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Ontologias da adolescência e ato infracional: uma revisão integrativa da década (2011-2020)

Ontologies of Adolescence and Offending: an integrative review of the decade (2011-2020)

Resumo

Este artigo, segmento do trabalho de doutorado do autor, apresenta uma revisão integrativa de literatura nas diversas áreas de conhecimento que abordam a temática adolescência e ato infracional. Segue o método sistemático e o formato narrativo, tomando a ciência como prática social e levantando aspectos qualitativos da literatura produzida entre 2011 e 2020, com enfoque no estado atual do conhecimento e no modo como se tem produzido os saberes científicos nesse campo. Os resultados apresentam recortes importantes acerca da problemática, porém, de modo geral, o panorama revela saberes fragmentados, com discursos disciplinares e pouco dialogados. Os modos de considerar o adolescente nas pesquisas tendem a se dar com práticas de silenciamento, priorizando o saber-fazer-poder-dizer de adultos, “especialistas” e instituições. Ressalta-se a importância do pensamento crítico, decolonial, complexo e transdisciplinar como orientadores de uma ciência capaz de integrar diferentes saberes, rompendo com lógicas estanques de separação, oposição, redução, hierarquização e silenciamento.

Palavras-Chave:
Delinquência juvenil; Pesquisa transdisciplinar; Saúde Coletiva

Abstract

This article, segment of the author's doctoral work, presents an integrative literature review in the different areas of knowledge that address the issue of adolescence and infractions. It follows the systematic method and narrative format, taking science as a social practice and raising qualitative aspects of the literature produced between 2011 and 2020, focusing on the current state of knowledge and the way scientific knowledge in this field has been produced. The results show important insights into this issue, however, in general, the panorama reveals fragmented knowledge, with disciplinary scientific discourses and little dialogue. The ways of considering adolescents in research tend to be based on silencing practices, prioritizing know-can-do-say from adults, “experts” and institutions. The importance of critical, decolonial, complex and transdisciplinary thinking is highlighted as guiding a science capable of integrating different knowledge, breaking with stagnant logics of separation, opposition, reduction, hierarchization and silencing.

Keywords:
Juvenile delinquency; Transdisciplinary research; Public Health

Introdução

A Saúde Coletiva é enunciada como um campo de saberes e práticas que compreende a saúde como fenômeno social e se propõe a atuar em benefício do interesse público e coletivo em saúde, em caráter interdisciplinar e, quiçá, transdisciplinar (PAIM; ALMEIDA-FILHO, 2014PAIM, J. S. ALMEIDA-FILHO, N. (org.). Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook, 2014.). Partindo desta premissa, o presente artigo de revisão analisa a literatura acerca do fenômeno adolescência e ato infracional, em áreas de conhecimento e disciplinas diversas, de modo a discutir os saberes produzidos e a proporção em que são dialogados entre si; além dos modos como os estudos têm sido desenvolvidos, sobretudo no que tange à consideração de saberes e práticas locais e dos adolescentes sobre si mesmos.

Ato infracional é o termo jurídico adotado no Brasil a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para referir práticas delitivas, análogas aos crimes previstos no Código Penal, atribuídas a adolescentes – 12 a 18 anos incompletos (BRASIL, 2019BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília: MDH, 2019. Disponível em: <estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-versao-2019.pdf (www.gov.br)> Acesso em: 08 abr. 2021.
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). Fundamentado na Constituição Federal e em convenções internacionais mediadas pela ONU, o estatuto modifica diversos parâmetros sociojurídicos anteriormente usados no Brasil para o trato a menores de 18 anos (BRASIL, 2019BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília: MDH, 2019. Disponível em: <estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-versao-2019.pdf (www.gov.br)> Acesso em: 08 abr. 2021.
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; UNICEF, 2017UNICEF. História dos direitos da criança. 2017. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/historia-dos-direitos-da-crianca>. Acesso em: 08 abr. 2021.
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). De concepção multidisciplinar, o ECA adota a doutrina de proteção integral, em caráter universal, com objetivo de garantir a crianças e adolescentes, além dos direitos humanos fundamentais, atenção especial ao seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social (BRASIL, 2019BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília: MDH, 2019. Disponível em: <estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-versao-2019.pdf (www.gov.br)> Acesso em: 08 abr. 2021.
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).

A lei que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) vem regulamentar os dispositivos multidisciplinares da rede de atenção integral ao adolescente a quem se atribui ato infracional (BRASIL, 2019BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília: MDH, 2019. Disponível em: <estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-versao-2019.pdf (www.gov.br)> Acesso em: 08 abr. 2021.
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). Conforme a lei do SINASE, as medidas socioeducativas previstas no ECA, sentenciadas por juiz(a) da infância e juventude, devem promover a responsabilização do adolescente, sua integração social e garantia de direitos, além da desaprovação da conduta infracional, tendo como parâmetro máximo a privação de liberdade, que se cumpre pelo mínimo de seis meses e máximo de três anos em unidade de internação (BRASIL, 2019BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília: MDH, 2019. Disponível em: <estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-versao-2019.pdf (www.gov.br)> Acesso em: 08 abr. 2021.
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).

Referida no ECA como condição peculiar de desenvolvimento, adolescência é um conceito categórico consolido no séc. XX, tendo sua produção lastreada em modelos e práticas de organização social disseminadas no mundo ocidentalizado sob a égide titular de “modernidade”, a partir das revoluções burguesas da Europa – séc. XVII (ARIÈS, 1981ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981.; DONZELOT, 1986DONZELOT, J. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro, Graal, 1986.; LE BRETON, 2017LE BRETON, D. Uma breve história da adolescência. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017.). Até a Idade Média, a percepção geral europeia era de que a infância findava quando se atingia maturidade física e intelectual para o trabalho e união conjugal, já passando à vida adulta, não raro em tempo precoce, se comparado ao habitual contemporâneo (LE BRETON, 2017LE BRETON, D. Uma breve história da adolescência. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017.). No entanto, a eclosão da ordem sociocultural moderna, com cooperação das ciências emergentes, modificou as conformações dos Estados, das cidades, das relações de produção e trabalho e da família, ainda promovendo novos valores, sentimentos e responsabilidades em relação à infância (ARIÈS, 1981ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981.; DONZELOT, 1986DONZELOT, J. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro, Graal, 1986.).

Ariès (1981ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981.) descreve as primeiras transformações afetivas nas relações familiares com as crianças em termos de “apego” e “paparicação” (séc. XVII), sendo que o consequente comprometimento da família, tensionado pelo Estado, no dever de controlar, disciplinar e vigiar os filhos (séc. XVIII – XX), é descrito por Donzelot (1986) como algo análogo à atuação policial, servindo à manutenção da ordem pública. Com condições de possibilidade abertas pelas circunstâncias sócio-históricas, a adolescência emerge como conceito e categoria social relativa a uma fase ampliada, pós-infância, preparativa para a vida adulta (ARIÈS, 1981ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981.; DONZELOT, 1986DONZELOT, J. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro, Graal, 1986.; LE BRETON, 2017LE BRETON, D. Uma breve história da adolescência. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017.).

