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Vigotski e a arte do ator: por uma psicologia do ator-performer 3 3 Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite. https://orcid.org/0000-0001-8889-750X 4 4 Normalização, preparação e revisão textual: Piero Younan Kanaan (Tikinet). revisao@tikinet.com.br

Resumo

Considerando que o ato criativo do artista da cena visa tornar presente um outro ser por meio de sua memória pessoal e da evocação de experiências e sentimentos vivos, este artigo reflete sobre a relação direta e objetiva do trabalho criativo do ator com a vida. Nesse sentido, aborda-se aqui manifestações que pretendam mais a presentificação do que a representação, uma prática surgida posteriormente, mas que se vincula aos escritos de Vigotski sobre a arte de atuar. Nesse sentido, busca-se pensar o termo perejivanie como manifestação em zona híbrida de intersecção da vida com a criação artística e como consequência (ou fonte) da arte exercida por aquele que hoje se denomina ator-performer.

Palavras-chave
perejivanie; performance; psicologia; ator-performer

Abstract

Considering that the performing artist’s creative act seeks to make another being present through their personal memory and the evocation of living experiences and feelings, this article reflects on the direct and objective relation of the actor’s creative work with life. Accordingly, we address here manifestations that intend presentification more than representation, a practice that arose later, but which is associated with Vygotsky’s writings on the art of acting. Thus, we seek to consider the term perezhivanie as a manifestation in a hybrid zone of intersection of life with artistic creation and as a consequence (or source) of the art exercised by the one that is now called actor-performer.

Keywords
perezhivanie; performance; psychology; actor-performer

Com base no original escrito por Vigotski em russo e publicado em 1936, cuja tradução em língua portuguesa se encontra neste periódico5 5 Texto intitulado Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator, de Lev Semionovitch Vigotski, com tradução de Priscila Nascimento Marques, publicado nesta edição (Vigotski, 2023). , esta reflexão se vale também de um estudo feito a partir de uma versão em língua inglesa do referido texto. Isso se dá em função desta última ser uma tradução para estudos que faz analogias entre os idiomas, assim como a versão aqui publicada dá a entender em relação ao título traduzido. Com isso, nota-se que certos termos se referem a entendimentos próprios do idioma russo, fazendo com que a tradução para a língua inglesa ocasione conotações que certamente podem incidir no entendimento daquilo que Vigotski buscava dizer. Assim, percebe-se a possibilidade efetiva de que a versão inglesa cumpra a função de mediadora para tradução em outros idiomas. Consequentemente, a variação do sentido que acompanha determinadas passagens permite ponderar sobre o que de fato propunha o autor para um tema que ainda hoje envolve questionamentos.

Em sua reflexão, Vigotski destaca como problema o fato de que, para se certificar da capacidade do sujeito em alcançar sucesso na criação teatral, os testes psicológicos aplicados até então buscavam constituir um profissiograma para o trabalho de atuação no teatro. Assim, pela avaliação do sistema motor e da memória verbal, da fantasia e do grau de excitação da pessoa, o intuito seria captar traços potenciais de talento para o exercício dessa função aliada a qualidades gerais. A questão é que, para Vigotski, pensar num profissiograma para o trabalho do ator estaria vinculando tal atividade ao mesmo princípio “pelo qual são construídos os análogos psicogramas, para quaisquer outras profissões” (2009, p. 7). E isso, em sua acepção, efetivamente não se aplica na atividade que compõe a arte do ator.

Ocorre que investigações psicotécnicas, no entendimento de Vigotski, não alcançariam a especificidade – ele chega a usar o termo singularidade – da psicologia do ator. Seria como se o bom desempenho, nessa função, resultasse de uma simples combinação de qualidades mentais advindas da mesma fórmula aplicável a outras atividades profissionais. Então, restritos à psicologia banal dos testes, investigadores psicotécnicos iriam generalizar e consequentemente dissolver as questões relativas ao trabalho criativo do ator, não atentando para o sujeito que atua, assim como para sua particularidade psicológica.

Para Vigotski, ainda que se mostre importante considerar os padrões psicológicos mais gerais, na psicologia do ator a questão maior é perceber o seu caráter diferenciado. Situa-se aí o que ele denomina singularidade qualitativa, uma vez que no âmbito da apuração psicológica aplicada a um sujeito específico e único, o problema deixa de ser abstrato e ganha concretude. É o que leva a perceber a arte como instrumento, conforme já detectava em Psicologia da Arte, obra escrita em 1925 e publicada na Rússia somente em 1965. Assim, a arte se constitui como prática para emanação do conhecimento, uma vez que “recolhe da vida o seu material mas produz acima desse material algo que ainda não está nas propriedades desse material” (Vigotski, 1999Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte. Martins Fontes., pp. 307-308).

Na sequência, Vigotski menciona a questão levantada por Denis Diderot, por muito tempo tido como referência no pensamento sobre a arte de atuar: o ator deve efetivamente experienciar o papel ou simplesmente imitar um protótipo ideal de modo a convencer o espectador?

