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O cuidado em saúde mental e a participação política de usuários e familiares na ressignificação do estigma sobre os transtornos mentais

Resumo

A persistência do estigma associado aos transtornos mentais deve ser um problema a ser enfrentado pelos sistemas de saúde na luta contra a discriminação de pessoas que experienciam sofrimento psíquico. Este estudo qualitativo, do tipo narrativo, objetiva compreender a experiência de conviver com o estigma relacionado aos transtornos mentais a partir dos relatos de usuários e de familiares de pessoas atendidas em Centros de Atenção Psicossocial de diferentes regiões da cidade de Fortaleza-CE. Foram entrevistados quatro usuários e três familiares que guardavam a particularidade de pertencerem a um núcleo da luta antimanicomial. Por meio de um roteiro com perguntas sobre as experiências individuais na busca por cuidados, as informações produzidas foram analisadas pelo método da hermenêutica dialética. Os resultados mostram que o estigma se faz presente no cotidiano, implicando sofrimento e discriminação. Contudo, os processos de cuidado recebidos, orientados para o reconhecimento dos potenciais e da condição de sujeitos políticos, ressignificaram percepções negativas sobre si mesmos e sobre os serviços em que eram atendidos. Esse processo colaborou com o engajamento dos usuários e dos familiares nas instâncias oficiais de controle social e no movimento antimanicomial, instigando, entre os sujeitos, a defesa do cuidado humanizado e do combate ao estigma.

Palavras-Chave:
Estigma social; Transtornos mentais; Saúde mental; Narrativa pessoal

Abstract

The persistence of stigma associated with mental disorders is a problem that health systems must face in the fight against discrimination of people who experience psychological distress. This qualitative narrative study aims to understand the experience of living with the stigma related to mental disorders from the reports of users and family members of people assisted in Psychosocial Care Centers in different regions of the city of Fortaleza-CE. Four users and three family members who kept the particularity of belonging to a nucleus of the anti-asylum struggle were interviewed. Through a script with questions about individual experiences in the search for care, the information produced was analyzed by the method of dialectical hermeneutics. The results show that stigma is still present in everyday life, implying suffering and discrimination of these people. However, the mental health care processes received, which were oriented towards the recognition of the potential and condition of political subjects, gave new meaning to negative perceptions about themselves and about the services in which they were treated. This process contributed with the engagement of users and family members in official instances of social control and in the anti-asylum movement, instigating, among the subjects, the defense of humanized care and the fight against stigma.

Keywords:
Social stigma; Mental disorders; Mental health; Personal narrative

Introdução

O estigma relacionado aos transtornos mentais é um fenômeno social que preocupa por sua persistência. Mesmo com o propósito da Reforma Psiquiátrica de produzir transformações socioculturais no entendimento da loucura (ALVERGA; DIMENSTEIN, 2006ALVERGA, A. R.; DIMENSTEIN, M. A reforma psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da loucura. Interface, v. 10, p. 299-316, 2006.; AMARANTE; TORRE, 2018AMARANTE, P.; TORRE, E. H. G. “De volta à cidade, sr. cidadão!” reforma psiquiátrica e participação social: do isolamento institucional ao movimento antimanicomial. Revista de Administração Pública, v. 52, n. 6, p. 1090-1107, 2018.), trata-se de um fenômeno ainda observado como produtor de exclusão.

O conceito de estigma ganhou repercussão com os estudos de Goffman (1988)GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Perspectiva, 2ª reimp. 8ª ed. 2013.. O autor desenvolveu reflexões em que evidenciou o estigma como uma forma socialmente construída de atribuição pejorativa a certos atributos físicos, ou simbólicos, de pessoas ou grupos. Desde então, pode-se abordá-lo como um entrave ao reconhecimento da dignidade das pessoas, visto que a percepção estigmatizante tende a depreciar os sujeitos e a enfatizar uma suposta inferioridade dos estigmatizados.

Esse fenômeno social deve ser considerado pelos trabalhadores e pesquisadores da Saúde Coletiva como um elemento importante que permeia o processo saúde-doença. Como apontam Monteiro e Vilela (2013)MONTEIRO, S.; VILELA, W. Desafios teóricos, epistemológicos e políticos da pesquisa sobre estigma e discriminação no campo da saúde. In. MONTEIRO, S; VILELA, W. (eds.) Estigma e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. p. 13-26., há a necessidade de abordá-lo, examinar as relações de poder e as repercussões do estigma sobre as oportunidades de vida e sobre as condições de saúde daqueles que sofrem com o problema.

Reconhecido como um problema a ser enfrentado pela saúde mental nos sistemas de saúde, o estigma precisa ser abordado pelos formuladores das políticas públicas em decorrência dos seus impactos negativos, como o empecilho para a ressocialização dos sujeitos e o prejuízo na busca por cuidados em saúde mental (HENDERSON; EVANS-LACKO; THORNICROFT, 2013HENDERSON, C.; EVANS-LACKO, S.; THORNICROFT, G. Mental illness stigma, help seeking, and public health programs. American journal of public health, v. 103, n. 5, p. 777-780, 2013.; PARKER, 2013PARKER, R. Interseções entre estigma, preconceito e discriminação na saúde pública mundial. In: MONTEIRO, S.; VILELA, W. (eds.). Estigma e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. p. 25-46.; SILVEIRA et al., 2018SILVEIRA, P. S.; CASELA, A. L. M.; MONTEIRO, E. P et al. Psychosocial understanding of self-stigma among people who seek treatment for drug addiction. Stigma and Health., v. 3, n. 1, p. 42-52, 2018.). Seus efeitos operam, muitas vezes, como uma condição que produz barreiras para o acesso livre e integral aos cuidados (CORRIGAN; DRUSS; PERLICK, 2014CORRIGAN, P. W.; DRUSS, B. G.; PERLICK, D. A. The impact of mental illness stigma on seeking and participating in mental health care. Psychological Science in the Public Interest, v. 15, n. 2, p. 37-70, 2014.). Ademais, afeta negativamente não apenas os usuários dos serviços, mas também a rede de cuidados, inclusive podendo ser reproduzido por profissionais de saúde (VIEIRA; DELGADO, 2021VIEIRA, V. B.; DELGADO, P. G. G. Estigma e saúde mental na atenção básica: lacunas na formação médica podem interferir no acesso à saúde? Physis, Rio de Janeiro, v. 31, 2021.).