Como conceito, adolescência refere um processo e estágio do desenvolvimento humano, marcado por alterações biopsicossociais que atingem desde aparência e dimensões corporais até disposições afetivas, cognitivas e relacionais, passando pelo acionamento dos papeis sexuais e reprodutivos (OPAS; BRASIL, 2017OPAS; BRASIL. Saúde e Sexualidade de Adolescentes: construindo equidade no SUS. Brasília: OPAS, MS, 2017.). Como categoria, adolescência diz de um grupo de pessoas com distinção de status social, tanto pela faixa etária como pela atribuição de condições homogeneizantes, com papeis sociais específicos que contrastam com os da infância, da adultez e da velhice (LE BRETON, 2017LE BRETON, D. Uma breve história da adolescência. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017.; SARMENTO, 2018SARMENTO, M. J. A Sociologia da Infância portuguesa e o seu contributo para o campo dos estudos sociais da infância. Contemporanea, v. 8, n. 2, p. 385-405, 2018.).

Tais distinções têm estreita relação com a produção científica e do direito na modernidade eurocêntrica, atravessada por ideologias fundadas em lógicas de diferenciação-identificação, separação-oposição, disjunção-redução, seleção-exclusão que, por exemplo, vêm estabelecer tratamentos específicos a adolescentes envolvidos em delito (LE BRETON, 2017LE BRETON, D. Uma breve história da adolescência. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017.; UNICEF, 2017UNICEF. História dos direitos da criança. 2017. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/historia-dos-direitos-da-crianca>. Acesso em: 08 abr. 2021.
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). Como no tocante às outras fases do desenvolvimento humano, a distinção conduz a práticas específicas atinentes à adolescência, sejam sociais, culturais, políticas, jurídicas, mercadológicas etc., observadas na disposição de instituições ou de outros grupos na relação com a adolescência e internamente em grupos de adolescentes (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.; LE BRETON, 2017LE BRETON, D. Uma breve história da adolescência. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017.; SARMENTO, 2018SARMENTO, M. J. A Sociologia da Infância portuguesa e o seu contributo para o campo dos estudos sociais da infância. Contemporanea, v. 8, n. 2, p. 385-405, 2018.).

Com esse conciso panorama sócio-histórico, para interesse deste estudo, levantam-se três questões relativas à produção de saberes e práticas acerca do fenômeno adolescência e ato infracional: a) colonialidade/decolonialidade; b) complexidade-transdisciplinaridade; e c) silenciamento infantojuvenil.

A colonialidade/decolonialidade, trabalhada nas ciências sociais do sul global, problematiza as práticas do exercício de poder fundadas em ideologias eurocentradas, com hierarquizações populacionais, territoriais, étnicas, fenotípicas, culturais e epistêmicas, que produzem e sustentam relações de dominação – colonialidade (RESTREPO; ROJAS, 2010RESTREPO, E.; ROJAS, A. Inflexión Decolonial: Fuentes, conceptos y cuestionamientos. Popayán: Pensar Institute, Editorial Universidad del Cauca, 2010.). Assim, decolonialidade diz de um movimento que busca transcender, pela crítica e subversão, práticas hegemonizadas do exercício de poder-saber-fazer, no projeto da modernidade/colonialidade eurocêntrica (RESTREPO; ROJAS, 2010RESTREPO, E.; ROJAS, A. Inflexión Decolonial: Fuentes, conceptos y cuestionamientos. Popayán: Pensar Institute, Editorial Universidad del Cauca, 2010.).

A questão da complexidade, discutida no âmbito da epistemologia e articulada à pedagogia de transdisciplinaridade, propõe transpor fronteiras disciplinares e especialidades erguidas pelo paradigma da simplicidade (disjunção-redução), mesmo considerando a importância de segmentar relativamente saberes científicos (MORAES, 2015MORAES, M. C. Da ontologia e epistemologia complexa à metodologia transdisciplinar. Terceiro Incluído, v. 5, n. 1, p. 1-19, 2015.). Essa discussão avança na defesa de um intercâmbio efetivo também com saberes locais de populações quanto a temas de interesse comum com cientistas, de modo a considerar formas diversas de conhecer e atuar sobre as realidades do mundo, sem impor subjugações, silenciamentos ou oposições estanques (MORIN, 2009MORIN, E. Saberes Globais e Saberes Locais: o olhar transdisciplinar. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.; MORAES, 2015MORAES, M. C. Da ontologia e epistemologia complexa à metodologia transdisciplinar. Terceiro Incluído, v. 5, n. 1, p. 1-19, 2015.; SOUSA-SANTOS, 2018SOUSA-SANTOS, B. Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Essencial. Buenos Aires: CLACSO, 2018.).

Já o silenciamento infantojuvenil, tocante ao ato de ignorar, invalidar e/ou excluir narrativas e saberes da criança ou adolescente sobre assuntos de seu interesse, vem sendo discutido na área das humanidades por sua persistência nas práticas sociais do mundo ocidentalizado, incluindo a ciência, apesar dos avanços na consolidação dos direitos-participação para a infância e adolescência (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.; SARMENTO, 2018SARMENTO, M. J. A Sociologia da Infância portuguesa e o seu contributo para o campo dos estudos sociais da infância. Contemporanea, v. 8, n. 2, p. 385-405, 2018.).

Tomar essas três questões como mediadoras nesta revisão favorece problematizar, para além do “estado da arte”, o modo como se produz conhecimento acerca da adolescência e ato infracional. Estudos de revisão permitem reunir teorias, metodologias, conceitos e dados empíricos produzidos a partir de diferentes correntes de pensamento, determinando o estado atual do conhecimento e possibilitando acesso a ontologias diversas. Ontologia é uma vertente da filosofia que se ocupa do “ser-devir” ou “daquilo que há-haverá”, com autores que vêm produzindo diferentes estudos e abordagens desde a antiguidade clássica (KRAUSE, 2017). Este estudo segue com inspiração na “ontologia analítica”, visando assinalar formas de projeção/constituição do ser-devir do objeto – adolescência e ato infracional –, em relatividade com lógicas subjacentes a certas concepções, epistemologias, teorias, conceitos (KRAUSE, 2017).

Método

Contemplando diferentes áreas de conhecimento, este trabalho se define como uma revisão integrativa, com duplo enfoque: de determinação do “estado da arte” – que busca demonstrar o que há de conhecimento produzido, quais as lacunas existentes e as principais dificuldade teóricas, epistemológicas e/ou metodológicas; e empírico – que busca alcançar como vêm se dando as pesquisas sobre o tema (BRASILEIRO, 2013BRASILEIRO, A. M. M. Manual de Produção de Textos Acadêmicos e Científicos. São Paulo: Atlas, 2013.). O artigo segue formato narrativo, indicado para estudos amplos com enfoque teórico ou situacional e ênfase em aspectos qualitativos (BRASILEIRO, 2013BRASILEIRO, A. M. M. Manual de Produção de Textos Acadêmicos e Científicos. São Paulo: Atlas, 2013.). Desse modo, se antepõem as seguintes questões orientadoras: a) O que se tem produzido acerca do tema adolescência e ato infracional e em que medida esses conhecimentos têm se comunicado entre si? b) Como têm se desenvolvido estudos em torno do tema e em que medida tem se considerado saberes e práticas locais e de adolescentes sobre si mesmos?