Se, para Platão (c. 380 a.C./2004)Platão. (2004). A República. Nova Cultural. (Original publicado em c. 380 a.C.), a arte está distante do verdadeiro justamente por ser imitação e não a verdade de fenômenos sensíveis, por sua vez Aristóteles (c. 350 a.C./1987)Aristóteles. (1987). Poética. Nova Cultural. (Original publicado em c. 350 a.C.) restringe e analisa o termo imitação (mimese) no âmbito da arte, percebendo nesse ato uma variação que possibilita o enriquecimento de tais fenômenos. Nesse sentido, é possível que o questionamento de Vigotski na relação de um profissiograma com a especificidade da psicologia do ator ganhe reflexo no enfoque aristotélico da epopeia, que enfatiza ser mais percebida a elocução de poetas (atores) que vivenciem as mesmas paixões de suas personagens. Então, enquanto a pura imitação de protótipos, mencionada por Diderot, mantém o atuante na superfície do ato criativo, a efetiva vivência de uma situação trazida à cena permitiria uma possível imersão naquilo que se constitui, no entendimento de Vigotski, como arte do ator.

As primeiras décadas do século XX compõem um período em que perdurou forte ressonância do realismo na arte teatral. Os acontecimentos representados em cena se vinculam ao cotidiano e às relações humanas tanto em âmbito pessoal quanto social regidas em grande parte por padrões morais. Em seus escritos, Vigotski defendia a existência de um estágio extra-cotidiano, à parte da vida comum e que pode ser alcançado no trabalho criativo do ator. Para tanto, mostra-se justificável um possível uso de estratégias e recursos.

Exemplarmente, William Shakespeare é apontado como sendo um autor que, na composição de um texto dramático, sabe como incidir na arte de representar, fazendo ver o diferencial contido nesse trabalho criativo. Há muito, Shakespeare vinha sendo apontado como exímio estrategista no uso da palavra como instrumento para fazer da cena teatral um lugar de acesso a um plano superior na percepção das relações e do comportamento humano. Vigotski trata do que chama herói dinâmico e, recorrendo a outros autores, constata a genialidade de Shakespeare em fazer tocar o espectador pelo uso da linguagem verbal de suas personagens. Na condução de cenas, é na fala delas que o dramaturgo inglês atinge e faz emergir o que Tolstoi chamava movimento do sentimento, fazendo concluir: “Essa habilidade para propiciar a mudança do sentimento é precisamente o que constitui o fundamento daquela concepção de herói dinâmico a que nos referimos há pouco” (Vigotski, 1999Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte. Martins Fontes., p. 291).

Admitindo o dito paradoxo de Diderot (experienciar um papel ou imitar algum protótipo idealizado), como efetiva referência para uma possível teoria científica do trabalho criativo do ator, Vigotski observa que “entrelaçamento de sentimentos de um papel com os sentimentos do ator devem ser resolvidas primariamente no plano histórico e não no plano da psicologia naturalística (biológica)” (2009, p. 13). Tal psicologia remete a reações físicas que, estimuladas em teste, levavam a formulações metafísicas inerentes à psicologia abstrata, o que não resolveria uma questão que, segundo ele, deve ser tratada do ponto de vista dialético. Isto porque, se contextualizada socialmente, a psicologia do ator reflete alterações no processo de desenvolvimento histórico da humanidade, que se mostra nas alterações de estilo e conteúdo do trabalho teatral, que basicamente “consiste na relação da emoção artificialmente produzida de um papel com a emoção natural, viva, real, do ator representando o papel” (2009, pp. 18-19).

Alternativas ao paradoxo de Diderot foram percebidas no que vinha se desenvolvendo no Teatro de Arte de Moscou (TAM), sob comando de Constantin Stanislavski, quando são detectados pontos importantes no estudo das emoções. O primeiro diz respeito à qualidade involuntária de sentimentos, ou seja, à impossibilidade de comandá-los em determinadas situações. Mas, se os sentimentos não podem ser voluntariamente evocados, como acontece com o pensamento e com o movimento, as investigações de Stanislavski apontavam para a possibilidade de suscitar sensações por meio de estratégias desvinculadas da interferência direta da vontade.

Observou-se que as experiências levadas a efeito no Teatro de Arte de Moscou pareciam reforçar o entendimento platônico de que, se passados por um processo de composição artística, os sentimentos diferem de efetivas emoções. Contudo, nos exercícios ali realizados, eles não deixavam de ser vivos e verdadeiros, mostrando-se purificados e destituídos do que é supérfluo, conforme foi anotado por Vigotski em Psicologia da Arte (1999), referindo-se à estética ali exercitada:

A questão não tem a ver com o fato de que a meta da estética seja, como brincou Tolstói, a de reduzir-se à exigência de “descrever uma execução como se fossem flores”. A execução no palco continua execução e não flores, o desespero continua desespero, mas quem o resolve é a ação artística da forma, e por isso é muito possível que o ator nem experimente até o fim e de forma plena aqueles sentimentos que experimenta a personagem representada

(Vigotski, 1999Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte. Martins Fontes., p. 299).