Tendo em vista a relevância do problema para a organização de uma assistência em saúde mental de base comunitária, observa-se que é fundamental conhecer e construir estratégias para reduzir o estigma nos territórios. O processo de desinstitucionalização no campo das políticas de saúde mental deve ter como um de seus objetivos buscar transformar as relações que a sociedade estabelece com a loucura (ROTELLI, 1990ROTELLI, F. A instituição inventada. In: ROTELLI, F. et al. (Org.). Desinstitucionalização. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 89-100.; LIMALIMA, A. M.; SOUZA, A. C.; SILVA, A. L. A. Desinstitucionalização e rede de serviços de saúde mental: uma nova cena na assistência à saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 73, e 20180964, 2020. et al., 2020).

Andrade e Maluf (2014) têm destacado que, na literatura nacional, a experiência da reforma vem sendo predominantemente discutida pelo ponto de vista dos trabalhadores e gestores. Por considerar que a formulação dessas políticas deve envolver a participação de quem vivenciou a experiência em primeira pessoa, concordamos com Cea Madrid (2019): é preciso conferir relevância ao papel dos movimentos sociais de usuários e familiares na produção de conhecimento sobre a atenção em saúde mental.

No cenário brasileiro, o movimento social da luta antimanicomial mostra-se como um dos movimentos do campo da defesa dos Direitos Humanos, que se empenha pelo fim dos manicômios em todas as suas modalidades e discursos produtores de opressão (LOBOSQUE, 2003LOBOSQUE, A. M. Clínica em movimento: por uma sociedade sem manicômios. Rio de janeiro: Editora Garamond, 2003.). Ele reúne trabalhadores, usuários e familiares dos serviços de saúde mental, os quais têm denunciado as violências sofridas pelas pessoas com sofrimento psíquico. Desse modo, tem se posicionado pela defesa dos serviços comunitários no Sistema Único de Saúde (SUS), ao defender o cuidado em liberdade e ao buscar combater estigmas, propondo, assim, a ressignificação do lugar da loucura na sociedade (BARBOSA; COSTA; MORENO, 2012BARBOSA, G. C.; COSTA, T.; MORENO, V. Movimento da luta antimanicomial: trajetória, avanços e desafios. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, v. 4, n. 8, p. 45-50, 2012.; AMARANTE; TORRE, 2018AMARANTE, P.; TORRE, E. H. G. “De volta à cidade, sr. cidadão!” reforma psiquiátrica e participação social: do isolamento institucional ao movimento antimanicomial. Revista de Administração Pública, v. 52, n. 6, p. 1090-1107, 2018.).

Considerando a influência deste movimento social sobre a realidade do sistema de saúde brasileiro, e um de seus objetivos que é proporcionar o enfrentamento ao estigma sobre a loucura, pergunta-se: Como os usuários e os familiares que estão nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e, ao mesmo tempo, integram a luta antimanicomial vivenciam e enfrentam o processo de estigmatização em suas vidas?

Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é compreender a experiência de conviver com o estigma relacionado aos transtornos mentais entre usuários e familiares dos CAPS. Este estudo é parte da pesquisa de uma tese de doutorado intitulada A persistência do estigma sobre os transtornos mentais na experiência de usuários e familiares do movimento antimanicomial.

Método

Tipo de pesquisa

A opção metodológica pela abordagem qualitativa, com a construção de uma pesquisa do tipo narrativa, deve-se ao fato de incluir relatos pessoais sobre determinados problemas sociais, como o estigma, apresentando-se como ferramenta importante para a produção de conhecimento em Saúde Coletiva. Como afirma Castellanos (2014)CASTELLANOS, M. E. P. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, p. 1065-1076, 2014., o reconhecimento do processo saúde-doença como uma experiência pessoal, e social, trouxe a importância das narrativas como um modo de compreender a elaboração dessas experiências.

Sendo assim, a pesquisa narrativa permite uma análise que situa o contexto específico de interação da vida dos sujeitos, bem como seu contexto social. Como afirmam Onocko-Campos e Furtado (2008)ONOKO-CAMPOS, R. T.; FURTADO, J. P. Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Rev Saude Publica, v. 42, n. 6, p. 1090-1096, 2008., essa metodologia proporciona um exercício de análise que visa a superação das dicotomias entre macro e micropolítica, entre indivíduo e estrutura social, buscando compreender a articulação dessas dimensões.