A busca por referências foi realizada de modo sistemático e avançado nas bases do Portal de Periódicos CAPES/MEC, via Comunidade Acadêmica Federada (CAFe), em 18 de janeiro de 2021, a partir dos seguintes parâmetros: a) Tipo de Material: artigo; b) Fonte de Publicação: periódico revisado por pares; c) Período de Publicação: últimos 10 anos – de 01/01/2011 a 31/12/2020; d) Idioma: qualquer; e) Bases de Dados: sem seleção específica. f) Descritores: juvenile delinquency; violence; public health; Brazil, no campo principal; e, acionado o botão ‘OR’: adolescent; offense; law; Brazil, no campo complementar.

Os critérios de inclusão foram: estudos empíricos ou teóricos originais; nacionais ou internacionais relacionados ao Brasil; tocantes ou transversais ao fenômeno adolescência e ato infracional; em qualquer área de conhecimento. Foram excluídas publicações: a) definidas como estudos de revisão; b) sem relação com o Brasil; c) com texto completo indisponível.

Resultados e Discussão

A busca listou 287 artigos, todos submetidos à leitura do título e/ou resumo, sendo 40 selecionados pelos critérios de inclusão/exclusão e agrupados em matriz de síntese por área de conhecimento e ênfase disciplinar, referindo objetivo, metodologia, base teórica subjacente, principais achados e considerações. Alcançaram-se as seguintes linhas de estudo: a) ciências da saúde – ênfase em saúde mental e enfoque em determinantes sociais e no manejo da condição do adolescente; b) humanidades – ênfase relacional e enfoque em questões sociais, culturais, políticas e/ou discursivas; c) ciências sociais aplicadas – ênfase em atribuições institucionais e enfoque nas práticas de atores engajados sobre o tema e seus resultados; e d) multidisciplinar – ênfase interdisciplinar e enfoque na correlação do fenômeno com teorias, regramentos legais e/ou práticas sociais e seus efeitos. O Quadro 1 traz informações básicas sobre as publicações, agrupadas por áreas de conhecimento elencadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Ministério da Educação do Brasil:

Quadro 1
Informações básicas dos artigos selecionados, por área de conhecimento

A análise crítica é feita considerando grupos temáticos emergentes da amostra, não necessariamente com restrição a área de conhecimento específica:

Violência e delito juvenil como problema de saúde pública

Os artigos abordando o tema como questão de saúde, em maioria, referem estudos epidemiológicos descritivos nacionais, voltados a expor características de distribuição e/ou condições relacionadas a determinado problema. Estuda-se bastante a categoria psicopatológica “comportamento antissocial”, definida pelo desprezo ou transgressão a normas sociais, comumente associada a práticas ilegais e tomada como critério psicodiagnóstico para Transtorno de Conduta e Transtorno Opositivo Desafiador em crianças e adolescentes (BURT; DONNELLAN, 2009BURT, S.A.; DONNELLAN, M. B. Development and validation of the Sub-Types of Antisocial Behavior Questionnaire (STAB). Aggress Behav, v. 35, n. 5, p.376-98, 2009.).

O ato infracional é associado ao comportamento antissocial em estudos transversais de prevalência, que observam e descrevem a relação fator-efeito para casos existentes de uma condição em certa população, com recorte de tempo determinado. Os fatores de risco com correlações significativas são: baixa qualidade das relações familiares; depressão e ansiedade materna; comportamentos internalizantes passados; ausência paterna; violência intrafamiliar e comunitária; eventos estressores; baixa renda; associação com pares “desviantes”; e uso de substâncias psicoativas (CURTO et al., 2011CURTO, B. M.; PAULA, C. S.; NASCIMENTO, R.; MURRAY, R.; BORDIN, I. A. Environmental factors associated with adolescent antisocial behavior in a poor urban community in Brazil. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol, v. 46, n. 12, p. 1221-31, 2011.; HUCULAK; MCLENNAN; BORDIN, 2011HUCULAK, S.; MCLENNAN, J. D.; BORDIN, I. A. S. Exposure to violence in incarcerated youth from the city of São Paulo. Rev Bras Psiquiatr, v. 33, n. 3, p. 314-20, 2011.; KOMATSU; BAZON, 2015KOMATSU, A. V.; BAZON, M. R. Caracterização de adolescentes do sexo masculino em relação a comportamentos antissociais. Rev Latinoam Cienc Soc Niñez Juv, v. 13, n. 2, p. 725-35, 2015.; NARDI et al., 2016; SBICIGO; DELL’AGLIO, 2013SBICIGO J. B.; DELL’AGLIO, D. D. Contextual variables associated with psychosocial adjustment of adolescents. Spanish J Psychol, v. 16, n. e11, p. 1-10, 2013.; SILVA; CIANFLONE; BAZON, 2016SILVA, J. L.; CIANFLONE, A. R. L.; BAZON, M. R. School bonding of adolescent offenders. Paideia, v. 26, n. 63, p. 91-100, 2016.). Com maior prevalência no sexo masculino, têm-se como fatores protetivos ao comportamento antissocial: a alta qualidade das relações familiares e comunitárias; forte vinculação escolar; e expectativas de futuro positivas do adolescente (CURTO et al., 2011; KOMATSU; BAZON, 2015KOMATSU, A. V.; BAZON, M. R. Caracterização de adolescentes do sexo masculino em relação a comportamentos antissociais. Rev Latinoam Cienc Soc Niñez Juv, v. 13, n. 2, p. 725-35, 2015.; NARDI et al., 2016; SBICIGO; DELL’AGLIO, 2013SBICIGO J. B.; DELL’AGLIO, D. D. Contextual variables associated with psychosocial adjustment of adolescents. Spanish J Psychol, v. 16, n. e11, p. 1-10, 2013.; SILVA; CIANFLONE; BAZON, 2016SILVA, J. L.; CIANFLONE, A. R. L.; BAZON, M. R. School bonding of adolescent offenders. Paideia, v. 26, n. 63, p. 91-100, 2016.).

Um estudo sobre autopercepção de saúde em adolescentes cumprindo medida socioeducativa de liberdade assistida em Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), referiu agravos como dificuldade para dormir, irritabilidade e baixa concentração associados a sintomas de depressão (SOUZA; ABRÃO; ALMEIDA, 2011SOUZA, E. M.; ABRÃO, F. P. S.; ALMEIDA, J. O. Desigualdade social, delinquencia e depressão: um estudo com adolescentes em conflito com a lei. Rev Salud Publica, v. 13, n. 1, p. 13-26, 2011.). Dados qualitativos de observação participante, sem relação interpretativa com os quantitativos, sugeriram desconfiança mútua entre os adolescentes atendidos, profissionais e demais usuários do CREAS (SOUZA et al., 2011).

Um estudo do tipo longitudinal prospectivo, que acompanha um grupo populacional por período longo, observando condições e fatores conexos, demonstrou correlação significativa de baixa frequência cardíaca em repouso com atos infracionais entre adolescentes da coorte de nascidos de Pelotas - RS (MURRAY et al., 2016). Murray e colaboradores (2016) indicam que, mesmo em ambientes de renda média, mas com altos índices criminais, baixa frequência cardíaca em repouso prediz delitos, violentos ou não, no grupo masculino, sendo transversalmente associada ao delito feminino.

