos de indução (acompanhamento de novatos por professores mais experientes em projetos de mentoria), baixos salários, carência de recurso material nas escolas, multiplicidade de tarefas e funções institucionais a cumprir, poucas oportunidades de participar das decisões sobre o projeto escolar, formação profissional inadequada (baixa da qualidade na formação inicial).

Tal realidade tem criado obstáculos materiais e simbólicos à efetivação de uma ação formativa que deveria se caracterizar por contínua, sistemática e planejada. O que se constata nas pesquisas sobre o tema é que a responsabilidade de gerir a tarefa titânica de desenvolver-se na profissão docente fica a cargo, na maioria das vezes, da ação individual dos docentes, marcada por experiências de formação informais, quase sempre pontuais e de caráter assistemático. Nesse quadro de ausência de políticas orgânicas e perenes de acompanhamento de professores iniciantes, as experiências de formação inicial ganham, sob nosso ponto de vista, ainda mais relevância.

Assim, um dos elementos importantes a considerar nas análises sobre o fenômeno de transição entre a formação inicial e o período de indução é a percepção que os professores iniciantes têm dessa experiência. Quais descontinuidades mais evidentes marcam esse contínuo formativo que, em tese, deveria ser subsequente, complementar e orgânico? Os professores reconhecem nessa trajetória a existência de pontos de intercessão nesse processo contínuo de tornar-se professor? Se afirmativo, que conteúdos da formação reverberam a ponto de ser retomados e ampliados no período da indução? Em que medida tais conteúdos formativos contribuem para estabelecer, salvaguardar e restaurar a autopercepção da identidade como professor?

Sobre essas questões, vale citar a reflexão feita por Huberman (1992)Huberman, M. (1992). O ciclo de vida profissional dos professores. In A. Nóvoa (Ed.), Vida de professores (pp. 31-62). Porto: Porto Editora., quando o autor coloca em discussão a própria ideia da ordenação de uma vida profissional em sequências, pontuada por uma série de fases, que pressuporia um contínuo formativo. Ao contrário dessa crença na continuidade, o autor lembra que cada fase constitui essencialmente um novo estado, o que apontaria para uma descontinuidade. Em tese, cada fase prepararia a etapa seguinte e limitaria a gama de possibilidades que nela podem desenvolver-se, mas não pode, todavia, determinar a sua sequência. Ao mesmo tempo, o autor lembra que as várias sequências não são simplesmente vividas, fenomenologicamente, em termos de continuidade, como, por exemplo, a iniciação à docência que se segue à formação inicial.

A necessidade de perscrutar os meandros desse fenômeno de transição ou de sequência entre fases tão marcantes no processo de socialização profissional de novos professores nos parece ter relação direta com a necessidade crescente de reverter o quadro dramático de abandono funcional do trabalho docente, das dificuldades de retenção de novos professores nos sistemas de ensino.

Instigados por essa problemática, desenvolvemos uma investigação que teve o objetivo central de conhecer melhor a percepção que professores de EF iniciantes, formados pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), têm de seu percurso formativo no curso de licenciatura, tomando como referência para a formulação dessa apreciação os dilemas por eles vividos nos primeiros anos da profissão docente. Articula-se a essa ideia central outro elemento importante de análise: a condição de docentes formados em EF (licenciatura) e responsáveis pelo ensino desse componente curricular na escola. Com a pesquisa, buscamos encontrar respostas para as seguintes questões: quais são as interseções reconhecidas por esses docentes entre o percurso na formação inicial e a iniciação à docência? Que elementos de continuidade no processo de desenvolvimento profissional eles percebem? Quais descontinuidades mais evidentes entre esses dois ciclos de formação?

Metodologia

Os sujeitos da pesquisa

A pesquisa foi realizada com 13 licenciados formados (4 homens e 9 mulheres) pela Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO) da UFMG, nos últimos quatro anos (do final de 2009 em diante). É importante citar que tomamos três vieses centrais para a escolha dos sujeitos da pesquisa: tempo de inserção profissional (no máximo três anos de experiência com a docência em EF na escola)4 4 A literatura que trata dos ciclos de desenvolvimento profissional expressa certa divergência sobre qual seria o marco temporal da iniciação à docência. De forma geral, esse período é designado no debate teórico como um tempo de inserção profissional que vai do zero aos sete anos de trabalho. Optamos por trabalhar com o marco temporal proposto por Huberman (1992), de 2 a 3 anos de entrada na profissão, por entender que nesse período haveria maior grau de intensificação dos aspectos da “sobrevivência” (o choque do real) e da “descoberta” (aprendizagem docente). , nível educacional de inserção funcional (educação básica) e formação universitária (ter formação superior em licenciatura em EF na UFMG, independente do tempo de sua conclusão). As demais características dos sujeitos surgiram a posteriori, ou seja, o quadro final dos participantes da pesquisa teve um perfil de certa forma aleatório em alguns de seus aspectos (tempo de conclusão da licenciatura, natureza institucional das escolas, faixa etária dos professores, etapas da educação básica onde atuavam).

Ao final tivemos como sujeitos da pesquisa 13 professores/as, que tinham no máximo dois anos de inserção profissional na escola e com idade entre 23 e 27 anos; portanto, eram professores não apenas jovens na profissão, mas também em tempo de vida. No que trata dos aspectos do locus de inserção profissional, todos os participantes da pesquisa estavam inseridos nas redes públicas de ensino (municipal e estadual) e privadas da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

A opção por trabalhar com licenciados formados apenas em uma única instituição e numa mesma estrutura curricular teve como objetivo a produção de análises que visassem estabelecer relações mais críveis entre o currículo da formação inicial e sua repercussão ante os desafios colocados pelas situações de trabalho próprias de contexto de iniciação à docência em EF na escola. Com isso, teríamos parâmetros mais sólidos para analisar possíveis interseções entre formação universitária e período da indução, bem como identificar elementos que apontassem para a descontinuidade no processo de desenvolvimento profissional desses professores, tomados como referência esses dois ciclos de formação.

