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Práticas de ensino em projeto de educação patrimonial: a produção de saberes educacionais

Teaching practices in patrimonial education project: the production of educational knowledge

Resumos

O objetivo fundamental deste artigo é revisitar analiticamente um projeto de pesquisa voltado para a questão da educação patrimonial, reconhecendo seu amplo potencial de produção de conhecimentos na área do ensino de História, tal o volume e a riqueza da documentação produzida pela equipe participante. Na presente pesquisa, focalizamos imagens dos saberes históricos educacionais, engendradas por professores e alunos, ao longo deste processo de educação dos sentidos, sobretudo no diálogo com as contribuições do filósofo Walter Benjamin.

ensino de História; educação patrimonial; produção de saberes históricos educacionais


The fundamental objective of this paper is to revisit - in an analytical way - a research project that dealt with the role of patrimonial education, recognizing its wide potential towards the production of knowledge in the area of history teaching, due to the huge and rich documentation accumulated by the team of participants. In this research, we focused on the images of educational history knowledge, produced by the teachers and the students in this process of senses education, especially in the dialog with the contributions from the philosopher Walter Benjamin.

history teaching; patrimonial education; production of educational history knowledge


DOSSIÊ "ENTRE SABERES E PRÁTICAS DOCENTES"

Práticas de ensino em projeto de educação patrimonial: a produção de saberes educacionais

Teaching practices in patrimonial education project: the production of educational knowledge

Maria Carolina Bovério Galzerani

Professora da Faculdade de Educação da Unicamp, diretora do Centro de Memória da Unicamp, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC), da FE/Unicamp, Campinas, SP, Brasil. boverio@unicamp.br

RESUMO

O objetivo fundamental deste artigo é revisitar analiticamente um projeto de pesquisa voltado para a questão da educação patrimonial, reconhecendo seu amplo potencial de produção de conhecimentos na área do ensino de História, tal o volume e a riqueza da documentação produzida pela equipe participante. Na presente pesquisa, focalizamos imagens dos saberes históricos educacionais, engendradas por professores e alunos, ao longo deste processo de educação dos sentidos, sobretudo no diálogo com as contribuições do filósofo Walter Benjamin.

Palavras-chave: ensino de História; educação patrimonial; produção de saberes históricos educacionais.

ABSTRACT

The fundamental objective of this paper is to revisit - in an analytical way - a research project that dealt with the role of patrimonial education, recognizing its wide potential towards the production of knowledge in the area of history teaching, due to the huge and rich documentation accumulated by the team of participants. In this research, we focused on the images of educational history knowledge, produced by the teachers and the students in this process of senses education, especially in the dialog with the contributions from the philosopher Walter Benjamin.

Key words: history teaching; patrimonial education; production of educational history knowledge.

1 - É possível rememorar com "olhos de madeira"?

Proponho-me, neste artigo, a focalizar historicamente a construção educacional do Projeto "Marcos históricos da cidade de Campinas, SP", ocorrida nos anos de 2003 e de 2004, na Faculdade de Educação/Unicamp, com "olhos de madeira"1 1 . Trabalho apresentado com modificações no XXVI Simpósio Nacional de História da ANPUH, em 2011, na Universidade de São Paulo. Integrou as apresentações do GT História, memória e ensino de História: diálogo entre diferentes saberes. . Neste momento, utilizo e (re)significo expressão utilizada por Carlo Ginzburg (2001), em obra assim intitulada, na qual este historiador italiano contemporâneo se inspira no olhar de Pinóquio, do conto de Carlo Collodi. Pois bem, colocar em ação tal rememoração permite-me entretecer temporalidades distintas (2003 e 2004, na interface com o momento atual) e olhares distintos (dos vários sujeitos participantes), sem perder de vista o envolvimento pessoal, afetivo, em relação ao tema, nem, tampouco, o necessário estranhamento. Diga-se, o afastamento racional, analítico, questionador, promovido pela colocação em ação deste "olhar de madeira", capaz de possibilitar-me - sem perder a dimensão humana de carne e osso - o encontro com experiências de alteridade, situadas no tempo, no espaço e em dadas relações sociais.