Esses artigos epidemiológicos tendem a corroborar estudos similares realizados em outros contextos nacionais ou estrangeiros e seus autores concluem pela importância dos achados para orientar políticas públicas e programas de prevenção à violência juvenil, atenção ao comportamento antissocial e transtornos relacionados, fortalecimento de redes de apoio e/ou aprimoramento do sistema socioeducativo. Baseados em teorias neuropsiquiátricas e/ou psicológicas, esses estudos tendem a produzir o “adolescente infrator” como efeito de fatores externos ou internos que atuam sobre o indivíduo, constituindo comportamentos desviantes. Com isso, em geral, intervenções recomendadas para prevenção se dirigem ao ajustamento de condições ambientais, a partir de modelos ideais de família, comunidade, educação etc.; e, para tratamento do problema, as intervenções se voltam ao corpo individual do adolescente, não raro, com medicalização da sua condição. Ambas as linhas interventivas tendem a apagar o corpo coletivo do jovem, sobretudo nas dimensões cultural e política.

Estudos interdisciplinares em criminologia têm buscado referenciais epidemiológicos e neuropsiquiátricos, propensos a fundamentar em alianças psi-jurídicas as práticas de mediação e atendimento a adolescentes a quem se atribui ato infracional, corroborando a ênfase na relação de “comportamentos desviantes” com determinantes sociais e biológicos (MANZONI; SCHWARZENEGGER, 2020; MERCURIO et al., 2020). Mercurio e colaboradores (2020), focando o desenvolvimento cerebral do adolescente, sugerem a necessidade de um sistema de proteção integral eficaz e defendem a maioridade penal de 18 anos na América Latina; no entanto, ativam uma via ambivalente ao proporem abordagens jurídicas e políticas públicas “baseadas em evidências”, por “indicadores mensuráveis”, como exames de neuroimagem.

Temeridades em alianças psi-jurídicas são demonstradas em estudos qualitativos como o de Reis e Guareschi (2016), que analisa discursos em processos judiciais referentes a adolescentes usuários de drogas e indica a projeção desses jovens como categoria populacional em risco e indivíduos potencialmente perigosos. A internação psiquiátrica compulsória emerge nas ações judiciais como medida de prevenção à conduta infracional e solução à drogadição, abandono escolar e falta de moradia, ao tempo que direitos fundamentais são negligenciados, tendo por consequência internações repetidas, maior afastamento da família e escola e maior resistência a abordagens sociais (REIS; GUARESCHI, 2016REIS, C.; GUARESCHI, N. M. F. Preventing juvenile delinquency: compulsory hospitalization as a public security tool. Sage Open, v. 6, n. 2, p. 1-10, 2016.).

Costa e Silva (2017), pesquisando o uso de psicofármacos para adolescentes privados de liberdade no Brasil, demonstram que a governança vertical em unidades de atendimento, dissociada das diretrizes nacionais de saúde mental, promove altas taxas diagnósticas de transtornos mentais e prescrição de medicamentos passíveis de causar dependência. Tais circunstâncias têm gerado efeitos de medicalização que ameaçam o direito do adolescente à saúde integral, privilegiando práticas biomédicas individualizantes e sustando procedimentos preferenciais, como psicoterapia e práticas integrativas (COSTA; SILVA, 2017COSTA, N. R.; SILVA, P. R. F. A atenção em saúde mental aos adolescentes em conflito com a lei no Brasil. Cienc Saude Colet, v. 22, n. 5, p. 1467-78, 2017.).

No tocante à atuação da psicologia no sistema socioeducativo, à luz da psicanálise, Souza, Calazans e Moreira (2017) ressaltam a ideia de que “o ato responde a diferentes questões sociais, grupais, econômicas, mas também da dinâmica psíquica” (p. 739). Assim, sugerem a escuta do adolescente para a compreensão do lugar que o ato infracional ocupa em sua economia psíquica, podendo estar mais próximo do “crime de utilidade”, atendendo a objetivos materiais; do “crime do gozo”, impulsional e imotivado, expressando pulsão de morte objetivada no delito; ou do “crime edípico”, fundado em sentimento de culpa inconsciente que conduz ao ato pela busca de punição como forma de alívio (SOUZA; CALAZANS; MOREIRA, 2017SOUZA, J. M. P.; CALAZANS, R.; MOREIRA, J. O. Criminologia e Psicanálise: uma leitura dos atos infracionais na adolescência. Est Pesq Psicologia, v. 17, n. 2, p. 725-43, 2017.).

Em geral, os artigos deste grupo temático expressam colonialidade pelo alinhamento a teorias e métodos enquadrantes e hierarquizantes originários da Europa e/ou EUA, o que se agrava ao desconsiderarem saberes locais e dos adolescentes sobre si, expondo também a prática de silenciamento. A complexidade é negligenciada pela hesitação ao diálogo efetivo entre saberes disciplinares, sobretudo na epidemiologia, detida a aspectos de generalidade abstrata e simplificação de resultados, sem sequer sugerir a relevância da análise de dimensões outras para a Saúde Coletiva. As produções interdisciplinares em criminologia se atêm a alianças pontuais e ambivalentes entre Epidemiologia Neuropsiquiátrica e Direito. Já os estudos sociais em saúde, apontando práticas de isolamento social medicalizante como efeitos de alianças psi-jurídicas, também hesitam à aproximação aberta e positiva com subáreas mais duras das ciências da saúde. Não obstante, ao analisar relações entre aspectos de governança nacional e local/institucional, dados epidemiológicos de prevalência, práticas de medicalização e direito do adolescente, o artigo de Costa e Silva (2017) expressa abertura interdisciplinar e transdisciplinar inusitada.

Questões sociais e qualitativas localizadas

Artigos em sociologia têm indicado regularidades relacionais transversais ao fenômeno do delito juvenil. Minayo e Constantino (2012), comparando localidades distintas no Brasil e Argentina com altas e baixas taxas de homicídio, apontam sinergia entre subjetividades, sistema social (organização comunitária e governo local) e ambiente externo (macrossocial e econômico) para produção de relações frágeis ou coesas, favorecendo ou não a violência. Rocha e Rodrigues (2020), cotejando gangues juvenis em metrópoles do Brasil e América Latina, indicam que a organização dos grupos é influenciada pelas dinâmicas socioculturais da cidade, orientando formas de ingresso, rituais de iniciação, tamanho do coletivo, tipo de vínculo entre integrantes, nível de coesão, grau de especialização criminal e sistemas de rivalidade.

Um estudo considerando a possível ligação entre crimes violentos e penetração do Facebook® em 148 países, enuncia que a rede social mostra maior efetividade em regiões mais desiguais e países onde a taxa criminal é mais alta (ASONGU; NWACHUKWU; ORIM; PYKE, 2019ASONGU, S.; NWACHUKWU, J.; ORIM, S.M.; PYKE, C. Crime and social media. Inf Technol People, v. 32, n. 5, p. 1215-33, 2019.). Asongu e colaboradores (2019ASONGU, S.; NWACHUKWU, J.; ORIM, S. M.; PYKE, C. Crime and social media. Inf Technol People, v. 32, n. 5, p. 1215-33, 2019.) sugerem que as políticas de uso da rede social poderiam ser adaptadas de forma distinta para países com níveis altos, intermediários e baixos de criminalidade, pois, ainda que não se possa afirmar relação de causalidade, a publicação de mensagens digitais tem relevância na modulação de tendências violentas devido à diversidade de informação, moderação ideológica e produção de rivalidade.