Além disso, a pesquisa narrativa tem a potencialidade de recuperar a voz ativa dos sujeitos que, por vezes, sofrem com o silenciamento promovido pela subordinação imposta pelos saberes biomédicos, os quais tendem a ignorar a experiência subjetiva sobre o processo saúde-doença e priorizar explicações reducionistas e fisicalistas. Como afirma Duarte (2018)DUARTE, L. F. D. Ciências Humanas e Neurociências: um confronto crítico a partir de um contexto educacional. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 33, n. 97, e 339702, 2018., não se trata de propor uma supremacia dos saberes oriundos das Ciências Sociais e Humanas, que subsidiam a compreensão narrativa, mas de garantir a inclusão de explicações igualmente legítimas sobre a experiência humana, as quais integrem a subjetividade e a história como pertencentes ao campo da cientificidade sobre o humano.

Participantes

Optou-se pela construção intencional do grupo de informantes, pois, quando tratamos de questões psicossociais, a atuação de um fenômeno, mesmo que superdimensionado em alguns indivíduos típicos, é reveladora do contexto em que estes estão inseridos e pode mostrar o que outros semelhantes vivenciam (FONTAELLA; RICAS; TURATO, 2008).

Foram incluídos usuários e familiares com qualquer identidade de gênero, maiores de 18 anos, residentes na cidade de Fortaleza e que estivessem vinculados há mais de um ano em algum CAPS. Outro critério de escolha foi o fato de os participantes manterem participação política no movimento social da luta antimanicomial por pelo menos um ano. Os usuários e familiares foram convidados pessoalmente em uma reunião presencial do movimento, quando a pesquisa lhes foi apresentada.

Foi possível contar com o consentimento e o interesse dos sete integrantes do segmento de usuários e familiares do núcleo do movimento antimanicomial, dos quais quatro eram usuários (sendo dois homens, e duas mulheres) e três eram familiares (duas mulheres e um homem). A faixa etária do grupo variou entre a idade mínima de 31 anos e a idade máxima de 72 anos. Entre os usuários, todos haviam sido diagnosticados com transtornos mentais severos. No caso dos familiares, os três eram responsáveis por acompanhar entes com essa mesma condição de diagnóstico.

Vale ainda apontar que o grupo mantinha participação ativa desde o ano de 2012, quando a maioria se inseriu no movimento em decorrência de uma oficina realizada sobre protagonismo dos usuários e familiares na cidade. Entre os entrevistados, alguns usuários são aposentados por conta de sua condição e os familiares têm trabalhos informais ou vínculos precários de trabalho. Todos os entrevistados já ocuparam, e alguns ainda ocupam, espaço de representação em comissões e conselhos de participação social do SUS.

Instrumentos de produção das informações

Foram realizadas entrevistas em profundidade com os integrantes a partir de um roteiro com dois temas pré-estabelecidos pelos pesquisadores com base na evidência dos efeitos identitários do diagnóstico de transtorno mental. Os participantes foram solicitados a contar suas histórias de vida desde a busca por serviços de saúde mental e a relatar se já haviam sofrido algum tipo de discriminação. As entrevistas foram realizadas individualmente em salas reservadas da universidade entre os meses de março a novembro de 2019.

Procedimentos de análise

Como método de análise das informações seguiu-se a proposta da análise hermenêutica dialética (MINAYO, 2013MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013.). Tal escolha se deve ao potencial da proposta em indicar uma interpretação do fenômeno a partir de suas representações subjetivas considerando as relações dinâmicas daquele com o contexto histórico, social e político.

As falas foram gravadas em áudio e transcritas em um editor de texto. Procedeu-se a uma leitura para o desvelamento do sentido e das interpretações dos sujeitos sobre suas experiências. Após esse procedimento, foram criadas categorias empíricas para ordenar as informações produzidas pelas narrativas. Foram destacados segmentos narrativos representativos dos momentos-chave para os entrevistados.

Elencaram-se quatro momentos chave nas experiências narradas: no primeiro momento, destacam-se as vivências de estigma no cotidiano; no segundo, os entrevistados relatam a ressignificação do estigma sobre os serviços de saúde mental; no terceiro momento, contam a ressignificação positiva de suas identidades com a descoberta e valorização de potenciais; e, por último, expõem o enfrentamento ao estigma e o engajamento político na luta antimanicomial.

O referencial teórico de Goffman (1988) sobre a questão do estigma e os estudos contemporâneos sobre este tema foram instrumentos para o diálogo entre o conhecimento trazido pelas narrativas e a produção científica. Desse modo, as categorias empíricas, criadas a partir das narrativas, foram comparadas e contrastadas com a reflexão teórica e com o contexto histórico social.

Este trabalho respeitou as determinações da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Foi submetido à um comitê de ética na Plataforma Brasil e aprovado com o CAAE: 25089819.4.0000.5534. Todos os participantes foram informados sobre os objetivos da pesquisa com a leitura e a apresentação do termo de consentimento livre e esclarecido. A identificação dos entrevistados foi mantida em sigilo, sendo nomeados com o número da ordem em que foram entrevistados (Entrevistado 1, Entrevistado 2, ..., Entrevistado 7).

Resultados e Discussão

Vivenciando o estigma no cotidiano e evitando o descrédito

Desde o início de suas experiências, os entrevistados contam que perceberam que sua condição seria alvo de discriminação pública. Tal percepção os fez construir formas de encobrimento e de proteção às suas identidades na convivência com os outros.