Ao longo daquele período, organizei e coordenei este projeto de educação não formal a convite da Prefeitura Municipal de Campinas, especificamente, um convite da Dra. Cristina Von Zuben, Secretária Municipal de Segurança Pública, que se afastara de seu cargo da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, para ocupar tal função. Constituía uma proposta dirigida, inicialmente, aos guardas municipais da cidade e que deveria voltar-se à reflexão histórica dos marcos patrimoniais, sobretudo arquitetônicos, desta localidade. Esta proposta foi gestada no governo da petista Izalene Tiene (2001-2004), com o objetivo de fortalecer a formação cidadã dos guardas. Cidadania que compreendemos como dimensão ativa, como prática capaz de colocar em ação o enraizamento cultural, a afirmação da identidade singular e, ao mesmo tempo, plural, coletiva, dos sujeitos envolvidos.

É importante registrar que a cidade de Campinas apresentava, naquele momento, cerca de um milhão de habitantes e expunha, em seu tecido urbano, inúmeras e graves contradições. Se, por um lado, era considerado um dos polos mais significativos de desenvolvimento tecnológico, científico, educacional e industrial do País, por outro, revelava índices de desemprego, violência e miserabilidade altamente preocupantes. Não se pode esquecer de que, no ano de 2001, foi assassinado, nesta cidade, o prefeito petista Antônio da Costa Santos, o qual vinha se empenhando, em sua curta gestão, no combate ao crime organizado, à corrupção...

Tal projeto foi desenvolvido em três etapas consecutivas, as quais foram nomeadas pela própria Secretária Municipal de Segurança Pública como Guarda Municipal I, Guarda Mirim e Guarda Mirim Ambiental. Na primeira etapa, ocorrida em 2003, atuamos na formação de 594 guardas municipais; na segunda, desenvolvida no primeiro semestre de 2004, atuamos com os filhos ou parentes dos guardas, a pedido dos próprios guardas municipais. Por sua vez, na última etapa, situada no segundo semestre desse mesmo ano, trabalhamos com alunos de escolas públicas do Bairro Jardim São Marcos, atendendo à solicitação da Secretaria de Segurança Pública.

Contamos, para tal, com uma rica e diversificada equipe docente, formada por pós-graduandos em Educação, em sua maioria orientandos em nível de Mestrado ou de Doutorado, estudantes dos Cursos de Pedagogia e de Licenciatura em História, da Faculdade de Educação/Unicamp; funcionários da Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo da Prefeitura Municipal de Campinas (incluindo o Museu da Cidade); ex-alunos, professores da rede municipal de ensino; e docente da PUC-Campinas. Relação fértil, aproximada, respeitosa, entre os diferentes participantes, que gerou a escolha de temáticas que partiram do presente ao passado, problematizando o avanço da modernidade tardia (Giddens, 1991).

Reuníamo-nos uma vez por semana e, nesses encontros, colocávamos em prática a circulação efetiva das palavras e dos desejos. Difícil e ousada proposta, mas que foi assumida por todos e por cada um de nós, inteiramente.

A primeira etapa de trabalho foi financiada pela própria Secretaria Municipal de Segurança Pública, por meio de pagamento de pró-labore aos docentes, por hora ministrada. Para esta etapa inicial, um dos grandes desafios que assumimos coletivamente, sob o ponto de vista educacional, foi como potencializar aos guardas participantes a desconstrução das concepções dominantes sobre os patrimônios oficiais da cidade de Campinas. Como deixar brechas para que, enquanto sujeitos, transformassem tais patrimônios oficiais em "lugares de memória" - concebidos como materialização de uma pluralidade de imagens e de visões de mundo, imbricando experiências vividas às reflexões histórico-educacionais? (Nora, 1993; Seixas, 2001).

Nesse sentido, priorizamos a possibilidade da ampliação da dimensão espaço-temporal dos sujeitos participantes, focalizando o processo histórico no qual tal modernidade foi engendrada na cidade de Campinas, na relação com a macro-história, a partir, sobretudo, do final do século XIX e início do século XX (Lapa, 1996; Galzerani, 1998).