Técnica de coleta de dados

Entrevistas

Realizamos uma entrevista semiestruturada, construída levando em consideração quatro eixos aglutinadores: (i) a percepção sobre a iniciação à docência; (ii) as ações e as estratégias pensadas e realizadas pelos professores com vistas ao enfrentamento da realidade; (iii) as aprendizagens docentes mais significativas; e (iv) a relação entre a formação inicial e a iniciação à docência. Com as entrevistas, buscamos respostas para as seguintes questões: como os professores se apercebem da situação precisa perante a qual se encontram nesse momento da carreira? Como esses docentes pensam e agem mediante a experiência de iniciar a docência no campo da intervenção pedagógica em EF? Como percebem e apreciam a formação inicial (universitária), levando em consideração os dilemas, os desafios e as aprendizagens docentes experimentadas nos primeiros anos da profissão5 5 É importante frisar que todas as análises operadas no desenvolvimento desta pesquisa são de conteúdo e não de discurso. O material empírico coletado na investigação foi tratado como um meio de expressão dos sujeitos, pelo qual se buscou categorizar as unidades de texto (palavras ou frases) que se repetem, inferindo denominações analíticas que as representam. ?

Análise documental

O uso da análise documental nesta pesquisa objetivou ampliar e enriquecer a descrição da temática de estudo em questão. Cellard (1996)Cellard, A. (1997). L’analyse documentaire. In J. Pupart, J.-P. Deslauriers, L.-H. Groulx, A. Laperrière, R. Mayer, Á. P. Pires, … A. Giorgi, La recherche qualitative: enjeux épistémologiques et méthodologiques (pp. 295-316). Montreal: Gaëtan Morin. ajuda-nos a compreender melhor a importância da utilização de documentos em estudos de cunho sociológico quando afirma que o seu uso ajudaria a acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social. Graças aos documentos, pode-se efetuar um corte longitudinal que favorece a observação e a contextualização, os processos de maturação e evolução de indivíduos, grupos, conceitos, conhecimentos, comportamentos, mentalidades e práticas. A análise documental pode, assim, diminuir em muito o grau de influência exercido pela presença do pesquisador sobre o pesquisado e reduzir possíveis constrangimentos das observações de acontecimentos e comportamentos a estudar, eliminando a possibilidade de reação dos sujeitos pesquisados sobre a operação da coleta de dados.

Em nossa pesquisa, foi analisado um único documento: o projeto pedagógico do curso de licenciatura em EF da EEFFTO/UFMG. Para a análise desse documento, buscamos estabelecer um diálogo entre a percepção dos sujeitos sobre suas experiências de formação no curso de licenciatura – à luz dos desafios e dilemas enfrentados na entrada da profissão –, manifesto nas entrevistas, e o conjunto dos princípios pedagógicos expressos nas orientações descritas no texto do projeto curricular do curso de licenciatura em questão.

Alguns achados da pesquisa…

Com base na análise dos dados levantados na pesquisa, podemos, de forma inicial, dizer que não foi tarefa fácil construir categorias de análise que apontassem para aspectos comuns e, ao mesmo tempo, particulares das experiências do contínuo formativo dos 13 sujeitos da pesquisa. Tal dificuldade tem relação com o fato de que esses sujeitos tiveram trajetórias peculiares na formação inicial (mesmo sendo todos educados no mesmo currículo), bem como contextos singulares de inserção profissional no sistema de ensino. Não obstante a dificuldade de lidar com tal diversidade de percursos de formação e início da carreira docente, construímos alguns eixos analíticos que indicaram aspectos mais abrangentes dos dilemas, dos limites e das possibilidades que marcam os processos de desenvolvimento profissional desses professores.

De forma inicial, pedimos aos sujeitos da pesquisa que identificassem e descrevessem os principais desafios enfrentados nos primeiros contatos com o exercício da docência na escola. A esse questionamento inicial eles relatam que um dos dilemas profissionais que mais os mobilizam e os angustia tem relação direta com as situações que envolvem o tratamento didático dos conhecimentos específicos da EF, levando em consideração as diferentes etapas da educação básica e a singularidade dos alunos.

Tal estorvo é motivado, segundo os professores, por existirem poucas referências didáticas que possam auxiliá-los nesse processo de organização curricular da EF. A maioria das escolas nas quais esses professores trabalham não apresenta orientações ou prescrições rígidas nessa direção. Os professores relatam que, na EF, não há definição clara a priori de quais conteúdos serão trabalhados durante o ano, de como organizá-los no tempo escolar e num diálogo mais orgânico com o projeto escolar. Isso revela alto grau de autonomia dos professores de EF em relação ao tratamento dos conteúdos de ensino. Na maioria dos casos, não há, por parte dos seus pares nem do setor pedagógico da escola, cobrança rígida de prestação de contas, avaliação ou acompanhamento do trabalho desses professores. Consequentemente, não há necessidade de eles cumprirem determinado cronograma de transmissão de conteúdos em função de datas, dado o período das avaliações escolares ou de outras datas determinadas pelo calendário escolar.

Externamente às escolas, tal fato tem o seu correlato na medida em que se verifica que o mercado editorial de livros didáticos no campo da EF é ainda muito restrito (em quantidade e pluralidade). Assim, sem a presença do livro didático, o ato de planejar o ensino se apresenta como um dos maiores desafios para esses professores. Que conteúdos ensinar? Como organizar os conteúdos no tempo escolar? Quais os objetivos a alcançar? Qual a periodicidade para cada conteúdo? Como tratá-los segundo as diferentes fases da vida dos estudantes? Como relacioná-los com o projeto escolar?

Quando questionados sobre a contribuição da formação inicial ao enfrentamento desse dilema profissional, foi possível identificar uma primeira recorrência nas falas de nossos sujeitos de pesquisa: a dificuldade de grande parte dos professores das disciplinas de ensino dos conteúdos da EF (ensino de jogos, dança, lutas, ginásticas, esportes) de tratar didaticamente esses conteúdos levando em consideração a função social da escola básica; suas diferentes etapas e modalidades e também as características, as demandas e as necessidades dos estudantes. As narrativas a seguir expressam essa incompletude no processo de formação:

A questão aqui da escola de Educação Física, das disciplinas de ensino, ensino de dança, ensino de natação, ensino de lutas, não, eu não consigo dar nenhuma aula que eu aprendi no ensino lá na escola, isso é fato. O ensino aqui não é para a escola. O ensino aqui não é para o licenciado é para o bacharel, a gente não está próximo nem um pouco, nesse ensino que a gente vê aqui, nas disciplinas de ensino DI, lógico que você aproveita, que você mexe aqui, mexe ali, e leva alguma coisa para a escola, mas está muito longe, o que você aprende no ensino DI do que você pode trabalhar lá nas aulas de Educação Física. Falta…. Isso, porque, querendo ou não, aqui a gente deveria aprender, e não só aprender o que é o ensino de natação, não só aprender propriamente, mas, aprender que você deve fazer dessa forma com seus alunos, na escola você pode fazer assim, na escola você pode modificar isso, modificar aquilo e aqui não. A gente não era voltado para a escola não. Esse ensino DI.6 6 Essa é uma expressão utilizada por alunos e professores da universidade para designar as disciplinas de ensino de conteúdos específicos da EF (ensino de danças, ensino de jogos, ensino de lutas, ensino dos esportes, ensino das ginásticas). Muito pouco. Então eu acho que essa foi uma falha.