Eu ia na farmácia comprar medicação. Porque às vezes era passado para comprar, e eu tinha vergonha. Eu ia em outra farmácia que não fosse no meu bairro para comprar. Porque eu achava que a mulher ia me ver, tá entendendo? Que ela ia dizer que eu era louca, que eu era do CAPS... Eu saía escondida dos vizinhos. Não dizia para onde que ia. (Entrevistada 1)

O sentimento de insegurança por ser reconhecida como usuária do CAPS, observado na narrativa da Entrevistada 1, é um dos aspectos apontados por Goffman (1988) como gerador de ansiedade e tensão nas relações interpessoais entre os que sofrem com a estigmatização, pelo medo de sofrerem com o desrespeito. Identificou-se que a visibilidade do transtorno, devido à relação estabelecida com o medicamento psicotrópico, transmite uma informação social que pode ser percebida como um “símbolo de estigma”. Os símbolos de estigma são símbolos sociais que ativam uma percepção de descrédito e inferiorização dos sujeitos que os possuem (GOFFMAN, 1988GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução: Mathias Lambert, v. 4, 1988.). Ou seja, o medicamento poderia ser identificado como uma marca de defeito ou desvantagem, o que causa um desconforto inicial perante os círculos de interação social da Entrevistada 1, que tenta encobrir essa informação.

Considerando o contexto contemporâneo em que a medicalização se tornou comum em nossa sociedade, percebe-se que, ainda assim, a subversão aos preceitos do sujeito racional, autocontrolado e produtivo, como no caso das pessoas que fazem uso de medicamentos psiquiátricos, produzem e realimentam nas interações sociais a significação do transtorno mental como fraqueza e desvantagem (CAPONI; DARÉ, 2020CAPONI, S.; DARÉ, P. K. Neoliberalismo e sofrimento psíquico: A psiquiatrização dos padecimentos no âmbito laboral e escolar. Mediações, v. 25, n. 2, p. 302-320, 2020.).

O temor em serem desrespeitados e as tentativas de encobrimento encontram base nas vivências dos entrevistados. As histórias relatadas apresentam recorrentes discriminações não apenas no território, mas também no interior dos grupos de amigos e das próprias famílias, como vemos na narrativa do Entrevistado 5 a seguir:

Eu sofri exclusão de alguns amigos. Eles me chamavam de louco. Diziam que eu tinha ficado doido. Pessoas da família também me excluíram. Quando eu chegava na casa de um parente meu, tinham aquele olhar diferente, de medo. Uma cunhada minha aconselhou a minha esposa a se separar de mim. Foi cruel. (Entrevistado 5)

A literatura nos mostra que esse temor e o rechaço à loucura identificados pelos familiares do entrevistado são elementos que se tornaram presentes em diversas culturas desde tempos remotos (BLEICHER, 2016). Diante do relato podemos inferir que ainda circulam expectativas normativas que tendem a buscar confirmar a identidade da pessoa com transtorno mental a partir de uma imagem do bizarro, do perigoso e do ameaçador, que gera medo e necessidade de distanciamento social excludente. A falta de acolhimento inicial dos amigos e da família do Entrevistado 5 acaba por produzir e intensificar uma sensação de descrédito e desamparo a qual pode contribuir para a internalização do estigma, como afirmam Nascimento e Leão (2019)NASCIMENTO, L. A.; LEÃO, A. Estigma social e estigma internalizado: a voz das pessoas com transtorno mental e os enfrentamentos necessários. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 26, n. 1, p. 103-121, 2019..

Em outras situações, como no trecho abaixo, também se evidenciou a dificuldade da família em reconhecer a experiência de sofrimento da pessoa com transtorno mental.

Quando eu iniciei com a depressão, eu me via muito assim, abatida. Porque minha família nunca me apoiou, sabe? Toda vida foi assim, de acharem que era frescura minha. Que não tinha nada. Aí, quando eu adoeci, com esses problemas, começaram a me levar para o médico neurologista. Comecei a “bater eletros” da cabeça. Bati várias vezes e só dava normal. Aí o médico disse: Não, ela não tem problema nenhum! O problema dela é só “nervo” mesmo. (Entrevistada 4)

Vê-se na experiência da Entrevistada 4, como já apontavam Guimarães e Meneghel (2003)GUIMARÃES, C. F.; MENEGHEL, S. N. Subjetividade e saúde coletiva: produção de discursos na re-significação do processo saúde-doença no pós-moderno. Revista Subjetividades, v. 3, n. 2, p. 353-371, 2003., que o sofrimento mental é desqualificado como se fosse menor frente a demais problemas de saúde ou sequer é considerado como doença, por não se enquadrar no modelo explicativo da biomedicina.

Uma vez que surgiu na fala de uma mulher, vemos a necessidade de pensar esse processo de estigmatização como atravessado, também, pelas relações produtoras de desigualdade entre os gêneros. Por não ser um caso isolado, e outros estudos evidenciarem esse tratamento recorrente (ZANELLO, FIÚZA, COSTA, 2015ZANELLO, V.; FIUZA, G.; COSTA, H. S. Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico. Fractal, v. 27, n. 3, p. 238-246, 2015.), constatamos uma tendência à invisibilização do sofrimento a qual se transforma em uma desqualificação da própria mulher.