Estudos em criminologia também têm conciliado teorias sociológicas e Direito, com potencial de influir sobre mediação jurídica e atendimento a jovens envolvidos com ilícitos. Nessa linha, Ferreira, Bastos e Batarelli-Júnior (2019) analisam relações do controle social e repressão estatal com prática de homicídios no Brasil, supondo que controladores sociais devem atuar no manejo primário do ato delitivo socializando crenças positivas de adesão ao regramento legal mediadas pelo custo moral da ligação com o crime. A menor coatividade social se mostra associada a altas taxas de homicídio e alta aplicação da lei, evidenciando o caráter conjuntural e dinâmico entre controle social, decisões individuais de infração e ação estatal repressiva/punitiva (FERREIRA; BASTOS; BATARELLI-JÚNIOR, 2019).

Em Belo Horizonte-MG, Silva (2014) buscou a relação entre crimes urbanos e processos sociocomunitários nas periferias, com base na Teoria da Desorganização Social (TDS) (SAMPSOM; GROVES, 1989 apud SILVA, 2014SILVA, B.F.A. Social Disorganization and crime: searching for the determinants of crime at the community level. Lat Am Res Rev, v.49, n.3, p.218-30, 2014.). Os resultados corroboram a TDS e seu modelo analítico, demonstrando que o nível de organização sociocomunitária, baseado em parâmetros como risco de exposição ao crime, rede de amizade local e participação organizacional, tem reflexos significativos em taxas criminais, com diferenciações referentes ao tipo de delito – assalto, estupro etc. (SILVA, 2014SILVA, B.F.A. Social Disorganization and crime: searching for the determinants of crime at the community level. Lat Am Res Rev, v.49, n.3, p.218-30, 2014.).

Ainda que ajudem a compreender regularidades acerca do fenômeno, esses estudos de base sociológica, sem evocar possíveis controvérsias históricas e sociopolíticas, em lógica análoga à dos estudos epidemiológicos, contribuem para projetar o “adolescente infrator” como mero efeito de coerção sistêmica. Nas considerações, os autores tendem a exaltar a importância de seus achados e sugerem novos estudos com a mesma ênfase ou referencial teórico.

Pesquisas em psicologia do desenvolvimento têm enfocado elementos circunstanciais da vida de jovens sob risco ou envolvidos em ato infracional. Gibbons e Poelker (2017) cotejam programas não governamentais de atenção a jovens socialmente vulnerabilizados da América Latina e Caribe. Tais iniciativas, por vezes ligadas a empresas multinacionais, adotam estratégias e enfoques variados para lidar com diferentes realidades e tendem a ativar potenciais nos adolescentes, gerando benefícios semelhantes em termos de desenvolvimento positivo (GIBBONS; POELKER, 2017GIBBONS, J. L.; POELKER, K. E. At-risk Latin American youth: challenges to change. Rev Psicologia, v. 35, n. 2, p. 667-701, 2017.). Por sua vez, Zappe e Dias (2012), pesquisando em unidade de atendimento socioeducativo no Rio Grande do Sul, apontam a exposição de adolescentes, por vezes desde a infância, a várias formas de violência e negação de direitos associadas à fragilidade familiar e comunitária; e sugerem necessidade de ações de reforço a redes de apoio.

A psicologia do desenvolvimento segue a corrente de projeção do adolescente como indivíduo em construção para atender funcionalmente à ordem sociocultural fundada na ideologia liberal-capitalista, atribuindo responsabilidade maior por “desvios” à família e comunidade local. Assim, Estado e instituições civis, que restringem direitos fundamentais e relegam populações à periferia social, são convocados apenas a remediar com políticas assistenciais o efeito das práticas hierarquizantes e excludentes de seus modelos de organização.

À luz do pensamento crítico, estudos em antropologia têm explorado nexos e efeitos de processos políticos que constituem o envolvimento de jovens periferizados com o crime. Nesse caminho, enfocando processos de identificação e afiliação da juventude negra com a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo - SP, Alves (2015), aponta uma dimensão política que leva jovens a projetar no crime meios de enfrentamento ao racismo estatal. Assim, o discurso dos direitos humanos, levantado em ações pontuais de assistência, tem penetração limitada nesse grupo, posto que tais direitos são historicamente negados e violados no cotidiano dos territórios de exclusão racializada, sem atenção ao desenvolvimento coletivo e com políticas de repressão, encarceramento, hiperviolência e morte (ALVES, 2015ALVES, J. A. Blood in reasoning: State violence, contested territories and black criminal agency in urban Brazil. J Lat Am Stud, v. 48, p. 61-87, 2015.). Por outro lado, as práticas de dominação da facção, mesclando políticas de proteção comunitária e medo, fazem emergir nos jovens hipermasculinidades expressadas em atos de opressão, inclusive de gênero, nos territórios controlados (ALVES, 2015ALVES, J. A. Blood in reasoning: State violence, contested territories and black criminal agency in urban Brazil. J Lat Am Stud, v. 48, p. 61-87, 2015.).

Por sua vez, Willis (2016) analisa processos relativos à contagem ou não de corpos em estatísticas oficiais de homicídio, considerando práticas da polícia e do PCC em São Paulo - SP. O caso estudado mostra que a governança que regula a política de vida e morte escapa do Estado para facções dotadas de leis e tribunais próprios que confluem à ordem legal formal e oficial, incluindo acordos supraoficiais para redução da violência (WILLIS, 2016WILLIS, G. D. Before the Body Count: Homicide statistics and everyday security in Latin America. J Lat Am Stud, v. 49, n. 1, p. 29-54, 2016.). Segundo Willis (2016), estatísticas oficiais de crimes praticados por facções na América Latina têm sido manipuladas politicamente pelo Estado, gerando hesitação ao uso desses dados nas ciências sociais, por seus efeitos sobre a produção científica e o futuro da segurança vivida.

Neste grupo temático, tanto os artigos de base sociológica como os da psicologia do desenvolvimento ainda se sustentam em teorias funcionalistas, enquadrantes e hierarquizantes de origem euro-estadunidense, fazendo denotar colonialidade, silenciamento e, consequentemente, distanciamento da complexidade. Já os artigos de base antropológica, alinhados ao pensamento crítico, expressam tendência decolonial com a valorização dos saberes, práticas e narrativas dos grupos pesquisados, contrapostos ao padrão hegemonizado, também com abertura à complexidade, posto que o método etnográfico se faz, em si, transdisciplinar.

Fundamentos e práticas jurídicas e institucionais

No que tange à governança, Cruz (2016) discute a necessidade de trazer o Estado de volta às análises criminais, apontando que, na América Latina e Caribe, agentes estatais, na busca por legitimidade e autoridade política, contribuem à escalada da violência criminal quando alargam os limites legais de uso da força, toleram e apoiam o emprego de abordagens extralegais e/ou fazem parcerias com milícias e facções criminosas. Iturralde (2019) avança na discussão sobre campos de controle do crime na América Latina considerando a atual escalada punitivista e a influência do modelo neoliberal estadunidense via políticas internacionais de guerra às drogas e segurança das cidades. Para Iturralde (2019), realidades singulares de autoritarismo, criminalidade e violência, junto a processos de ascensão do populismo moralista e instabilidades em regimes de governança, cidadania e distribuição socioeconômica, indicam que o surto punitivo que marca uma mudança de época na América Latina não é mera expressão da globalização de um modelo de Estado penal neoliberal.