A metodologia por nós escolhida para o desenvolvimento do trabalho pedagógico baseou-se na organização de duas oficinas, cada uma delas desenvolvida no espaço da própria Guarda, no período de três horas, em duas semanas consecutivas. Foram elas destinadas a um grupo de, no máximo, trinta guardas municipais. O objetivo dessa produção foi uma leitura (conjunta entre professores e alunos) da história da cidade de Campinas, via, sobretudo, documentos fotográficos. Estes se situavam em diferentes temporalidades e focalizavam monumentos arquitetônicos e espaços públicos considerados emblemáticos da modernidade capitalista em nossa urbe.

Foram também utilizados, nesse percurso de produção de saberes educacionais, documentos poéticos, musicais e narrativas escritas - os quais foram focalizados na relação com os documentos iconográficos.

Na segunda oficina pedagógica, o objetivo fundamental foi propiciar aos guardas municipais a produção de conhecimentos histórico-educacionais relativos à historicidade campineira. Por meio de diferentes documentos, os discentes foram estimulados a posicionar-se, entrecruzando suas visões de história e de educação - as quais haviam sido trabalhadas pelo docente na semana anterior - aos dados empíricos, proporcionados pelos documentos focalizados. A concepção de produção de conhecimentos históricos do historiador Edward Palmer Thompson (1981) foi fundamental na construção desta proposta docente, potencializando a relação entre as diferentes dimensões do social, a articulação entre sujeito e objeto; teorias e práticas; presente e passado; micro e macro-história - dentre outras possibilidades de relação. O que objetivávamos era assegurar que os guardas se posicionassem enquanto sujeitos dessa trajetória, sendo capazes de produzir saberes educacionais, amalgamando diferentes conhecimentos (acadêmicos, disciplinares, da experiência), relativos ao passado e ao presente, na relação com os desafios hoje por eles vividos (Galzerani, 2010). Ou seja, que fossem capazes não apenas de conservar seus patrimônios históricos - alargando seus significados, e apropriando-se, também, de sua dimensão temporal mais ampla - mas que se mostrassem hábeis para recriá-los, a partir de questões mobilizadoras, situadas no presente (Borne, 2000).

No que se refere à segunda etapa deste Projeto, esta foi desenvolvida no primeiro semestre do ano de 2004, atendendo à solicitação dos próprios guardas municipais. Foi direcionada às crianças, entre 8 e 12 anos de idade, filhos ou outros parentes dos próprios guardas municipais, estudantes das escolas públicas da cidade, totalizando 40 alunos. Mais uma vez, tal atuação fez parte de um projeto maior, elaborado por uma psicóloga da Guarda Municipal, intitulado "Jovens construindo a cidadania", sob a coordenação geral de Cristina Vieira, assessora da Secretaria Municipal de Cooperação nos Assuntos de Segurança Pública.

No nosso caso, particularmente, foram propostas três oficinas pedagógicas, tendo, cada uma, a duração de oito horas-aula. Foram elas colocadas em ação em dois encontros semanais (de quatro horas, cada um) e em três semanas consecutivas.

As seguintes atividades foram priorizadas, de maneira a articular o conhecimento racional ao prazer estético, sensível:

a) Estudos do meio, visualizados como lugares da memória, com duração de quatro horas. Foram realizados estudos do centro da cidade, com seus arcabouços arquitetônicos modernos, sobretudo os relativos ao final do século XIX e início do século XX, bem como com seus traçados urbanos, rememorando, inclusive, outras épocas, situadas nos primórdios da história oficial da cidade, ainda no século XVIII. Para a complementação dos estudos relativos à modernidade em Campinas, os alunos também se dedicaram à análise da Fazenda Mato Dentro, originalmente importante propriedade agrícola produtora de cana de açúcar (datada do início do século XIX) e, posteriormente, de café (no final do século XIX); hoje corresponde ao atual Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim.

b) Visita às exposições situadas no Museu da Imagem e do Som (situado hoje no Largo do Café), com duração de quatro horas: "Mundos do trabalho em Campinas" (permanente) e "Águas que movem a História" (exposição temporária organizada por um dos integrantes da equipe docente, professor da rede municipal de educação).