Em reflexões recentes, Erika Fischer-Lichte (2019)Fischer-Lichte, E. (2019). Estética do performativo. Orfeu Negro. nota que não apenas pode haver variados graus de envolvimento do ator-criador com a personagem que ele interpreta, mas também na percepção do espectador em relação a quem se apresenta em cena. Ao tratar de presença e representação no estudo intitulado A estética do performativo, Fischer-Lichte observa que, durante muito tempo, tais termos foram tidos como sendo conceitualmente opostos. Ocorre que se concebia a presença como sendo algo imediato, “experiência de plenitude e completude” (p. 351), ao passo que se via na representação uma instância de controle e de censura, uma espécie de acesso mediado ao mundo. Entre as décadas de 1960 e 1970, a autora detecta o corpo do ator como sendo lugar e modelo da presença, enquanto a personagem dramática impunha-se como protótipo de representação.

A personagem em palco, predeterminada pela “instância de poder e controlo” do texto literário e reproduzida pelo actor através do próprio corpo como representação de tudo o que estava “prescrito” no texto, era testemunho da repressão que o texto exercia sobre o actor e, sobretudo, sobre o seu corpo. Tornava-se, pois, necessário libertar o corpo do actor das correntes da representação, do seu estrangulamento, e assim contribuir para deixar vir à tona a espontaneidade e a autenticidade de sua existência física

(Fischer-Lichte, 2019Fischer-Lichte, E. (2019). Estética do performativo. Orfeu Negro., p. 352).

Em seu escrito, ao que nos parece, a autora alemã faz coro ao que pressupõe Vigotski em alusão a uma necessária perejivanie no trabalho de criação do ator. Para Fischer-Lichte, uma personagem dramática não deve se dar como simples reprodução ou cópia de algo pré-determinado, mas como processamento e prática constituídos pelo uso de procedimentos de encarnação:

A personagem criada está indissoluvelmente ligada à corporeidade específica do actor que a cria. O corpo fenomênico do actor, o seu ser-no-mundo corpóreo constitui o fundamento existencial para o surgimento da personagem – esta não existe para lá deste corpo individual (2019, p. 352).

Com relação à duplicidade da emoção no trabalho de atores, ainda em Psicologia da Arte (1999), Vigotski cita uma passagem em que Diderot se refere a uma cena em que um homem e uma mulher se faziam amantes e emocionavam a plateia, enquanto na realidade eles se detestavam. Denota-se, portanto, que embora diferentes do que se experimenta na vida, um sentimento vivenciado no fazer artístico do ator pode estar distante de um simulacro. É que, mesmo fora da realidade, os sentimentos ali alcançados podem não ser fictícios e seguirem legítimos por se manifestarem em outro âmbito, em dimensão extra-linear assim apontada por ele:

Neste sentido, nós concordamos com Gurevitch em que a solução do problema, como usualmente acontece em muitas controvérsias obstinadas e longas, “reside não no termo médio entre dois extremos, mas em um plano diferente que faz possível ver o objeto de estudo de um novo ponto de vista”

(Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). Sobre o problema da psicologia do trabalho criativo do ator (A. Delari Jr., Trad.). Original publicado em: Vygotsky, L. S. On the problem of the psychology of the actor’s creative work. In L. S. Vygotsky. The collected works of L. S. Vygotsky. (Vol. 6). Kluwer Academic; Plenum Publishers., p. 20).

Então, ainda que se busque a encenação de um acontecimento como parte de uma história a ser mostrada, mais do que teatralizar a vida por meio da simples reprodução das formas de uma determinada situação, o que se torna possível é o estímulo a uma interface efetiva do trabalho do ator com o ato de viver, a criação de oportunidades para que se vivencie uma prática ou experiência em cena. Como sendo dois campos para ação, percepção e análise da vida, a arte de atuar e a psicologia têm em suas fronteiras um terreno liminar, de possível incidência uma na outra.

Nesse sentido, perejivanie é o termo que fortaleceu a aproximação de Vigotski ao trabalho de Constantin Stanislavski, em cujos preceitos sobre o trabalho do ator consta que, no processo criativo, esse artista seja capaz de tornar presente diante do espectador um ser cujas ações e sensações são vivas e críveis. E que esse ser, embora componha uma obra de caráter ficcional, se desvincule da pecha de mera figura do imaginário. Para tanto, mostra-se necessário que o atuante consiga ir além da simulação por meio de artifícios advindos do sistema de palco e da imitação mecanizada.

Na expressão de seus pensamentos e na busca de um possível método para criação na arte de representar, Stanislavski se valia de termos que enfatizam a necessária consciência de se estar diante do outro em cena, valorizando a percepção que então se tem dele e de si próprio. É o que se soma à abordagem que, em seus escritos iniciais, Stanislavski faz do tempo-ritmo na expressão gestual e na fala, da plasticidade do movimento, de entonações e pausas no ato de falar em cena. Mas é a relação do(a) ator/atriz consigo mesmo(a) que ele dedica boa parte de seu trabalho: estado interior, imaginação, concentração da atenção, memória, forças motivas interiores. Nesse âmbito, faz-se importante reiterar que o estímulo à vivência e consequente relação do artista com a vida é o que constitui a singularidade na psicologia do ator, tratada no texto de Vigotski. Estar em cena permite compreender que a consciência de si e da presença do outro diante de si podem se complementar, uma vez que numa apresentação o artista joga simultaneamente com a autopercepção e com o fato de ser percebido. Ou seja, perceber-se e dar-se a perceber mostram-se correlatos e se interpõem. Com referência ao termo utilizado pelo diretor russo, os tradutores da obra intitulada Análise-ação: práticas das ideias teatrais de Stanislavski (Knebel, 2016Knebel, M. (2016). Análise-ação: práticas das ideias teatrais de Stanislavski (M. Tenório, & D. Moschkovich, trad.). Editora 34.), em nota de rodapé, observam o seguinte: “A palavra, emprestada do coloquial perejivanie (preocupar-se, superar, sofrer) é composta do radical jit (viver) e de um prefixo que denota transição, transformação, transposição das fronteiras do meu próprio eu. Do eu mesmo em direção ao outro” (Knebel, 2016Knebel, M. (2016). Análise-ação: práticas das ideias teatrais de Stanislavski (M. Tenório, & D. Moschkovich, trad.). Editora 34., p. 26).