O papel do jornalismo na difusão de ideologias punitivistas e socialmente insensíveis tem pautado estudos que analisam a abordagem e repercussão de casos de ato infracional no Brasil. A produção do “adolescente infrator” no jornalismo tem se dado com mobilização de elementos morais e discursivos específicos, na relação com marcadores da diferença, de modo a destacar ou não questões psicossociais, levando cada caso a ser tratado ou no viés protetivo ou no viés punitivo (ANDRADE; SILVA; RIBEIRO, 2020ANDRADE, F. S.; SILVA, C. M.; RIBEIRO, R. O. “Menor Infrator” na mídia: etnografia da criminalização da pobreza no G1. Psicol Cienc Prof, v. 40, p. 1-14, 2020.; MACHADO; PASSETTI, 2016MACHADO, R. V.; PASSETTI, M. C. C. “Faça um favor ao Brasil: adote um bandido" - A constituição dos sentidos sobre o sujeito adolescente em conflito com a lei no Telejornal “SBT Brasil”. Forum Linguistioco, v. 13, n. 3, p. 1351-62, 2016.). Se o jovem é pobre, negro e filho de família alheia ao modelo ideal, a matéria tende a projetá-lo como ser inferior, menos humano, merecedor de castigo físico e moral, ao tempo que punições aplicadas à margem da lei tendem a ser projetadas como reações “naturais” à violência e ao caos social (ANDRADE; SILVA; RIBEIRO, 2020ANDRADE, F. S.; SILVA, C. M.; RIBEIRO, R. O. “Menor Infrator” na mídia: etnografia da criminalização da pobreza no G1. Psicol Cienc Prof, v. 40, p. 1-14, 2020.; MACHADO; PASSETTI, 2016MACHADO, R. V.; PASSETTI, M. C. C. “Faça um favor ao Brasil: adote um bandido" - A constituição dos sentidos sobre o sujeito adolescente em conflito com a lei no Telejornal “SBT Brasil”. Forum Linguistioco, v. 13, n. 3, p. 1351-62, 2016.).

Quanto ao sistema de justiça, estudos que analisam processos judiciais no Brasil indicam prolongada crise de interpretação, implementação e adesão da doutrina de proteção integral. Segundo Minahim e Sposato (2011), a textura aberta do ECA, com princípios carentes de regulamentação para preenchimento de sentido, favorece ao juiz atuar como produtor do direito a partir de sua subjetividade ideológica, interpretativa e decisória. Para Costa e Goldani (2015), tendências valorativas associadas a processos históricos de formação da moralidade social brasileira adentram aos tribunais e coadunam à persistência de práticas fundadas na doutrina da situação irregular de 1927, baseando o tratamento jurídico do adolescente na sua condição social, comunitária e familiar. Os atos jurídicos tendem a hesitar a adoção de um modelo amplamente garantista, imputando ao adolescente e à família, dita “desestruturada”, a culpa por efeitos da negação, pelo próprio Estado, de direitos constitucionais e estatutários; levando ao estrito sentenciamento de medidas, mormente de internação, em ciclos arbitrários e higienistas de encarceramento em unidades precárias e posterior devolução a ambientes marcados por negação de cidadania e exploração do crime organizado (COSTA; GOLDANI, 2015COSTA, A. P. M.; GOLDANI, J. M. A influência do contexto familiar nas decisões judiciais a respeito de atos infracionais de adolescentes: o intervencionismo familiar ainda se faz presente? Textos Contextos, v. 14, n. 1, p. 87-103, 2015.; FEITOSA; BOARINI, 2014FEITOSA, J. B.; BOARINI, M. L. The defense of socio-educational internment: feature of the hygienist principles. Paideia, v. 24, n. 57, p. 125-33, 2014.; MINAHIM; SPOSATO, 2011MINAHIM, M. A.; SPOSATO, K. B. A internação de adolescentes pela lente dos tribunais. Rev. Direito GV, v. 7, n. 1, p. 277-98, 2011.).

Marinho e Vargas (2015) sugerem que o trato ao adolescente acusado de delito no Brasil é pervertido por racialização, criminalização da pobreza e violação de direitos, incluindo os âmbitos policial, judicial e de atendimento socioeducativo. Lucena (2016) alerta para a necessidade de desmistificar concepções ideológicas que atravessam práticas acerca de crianças e adolescentes expostos à relação com o crime em sociedades desiguais fundadas sob as mazelas do capitalismo.

Pensando em transpor o apelo punitivo-retributivo no trato judicial ao delito juvenil, Lima e Boneti (2018) discutem a “justiça restaurativa” como método sociojurídico legítimo, mais democrático e eficaz, baseado em estratégias de sensibilização das partes interessadas junto a outros atores sociocomunitários para que se façam mutuamente mobilizados em uma rede de solução de conflitos, reparação de danos e restauração do sentimento de justiça. Assim, o jovem autor de ato infracional é retirado da condição passiva e subjugada imposta por ordenamentos hierárquicos e penitenciais, ganhando status de pessoa ativa que, capaz de reconhecer o efeito de seus atos, pode atuar na produção de respostas coletivas e dialogadas aos problemas causados para o outro, para si e para a comunidade (LIMA; BONETI, 2018LIMA, C. B.; BONETI, L. W. A justiça restaurativa como processo educativo de resistência ao itinerário penalizador dirigido aos jovens da periferia urbana. Polit Trab Rev Cienc Soc, v. 48, p. 183-96, 2018.).

Considerando a ambiguidade das medidas socioeducativas com sentidos sancionatório-aflitivo e educativo-ressocializador, Piloni e Franco (2019) verificam a aplicabilidade, em processos por atribuição de ato infracional, do “princípio da insignificância”, utilizado no direito penal como expediente para não punição de crimes que geram ofensa leve. Os tribunais superiores têm consolidado entendimento de que tal princípio é aplicável a atos infracionais, desde que considerados os requisitos ao seu reconhecimento; sua adoção na primeira instância é percebida ao menos no estado do Mato Grosso, local da pesquisa (PILONI; FRANCO; 2019PILONI, V. M. M. S.; FRANCO, V. M. A aplicação do princípio da insignificância em matéria socioeducativa : um estudo crítico e comparativo entre o paradigma jurisprudêncial brasileiro e a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Rev Fac Direito Univ Fed Uberlandia, v. 47, n. 2, p. 134-67, 2019.).

Enfocando a atuação profissional no cotidiano de atendimento socioeducativo em uma unidade de internação, Leal e Macedo (2019) enunciam que concepções moralistas e de culpabilização das famílias mediam práticas punitivas, por vezes violentas, sob justificativa de produzir adequação ao comportamento do adolescente e produção de sociabilidades compatíveis para sua aceitação no sistema capitalista legal, preservando a ordem social. Marques (2013MARQUES, G. C. S. M. Acompanhamento de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas: do direito a implementação da ação educativa. Rev Eletronica Educ, v. 7, n. 1, p. 192-210, 2013.) defende a necessidade de investimento estatal para equipamento adequado das unidades, formação profissional continuada, produção de estratégias de garantia de direitos e inclusão participativa do jovem, além da sensibilização da opinião pública para superar ideias punitivas. Tendo em vista o seu potencial para a reflexão, disciplina e inibição da violência, Lopes e Berclaz (2019) discutem a negligência do poder público quanto à efetivação, nas unidades de atendimento, de programas voltados à cultura e ao esporte – direitos fundamentais definidos na Constituição Federal, no ECA e no Estatuto da Juventude.