(Renata)

Acredito que a própria carência de aulas práticas, mas assim destinadas ao ensino escolar, porque aula prática a gente teve muito na faculdade, mas destinada ao ensino escolar, a uma turma, a uma série, a um ano, a uma idade, a um número x de alunos, isso a faculdade pecou muito. A gente sempre teve uma turma padrão pra poder dar aula, pra poder colocar em prática o nosso conhecimento, quando muito eram os próprios alunos, os próprios colegas de turma, então assim a gente não teve muita dificuldade e muitas, aconteceram muitas coisas que seriam próximas da escola na faculdade, no âmbito da faculdade. Entende?

(Samuel)

Esses relatos apontam para um primeiro epicentro de descontinuidade no percurso formativo desses professores. Pode parecer óbvia a ideia de que docentes com formação universitária completa tivessem, ao final de sua trajetória inicial de socialização profissional, incorporado ao seu repertório didático um conjunto de instrumentais reflexivos e operativos necessários ao enfrentamento dos desafios daquilo que configura o cerne da profissionalidade docente: o ensino7 7 Sobre esse ponto, Roldão (2007) destaca que a especificidade profissional do/a professor/a é a ação de ensinar, fazer com que outros aprendam os saberes. . Melhor dizendo, que os cursos de formação inicial tivessem ensinado como fazer aprender alguma coisa a alguém (Roldão, 2014Roldão, M. C. (2014). Currículo, didáticas e formação de professores: a triangulação esquecida? In M. R. Oliveira (Ed.), Professor: formação, saberes e problemas (pp.91-103). Porto: Porto.).

Uma primeira linha de análise sobre as razões que levam à produção desse desnível no percurso entre a formação universitária e o campo de inserção profissional dos professores de EF vincula-se à experiência que eles tiveram no currículo do curso de licenciatura na UFMG. Ao analisarmos a estrutura curricular do Projeto Pedagógico de Licenciatura em EF (PPL) da UFMG, pode-se perceber que houve a incorporação de boa parte dos princípios normativos contidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da Educação Básica (Brasil, 2002Brasil. Ministério da Educação. (2002, 18 de fevereiro). Resolução CNE/CP nº 1. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em Nível Superior, Curso de Licenciatura de Graduação Plena. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_02.pdf
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd...
).

Ao debruçarmo-nos sobre o PPL, fica evidente que tal projeto faz um esforço louvável para romper com a separação entre disciplinas de conteúdos e disciplinas pedagógicas. Nele fica evidente a tentativa de rompimento com a ideia, historicamente enraizada no currículo dos cursos de formação inicial, de que a formação de professores é de responsabilidade das faculdades de educação ou que licenciatura é sinônimo de disciplinas pedagógicas ministrada nessas unidades da universidade. No PPL em EF da UFMG, a Escola de Educação Física torna-se corresponsável (juntamente com a Faculdade de Educação – FaE) pela formação didático-pedagógica dos professores.

Ao verificarmos a estrutura curricular descrita no documento do PPL, fica evidente tal corresponsabilidade. Dentre os cinco eixos temáticos que constituem o PPL8 8 São estes os cinco eixos temáticos: Eixo 1: Conhecimento sobre a sociedade (CS); Eixo 2: Conhecimento sobre o ser humano (CSH); Eixo 3: Conhecimento científico-tecnológico (CCT); Eixo 4: Conhecimento da educação física (CEF); Eixo 5: Conhecimento pedagógico da educação física na educação básica (CPEF). , existe um denominado “Conhecimento pedagógico da educação física na educação básica”, que “abrange um conjunto de saberes didático-pedagógicos estruturantes da intervenção do professor, relacionados ao planejamento, orientação, realização e avaliação do ensino de Educação Física na Educação Básica” (UFMG, p. 39). Nesse eixo, estão contidas 26 disciplinas e estágios. A seguir encontra-se a lista dessas disciplinas:

Ensino de Educação Física na Educação Infantil; Ensino de Educação Física no Ensino Fundamental e Médio; Psicologia da Educação; Sociologia da Educação; Política Educacional; Didática de Licenciatura; Ensino de Ginástica; Ensino de Jogos, Brinquedos e Brincadeiras; Ensino de Ginástica Olímpica; Ensino de Voleibol; Ensino de Futebol; Ensino de Jogos, Brinquedos e Brincadeiras; Ensino de Futsal; Ensino de Atletismo; Ensino de Ginástica Rítmica; Ensino de Basquetebol; Ensino de Lutas; Ensino de Natação; Ensino de Danças Brasileiras; Danças Contemporâneas; Ensino de Capoeira; Ensino de Lutas; Análise Crítica da Prática (I, II e III) e Estágio.

(UFMG, p. 40)

Como se pode notar, há clara e manifesta intenção de não apenas fazer com que o tratamento do conhecimento didático-pedagógico dos professores seja garantido ao processo de formação dos estudantes, mas que tal experiência de formação possa ser compartilhada entre professores da EEFFTO e da FaE. É importante destacar que, das 26 disciplinas que compõem esse eixo curricular, somente seis estão lotadas na FaE, a ver: Psicologia da educação; Sociologia da educação; Política educacional; Didática de licenciatura; Análise da prática I e II. Além disso, das 405h previstas para o estágio obrigatório, 135h estão sob a responsabilidade de professores lotados na EEFFTO, e 270h com professores de EF lotados na FaE.