Com relação aos familiares entrevistados que cuidam e acompanham parentes nos serviços de saúde mental, evidenciaram-se relatos de encobrimento ou superproteção, buscando evitar que seus entes sejam alvo de possíveis constrangimentos:

Eu já vi pessoas que tiveram tipo um surto dentro do ônibus. Mas as pessoas não tem um entendimento e não sabem encarar isso. [...] No caso da minha mãe, com ela não acontece tanto. Porque eu tenho muito cuidado com ela. Aonde ela vai, eu acompanho. Teve uma época que ela não ia para canto nenhum só. (Entrevistada 2)

Depois que minha mãe voltou [da internação em hospital psiquiátrico], ela passou muito tempo sem andar, sem ir em uma padaria. Até minha própria irmã, para não permitir justamente... Para evitar essas conversas. A minha irmã poupou muito a minha mãe nesse processo. Isso é muito ruim. (Entrevistada 6)

A mulher lá em casa não quer que eu fique dizendo que o meu filho é usuário do serviço. Porque ele está terminando a faculdade e quer arrumar um emprego. Ela diz: não fica dizendo que teu filho é usuário do CAPS! Porque, quando o rapaz for procurar um emprego, o pessoal vai ficar sabendo. (Entrevistado 7)

Compreende-se, a partir das falas dos Entrevistados 2, 6 e 7, que a reação dos familiares é uma estratégia defensiva de buscar contornar os efeitos excludentes da persistência do estigma no cotidiano dos seus entes. Tal preocupação se baseia na realidade percebida por eles, mas também é mostrada por Nunes e Torrente (2009)NUNES, M.; TORRENTÉ, M. Estigma e violências no trato com a loucura: narrativas de centros de atenção psicossocial, Bahia e Sergipe. Rev. Saude Publica., v. 43, supl. 1, p. 101-108, 2009., que já identificavam inúmeras situações de violência sofridas por usuários atendidos pelos CAPS no território em que viviam. Ao mesmo tempo, observa-se que se produz uma linha tênue entre o cuidado e a tutela nas atitudes dos familiares cuidadores. Tal linha torna-se problemática com a imposição de limites à liberdade dos familiares, fomentando possíveis novos processos de exclusão do usuário.

A preocupação dos familiares, como no caso da esposa do Entrevistado 7 em tentar manter sigilo sobre a condição do filho, não está descolada da realidade. Como apontam MascayanoMASCAYANO, F. et al. Stigma toward mental illness in Latin America and the Caribbean: a systematic review. Rev. Bras. Psiquiatr. São Paulo, v. 38, n. 1, p. 73-85, mar. 2016. et al. (2016), o estigma associado ao transtorno mental pode reduzir os contatos com redes sociais de apoio e, consequentemente, levar à diminuição de oportunidades, incluindo as indicações e as possibilidades de inserção no mercado de trabalho.

Sobre a passagem da familiar da Entrevistada 6 pelo hospital psiquiátrico, confirma-se o que Goffman (2013) apontou: essa é uma experiência determinante que marca a carreira moral dos sujeitos. A internação passa a ser incorporada como um evento marcante na biografia das pessoas e suas vidas podem passar a ser interpretadas pela ótica do saber da psiquiatria. A tentativa de proteção dos familiares busca atenuar o sofrimento da discriminação decorrente desse evento, mesmo que essa superproteção seja percebida como uma solução ruim.

Cabe observar que, no caso da Entrevistada 2, que tem uma familiar que realiza seu tratamento no serviço comunitário, ainda assim, a mesma também tem receio da estigmatização. Isso mostra que o estigma opera como uma relação social e não se restringe à um único equipamento social. Tal constatação nos leva à confirmação sobre a necessidade de pensar a desinstitucionalização enquanto um processo complexo que deve atuar sobre o imaginário coletivo. Desse modo, como afirma Palacios-Espinoza (2021)PALACIOS-ESPINOSA, X. El inestimable costo del estigma de la salud mental. Revista Ciencias de la Salud, [S. l.], v. 19, n. 1, 2021., é preciso criar estruturas e intervenções na comunidade que possam prevenir o processo de estigmatização, promovendo comportamentos reflexivos e solidários de convivência com a diferenças humanas.

Esse mesmo receio de ser rotulado de maneira pejorativa foi trazido pelo Entrevistado 3, que falou de um momento em que tentou se esquivar de um vizinho para tentar encobrir o fato de realizar um tratamento para sua saúde mental.

Eu tinha esquecido meu cartão do SUS. A minha esposa falou, já na rua, fora de casa: Olha, leva o teu cartão do SUS. Se não tu vai chegar lá no CAPS e não vai receber teu remédio. O meu vizinho escutou e falou: Tu faz tratamento no CAPS? Eu fiquei assim, desconversei. [...] Faço sim, qual o problema? Ele falou: Tu sabe que lá é um lugar de doido, né? Não, o que seria doido para o senhor? Eu tive também que bater um papo com ele. (Entrevistado 3)

Observa-se, assim, que há uma dinâmica de manipulação da identidade para tentar encobrir certos atributos estigmatizantes, sendo uma questão constante na vida das pessoas estigmatizadas conforme observou Goffman (1988).

O Entrevistado 3, no entanto, mostra que os sujeitos não ficam passivos diante da situação de discriminação e tentam enfrentar o descrédito e a tentativa de inferiorização de sua identidade por meio do diálogo. Essa situação mostra que, embora o fenômeno do estigma persista na sociedade, há também a disputa da afirmação da condição de um novo lugar para a loucura, trazida pelas ideias difundidas pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial (AMARANTE: TORRES, 2018). Dessa forma, introduzem-se na cultura novas formas de entendimento do fenômeno da loucura e do sofrimento mental.