c) Cada uma das atividades acima citadas foi acompanhada por trabalhos de sistematização das pesquisas realizadas, numa oficina prevista para o segundo encontro da semana, com três horas de duração, e instalada nas salas da Base Central. Para tal, através da mediação do professor, os alunos foram orientados a produzir saberes histórico-geográficos, (re)significando suas memórias na relação com os conhecimentos disciplinares, trabalhando com as noções de tempo e espaço, sempre de maneira dialogal. Ao mesmo tempo, foram estimulados a expressar suas visões em linguagens mais prazerosas, lúdicas, artísticas, tais como a musical, a teatral ou por meio da confecção de brinquedos. Ao mesmo tempo, o trabalho com tais linguagens alternativas foi visualizado pela equipe docente como possível estímulo para que os discentes atuassem enquanto agentes multiplicadores dos saberes plurais por eles produzidos, no espaço de sua própria escola.

A concepção de criança colocada em ação nesta etapa do trabalho dialogou com pesquisas recentes da área (Faria; Fabri; Prado, 2002), as quais não perdem de vista a sua dimensão ativa da criança, como ser historicamente datado, produtor de cultura - isto é, de visões de mundo e de sensibilidades, na relação com as experiências vividas. Sem dúvida, a aproximação investigativa com os textos benjaminianos fortaleceu, sobremaneira, esta construção metodológica, assumida coletivamente pelos docentes, no que se refere ao respeito e à abertura dialogal, em relação ao universo infantil (Benjamin, 2002).

É interessante observar que, nesta etapa do Projeto, o número dos docentes/pesquisadores ampliou-se e houve uma diversificação dos seus membros, no que se refere tanto às experiências apresentadas quanto à formação e à atuação profissional. Equipe persistente em seus objetivos de produzir rupturas nos esquemas, muitas vezes, maquínicos do ensinar história da cidade, através da ousadia da (re)invenção das práticas de educação patrimonial.

Já na última etapa deste Projeto - a convite, mais uma vez, da Guarda Municipal e diante do "sucesso" do primeiro módulo-, atuamos com crianças de 8 a 12 anos de idade, estudantes de duas escolas estaduais públicas do Jardim São Marcos. Este bairro é considerado uma das áreas urbanas periféricas mais violentas da cidade, e lá se localiza uma das bases descentralizadas da Guarda Municipal. Em razão do grande número de interessados, os alunos foram sorteados e deram origem a duas turmas de 36 crianças.

O desafio a ser enfrentado pela equipe docente era grande, pois nos deparávamos com crianças que viviam cotidianamente graves problemas socioculturais, devidos às altas taxas de desemprego dos pais ou responsáveis, ao abandono familiar, às dificuldades de aprendizagem escolar, ao convívio com as drogas, com a marginalidade. Problemas esses que, sem dúvida, ameaçavam o direito de essas crianças serem, de fato, crianças.

Ao mesmo tempo, elas eram descendentes de pais ou avós migrantes nordestinos, paranaenses - dentre outros - e, enquanto tais, portadores de experiências culturais díspares. Muitas vezes, eles próprios pouco compreendiam e pouco valorizavam tais experiências, uma vez que tendiam a reproduzir práticas desenraizadas, globalizadoras, em razão dos "ventos" cada vez mais fortes da modernidade tardia na cidade.

Sem dúvida, o aumento significativo dos membros da equipe docente foi um dos fatores que propiciaram a superação das dificuldades iniciais, pela rica amálgama de saberes que se apresentaram.

Dentre as alternativas de ação pedagógica, os docentes, sob minha coordenação, em encontros semanais, construíram as seguintes possibilidades: a) estudos do meio voltados para o centro da cidade de Campinas; b) estudos do meio voltados para o Estádio de futebol Moisés Lucarelli, pertencente à Associação Atlética Ponte Preta (cujas origens datam do final do século XIX) - em atendimento aos desejos das próprias crianças; c) oficina de brinquedos, voltada para a valorização das práticas do brincar das crianças, ora focalizadas, práticas estas herdadas dos pais e dos avós migrantes. Destaco que tais estudos específicos foram enfocados na relação direta com a macro-história.