Mesmo reconhecendo que, no plano do currículo escrito, a EEFFTO, por meio do PPL, anuncia a intenção de assumir a sua responsabilidade no processo de formação didático-pedagógica dos licenciandos, no plano do currículo em ação, ainda existem ruídos no diálogo efetivo entre o conhecimento específico e o pedagógico. Ao contrastarmos o que está previsto no PPL com as falas dos nossos sujeitos de pesquisa, pode-se dizer que, no plano das experiências formativas nessas disciplinas, há desnivelamento, descontinuidade, incongruência entre como e o que se ensina nessas disciplinas e os desafios que se impõem aos docentes de EF nos primeiros anos da profissão. Parafraseando Michael Huberman (1992)Huberman, M. (1992). O ciclo de vida profissional dos professores. In A. Nóvoa (Ed.), Vida de professores (pp. 31-62). Porto: Porto Editora., fenomenologicamente, as experiências na formação inicial ligadas diretamente ao acesso aos conhecimentos do campo da formação didática pouco têm contribuído para potencializar um efetivo contínuo formativo.

Não temos muitos elementos empíricos para uma interpretação mais sólida e conclusiva sobre as razões que levam um conjunto significativo de disciplinas vinculadas à didática específica pouco contribuírem para o desenvolvimento evolutivo do aprender a ensinar. Uma primeira tentativa de explicação, mais genérica, advém da constatação de que há profundas diferenças entre os processos formativos na conjuntura de socialização profissional inicial na universidade e o contexto e as formas da aprendizagem docente próprias do período da indução. É importante reconhecer que estamos a falar de duas experiências de socialização profissional muito distintas. Portanto, há e haverá nesse aparente contínuo formativo situações incontornáveis de descontinuidade. A entrada na profissão pode envolver, ao mesmo tempo, a aprendizagem de novos conhecimentos, reflexões e práticas e o exercício de desaprender um conjunto de ideias e crenças. A palavra “desaprender” pode significar tanto um crescimento profissional não linear, mais sofrido e lento, quanto uma desconstrução/reconstrução desse processo de desenvolvimento na profissão. Tal contradição assinala não só o potencial, mas também a enorme complexidade inerente à formação continuada dos educadores (Cochran-Smith, 2002Cochran-Smith, M. (2002). Learning and unlearning: The education of teacher educators. Teaching and Teacher Education, 19(3), 5-28.).

Uma segunda tentativa de interpretação sobre os motivos não aparentes responsáveis por produzir descontinuidade entre esses dois momentos de desenvolvimento na carreira docente pode ter relação com a própria história de constituição do campo acadêmico da EF. Sobre isso, Bracht (1999)Bracht, V. (1999). Educação física e ciência: cenas de um casamento infeliz. Ijuí: Editora Unijuí. aponta que, a partir da década de 1960, a produção do conhecimento em EF no Brasil é fortemente impactada pelo fenômeno esportivo. Como decorrência, a produção acadêmica volta-se para o fenômeno esportivo. Assim, é a importância sociopolítica desse fenômeno que faz parecer legítimo o investimento em ciência nesse campo. Por sua vez, aqueles que atuam na área ou tem interface com ela privilegiam o tema esporte porque ele oferece as melhores possibilidades de acumulação de capital simbólico por via de seu testamento científico. Portanto, é a importância político-social do fenômeno esportivo (ou do desempenho esportivo do país em nível internacional) que confere legitimidade ao próprio domínio da EF. Nessa esteira, o esporte se impôs à EF como conteúdo e como sentido da e para a EF. Em decorrência dessa hegemonia no campo acadêmico, o discurso pedagógico na EF foi quase que sufocado pelos discursos da performance esportiva, literalmente afogado pela importância sociopolítica das medalhas olímpicas, ou pelo desejo, tornado público, por medalhas.

A história de constituição do âmbito acadêmico da EF descrita anteriormente explica, em certa medida, o seguinte paradoxo: o currículo do curso de licenciatura em EF da UFMG oferece aos estudantes um conjunto amplo e variado de disciplinas que tratam da didática específica – disciplinas essas majoritariamente ministradas por professores da área/unidade específica –, assumindo, desta forma, certo protagonismo na formação desses novos professores. Ao mesmo tempo, os nossos sujeitos de pesquisa relatam que tais disciplinas (ou a maior parte delas) têm tido dificuldade de contribuir efetivamente para a formação didático-pedagógica de seus licenciados. Uma explicação possível para esse paradoxo advém do fato de que boa parte dos docentes que ministram essas disciplinas de ensino dos conteúdos da EF constituiu sua trajetória de formação acadêmico-profissional sem vínculos efetivos com o teorizar sobre e com a prática pedagógica da EF na escola.

Essa história da formação acadêmico-profissional dos formadores de professores em EF cria entraves à mediação epistemológica entre os conhecimentos disciplinares, a finalidade curricular integradora e a cada aprendente na sua singularidade. Segundo Roldão (2017)Roldão, M C. (2017). Conhecimento, didáctica e compromisso: o triângulo virtuoso de uma profissionalidade em risco. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1134-1149.,

… sob pena de perder a possibilidade de eficácia no ato de ensinar: importa que didaticamente se ligue o conteúdo curricular científico a cada aluno na sua diversidade, tendo como orientação o terceiro elemento, a finalidade curricular global que dá sentido e intencionalidade aos restantes. Muitas das alegadas dificuldades de aprendizagem que alguns autores rebatizam de dificuldades de ensinagem originam-se justamente na dificuldade didática, por parte do professor, de operar harmoniosamente a mediação entre estes três universos epistémicos: o conhecimento do conteúdo científico específico a ensinar; o conhecimento do aluno na singularidade contextualizada do seu processo cognitivo de aprender; e o conhecimento do currículo e suas finalidades, enquanto construção e mandato social dirigido à equidade dos destinatários. (p. 1145)

Mesmo reconhecendo, de forma genérica, que há descontinuidade incontornável na passagem da vida de estudantes para a vida laboral, há que se reconhecer que o dado da realidade aqui narrado tem potencializado o fosso, as quebras e os desníveis estruturais nesse percurso do desenvolvimento profissional desses professores. A radicalização de tal descontinuidade pode tornar-se um elemento poderoso de intensificação de aspectos mais sofridos da experiência de iniciação à docência, fato que retardaria o amadurecimento profissional dos docentes, além de levá-los, muitas vezes, a processos traumáticos e irreversíveis de desinvestimento profissional e abandono da profissão.