Essas condições parecem apontar para uma nova forma de reação dos estigmatizados, oriunda desse novo paradigma de pensar a política de saúde mental como destinada a promover os usuários como sujeitos de direitos (NUNESNUNES, J. M. S.; GUIMARÃES, J. M. X.; SAMPAIO, J. J. C. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Physis, Rio de Janeiro, v. 26, n. 4, p. 1213-1232, out. 2016. et al., 2011; BLEICHER, 2019BLEICHER, T. A política de Saúde Mental de Quixadá, no contexto da reforma psiquiátrica cearense. Fortaleza: EdUECE, 2019.) e não como objetos de intervenção dos saberes especializados.

Ressignificando o estigma sobre os serviços de saúde mental a partir dos CAPS

O estigma sobre o transtorno mental estende-se para as instituições de assistência em saúde mental e para os profissionais que lidam com o público em questão, pois, como identificou Goffman (1988), o descrédito tende a ser compartilhado em uma espécie de tendência à difusão do estigma. Diante dessa realidade, Pinchuk PINCHUK, I. et al. The Implementation of the WHO Mental Health Gap Intervention Guide (mhGAP-IG) in Ukraine, Armenia, Georgia and Kyrgyz Republic. International journal of environmental research and public health, v. 18, n. 9, 2021. et al. (2021) identificam que a estigmatização é um dos fatores que fortalecem o problema da lacuna de cuidados em saúde mental por produzir recusa e atraso na busca de ajuda pelas pessoas.

Isso se constata por meio dos relatos de que, incialmente, alguns usuários e familiares mantinham percepções negativas sobre os serviços. Porém, as narrativas mostram um desfecho em que ocorre uma transformação dessa visão devido à forma como foram acolhidos.

Eu sabia que existia o CAPS. Mas achava que eram pessoas loucas que estavam ali. Quando eu fui para lá, eu tive preconceito também. Que é que eu estou fazendo aqui? O que que eu vou fazer aqui? Eu não sou louca! [...]. Hoje, eu faço questão de falar do CAPS para as pessoas próximas, amigos... Eu defendo onde eu ando, entendeu? (Entrevistada 1)

Porque eu tinha uma visão do CAPS como se fosse tipo um manicômio. Como se eu chegasse lá, fossem me dar uma injeção para que eu me acalmasse e eu ia ficar ali em um ambiente fechado [...]. Quando eu vi que as pessoas me receberam maravilhosamente, com toda a atenção, foram super educadas, aí eu me senti bem no espaço. (Entrevistado 3)

Aí foi que nós tomamos conhecimento dos serviços substitutivos, que é o CAPS. E foi quando eu comecei a ter as melhoras. Eu senti a diferença do hospital logo no primeiro dia, na acolhida, onde as pessoas me escutaram. Para mim, a escuta é melhor do que qualquer psicotrópico. (Entrevistado 5)

Alguns familiares relataram que seus parentes também tinham visões pejorativas sobre os CAPS. No caso da Entrevistada 4, os familiares tentaram convencê-la a não buscar o serviço. No entanto, a mesma refere que, devido à angústia em encontrar solução para seu sofrimento, não se sentiu intimidada em buscar ajuda.

Eu disse em casa que ia no CAPS. Eles “engrossaram” [manifestaram oposição]. Eu falei: não quero saber de conversa não! Porque [os familiares] disseram que CAPS era lugar de doido. Que eu não era doida, não sei o quê. Eu não quero saber de conversa não. Vou pra lá e pronto! (Entrevistada 4)

Como seres socializados dentro desta realidade onde o transtorno mental é estigmatizado, não haveria de se estranhar que usuários e familiares pudessem guardar, em seus modos de ver, uma visão depreciativa dos serviços. Pois, como afirmam Berger e Luckmann (2005)BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 25ª ed. Petrópolis: Vozes, 2005., a interiorização da realidade não é autônoma, mas se dá a partir daquilo que já está pré-definido pelas instituições sociais, que trazem esquemas motivacionais e interpretativos sobre ela.

Observa-se, porém, que os usuários e familiares encontraram no CAPS um ponto de partida para a ressignificação sobre o modo de cuidar da saúde mental, a partir do acolhimento diferenciado do serviço. Nesse contexto, onde temos convivido com questionamentos e ataques à Reforma Psiquiátrica e suas conquistas históricas (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, e 00285117, 2020.) como a implantação dos CAPS em todo o território brasileiro, é perceptível o potencial deste dispositivo de cuidado, que, mesmo sendo precarizado e subfinanciado, dá indícios de sua potencialidade.

Demonstra-se, com os exemplos relatados pelos usuários, que, a partir dos CAPS, pode-se oferecer um cuidado emancipador (BARROS, 2021BARROS, N. Cuidado emancipador. Saúde e Sociedade. v. 30, n. 1, e200380, 2021.). Essa proposta, ao apontar um processo que privilegia a produção de novas formas de relação, promove o desenvolvimento da autonomia e a ressignificação do papel dos usuários e familiares, apontando para emancipação de formas de assujeitamento tradicionalmente produzidas e impactando positivamente a vida das pessoas atendidas.

Ressignificando a si mesmos e descobrindo potenciais

O processo de trabalho desenvolvido no CAPS mostrou, como se observa nas entrevistas, um potencial de transformar a visão estigmatizada, tanto do serviço como do usuário sobre si próprio. Esse processo, que ocorre ao longo dos cuidados em saúde mental e que atua na minimização do estigma e na recuperação de uma imagem positiva sobre si mesmo, produz um reconhecimento, ou a descoberta, de potenciais pelos profissionais de saúde mental. Isso se mostrou no relato da Entrevistada 4 ao falar sobre o olhar de uma profissional acerca de competências já existentes em sua vida anterior à condição de usuária do CAPS.