Por fim, ainda nesse âmbito vale mencionar a contribuição que nos traz Fischer-Lichte (2019)Fischer-Lichte, E. (2019). Estética do performativo. Orfeu Negro. sobre a percepção do espectador diante da presença do artista em seu trabalho de representação. Trata-se, em princípio, de algo ocasionado especificamente pela arte do ator, aquele que se faz outro:

[…] o que primeiramente é percepcionado como presença do actor no momento seguinte é percepcionado como personagem dramática e vice-versa. […] Mesmo quando, num espectáculo, não se estabelece nenhuma ligação perceptível entre as personagens mencionadas no programa e os actores que as interpretam, haverá espectadores que continuarão sempre a ver os actores como personagens. Do mesmo modo, haverá sempre espectadores que, num espectáculo coerentemente psico-realista, sentirão sempre a presença do actor (2019, pp. 353-354).

É o que se denomina multi-estabilidade perceptiva, conforme mencionado na obra, em que o espectador fica entre a pessoa do artista que se apresenta e a figura da personagem que ele representa. Em seguida, a autora aponta que nas últimas décadas houve aumento do uso de tal efeito em produções teatrais fora do eixo psico-realista que, de maneira proposital, visam provocar a desestabilização perceptiva do espectador. Para tanto, há encenadores cujas montagens têm nisto a sua principal característica, ou seja, o uso de imagens e efeitos para simulação ou dissimulação de presenças. É um lugar em que a função do ator deixa de ser somente a interpretação de uma personagem dada em contexto linear e progressivo.

Visando a atualização

Ao se debruçar sobre a questão psicológica que compõe a arte do ator, além de Constantin Stanislavski, Vigotski percebe a importância de outros estudiosos, pensadores e criadores que trabalhavam no Teatro de Arte de Moscou, como é o caso de Nemirovitch‐Dantchenko e Evguení Bagrationovitch Vakhtangov. Buscava-se ali a implementação de um sistema técnico que servisse ao ato criador do artista da cena, na composição e representação de um ser que alçasse do ficcional ao verossímil. É o que Fischer-Lichte (2019)Fischer-Lichte, E. (2019). Estética do performativo. Orfeu Negro. parece bem delinear: “A personagem dramática não é gerada por reprodução ou como cópia de algo pré-definido, mas por um processo que implica procedimentos de encarnação precisos.” (p. 352).

Em que pese haver, na arte do teatro de então, uma forte incidência do psicorrealismo ocorrido basicamente a partir da literatura dramática, não escapa às anotações de Vigotski as experiências propostas para se ir além da representação de personagens e da pura reprodução de acontecimentos.

Um passo na direção de separar o sistema de sua expressão concreta foi dado por E. B. Vakhtangov, cujas aspirações estilísticas eram realmente muito diferentes do naturalismo inicial do Teatro de Arte, mas que, apesar de tudo, estavam conscientes de que seu próprio sistema era uma aplicação, às novas tarefas, das idéias básicas de Stanislavski

(Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). Sobre o problema da psicologia do trabalho criativo do ator (A. Delari Jr., Trad.). Original publicado em: Vygotsky, L. S. On the problem of the psychology of the actor’s creative work. In L. S. Vygotsky. The collected works of L. S. Vygotsky. (Vol. 6). Kluwer Academic; Plenum Publishers., p. 16).

Essa sua percepção nos leva a considerar os diversos eventos e efetivas transformações ocorridas na prática e na teoria das artes como um todo no correr do século XX, com destaque para as artes cênicas. O propósito não é imaginar que pudesse haver novas teorias e conceituações por parte de Vigotski, mas detectar possíveis aplicações de seu pensamento considerando o estágio em que chegou a arte de atuação nos dias de hoje.

Na tradução inglesa do texto aqui analisado, chama atenção o termo performance que ganharia força quando tal ato passou a ser tido como possível manifestação artística, o que fez surgir a chamada arte da performance. Trata-se, entretanto, de um vocábulo cujo significado é de difícil definição em idiomas de origem latina, sobretudo no âmbito das artes, carecendo de devida contextualização.