Paralelamente a essas críticas à formação didático-pedagógica recebida no período da graduação, os nossos sujeitos de pesquisa reconhecem que essa trajetória de formação profissional foi de fundamental importância ao enfrentamento dos desafios colocados no período da iniciação à docência. A seguir encontram-se alguns dos relatos que apontam para certos aspectos positivos da experiência de tornar-se professor:

Essa própria necessidade de pesquisar que a UFMG me ensinou; então essa foi a maior contribuição de todas, de correr atrás de fontes, de saber se aquilo é bacana se não é, de ter esse bom senso, a UFMG ajudou muito, contribuiu muito. E eu acredito que uma coisa que pecou e é justamente por nós seres humanos sermos muito comodistas no caso, é não ter o planejamento pronto, porque eu acho que, quando a gente sai da faculdade, a gente fica meio com isso na cabeça, eu já tenho ali um plano de tal, de tal, de handebol, de ginástica, então é só eu chegar como se eu fosse aplicar aquilo. Então eu acredito que eu saí meio com essa ideia, olha eu já estou com tudo pronto e só eu pegar e passar e não tem nada a ver. Se você não reelaborar aquilo, não dar um sentido pra aquilo na escola que você está, aquilo ali não serve de nada. E, quando eu saí, eu tive essa impressão, de que eu estava com poucos planejamentos, estava com poucas ferramentas de trabalho. Depois que eu comecei a fazer, comecei a correr atrás, que isso com certeza foi a faculdade que me ensinou, o que pesquisar, tudo, aí eu acredito que eu superei esse…. Documentos que me auxiliassem na aula. Não necessariamente no conteúdo. Eu senti muita falta de ter um plano direcionado pro Infantil relacionado à ginástica. Então não tinha esse plano. Então eu tive que criar. Só que a faculdade me deu esse suporte pra poder pesquisar, onde que eu pesquisei, com o que, ter noção se ia dar certo ou não, se era adequado pra aquela idade ou não, isso a faculdade que me auxiliou.

(Samuel)

Hoje eu vejo que a formação me ajudou, e eu percebo que essa forma como eu me formei ajudou muito quando eu preciso de recursos ali no momento e eu consigo por causa da formação aqui. Essa própria, esse próprio estímulo à reflexão. Eu estou batendo muito nessa tecla porque ela é importante. Mas eu só percebi como importante quando eu fui para a prática.

(Ludmila)

Eu acho que as principais, talvez uma questão mais ampla da Educação Física se torne disciplina que seria a própria questão da legitimidade, as questões até de…. Não sei se estou conseguindo definir agora, mas essa questão de você entender o que é Educação Física. A discussão é isto: sobre o que é Educação Física, conceito de Educação Física, o que a Educação Física ensina, quais são os objetivos, quais são os conteúdos, várias situações que a gente teve, por exemplo, das disciplinas de estágio que eu acho que foram muito válidas, porque você não chega perdido. Você sabe…. Pelo menos eu funciono bem assim: eu preciso conhecer o amplo primeiro, eu me situo melhor assim. Eu acho que o conhecimento amplo…. Talvez o que foi proporcionado através de vários momentos, de discussões, de trabalhos, de textos que a gente teve na graduação.

(David)

Eu avalio positivamente a minha formação, principalmente no que diz respeito à compreensão da Educação Física como disciplina, como área que tem um conhecimento, eu acho que isso ficou bem claro. Eu consegui chegar na escola e saber o que eu tenho que fazer na escola, isso pra mim está claro, isso nunca foi um problema pra mim, na minha inserção no meu ambiente na escola.

(Ramona)

Esses extratos de falas dos professores tratam basicamente de três aspectos constituidores do processo de socialização profissional. Ou, nos termos utilizados por Nóvoa (2017)Nóvoa, A. (2017). Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1106-1133., aprendizagens significativas de ser, sentir, agir, conhecer e intervir como professor. Nesses extratos, os professores destacam que a experiência na graduação os ajudou a edificar um tipo de disposição à reflexão e à prática da pesquisa autônoma útil em um contexto de inserção profissional desprovido de referentes curriculares orientadores ao ensino da EF na escola (inexistência da cultura do livro didático). Nesse ambiente de grande incerteza e imprevisibilidade didático-pedagógica, desenvolver ou incorporar disposições iniciais de reflexibilidade constitui um tipo de saber profissional fundamental ao desenvolvimento de um lugar de autoridade no interior da profissão docente. Como bem lembra Roldão (2017)Roldão, M C. (2017). Conhecimento, didáctica e compromisso: o triângulo virtuoso de uma profissionalidade em risco. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1134-1149., exercer uma ação reflexiva sobre a prática é essencial na construção, na renovação e no desenvolvimento do conhecimento profissional.

Sobre esse primeiro aspecto da positividade da experiência formativa na graduação, é importante frisar que tais narrativas não se constroem no vazio, mas sim numa relação dinâmica com o ambiente institucional ao qual esses professores estavam imersos na graduação. Dizemos isso porque, numa universidade como a UFMG, cuja autoridade acadêmica foi constituída sobre o pressuposto da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, existem condições estruturais que possibilitam um campo mais amplo de participação em projetos que envolvam a prática em pesquisa e o contato com práticas de simulação da ação docente em projetos de extensão e de ensino.

Sobre esse ponto, citamos trechos do PPL de EF, que reconhece e estimula, como parte do processo de formação na graduação, o efetivo envolvimento em um conjunto variado de atividades acadêmicas, dentre elas: iniciação à pesquisa, à docência e à extensão; atividades de aprimoramento discente; participação em eventos acadêmicos de caráter científico ou artístico; participação em grupos de estudos9 9 No PPL de EF na UFMG, está previsto que “os alunos deverão cumprir um mínimo de 210 horas (mínimo de 14 créditos) em atividades Acadêmicas/Científicas/Culturais”. .

Soma-se a isso a obrigatoriedade da produção de trabalho de conclusão de curso (TCC), que “obrigatoriamente deverá versar sobre tema relacionado à Educação Física como componente curricular da Educação Básica” (Universidade Federal de Minas Gerais [UFMG], 2006Universidade Federal de Minas Gerais. (2006). Projeto pedagógico de licenciatura: graduação plena em Educação Física. Belo Horizonte: UFMG., p. 34). Paralelamente à experiência da prática da pesquisa que se realiza na concepção e no desenvolvimento de um TCC, os estudantes do curso de licenciatura em EF da UFMG têm, dentro da própria faculdade, a possibilidade de interagir com 15 grupos de pesquisa, todos eles desenvolvendo estudos sobre temáticas relacionadas ao campo acadêmico-científico da área.