2 - Imagens de produção de saberes educacionais

Dentre as imagens dialéticas, plurais, dos saberes histórico-educacionais - produzidos por alunos e docentes -, relativas aos patrimônios campineiros, flagradas no contato com os dados empíricos, selecionarei apenas algumas delas. Estas serão focalizadas como mônadas (Benjamin, 1987), ou seja, como miniaturas dos significados mais explosivos deste projeto de educação dos sentidos. Como centelhas capazes de nos instigar à continuidade da reflexão, da pesquisa relativa à temática da educação patrimonial.

Walter Benjamin (1985, p.115) em texto intitulado "Experiência e pobreza", datado de 1935/1936, ao focalizar imagens urbanas europeias, indaga-se sobre o valor de todo o patrimônio cultural moderno. Afirma ele:

Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem [...] Pois, qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?[...] Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge, assim, uma nova barbárie [...].

Com o avanço da modernidade, na relação íntima com o capitalismo, passamos, segundo o autor, a vivenciar a crise, a pobreza das experiências. "Experiências" (Erfahrung) tornadas "vivências" (Erlebnis), as quais deixam de ser entendidas como construções coletivas, plenas de significados para todo o grupo e para cada um dos seus integrantes, em particular, e sempre abertas ao movimento de (re)significação. Vivências que passam a ser destituídas de sentidos coletivos! Em tal texto, fica flagrante a articulação que ele realiza entre tal imagem de patrimônio cultural moderno e a "barbárie", ou, ainda, as ruínas, a caducidade - as mortes, mesmo em vida - que se explicitam e se avolumam na modernidade. Ruínas, portanto, sobretudo no que respeita às relações sociais - ainda que encarando a imagem de barbárie como dialética. Pois bem, tal imagem de patrimônio pode ser flagrada como emblemática, no que respeita aos significados educacionais, movidos por professores/alunos neste projeto. Percorrendo alguns fios argumentativos produzidos por docentes e discentes, é possível tal percepção.

Guardas municipais, a partir de linguagens diversificadas, ao focalizarem os patrimônios históricos campineiros, numa perspectiva de longa duração, entrecruzam o presente ao passado, mesclam diferentes espacialidades, diferentes visões de mundo e sensibilidades. Problematizam os efeitos fantasmagóricos de grande parte dos monumentos históricos enfocados, bem como de práticas culturais tardiamente modernas. Efeitos destrutivos, no que se refere às dimensões de tempo, espaço e de relações sociais. Acompanhemos, a seguir, uma destas significativas produções de saberes histórico-educacionais.

MODERNA IDÉIA DO SER

Moderna idéia do ser

Modernidade

O que significa a modernidade

Significa progresso

Mas que progresso é este.

Que tanto deixa a desejar

Tanto progresso. Tanta fome. Tanta violência.

Tráfego intenso, mananciais poluídos.

Violência, tráfego de drogas.

Contradições impostas pelo desenvolvimento desordenado

Frente à continuidade da opressão, desigualdades

sociais, valorização do capital e não as relações

humanas, a que rumos leva esta sociedade.

Mas nova realidade. Surge outra figura.

A figura do guarda municipal em uma década de tantos

Contrastes.

Conhecedores de sua história e de sua atualidade.

(Produção de cinco guardas, em oficina ministrada por Márcia Bichara, então mestranda, sob minha orientação, em março de 2003).

É interessante observar a construção da imagem do guarda municipal, por eles produzida, em meio a tanta violência urbana, diante das contradições da modernidade tardia. Imagem até certo ponto idealizada - na medida em que se apresenta como inteira novidade - mas que revela, ao mesmo tempo, o importante movimento de se assumir como sujeito ativo na construção de outras possibilidades modernas, no que respeita ao viver na cidade hoje. Sujeitos que se apresentam ativos porque conhecedores "de sua história e de sua atualidade". Ora, ainda que tenham separado a concepção de história da atualidade - revelando uma visão de história positivista, muito dissonante em relação à proposta pelo projeto -, neste registro histórico fazem questão de incluir a dimensão do presente.