Em princípio entendida como ato ou realização, a performance ganha sentidos variados – entre eles, o de desempenho – que podem inclusive dizer respeito a um acontecimento ou ato envolvendo algo que não seja um ser humano, como é o caso de uma máquina ou de um animal. Já nas artes, o termo se refere a uma realização específica em tempo real, levada a efeito direta ou indiretamente por uma pessoa. Como consequência, a performance vincula-se às manifestações artísticas que se dão na relação direta com a vida humana. Referindo-se ao ato performático do artista da cena, Vigotski observa:

Muitos dos que foram ativos no teatro produziram sistemas extremamente complexos de performance do ator nos quais encontraram uma expressão concreta não apenas de aspirações puramente artísticas de seus autores, não apenas cânones de estilo, mas também sistemas de psicologia prática do trabalho criativo do ator

(Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). Sobre o problema da psicologia do trabalho criativo do ator (A. Delari Jr., Trad.). Original publicado em: Vygotsky, L. S. On the problem of the psychology of the actor’s creative work. In L. S. Vygotsky. The collected works of L. S. Vygotsky. (Vol. 6). Kluwer Academic; Plenum Publishers., p. 6).

Note-se que a referência à performance do ator se dá como sendo ela resultado de sistemas complexos que extravasam o âmbito artístico, fazendo ver que o trabalho criativo aqui demanda sistemas de psicologia prática, pois que há uma relação intrínseca da arte de atuar com experiências que foram ou estão sendo vividas pelo artista e, mesmo que seja uma rememoração de algo já passado, ganha caráter presencial na realização do evento. Hoje, além do teatro, da dança e do circo, nas artes cênicas se inclui também a performance art (arte da performance), que se constituiu a partir da década de 1960, dando-se como ato realizado por alguém em vivo diante de outros. A partir disso, mostra-se importante considerar que, nas artes da cena contemporânea, uma performance é um acontecimento anunciado e levado a efeito pelo realizador, denominado performer, na presença de espectadores tanto no espaço físico do teatro quanto em lugares públicos ou privados.

De maneira sucinta, Patrice Pavis (1999)Pavis, P. (1999). Dicionário de teatro. Perspectiva. esclarece que o termo performer – denominação dada ao realizador de uma performance – pode ser usado para “marcar a diferença em relação à palavra ator, considerada muito limitada ao intérprete do teatro falado” (p. 284). O teatro convencional é onde o artista da cena (ator) representa uma personagem, agindo em nome dela e sendo “o vínculo vivo entre o texto do autor, as diretivas de atuação do encenador e o olhar e a audição do espectador” (Pavis, 1999Pavis, P. (1999). Dicionário de teatro. Perspectiva., p. 30). Portanto, ainda que o teatro se dê ao vivo diante de seres humanos – o que o torna performativo –, o clássico realizador da cena teatral está a representar e a falar em nome de outro e não de si próprio.

Por sua vez, sem se fazer outro, o performer age, interage ou manifesta-se a partir de um propósito articulado que, sem uma conclusão prévia, está aberto ao imprevisto. O grande quesito de uma performance art é justamente se dar a perceber como acontecimento somado às suas devidas consequências. Com isso, a adjetivação do termo amplia suas intersecções, fazendo reverberar um ato que pode ou não se valer de elementos vinculados a uma manifestação artística previamente estipulada.

Dentre os adjetivos para o termo performance estão o performativo, a performatividade e o performático, que redimensionam o alcance de uma obra, dando a perceber o caráter artístico possivelmente contido numa situação que em princípio seria tida apenas como algo inusitado dentro da vida comum. No ato performativo encaixam-se iniciativas que se dão ao vivo, tendo como efeito uma intervenção na vida, seja ela social, seja particular daquele que percebe o acontecimento. Numa exposição artística, por exemplo, a obra é performativa quando provoca reações que interferem no andamento da vida naquele local. Grande parte dos quadros expostos não vão além da apreciação em termos visuais que incidem na sensação momentânea do observador. Por outro lado, determinadas obras da pintura provocam reações efetivas como a indignação ou o prazer que se dão no local da exposição, mas podem ressonar no âmbito social. Foi o que se deu no caso de L’origine du monde (A origem do mundo), quadro de 1866 do pintor realista Gustave Courbet.

Vale notar que, desde meados do século XX, vem se intensificando no teatro a relação com outras manifestações artísticas, em que o realizador da cena deixa de se restringir àquele que se faz outro, representando uma personagem previamente criada numa obra escrita. Destaca-se, então, o caráter performático vinculado à soma do teatro com manifestações artísticas diversas, que comumente se dão ao vivo, como apresentações musicais, de dança, de números circenses ou de artes visuais. São obras que dizem respeito à relação de artistas com a vida, mesmo quando em estilo alegórico ou representando alguma personagem, como é o caso do ator.

Com o correr dos tempos, a performatividade presente no teatro levou criadores e estudiosos da arte do ator a aprofundar questões vinculadas ao trabalho de Stanislavski e demais integrantes do Teatro de Arte de Moscou. Com ajuda de intensas experiências, fizeram emergir uma denominação plural para o realizador na arte da cena teatral: ator-performer.