Sobre esse contexto, é importante destacar que parte significativa dos 13 professores que participaram da pesquisa esteve envolvida em diversos projetos de ensino, pesquisa e extensão oferecidos na EEFFTO, como também fora dela. Além do previsto no currículo prescrito, essa pluralidade de possibilidades de experiência formativa parece ter sido fenomenologicamente vivida por alguns deles. Intuímos que quase todos os elogios direcionados à formação inicial recebida apontam para o fato de que, em menor ou maior grau, tal experiência de formação apresenta-se para esses sujeitos como fase preparatória para etapas seguintes do processo de socialização profissional.

Em relação a esse ponto, é importante ressaltar que precisaríamos desenvolver pesquisas de caráter mais longitudinal com o objetivo de acompanhar, por mais tempo, esses professores iniciantes para que pudéssemos observar mais de perto os termos dessa continuidade. Como lembra Huberman (1992)Huberman, M. (1992). O ciclo de vida profissional dos professores. In A. Nóvoa (Ed.), Vida de professores (pp. 31-62). Porto: Porto Editora., uma fase prepara para a seguinte e limita a gama de possibilidades que nela podem desenvolver-se, mas não pode determinar sua sequência. Essa inevitabilidade é construída a posteriori.

Um segundo aspecto presente nas falas dos professores estabelece relação com determinado fato que, para professores de outras disciplinas escolares, pode parecer estranho. Segundo alguns dos nossos sujeitos de pesquisa, a formação inicial foi fundamental porque teria possibilitado maior lucidez na identificação/compreensão do objeto de ensino dessa disciplina no currículo escolar. Em relação a campos disciplinares mais estabelecidos e/ou de alto status acadêmico/pedagógico (matemática, língua portuguesa, dentre outros), a definição dos conteúdos de ensino da disciplina é demarcada/veiculada, dentre outros motivos, pelo peso do mercado editorial do livro didático e pelo controle das políticas e da avaliação sobre o que vale ou não como conhecimento.

Tomando como referência a tese de Shulman (1987)Shulman, L. L. (1987). Knowledge and teaching: foundations of the new reform. Harvard Educational Review, 57(1), 1-22., que estabeleceu os elementos integradores do conhecimento docente, contribuindo para iluminar as diferentes dimensões mobilizadas pela prática do ato complexo de ensinar (contentknowledge, pedagogicalcontentknowledge, curriculum knowledge, studentsknowledge e contextknowledge), pode-se afirmar que a formação inicial proporcionou aprendizagens fundamentais à compreensão de algumas singularidades do conhecimento do conteúdo de ensino da EF, do conhecimento pedagógico do conteúdo e do conhecimento curricular. A importância de tais aprendizagens profissionais estabelece relação com transformações conceituais da área porque responde a três desafios/dilemas para os quais os professores de EF têm tido dificuldade de encontrar respostas mais lúcidas: obstáculos para construir um sentido para EF em consonância com a função social da escola – a falta de organização e explicitação do conhecimento que cabe à disciplina escolar (problemas de currículo) –; e problemas de ensinar velhos e novos conteúdos de acordo com que se espera de uma disciplina escolar, bem como lidar com a complexidade do conhecimento pelo qual é responsável (problemas didáticos) (Gonzalez & Fraga, 2012Gonzalez, F. J., & Fraga, A. (2012). Afazeres da educação física na escola: planejar, ensinar, partilhar. Erechim: Edelbra.).

A importância dessas aprendizagens docentes destacadas pelos professores iniciantes tem relação também com o processo de marcação de uma posição não apenas no plano pessoal, mas também no interior de dada configuração profissional (Nóvoa, 2017Nóvoa, A. (2017). Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1106-1133.). Para esse autor, é fundamental perceber que as posições não são fixas, mas dependem de uma negociação permanente no seio de determinada comunidade profissional. A posicionalidade é sempre relacional e é importante olhar para isso como uma tomada de atitude, isto é, como a afirmação pública de uma profissão.

No caso dos professores de EF iniciantes, a conquista dessa afirmação pública da sua condição como docente passa necessariamente pelo reconhecimento pessoal e público da EF como disciplina escolar. Tal conquista ganha contornos mais dramáticos, dado o seu lugar subalterno/marginal na hierarquia dos saberes escolares. A posição neste caso é uma condição ao desenvolvimento de um lugar no interior da profissão docente. Sobre essa análise, é importante ressaltar que a experiência de inserção profissional de professores de disciplinas tidas como de “segunda classe” é um dado a ser considerado em estudos que tratem dos processos de inserção profissional. Isso porque o mandato docente afeta também o seu status em razão da hierarquização das matérias ensinadas. Os professores em geral perseguem objetivos e se esforçam para respeitar os programas de ensino, mas esses não têm o mesmo valor para alunos, pais e os próprios professores. Desse modo, as hierarquias entre os saberes escolares se traduzem numa hierarquização profissional da identidade dos professores, que remete a práticas pedagógicas parcialmente diferentes de acordo com a motivação dos alunos, a pressão dos pais e a percepção dos colegas. O mandato de trabalho dos professores se diferencia, segundo uma lógica de poder simbólico das disciplinas ensinadas, um poder herdado ou apropriado por aqueles que as lecionam (Tardif & Lessard, 2005Tardif, M., & Lessard, C. (2005). O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes.).

Esse ponto merece destaque porque nossos sujeitos de pesquisa, quando questionados sobre os principais dilemas enfrentados nos primeiros anos de inserção profissional na escola, relatam situações de vulnerabilidade profissional advindas de posições críticas de desrespeito à sua condição de docente. Essa condição de desrespeito à autoridade docente tem relação direta com a percepção dos atores escolares de que a EF seria, grosso modo, um apêndice das demais disciplinas escolares. Isso porque, não raro, as ações de ensino dos professores de EF não são tidas como um trabalho pedagógico capaz de influir de forma significativa na formação dos estudantes, bem como sua sala de aula e seus objetos didáticos não são reconhecidos como tais. Além disso, as condições ambientais da sala de aula potencializam a falta de privacidade nas atividades de ensino, as baixas expectativas dos pares e da gestão escolar com as aprendizagens que se realizam nas aulas dessa disciplina e as tensões oriundas da relação com os alunos, que veem as aulas de EF como mero espaço de diversão. Nesse contexto de desrespeito profissional, mina-se a possibilidade de salvaguardar aquilo que faz com que os professores se mantenham e se desenvolvam na profissão docente: a percepção da própria eficácia profissional, a motivação, o compromisso e a satisfação com o trabalho (Machado, Bracht, Moraes, Almeida, & Silva, 2009Machado, T. S., Bracht, V., Moraes, C. A., Almeida, F. Q., Silva, M. A. (2009). As práticas de desinvestimento pedagógico na educação física escolar. In XVI Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte. Recuperado de http://congressos.cbce.org.br/index.php/conbrace2009/XVI/paper/view/630
http://congressos.cbce.org.br/index.php/...
).