Ao mesmo tempo, pesquisando atentamente outras vozes deste projeto, podemos flagrar outras imagens de patrimônio histórico campineiro, por eles produzidas. Em algumas delas é possível vislumbrar dimensões enraizadoras em suas produções de saberes histórico-educacionais, relacionados intimamente às suas memórias. Nesse sentido, particularmente no que se refere aos guardas municipais, localizamos discursos nos quais demonstram enfrentar diferentemente a crise de suas identidades, apostando em uma rememoração sensível à revitalização do sentimento de pertencimento coletivo:

Um povo sem história seria como uma folha voando pelo vento frio do outono. A História faz parte intrínseca de uma nação, de uma cidade, de uma pessoa. O que seria de nós se não tivéssemos nada para contar para nossos filhos, netos...? Então, esta aula que nós tivemos faz com que aprendamos o valor de se preservar, cultivar o amor ao local onde vivemos, respeitar acima de tudo sua vivência e sua história de vida.

(Registro de um guarda, em relatório de experiência docente, elaborado por Fátima F. Lopes, então doutoranda, sob minha orientação; dez. 2003).

A historiadora francesa, Nicole Tutiaux-Guillon (2001 apud Laville, 2005, p.36), dedicada ao ensino de história, reconhece que visualizar certos documentos patrimoniais como comuns a todos no país poderia "[...] contribuir para resolver as tensões em um contexto de crise da identidade coletiva [...]". Contudo, o próprio Laville, apoiando-se, por sua vez, em Delacroix e Garcia (1998, Laville, 2005, p.36-37), enfatiza a importância de não perder de vista a necessidade de articulação de tal possibilidade de engajamento coletivo à igual possibilidade de afastamento crítico em relação ao que chama de "memórias pronta entrega". Isto é, a relevância de nós, educadores, colocarmos em ação o pensamento histórico, como "chave de independência de espírito, de liberdade de escolha", capaz de resistir às memórias formatadas a priori, a partir de um dado lugar sociocultural.

Recorrendo, mais uma vez, à pesquisa empírica, encontramos outras imagens, igualmente inquietantes, no que se refere às potencialidades deste projeto de educação patrimonial para a formação de professores. No presente caso, formação continuada de professores de História:

A experiência de educadores nos levou a planejar tudo antes: o tempo a ser utilizado em cada atividade, as diferentes estratégias, os objetivos educacionais. As reuniões de planejamento e de estudo da metodologia de conhecimento histórico a ser utilizado nos permitiu uma segurança na hora de lidar diretamente com as crianças.

(Relatório de Márcia Bichara, jul. 2004).

Fica flagrante, nesta imagem produzida por uma profissional do ensino de História com experiência de cerca de dez anos no nível fundamental, na relação com a segunda etapa do projeto, a importância que conferiu ao trabalho de planejamento coletivo por mim orientado. Neste trabalho metodológico, que se estendeu ao longo de todo o projeto, imbricamos a lógica thompsoniana de produção de conhecimentos históricos aos fundamentos histórico-educacionais (Chervel, 1990; Goodson, 2007; Julia, 2001) e histórico-culturais (Vigotski, 1984). Nesse sentido, os saberes disciplinares específicos, articulados aos mais especificamente educacionais, atuaram significativamente na configuração da identidade profissional dos professores.

A categoria tempo da educação aparece neste outro fragmento relativo à primeira etapa do projeto, elaborado por uma professora de História, com larga experiência no ensino fundamental e experiência inicial no ensino superior:

Dois encontros em um total de seis horas-aula por turma de alunos. Não seria suficiente se tivéssemos um programa que intencionasse "dar conta de toda a história campineira", mas com objetivos claros a serem alcançados e um eixo teórico-metodológico bem definido, norteando o desenvolvimento da proposta, o trabalho pôde ser realizado com menos angústia em relação a esta questão do "tempo". E qual o tempo da Educação? [...] e como "medir" os desdobramentos posteriores de algo que foi aprendido, elaborado? De algo rememorado, repensado?