Como constatado em Vigotski (2009)Vigotski, L. S. (2009). Sobre o problema da psicologia do trabalho criativo do ator (A. Delari Jr., Trad.). Original publicado em: Vygotsky, L. S. On the problem of the psychology of the actor’s creative work. In L. S. Vygotsky. The collected works of L. S. Vygotsky. (Vol. 6). Kluwer Academic; Plenum Publishers., o paradoxo de Diderot – reproduzir tecnicamente ou vivenciar de fato a ação em cena – foi precedido por outros pensadores do teatro. E os motivos são vários:

Primeiro, como qualquer fenômeno mental concreto, o trabalho do ator* representa uma parte da atividade sócio‐psicológica que deve ser estudada e definida primariamente no contexto do todo ao qual pertence. A função de uma performance de palco em uma dada época para uma dada classe deve ser revelada como devem ser as tendências básicas das quais o efeito do ator sobre o expectador depende e, conseqüentemente, é necessário determinar a natureza social da forma teatral no contexto no qual as dadas experiências de palco** terão uma explicação concreta

(Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). Sobre o problema da psicologia do trabalho criativo do ator (A. Delari Jr., Trad.). Original publicado em: Vygotsky, L. S. On the problem of the psychology of the actor’s creative work. In L. S. Vygotsky. The collected works of L. S. Vygotsky. (Vol. 6). Kluwer Academic; Plenum Publishers., p. 14).

Há que se considerar que as experiências que resultaram na emergência do termo ator-performer aprofundaram o vínculo da arte do ator com a vida em tempo presente, desvencilhando-se da necessidade de um texto previamente escrito e que determina o que deve ser dito e realizado em cena. Trata-se de uma obra não finalizada, mas que se dará em manifestação e acontecimento. Caberia um estudo visando detectar, nesse âmbito, uma possível aplicação da psicologia do ator nos moldes propostos por Vigotski, considerando sobretudo o termo perejivanie bastante utilizado em seus escritos. Certamente isso demandaria um trabalho intenso, específico e promissor, tendo em vista que os preceitos de Vigotski na relação entre psicologia e arte – em especial a do ator – apontam a clara necessidade de uma perene atenção e constante análise.

Segundo os estudos de Delari Junior e Passos (2009)Delari Junior, A., & Passos, I. V. B. (2009). Alguns sentidos da palavra “perejivanie” em Vigotski: notas para estudo futuro junto à psicologia russa [artigo apresentado]. III Seminário Interno do Grupo de Pesquisa Pensamento e Linguagem (GPPL), Capinas, São Paulo, Brasil., perejivanie é um substantivo neutro composto por um radical (jivanie) que deriva de um verbo arcaico (jivat) cujo significado é viver. Por sua vez, o prefixo (pere) ganha possíveis variações de sentido: “(a) orientação da ação através de algo (por exemplo ‘pereshagnut’ – atravessar, ultrapassar); (b) realização da ação outra vez e/ou de outra maneira (por exemplo: ‘peredelat’ – refazer, reformar; e (c) superação (por exemplo: ‘perestradat’ – superar um sofrimento” (2009, p. 9).

Chama atenção o caráter processual determinado pelo prefixo, valendo retomar aqui o uso do termo no teatro proposto por Stanislavski, justificando citar uma vez mais a nota dos tradutores de Knebel:

Dentro do sistema teatral de Stanislavski, perejivánie nos remete ao processo de experiência vivenciada no momento presente. O teatro como “a arte da experiência do vivo” (iskússtvo perejivánia) é precisamente a nova definição do teatro tal como imaginado por Stanislavski e pela escola russa. A sensação ou a vida que é experimentada aqui e agora são contrapostas ao teatro de representação, ou de imitação; trata-se de um teatro onde é necessário viver, e não parecer vivo. Nas línguas latinas, perejivánie é frequentemente traduzido de forma errada, como “reviver [uma experiência passada]”

(Knebel, 2016Knebel, M. (2016). Análise-ação: práticas das ideias teatrais de Stanislavski (M. Tenório, & D. Moschkovich, trad.). Editora 34., p. 26).

Conforme o estudo apresentado em Vigotski (2009)Vigotski, L. S. (2009). Sobre o problema da psicologia do trabalho criativo do ator (A. Delari Jr., Trad.). Original publicado em: Vygotsky, L. S. On the problem of the psychology of the actor’s creative work. In L. S. Vygotsky. The collected works of L. S. Vygotsky. (Vol. 6). Kluwer Academic; Plenum Publishers., que se deu com base na versão inglesa (Vygotsky, 1999Vygotsky, L. S. (1999). On the problem of the psychology of the actor’s creative work. In L. S. Vygotsky. The collected works of L. S. Vygotsky. (Vol. 6). Kluwer Academic; Plenum Publishers.) em relação ao original russo, o tradutor e estudioso Achilles Delari Junior faz uma correlação entre os idiomas e observa que, em inglês ou português, o termo russo perejivanie e o seu plural, quando aparecem, podem significar prática cênica ou experiências artísticas no sentido de habilidade para escrever, adaptar ou encenar uma peça teatral e também como experiências do ator. Em todos esses casos, é possível notar que o termo ganha sentido de prática ou vivência na arte do teatro. Por outro lado, conforme observado nos anexos, em outros escritos de Vigotski o vocábulo traz significações que, ao nosso ver, enriquecem bastante o estudo sobre o trabalho criativo do ator no prosseguimento histórico que se dá no teatro do século XX. Significando experiência emocional, experiência vital, provação ou aflição, o termo se associa a vivências que podem incidir no desenvolvimento pessoal de um indivíduo, influenciando suas relações sociais e podendo mesmo alterar sua trajetória de vida. É justamente o que faz ver também a investigação de Capucci (2017)Capucci, R. R. (2017). Perejivanie: um encontro de Vigotski e Stanislavski no limiar entre psicologia e arte [Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília]. Repositório Institucional da UnB. https://repositorio.unb.br/handle/10482/23604?mode=full
https://repositorio.unb.br/handle/10482/...
, citando estudiosos que dão ao termo o sentido de vivência como sendo estado ou condição de viver. Isso faz com que, no ofício do ator, perejivanie signifique mais do que viver, suportar e identificar-se com a emoção de alguém (a personagem). Então, além da experiência vivida pelo ator no sentido pessoal que pode coincidir ou identificar-se com o que está se passando com um ser fictício, criado para ser representado, perejivanie (estado ou condição de viver) pode traduzir-se como experiência humana. Consequentemente, na arte de atuar tal condição incorreria na produção de efeitos estéticos daquilo que seria experimentado também pelo público diante da obra teatral, em especial no que diz respeito à catarse.