Abordando a rotina escolar no sistema socioeducativo, Carvalho e Coelho (2013) consideram que a autoimagem do adolescente como simples encarcerado cumprindo sentença e a desmotivação do professor com recursos limitados e metodologias verticalmente definidas inibem a composição de novas sociabilidades e projetos de vida para o educando, sugerindo a necessidade de programas pedagógicos específicos. Para Fialho (2012), instalações precárias, tempo reduzido de aulas e interferências administrativas com suspensão de atividades escolares para punir internos por mal comportamento em outros ambientes, confluem uma educação precária, desconexa ao melhor interesse do jovem e propensa à mera execução de protocolos numéricos. Já Pessano e colaboradores (2015PESSANO, E. F. C. et al. O rio Uruguai como estratégia de contextualização para ensino em uma unidade de restrição de liberdade para adolescentes. Gondola Ensen Aprendiz Cienc, v. 10, n. 1, p. 74-101, 2015.) avaliam o uso de temáticas locais e articulação interdisciplinar como estratégia eficaz para inclusão do jovem em processos coletivos de produção de saberes.

Os artigos abarcados neste grupo temático são uníssonos em expor, nas práticas socioinstitucionais do Brasil, o cruzamento de aspectos ideológicos de cunho moral discriminatório e punitivo e de cunho liberal-capitalista, que atuam em resistência às diretrizes estabelecidas na legislação nacional para garantia de direitos e proteção integral ao adolescente acusado de ato infracional. No entanto, as sugestões de novas práticas, quando aparecem nesses artigos, em sentido revisional reformador, a partir de novos entendimentos também fundados na modernidade eurocêntrica, ainda manifestam colonialidade, deixando lacunas na enunciação de ideias que embasem estratégias de inflexão sistêmica a lógicas socioculturais feitas hegemônicas e seus efeitos deletérios sobre os jovens em questão e sobre o corpo social ampliado. O silenciamento infantojuvenil aparece nos trabalhos de base empírica envolvendo adolescentes (COELHO; CARVALHO, 2013; FIALHO, 2012FIALHO, L. M. F. O Ensino Médio ministrado no Centro Educacional Patativa do Assaré. Holos, v.2, p.184-92, 2012.; PESSAMO et al., 2015), deixando-os submetidos aos crivos de “especialistas”, o que também compromete o acesso à complexidade pela tendência à sociologização/pedagogização/assistencialização dos problemas. Entre os artigos de base teórico-ensaística, destaca-se o de Lima e Boneti (2018), pela abertura decolonial e transdisciplinar e pela valorização dos saberes locais e dos adolescentes, expressa na defesa da justiça juvenil restaurativa.

Práticas sociocientíficas e lógicas de produção

Segundo Diptee e Trotman (2014), ideias de infância e juventude têm sido delineadas pela dinâmica atlântica e global, com práticas sociocientíficas que desconsideram especificidades históricas desses grupos em situações coloniais. Ao menos quatro fatores moldaram as realidades da criança e do jovem no sul global colonizado: racialização; enquadramentos conceituais para atender prioridades econômicas dos Estados coloniais; narrativas em termos de desvio e patologia acerca do comportamento infantojuvenil; e atuação histórica de noções não-ocidentalizadas sobre infância e juventude se opondo a imposições coloniais, apesar do severo desequilíbrio de poder (DIPTEE; TROTMAN, 2014DIPTEE, A. A.; TROTMAN, D. V. Atlantic childhood and youth in global context: reflections on the Global South. Atl Stud Glob Curr, v. 11, n. 4, p. 437-48, 2014.). Posto que organismos internacionais como a ONU buscam impor uma noção globalizada sobre tais grupos sociais, com tendências universalizantes, Diptee e Trotman (2014) chamam atenção para a necessidade de estudos que explorem fontes diferentes das usuais, com vistas a desenvolver novas narrativas sobre vivências de crianças e jovens no sul global.

Sendo o único item dos resultados de nossa busca literária que se encaixa neste último grupo temático ao problematizar práticas e lógicas da produção sociocientífica sobre o tema, o artigo de Diptee e Trotman (2014) vem servir ao aprofundamento da discussão acerca do conjunto dos artigos já apresentados. Nesta revisão, apenas o artigo de Alves (2015) expôs inclinação decolonial em pesquisa empírica ao questionar a penetração e validação do discurso de direitos humanos, eurocêntrico e pretensamente universal, entre jovens racializados como negros em território periferizado, apontando ainda o caráter político da identificação e afiliação de alguns desses jovens a uma facção criminosa. Os demais artigos empíricos, mesmo anunciando propostas críticas, em geral, para tratar de adolescência e delito, se baseiam em referenciais universalizantes oriundos da Europa e EUA, desde teorias psicológicas do desenvolvimento até o materialismo dialético marxiano, ambos que têm reflexos importantes sobre o ECA.

Duas lógicas fundantes das práticas sociocientíficas do mundo ocidentalizado – separação-oposição e disjunção-redução –, conexas ao pensamento positivista, materialista, racionalista, funcionalista e utilitarista, conduzem a múltiplas categorizações e hierarquizações que ultrapassam o caráter binário, como no caso das fases do desenvolvimento humano – infância, adolescência, adultez e velhice (LE BRETON, 2017LE BRETON, D. Uma breve história da adolescência. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017.; MORAES, 2015MORAES, M. C. Da ontologia e epistemologia complexa à metodologia transdisciplinar. Terceiro Incluído, v. 5, n. 1, p. 1-19, 2015.). Ocorre que tais lógicas geralmente se articulam com a lógica da homogeneização-universalização, levando a enquadramentos, como os que Diptee e Trotman (2014) observam na produção da infância e juventude pela modernidade/colonialidade eurocêntrica. Assim, o conceito categórico “adolescência”, disseminando um pretenso ideal universal de “ser adolescente”, impõe classificar indivíduos e coletivos mediante critérios de normalidade/desvio/anormalidade pelo ajustamento funcional aos modelos de organização eurocentrados (ARIÈS, 1981ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981.; DIPTEE; TROTMAN, 2014DIPTEE, A. A.; TROTMAN, D. V. Atlantic childhood and youth in global context: reflections on the Global South. Atl Stud Glob Curr, v. 11, n. 4, p. 437-48, 2014.; DONZELOT, 1986DONZELOT, J. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro, Graal, 1986.; LE BRETON, 2017LE BRETON, D. Uma breve história da adolescência. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017.).

A própria ciência, além de ter sido separada e elevada a status de superioridade na hierarquização de saberes do mundo ocidentalizado, apresenta em si divisões por áreas, subáreas e disciplinas, com bases epistemológicas, teóricas e metodológicas específicas e por vezes antagonizadas. Logo, ao abordarem um tema como adolescência, distintas subdivisões da ciência tendem a também fragmentar o corpo empírico do adolescente, já enquadrado, enfocando aspectos biológicos ou sociais, psicológicos, culturais, econômicos, jurídicos etc., ainda que haja possibilidades de alianças disciplinares, não raro, pontuais ou estratégicas. Nesse sentido, ressalte-se que estudos contemporâneos elucidam a ciência como processo de fabricação interpretativa que tem em sua base pressupostos, ou seja, postulados metafísicos atravessados por cultura, subjetividades e interesses que orientam a produção do objeto e a pesquisa metódica na busca por resultados; não como instrumento de apreensão objetiva de realidades únicas e exatas (ALEXANDER, 2015ALEXANDER, J. C. Positivism, Pressupositions and Current Controversies. Theoretical Logic in Sociology. Londres: Routledge, 2015.; MORAES, 2015MORAES, M. C. Da ontologia e epistemologia complexa à metodologia transdisciplinar. Terceiro Incluído, v. 5, n. 1, p. 1-19, 2015.).