Quando eu disse o que sabia fazer [artesanato, costura], fiquei foi ensinado lá dentro para os outros. A Dra. Terapeuta Ocupacional X foi e disse: ‘Valha meu Deus! Você entrou aqui, está fazendo essa terapia e você já sabe fazer tudo isso?’. Eu digo: ‘sim’. ‘E aprendeu com quem?’ Eu disse: ‘aprendi com ninguém não. Foi só coisa de Deus mesmo’. [...] Aí, agora, por eu ter esses apoios de muita gente, convivendo assim com pessoas do movimento social, pessoas que eu vejo, que eu sinto mesmo que me dão valor, me admiram por muitas coisas que eu faço, eu me sinto outra pessoa. Outra pessoa mesmo! (Entrevistada 4)

No caso do Entrevistado 5, o despertar para o talento artístico, por meio de atividades de incentivo e formação para as artes plásticas dentro do serviço, mobilizou também a possibilidade de elaborar e denunciar sua oposição ao tratamento no hospital psiquiátrico.

Foi quando eu conheci o CAPS e descobriram meu talento artístico. E, até hoje, todas as minhas obras eu faço para mostrar a importância da arte na saúde mental. Eu milito para mostrar para as pessoas que saúde mental não se faz em manicômio. E sim com liberdade, com amor, com arte e com a escuta. (Entrevistado 5)

Percebemos que o CAPS devolve os usuários para os territórios onde vivem por meio da exposição dos trabalhos realizados, mas agora mostrando a potência dos sujeitos que antes eram vistos exclusivamente com a identidade de diagnosticados e passam ser reconhecidos como artistas e artesãos.

O fato de encontrarem um serviço onde são respeitados e reconhecidos como sujeitos produz uma aproximação maior e um interesse que vai para além da frequência em busca de consultas profissionais e medicamentos, como indica a Entrevistada 2 no trecho a seguir:

No começo, que a minha mãe começou a se tratar, eu ia só como usuária mesmo. Ah, hoje é dia da consulta, eu vou para a consulta. Mas quando eu fui começando a ver a necessidade, começando a conhecer o CAPS, eu fui começando a me interessar por aquilo. Eu peguei amizade com as pessoas. Me chamavam para participar daquilo, daquilo outro. Aí eu fui me interessando e ficando. E estou até hoje. (Entrevistada 2)

O entrevistado 7 também relata seus sentimentos de gratidão que mobilizam uma ação de retribuição.

Eu sou muito agradecido ao CAPS. Foi um gesto concreto que eles fizeram conosco. O meu filho tem uma vida saudável. Ele é igual a nós [...]. Eu trabalhava no CAPS como voluntário. Eu era voluntário da saúde mental. Nessa brincadeira eu trabalhei mais de 12 anos lá. Eu era terapeuta comunitário. (Entrevistado 7)

O vínculo constituído entre os familiares e os profissionais dos serviços de saúde mental sugere uma diminuição do estigma percebido sobre os serviços e mostra, também, como é importante o envolvimento dos familiares para além do acompanhamento em consultas. Essas observações se amparam em estudos sobre a participação dos familiares os quais mostram a necessidade do investimento das relações entre familiares e profissionais (MARTINS; GUANAES-LORENZI, 2016MARTINS, P. P. S.; GUANAES-LORENZI, C. Participação da família no tratamento em saúde mental como prática no cotidiano do serviço. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 32, n. 4, e 324216, 2016.), atuando, inclusive, na produção de uma maior corresponsabilidade dos familiares (CARVALHO et al., 2020CARVALHO, P. A. L et al. Reflexividade do sensível e do cuidado à família no contexto da saúde mental. Revista Enfermagem UERJ, [S.l.], v. 28, p. e53264, 2020.), tal como as narrativas dos Entrevistados 2 e 7 ilustram com seu engajamento voluntário em atividades do serviço.

Percebe-se com isso que, ao tomarem parte das atividades voluntárias e de controle social no serviço, essas atividades passam a agir como atenuadoras do estigma e proporcionam, como afirmam Gemelli e Oltramari (2020)GEMELLI, C. E.; OLTRAMARI, A. P. Voluntariado e formação da identidade: reflexões a partir da Psicodinâmica do Trabalho. Rev. Psicol., Organ. Trab., Brasília, v. 20, n. 1, p. 956-962, mar. 2020., um reconhecimento social que colabora na construção positiva de suas identidades. Esse princípio de fortalecer o restabelecimento das pessoas com transtorno mental a partir de um olhar singularizado e, ao mesmo tempo, voltado para promover as potencialidades dos sujeitos é um importante fator na redução dos estigmas.

Enfrentando o estigma e engajando-se politicamente na luta antimanicomial

A nova relação estabelecida com os serviços de saúde mental, orientados para o empoderamento e o incentivo à participação dos sujeitos, acaba por fomentar também processos de resistência ao estigma e às discriminações, como percebemos nas falas abaixo:

Às vezes eu converso com uma pessoa na sala de espera. Eu começo a falar sobre o serviço. Tu é daqui? Tu é paciente? Sou. Há muito tempo. Eu tenho o maior prazer de falar que sou. Para quebrar esse estigma. Porque eles mesmos têm isso com eles. (Entrevistada 1)

Eu sempre luto contra esse preconceito das pessoas. Eu sempre tento esclarecer, informar. Porque eu vejo muitas pessoas que são desinformadas. Que até tem pessoas na família que precisam e não tem conhecimento. (Entrevistado 3)

O processo de empoderamento acaba por vincular os sujeitos a outras instituições, tanto as organizações deliberativas formais dos conselhos de saúde, como os movimentos de luta por direitos. Essas vinculações promovem uma mudança na percepção sobre si mesmo e, ao mesmo tempo, produzem um movimento de produção de outra imagem da doença mental para além daquela estigmatizada e deficitária corrente na sociedade, como afirma Soalheiro (2012)SOALHEIRO, N. I. Política e empoderamento de usuários e familiares no contexto brasileiro do movimento pela reforma psiquiátrica. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, v. 4, n. 8, p. 30-44, 2012.. Vê-se que muitos iniciaram sua participação no movimento da luta antimanicomial como uma forma de ampliar sua atuação na defesa do atendimento humanizado.