(Relatório de Fátima F. Lopes, dez. 2003).

Ao mesmo tempo que valoriza o eixo teórico-metodológico "bem definido, norteando o desenvolvimento da proposta" e assegurando-lhe "menos angústia", apresenta uma concepção de tempo de trabalho educacional singular e, ao mesmo tempo coletiva, que se afasta de uma visão linear, contínua, radicalmente objetiva da história, e que se articula ao tempo "rememorado", subjetivo.

A seguir, apresento um registro de um aluno, participante do projeto em suas práticas de formação inicial:

E as reuniões dividiram-se em três etapas que contemplaram os seguintes passos: aproximação das especificidades do Bairro São Marcos, preparação das oficinas pedagógicas e, por fim, um balanço da experiência levada a cabo por todos os participantes. [...] Combateu-se a razão instrumental com a simples - mas tão subversiva [...] - prática da relação. Relação entre as pessoas, entre suas histórias e vidas. Educadores-educandos, educandos-educandos, educadores-educadores [...] Ficou evidente que qualquer tentativa semelhante às experiências formais de educação malograriam; isto é, não só as relações hierarquizadoras entre professores e alunos, mas qualquer tentativa expositiva de apresentação. Optou-se, então, com sucesso, pelo trabalho em pequenos grupos, acontecidos ao acaso. Acaso que deu à luz a uma sensação festiva, de um momento prazeroso, de um encontro coletivo, que, ao mesmo tempo, era educacional, formador, instigante, estimulante e marcante.

(Relatório final de Luciano C. G. Pinto, aluno da disciplina Prática de ensino e Estágio Supervisionado II, dez. 2004).

Estamos perante imagens dissonantes, no que se refere às práticas de formação docente ainda hoje triunfantes. Foram produzidas por um licenciando em História, que desenvolveu suas práticas de estágio no Bairro Jardim São Marcos, no segundo semestre de 2004, atuando como docente, com crianças no terceiro módulo do projeto. São imagens que explicitam outra concepção de racionalidade formadora. Não a racionalidade instrumental, que hierarquiza brutalmente as vivências educativas, mas, sim, aquela que valoriza a convivência entre seres de carne e osso, no ato de produção dos saberes histórico-educacionais. Que produz pertencimento intelectual e afetivo, na troca de olhares, brilhos, em busca de brechas de fuga à brutalidade produzida pela modernidade tardia.

São imagens que não dispensam o pensamento histórico-educacional - comprometido com a superação da diluição da dimensão de tempo, de espaço, de relações sociais -, mas que potencializam a afirmação da identidade criativa, singular e, ao mesmo tempo, coletiva dos sujeitos envolvidos (professores e alunos), no encontro com o outro, o diferente. Imagens que potencializam a construção de práticas de formação docente mais plenas de sentido - para si e para os alunos - e, ao mesmo tempo, mais enraizadas culturalmente.

3 - Para não concluir...

Constituem objetivos desta rememoração não apenas narrar a particularidade dos acontecimentos vividos neste projeto de educação patrimonial, problematizando seus eixos teórico-metodológicos fundamentais, mas, sobretudo, apresentar aquilo que nele é criação específica, busca do inaudito, emergência do singular.

E, mesmo que tais imagens não sejam portadoras do inteiramente singular - porque expressam contradições vividas na contemporaneidade -, podem, enquanto momentos criativos, reverberar em nossas sensibilidades no instante presente. Como centelhas, talvez possam estas imagens inspirar a produção de experiências outras de educação patrimonial, comprometidas com o absoluto dos seres humanos.

Recebido em 3 de abril de 2012 e aprovado em 17 de agosto de 2012.

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  • 1
    . Trabalho apresentado com modificações no XXVI Simpósio Nacional de História da ANPUH, em 2011, na Universidade de São Paulo. Integrou as apresentações do GT História, memória e ensino de História: diálogo entre diferentes saberes.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      03 Abr 2012
    • Aceito
      17 Ago 2012
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