Considerações finais

As reflexões trazidas neste texto buscaram enfrentar o desafio de compreender como professores iniciantes de EF, formados em licenciatura pela UFMG, olham sua formação inicial com base nos desafios e nos dilemas colocados pelo período de indução. Valendo-se do pressuposto de que a formação inicial e o período da indução representam dois marcadores temporais da carreira docente, buscou-se entender as continuidades/descontinuidades nesse aparente contínuo formativo.

Como primeiro ponto a destacar, o nosso estudo confirma o que as pesquisas nacionais e internacionais vêm demonstrando há décadas. Continua existir distanciamento entre a formação inicial oferecida nas universidades e o trabalho docente no interior das escolas. Destaca-se, na fala dos professores, a dificuldade em estabelecer pontes de conexão entre o conteúdo específico e o conhecimento pedagógico. Nessa linha, ressalta-se a dificuldade dos professores das disciplinas de ensino dos conteúdos de EF para produzir relação mais orgânica e qualificada com as demandas e as singularidades do chão da escola. Não obstante reconhecer avanços no PPL de EF na UFMG, com a unidade específica assumindo um protagonismo aparente, permanecem certas fraturas que impõem obstáculos ao processo de desenvolvimento profissional dos professores.

Há que se destacar que tais descontinuidades estabelecem relação com a história de constituição do campo acadêmico da EF, em especial a dificuldade de formar professores formadores com conhecimento profissional/acadêmico ancorado na problemática da EF escolar, que é difícil de ser solucionada, dada a fragmentação de temáticas e a hierarquização decorrente dessa fragmentação. Desse fato depreende-se outro que nos parece importante: os achados da nossa investigação chamam a nossa atenção para a necessidade de considerar o pertencimento dos professores a um determinado campo disciplinar como um dos elementos de análises do processo de desenvolvimento profissional dos docentes. Esse pertencimento parece criar condições específicas de entrada e empenho na carreira, sendo um elemento potente na construção de sentidos às fases de desenvolvimento da profissão.

Outro ponto a ressaltar do nosso estudo é a necessidade de ratificar o lugar insubstituível da formação inicial no processo de tornar-se professor. Como dito no transcorrer do texto, muitas das aprendizagens edificadas durante essa formação apresentam-se como fundamentais ao enfrentamento dos desafios que se colocam nos primeiros contatos com a profissão docente. Como descrevemos no artigo, coabitam no mesmo curso os anacronismos já amplamente descritos pela literatura na área, com polos dinâmicos que buscam implementar experiências formativas em amplo diálogo com a escola e seus atores e apostam no desenvolvimento de uma reflexibilidade marcada pela ação-reflexão-ação.

Ainda sobre esse ponto, é importante reconhecer que o ambiente universitário impõe um conjunto de entraves à formação dos professores: a licenciatura é um subproduto da vida universitária; a ênfase da pesquisa e da pós-graduação em detrimento do ensino; o baixo status da pesquisa em educação; o abismo entre a universidade e a escola pública e seus atores; a dificuldade de integração entre os diferentes campos disciplinares (Candau, 1997Candau, V. (1997). Universidade e formação de professores: que rumos tomar? In: V. Candau (Ed.), Magistério: construção cotidiana (pp 30-50). Petrópolis: Vozes.). Mesmo reconhecendo esse quadro desanimador, os nossos sujeitos de pesquisa lembram que a experiência universitária é também um campo de possibilidades à formação de professores. A possibilidade de participação em projetos de ensino, pesquisa e extensão, de forma voluntária, é reconhecida por eles como tempo de aprendizagens profissionais que não apenas ampliam as experiências formativas acessadas nas disciplinas, como possibilitam outras aprendizagens que nesses tempos/espaços mais formais do currículo não poderiam ser acessados.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Lucas Giron (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Apoio: Pró-Reitoria de Pesquisa, Universidade Federal de Minas Gerais (PRPq); Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig); Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
  • 4
    A literatura que trata dos ciclos de desenvolvimento profissional expressa certa divergência sobre qual seria o marco temporal da iniciação à docência. De forma geral, esse período é designado no debate teórico como um tempo de inserção profissional que vai do zero aos sete anos de trabalho. Optamos por trabalhar com o marco temporal proposto por Huberman (1992)Huberman, M. (1992). O ciclo de vida profissional dos professores. In A. Nóvoa (Ed.), Vida de professores (pp. 31-62). Porto: Porto Editora., de 2 a 3 anos de entrada na profissão, por entender que nesse período haveria maior grau de intensificação dos aspectos da “sobrevivência” (o choque do real) e da “descoberta” (aprendizagem docente).
  • 5
    É importante frisar que todas as análises operadas no desenvolvimento desta pesquisa são de conteúdo e não de discurso. O material empírico coletado na investigação foi tratado como um meio de expressão dos sujeitos, pelo qual se buscou categorizar as unidades de texto (palavras ou frases) que se repetem, inferindo denominações analíticas que as representam.
  • 6
    Essa é uma expressão utilizada por alunos e professores da universidade para designar as disciplinas de ensino de conteúdos específicos da EF (ensino de danças, ensino de jogos, ensino de lutas, ensino dos esportes, ensino das ginásticas).
  • 7
    Sobre esse ponto, Roldão (2007)Roldão, M. (2007). Formar para a excelência profissional: pressupostos e rupturas nos níveis iniciais da docência. Educação e Linguagem, 10(15), 18-42. destaca que a especificidade profissional do/a professor/a é a ação de ensinar, fazer com que outros aprendam os saberes.
  • 8
    São estes os cinco eixos temáticos: Eixo 1: Conhecimento sobre a sociedade (CS); Eixo 2: Conhecimento sobre o ser humano (CSH); Eixo 3: Conhecimento científico-tecnológico (CCT); Eixo 4: Conhecimento da educação física (CEF); Eixo 5: Conhecimento pedagógico da educação física na educação básica (CPEF).
  • 9
    No PPL de EF na UFMG, está previsto que “os alunos deverão cumprir um mínimo de 210 horas (mínimo de 14 créditos) em atividades Acadêmicas/Científicas/Culturais”.