Buscando dar prosseguimento ao que propunha Constantin Stanislavski em seus estudos sobre o trabalho de ator, o polonês Jerzy GrotowskiGrotowski, J. (2015). Performer (P F. de Mendonça, trad.). eRevista Performatus, 3(14). opta por denominar performer o/a artista que se mostra em cena diante de alguém que ele deixará de chamar espectador para considerá-lo testemunha. Tal processo levou várias décadas e se deu a partir de sua viagem a Moscou para estudar e conhecer o lugar de trabalho de Stanislavski, ainda na década de 1950.

Diretor e estudioso teatral de grande importância, que viveu entre 1933 e 1999, Grotowski parece ter dado extensão ao que se operou etimologicamente no Teatro de Arte de Moscou, cujo espaço disponibilizado para o trabalho cênico deixou de ser chamado teatro ou sala de ensaio, sendo denominado estúdio e possibilitando que antigos colaboradores de Stanislavski avançassem na experimentação daquilo que viam como trabalho de atuação. Para Grotowski, o que vinha se passando sob seu comando mostrava-se como lugar de atividade ritualística, um laboratório que se desvinculava da ideia de produção de um espetáculo ou obra a ser exibida: “O ritual é performance, uma ação realizada, um ato. O ritual degenerado é um espetáculo.” (2015, p. 1). Portanto, mais do que criar uma obra acabada que resultasse da montagem de uma peça, o objetivo era a criação de um estado catártico envolvendo os espectadores: “Então as testemunhas entram em estados de intensidade, porque, por assim dizer, elas sentem uma presença. E isso graças ao Performer, que é uma ponte entre a testemunha e este algo” (2015, p. 3). Sendo assim, o Performer é tido como “fazedor de pontes”, o que se aproxima do termo perejivanie no sentido de orientação da ação através de algo, valendo isso tanto para aquele que age em cena quanto para o que testemunha o seu ato. E cabe também (uma vez mais) o que observam os tradutores de Knebel, em referência a perejivanie no teatro de Stanislavski: “É importante frisar que ele não deve ser entendido nunca como o resultado ao qual o ator aspira, mas como a própria fonte da ação, aquilo que literalmente o põe em movimento” (Knebel, 2016Knebel, M. (2016). Análise-ação: práticas das ideias teatrais de Stanislavski (M. Tenório, & D. Moschkovich, trad.). Editora 34., p. 26).

Não separar a arte da vida e, através do teatro, buscar uma possível renovação de sentidos para se viver é o que se percebe em propostas de criadores e pensadores da arte teatral há muito tempo. No século XVIII, o francês Denis Diderot (1713-1784) já propunha seu conhecido paradoxo para o trabalho do comediante, sendo ele uma das referências utilizadas por Vigotski, enquanto no próprio teatro russo havia também bons exemplos para tal discussão. O ator Mikhail Shchepkin (ou Schepkin), que viveu entre 1788 e 1863, e o dramaturgo Nikolai Gogol (1809-1852) mostram-se como fortes influências no pensamento e prática de Constantin Stanislavski visando o trabalho do ator. Numa palestra, realizada em 1924, citada por Nikolai Gorchakov (integrante do TAM), Stanislavski teria dito:

La tradición del Teatro de Arte de Moscú hunde sus raíces en el período de Schepkin y Gogol. […] Schepkin exigia que los preceptos de Gogol se encarnaran sobre la escena em imágenes artísticas, realistas. Fué el artista realista más grande. No aceptaba situaciones que no pudieran justificarse, que no se extrajera de la vida misma. Exigia del actor conocimiento de la vida, uma reflexión completa acerca de ello en su trabajo en escena

(Gorchakov, 1956Gorchakov, N. M. (1956). Las lecciones de “regisseur” de Stanislavski. Ediciones Pueblos Unidos., pp. 24-25).