O pensamento complexo, mesmo reconhecendo a importância de separar e opor nos processos de produção de objetos e conhecimentos científicos, convida a transpor fronteiras disciplinares e especialidades produzidas na lógica de disjunção-redução (MORAES, 2015MORAES, M. C. Da ontologia e epistemologia complexa à metodologia transdisciplinar. Terceiro Incluído, v. 5, n. 1, p. 1-19, 2015.). Dentre os artigos desta revisão, somente o de Costa e Silva (2017), da Saúde Coletiva, refere uma pesquisa empírica próxima à transdisciplinaridade, integrando saberes e dados da epidemiologia, política, sociologia e direito.

O argumento complexo e transdisciplinar segue a propor intercâmbios efetivos também com saberes locais de populações tomadas em estudo, de modo a integrar formas diversas de saber-poder-fazer sem reduções, oposições estanques, subjugações ou silenciamentos (MORIN, 2009MORIN, E. Saberes Globais e Saberes Locais: o olhar transdisciplinar. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.; MORAES, 2015MORAES, M. C. Da ontologia e epistemologia complexa à metodologia transdisciplinar. Terceiro Incluído, v. 5, n. 1, p. 1-19, 2015.; SOUSA-SANTOS, 2018SOUSA-SANTOS, B. Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Essencial. Buenos Aires: CLACSO, 2018.). A disposição do pesquisador para intercâmbios amplos e horizontais pode ser requisito principal para estudos ao mesmo tempo transdisciplinares e decoloniais.

Nesta revisão, nenhum artigo empírico combinou com efeito transdisciplinaridade e decolonialidade, e, neste cenário, emerge das práticas empíricas o silenciamento infantojuvenil. Acontece que, ainda que haja participação do adolescente em pesquisa sobre tema de seu interesse, com teste, questionário, entrevista ou observação dialogada, se os dados produzidos são arbitrariamente submetidos ao crivo de especialidades e teorias redutoras e hierarquizantes, o silenciamento infantojuvenil permanece, com todo caráter de violência.

Se o pesquisador com o humano adere a concepções simplificadas, privilegiando causas, ou o “porquê” da diferença, acaba por desprezar os processos complexos constituintes da diferença, ou o “como”, que só pode ser acessado substancialmente pela compreensão de saberes e práticas relacionais acerca do objeto. Portanto, a superação do silenciamento infantojuvenil, pela relação intercambiante e reflexiva entre pesquisador e pesquisados, implica sensibilidade a territórios, culturas, modos de expressão, gerações e lugares de saber-poder-fazer-dizer, demovendo arrogâncias intelectuais e atos coloniais da prática sociocientífica (MORIN, 2009MORIN, E. Saberes Globais e Saberes Locais: o olhar transdisciplinar. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.; SOUSA-SANTOS, 2018SOUSA-SANTOS, B. Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Essencial. Buenos Aires: CLACSO, 2018.).

Ponderações continuadas

Este estudo apresentou de modo narrativo o estado atual do conhecimento e o panorama empírico da produção científica em torno do fenômeno adolescência e ato infracional, a partir de literatura publicada na década (2011-2020), em periódicos revisados por pares. Com inspiração na ontologia analítica e em diálogo com os paradigmas da decolonialidade e da complexidade/transdisciplinaridade, se buscou sinalizar os modos de projeção sociocientífica sobre adolescência e ato infracional, bem como lacunas e controvérsias que atravessam os estudos em diversas áreas e disciplinas.

O conjunto da literatura analisada denota um “estado da arte” fragmentado e disperso no terreno das áreas de conhecimento, com produções que expressam polarizações discursivas, alianças disciplinares pontuais e estratégicas e raras aberturas ao diálogo multidisciplinar ampliado. Mesmo na Saúde Coletiva, onde se advoga por inter e transdisciplinaridade, emerge nesta revisão um único artigo (COSTA; SILVA, 2017COSTA, N. R.; SILVA, P. R. F. A atenção em saúde mental aos adolescentes em conflito com a lei no Brasil. Cienc Saude Colet, v. 22, n. 5, p. 1467-78, 2017.) que expressa tal abertura ao tratar transversalmente dados epidemiológicos, governança, medicalização social e direito da criança e do adolescente, fato que traz especial provocação aos pesquisadores deste campo. Lacunas do conhecimento e dificuldades teóricas, epistemológicas e metodológicas acusam relação direta com a fragmentação e dispersão da produção, pela notada obstrução ao contato amplo entre saberes.

Já o panorama empírico, em correlação com o “estado da arte”, expressa, com poucas exceções, um modo de produção que fragmenta o adolescente a quem se atribui ato infracional, com base em teorias e modelos colonialistas, homogeneizantes e universalizantes. Assim, pessoas enquadradas como adolescentes são separadas entre os que seguem e os que desviam dos padrões estabelecidos; sendo os corpos desviantes comumente suprimidos de dimensões sócio-históricas e individualizados na busca de causas estendidas no máximo à família e à comunidade de origem, comumente racializada e periferizada.

Os resultados deste estudo de revisão, evidenciando práticas sociocientíficas e lógicas de produção atravessadas por colonialidade, silenciamento infanto-juvenil e simplificação ou redução disciplinar do fenômeno põem em risco dois princípios defendidos tanto no campo da Saúde Coletiva como no ECA: a garantia de direitos e a integralidade. Se a produção científica sobre adolescência e ato infracional se faz fragmentada e dispersa, subestimando saberes locais, sem atuar pela inflexão a lógicas eurocentradas de simplificação, hierarquização e homogeneização, seus efeitos práticos só podem fragilizar a garantia de direitos e a atenção à juventude em suas múltiplas formas e dimensões, que deve considerar corpos jovens diversos com seus atravessamentos sociais, políticos, culturais, comunitários, familiares etc.

Ao corroborar modelos ideais e ideológicos que não alcançam ao todo pela própria constituição do sistema socializador hierarquizante e excludente, a ciência, feita pública pela literatura e por sua aplicação, deixa de cumprir o pretenso dever de contribuir ao progresso da vida e das relações humanas e ecológicas. Nesse sentido, o pensamento crítico, decolonial, complexo e transdisciplinar parece ser orientação elementar a uma ciência que integre distintos saberes e rompa com silenciamentos, divisões, oposições e hierarquizações estanques.

Agradecimento

Ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação, pelo apoio financeiro à publicação deste artigo, através do programa CAPES/PROEX.

REFERÊNCIAS

  • ALEXANDER, J. C. Positivism, Pressupositions and Current Controversies. Theoretical Logic in Sociology. Londres: Routledge, 2015.
  • ALVES, J. A. Blood in reasoning: State violence, contested territories and black criminal agency in urban Brazil. J Lat Am Stud, v. 48, p. 61-87, 2015.
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Editor responsável: Martinho Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jan 2022
  • Aceito
    24 Mar 2022
  • Revisado
    03 Out 2022
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