Referências

  • Barreto, G., André, M., & Passos, L. F. (2012). O papel das práticas de licenciatura no desenvolvimento profissional de professores em início de carreira. In Anais do III Congreso Profesorado Principiante e Inserção profesional a la docência Recuperado de http://congressoprinc.com.br/artigo?id_artigo=263
    » http://congressoprinc.com.br/artigo?id_artigo=263
  • Berliner, D. C. (2000). A personal response to those who bash teacher education. Journal of Teacher Education, 51(5), 358-371.
  • Beauchamp, C., & Thomas, L. (2009). Understanding teacher identity: an overview of issues in the literature and implications for teacher education. Cambridge Journal of Education, 39(2), 175-189.
  • Bracht, V. (1999). Educação física e ciência: cenas de um casamento infeliz Ijuí: Editora Unijuí.
  • Brasil. Ministério da Educação. (2002, 18 de fevereiro). Resolução CNE/CP nº 1. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em Nível Superior, Curso de Licenciatura de Graduação Plena. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_02.pdf
    » http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_02.pdf
  • Candau, V. (1997). Universidade e formação de professores: que rumos tomar? In: V. Candau (Ed.), Magistério: construção cotidiana (pp 30-50). Petrópolis: Vozes.
  • Cellard, A. (1997). L’analyse documentaire. In J. Pupart, J.-P. Deslauriers, L.-H. Groulx, A. Laperrière, R. Mayer, Á. P. Pires, … A. Giorgi, La recherche qualitative: enjeux épistémologiques et méthodologiques (pp. 295-316). Montreal: Gaëtan Morin.
  • Cochran-Smith, M., Fries, K. (2005). Researching teacher education in changing times: Politics and paradigms. In M. Cochran-Smith, & K. Zeichner (Eds.), Studying teacher education: The report of the AERA panel on research and teacher education (pp. 69-107). Washington: American Educational Research Association.
  • Cochran-Smith, M. (2002). Learning and unlearning: The education of teacher educators. Teaching and Teacher Education, 19(3), 5-28.
  • Diniz-Pereira, J. E. (2011). O ovo ou a galinha: a crise da profissão docente e a aparente falta de perspectiva para a educação brasileira. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 92(230), 34-51.
  • Feiman-Nemser, S. (1983). Learning to teach. Institute for Research on Teaching, (64), 1-40.
  • Feiman-Nemser, S. (2001). Helping novices learn to teach: lessons from an exemplary support teacher. Journal of Teacher Education, 52(1), 17-30.
  • Fiorentini, D., & Crecci, V. (2008). Desenvolvimento profissional docente: um termo guarda-chuva ou um novo sentido à formação? Formação Docente, 5(8), 1-6.
  • Flores, M. A., & Day, C. (2006). Contexts which shape and reshape new teachers’ identities: a multi-perspective study. Teaching and Teacher Education, 22(2), 219-232.
  • Gatti, B. A. (2014). A formação inicial de professores para a educação básica: as licenciaturas. Revista USP, (100), 33-46. Recuperado de https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i100p33-46
    » https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i100p33-46
  • Gonzalez, F. J., & Fraga, A. (2012). Afazeres da educação física na escola: planejar, ensinar, partilhar Erechim: Edelbra.
  • Huberman, M. (1992). O ciclo de vida profissional dos professores. In A. Nóvoa (Ed.), Vida de professores (pp. 31-62). Porto: Porto Editora.
  • Kelchtermans, G., & Ballet, K. (2002). Micropolitical literacy: reconstructing a neglected dimension in teacher development. International Journal of Educational Research, 37(8), 755-767.
  • Machado, T. S., Bracht, V., Moraes, C. A., Almeida, F. Q., Silva, M. A. (2009). As práticas de desinvestimento pedagógico na educação física escolar. In XVI Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte Recuperado de http://congressos.cbce.org.br/index.php/conbrace2009/XVI/paper/view/630
    » http://congressos.cbce.org.br/index.php/conbrace2009/XVI/paper/view/630
  • Marcelo, C. (2006). Desenvolvimento profissional docente: passado e futuro. Revista Ciências da Educação, (8), 7-22.
  • Nóvoa, A. (2017). Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1106-1133.
  • Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. (2006). Professores são importantes: atraindo, desenvolvendo e retendo professores eficazes São Paulo: Moderna.
  • Roldão, M. (2007). Formar para a excelência profissional: pressupostos e rupturas nos níveis iniciais da docência. Educação e Linguagem, 10(15), 18-42.
  • Roldão, M C. (2017). Conhecimento, didáctica e compromisso: o triângulo virtuoso de uma profissionalidade em risco. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1134-1149.
  • Roldão, M. C. (2014). Currículo, didáticas e formação de professores: a triangulação esquecida? In M. R. Oliveira (Ed.), Professor: formação, saberes e problemas (pp.91-103). Porto: Porto.
  • Shulman, L. L. (1987). Knowledge and teaching: foundations of the new reform. Harvard Educational Review, 57(1), 1-22.
  • Tardif, M., & Lessard, C. (2005). O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas Petrópolis: Vozes.
  • Universidade Federal de Minas Gerais. (2006). Projeto pedagógico de licenciatura: graduação plena em Educação Física Belo Horizonte: UFMG.
  • Villegas-Reimers, E. (2003). Teacher professional development: an international review of literature Paris: Unesco.
  • Veenman, S. (1984). Perceived problems of beginning teachers. Review of Educational Research, 54(2), 143-178.

Referências Consultadas

  • Dewey, J. (2010). Experiência e educação Petrópolis: Vozes.
  • Gatti, B. A. (2017). Didática e formação de professores: provocações. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1150-1164.
  • Gatti, B. A., & Barretto, E. S. S. (Coord.). (2009). Professores do Brasil: impasses e desafios Brasília: Unesco.
  • Gatti, B. A., & Nunes, M. M. R. (2009). Formação de professores para o ensino fundamental: estudo de currículos das licenciaturas em Pedagogia, Língua Portuguesa, Matemática e Ciências Biológicas. São Paulo: FCC.
1
Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2018
  • Revisado
    08 Fev 2019
  • Aceito
    23 Jun 2019
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br