Desde então, tratava-se de superar a simples ideia de imitação ou representação artificial da vida por aquele(a) que estivesse em cena. Com isso, vai ganhando força o ato performático, que se vincula à vida, se igualando ou mesmo se sobrepondo à fala, classicamente tida como suprema na arte do teatro. Conforme propunha Antonin Artaud (1896-1948), o ato performático deveria se impor como sensação, algo acima do texto dramático, visando suspender a barreira entre o ator e o espectador, entre o palco e a plateia, entre a cena e a vida. Em termos dramatúrgicos, é o que Danan (2019)Danan, J. (2019). A dramaturgia no tempo do pós-dramático. Revista Cena, (29), 14-23. indica como sendo dramaturgia no sentido 2, que abre condições para a experiência:

O caminho é estreito. O que fazer com o personagem quando não acreditamos mais no personagem e queremos ver um performer executar em cena uma série de ações que se referem apenas a si mesmo, sem mimese? […] Despir o personagem de si mesmo para deixar ver o ator como ser, em sua “nudez” existencial, fora de qualquer composição. Não tentar criar um “outro mundo”, mas acreditar neste, no presente da cena em sua materialidade

(Danan, 2015Danan, J. (2019). A dramaturgia no tempo do pós-dramático. Revista Cena, (29), 14-23., p. 18).

Logo, nesse “teatro da experiência”, será preciso dar lugar a novas formas de dramaturgia, em que o autor não se desvincule da prática cênica. Assim o futuro da escrita para a cena se impõe, cada vez mais, por meio da arte da performance, valendo questionar se o texto literário sobreviverá a isso.

Duas expressões que se referem ao desenrolar do acontecimento em si, bem como à sua percepção: performatividade e performidade (aqui, um neologismo). Merecem destaque por dizer respeito à relação com a vida e, no que tange à manifestação artística, podemos considerar performatividade como sendo a incidência (interferência) de uma obra na vida do artista e do seu entorno em tempo real, inseridas aí as pessoas que testemunham o fato. Por sua vez, em nosso entender a performidade diria respeito à incidência (influência e presença) da vida (do artista, do lugar ou do observador) numa obra artística. Nas artes cênicas, em se tratando de acontecimentos ao vivo, como o teatro, a dança, o circo ou um musical, tais adjetivações podem se dar simultaneamente. Há uma interação entre o ato cênico e a vida que corre.

A incidência da obra na vida corrente (performatividade) é perceptível sobretudo na performance art e na instalação (um tipo de trabalho das artes visuais). Isso porque, em tais manifestações, a característica maior é justamente o fato de serem criadas para interferir no espaço e/ou na relação com o observador. Por outro lado, a performidade se refere a uma situação real que em tempo presente interfere no correr da obra, seja no espaço, seja no corpo do performer e, consequentemente, na percepção do observador. Portanto, em ambos os casos há interação entre a obra e o correr da vida, podendo levar o espectador ao reencantamento do mundo, conforme expressão de Erika Fischer-Lichte (2019)Fischer-Lichte, E. (2019). Estética do performativo. Orfeu Negro. a respeito da experiência estética. Com base em tais conceitos, vale retomar o seguinte enunciado:

Muitos dos que foram ativos no teatro produziram sistemas extremamente complexos de performance do ator nos quais encontraram uma expressão concreta não apenas de aspirações puramente artísticas de seus autores, não apenas cânones de estilo, mas também sistemas de psicologia prática do trabalho criativo do ator

(Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). Sobre o problema da psicologia do trabalho criativo do ator (A. Delari Jr., Trad.). Original publicado em: Vygotsky, L. S. On the problem of the psychology of the actor’s creative work. In L. S. Vygotsky. The collected works of L. S. Vygotsky. (Vol. 6). Kluwer Academic; Plenum Publishers., p. 6).

Psicologia do ator se vincula e diz respeito ao indivíduo (aqui concebido como um ser social), à pessoa (ser ontológico) e ao sujeito (neste caso, o ser que age). Cada um desses termos se refere a uma função com relações e consequências distintas, mas complementares, que recaem num determinado e único ser. Daí provém a singularidade proposta por Vigotski, o que denota uma necessária atualização de vocábulos que compõem a arte de atuar. Como ele bem notou, atuar cenicamente requer a consideração de questões históricas que implicam na evolução humana quanto aos valores sociais, culturais e ontológicos. Então nos pareceu importante uma atualização na abordagem da psicologia do ator considerando, conforme Fischer-Lichte (2019)Fischer-Lichte, E. (2019). Estética do performativo. Orfeu Negro., o reencantamento do mundo como efeito catártico. Com isso, será possível admitir a arte da performance como terreno fértil para se semear também uma psicologia do ator-performer a partir da necessidade da catarse, “sem a qual não existe arte” (1999, p. 298), conforme escreveu Lev Semionovich Vigotski.

  • 1
    Para mais informações, ver: Vigotski (2023).
  • 2
    Dossiê Temático organizado por: Priscila Nascimento Marques https://orcid.org/0000-0002-7111-6372 eAna Luiza Bustamante Smolka https://orcid.org/0000-0002-2064-3391.
  • 4
    Normalização, preparação e revisão textual: Piero Younan Kanaan (Tikinet). revisao@tikinet.com.br
  • 5
    Texto intitulado Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator, de Lev Semionovitch Vigotski, com tradução de Priscila Nascimento Marques, publicado nesta edição (Vigotski, 2023Vigotski, L. S. (2023). Sobre a questão da psicologia da criação pelo ator. (P.N. Marques, Trad.). Pro-Posições, 34, ed0020210085. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085 (Obra original publicada em 1936).
    https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0...
    ).

Referências

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    » https://repositorio.unb.br/handle/10482/23604?mode=full
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    » https://doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0085
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2021
  • Revisado
    24 Jan 2022
  • Aceito
    09 Ago 2023
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