Aí pronto. Eu passei a lutar em Conselho. Me botaram para representar a CISM [Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Estadual de Saúde]. Continuo lá dentro até hoje e me sinto muito bem, graças a Deus. (Entrevistada 4)

Foi aí que eu conheci o movimento de luta antimanicomial. Eu entendi que existia uma luta para isso. Quando eu entrei na luta antimanicomial eu entrei muito aflorada.... Hoje eu consigo conversar sobre. Eu entrei para a luta antimanicomial, em 2017. No dia 18 de maio de 2017, eu já estava lá [em ato público]. Naquele período, foi um período de muitas lágrimas. Toda vida que eu falava sobre isso, chorava. Foi em março de 2018 que eu comecei a falar sobre o que a minha mãe passou [no hospital psiquiátrico]. (Entrevistada 6)

Eu conto um pouco da minha história do que eu sofri pelos manicômios e digo por que que eu luto. Eu sou militante hoje para evitar que outras pessoas passem pelo que eu passei. Apesar do retrocesso que está aí. A gente sabe que ainda tem muito sofrimento nos hospitais [...]. Conto que hoje faço parte do movimento antimanicomial, que milito. O movimento me ajudou muito. Aprendi muito em relação à saúde mental. (Entrevistado 5)

Foi nesse período dessa trajetória que eu passei que conheci o Fulano (membro do movimento). Eu caminhei muito com seu Fulano na CISM, no Conselho Estadual. Foi aonde eu cresci. Eu participo e eles me querem muito bem. Hoje eu faço parte da família antimanicomial. (Entrevistado 7)

Observa-se que a participação política emerge como uma necessidade de denunciar os sofrimentos vividos com os familiares nos hospitais psiquiátricos, como no caso dos Entrevistados 5 e 6. Cea Madrid (2019) também observou, em outro grupo de usuários, a necessidade de organização em torno da defesa dos direitos que surge após os episódios de violência e maus tratos em serviços de saúde mental. É justamente essa organização coletiva que permite tensionar as políticas públicas e os serviços para o reconhecimento dos usuários e familiares como sujeitos de direitos, além de evidenciar a necessidade de erradicar estereótipos negativos e de valorizar a experiência de quem vive a atenção recebida.

Vê-se também que emergem novas relações estabelecidas com o controle social e com os movimentos sociais existentes na cidade. Assim, os entrevistados mostram a necessidade de que as pessoas com transtorno mental sejam tratadas, como aponta Soalheiro (2012), como agentes sociais e sujeitos políticos. Evidencia-se que o engajamento no movimento antimanicomial e nos conselhos possibilita uma reformulação das identidades estigmatizadas das pessoas com transtorno mental e de seus familiares por meio da construção da imagem de sujeitos de direito ativos na proposição de reformulação e de avaliação da política de saúde mental em seu contexto local.

Conforme indicam Andrade e Maluf (2014), para muitos destes usuários e familiares, a reforma psiquiátrica possibilitou a ampliação da participação em espaços públicos e políticos, onde as pessoas podem fazer ouvir sua voz e expressar seus desejos. Tal engajamento não os afasta, ou faz negar, os tratamentos recebidos pelos profissionais, mas parece alterar as relações entre os profissionais e o serviço. Vasconcelos (2000)VASCONCELOS, E. M. Reinvenção da cidadania, Empowerment no campo da saúde mental e estratégia política no movimento de usuários. In: AMARANTE, P. (org.) Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2000. destaca, inclusive, a emergência de movimentos internacionais que constroem grupos de autoajuda, clubes e serviços dirigidos pelos próprios usuários e ex-usuários. Agora, percebe-se uma tendência do usuário, ou familiar, não mais como alguém que obedece passivamente às prescrições profissionais, mas como alguém que negocia, redefine as próprias expectativas sobre si e rejeita a identidade pressuposta de inferioridade e de subalternidade atribuída às pessoas com transtorno mental.

Considerações finais

A experiência dos usuários e familiares dos serviços de saúde mental, ao conviverem com o estigma sobre os transtornos mentais que ainda persiste na sociedade, mostra a importância de estratégias institucionais de enfrentamento a esta situação. Observa-se que, mesmo em meio aos limites e às dificuldades enfrentadas, os CAPS revelam um potencial de transformação da vida das pessoas ao resgatarem a potencialidade e o reconhecimento das mesmas como sujeitos políticos por meio de suas práticas de cuidado. Esses equipamentos e seus trabalhadores contribuem, assim, como elemento fundamental no processo de superação do estigma sobre os transtornos mentais e na promoção de um outro olhar da sociedade sobre a loucura.

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Editor responsável: Martinho Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2022
  • Aceito
    08 Out 2022
  • Revisado
    30 Ago 2022
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