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PERIODIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL: CONTRIBUIÇÕES PARA A PRÁTICA DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Periodización del desarrollo en la Psicología Histórico-Cultural: contribuciones para la práctica docente en la educación infantil

RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar resultados de uma pesquisa que trata da importância do conhecimento sobre a periodização do desenvolvimento humano por parte do professor para uma prática pedagógica que promova o desenvolvimento e aprendizagem dos alunos de 0 a 3 anos. Inicialmente, apresentamos uma discussão sobre a periodização do desenvolvimento na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural e na sequência abordamos a prática pedagógica na Educação Infantil. Por fim, expomos os resultados de entrevistas realizadas com cinco profissionais. Os resultados obtidos denotam uma visão maturacionista do desenvolvimento e uma prática docente baseada no empirismo e nos conhecimentos cotidianos, com carência de fundamentação teórica por parte das entrevistadas, o que aponta para a necessidade de maior capacitação na área. Os fundamentos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural apresentam potencial para instrumentalizar professores da Educação Infantil, a fim de que desempenhem suas atividades objetivando promover o desenvolvimento cognitivo e afetivo dos alunos.

Palavras-chave:
desenvolvimento infantil; educação infantil; psicologia histórico-cultural

RESUMEN

El objetivo de este artículo es presentar resultados de una investigación que trata de la importancia del conocimiento sobre la periodización del desarrollo humano, por parte del profesor, para una práctica pedagógica que fomente el desarrollo y aprendizaje dos alumnos de 0 a 3 años. Inicialmente, presentamos una discusión sobre la periodización del desarrollo en la perspectiva de la Psicología Histórico-Cultural, y en la secuencia abordamos la práctica pedagógica en la educación infantil. Por fin, exponemos los resultados de entrevistas realizadas con cinco profesionales. Los resultados obtenidos apuntan una visión maturacionista del desarrollo y una práctica docente basada en el empirismo y en los conocimientos cotidianos, con carencia de fundamentación teórica por parte de las entrevistadas, lo que apunta a la necesidad de más capacitación en el área. Los fundamentos teóricos de la Psicología Histórico-Cultural presentan potencial para instrumentalizar profesores de la educación infantil, con la finalidad de que desempeñen sus actividades objetivando promover el desarrollo cognitivo y afectivo de los alumnos.

Palabras clave:
desarrollo infantil; educación infantil; psicología histórico-cultural

ABSTRACT

The objective of this article is to present research results which deals with the importance of knowledge about the periodization of human development on the part of the teacher for a pedagogical practice, in order to promote the aged 0 to 3 years students’ development and learning. Initially, we present a discussion about the development periodization from the perspective of Historical-Cultural Psychology and then we address pedagogical practice in Early Childhood Education. Finally, we present the results of interviews carried out with five professionals. The results obtained denote a maturationist view of development and a teaching practice based on empiricism and everyday knowledge, with a lack of theoretical foundation about the part of the interviewees, which points to the need for greater training in the area. The Historical-Cultural Psychology theoretical foundations have the potential to improve the Early Childhood Education teachers’ practice, so that they can carry out their activities aiming to promote the cognitive and affective development of students.

Keywords:
child development; child education; historical-cultural psychology

INTRODUÇÃO

O percurso histórico da Educação Infantil no Brasil é permeado por grandes dificuldades e desigualdades no atendimento prestado à população. Conforme menciona Meneguite (2017Meneguite, J. F. (2017). Desenvolvimento infantil e ensino: Contribuições da psicologia histórico-cultural para a psicologia e educação (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR.), a década de 1990 pode ser indicada como um grande marco para Educação, devido aos avanços na aprovação de dispositivos legais em relação à educação dessa faixa etária - conquista que se apresenta como fruto da luta de diversos movimentos sociais em prol da educação no país. Entre esses avanços legislativos, temos na LDB de 1996 (Lei 9.394/96Lei nº 9.394 de 20 de Dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União (23-12-1996), p. 27833. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm
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) a incorporação da Educação Infantil como integrante da educação escolar, reconhecendo as creches como instituições de ensino e não mais apenas de cuidados (Pasqualini, 2006Pasqualini, J. C. (2006). Contribuições da psicologia Histórico-Cultural para a educação escolar de crianças de 0 a 6 anos: desenvolvimento infantil e ensino em Vigotski, Leontiev e Elkonin (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, SP.). No entanto, como um impacto da demora no reconhecimento das creches como instituições de ensino, percebemos que a produção acadêmica nesta seara, ainda carece de materiais que deem embasamento para a prática docente com crianças, principalmente de zero a três anos (Pasqualini, 2010Pasqualini, J. C. (2010). O papel do professor e do ensino na educação infantil: a perspectiva de Vigotski, Leontiev e Elkonin. Formação de professores: limites contemporâneos e alternativas necessárias (pp. 161-191). São Paulo: Cultura Acadêmica.).

Em relação às produções na área da Educação Infantil, Tavares (2021Tavares, L. S. P. (2021). “Se a gente pudesse entender melhor a criança”: a importância do conhecimento sobre o desenvolvimento humano para a prática docente com crianças de zero a três anos (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR.) realizou um levantamento de dados na base Scientific Electronic Library Online, de artigos que abordassem especificamente a prática pedagógica voltada às crianças na faixa etária de zero a três anos. Ela utilizou os seguintes descritores: Vygotsky + Educação Infantil; Vigotski + Educação Infantil; Vigotski + ensino; Vygotski + ensino; Atividade de ensino+ Educação Infantil; Atividade Pedagógica + Educação infantil; Educação escolar + Educação Infantil. A autora constatou a presença de um viés de conceitos maturacionais de desenvolvimento e ideários muito semelhantes aos defendidos pelas Pedagogias da Infância, que promovem a descaracterização da educação infantil como um espaço de escolarização, colocando o professor como agente secundário na atividade de ensino.

No levantamento realizado, Tavares (2021Tavares, L. S. P. (2021). “Se a gente pudesse entender melhor a criança”: a importância do conhecimento sobre o desenvolvimento humano para a prática docente com crianças de zero a três anos (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR.) também localizou produções teóricas que ressaltam a importância do processo de ensino para o desenvolvimento das crianças, que podemos considerar como estudantes, haja vista que frequentam o ensino formal. É nesse caminho que compreendemos a Educação Infantil, como aquela que tem a finalidade de socializar os conhecimentos, conforme propõe a Pedagogia Histórico-Crítica (Saviani, 2011Saviani, D. (2011). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas-SP, Autores Associados.).

Levando em conta esse posicionamento, o objetivo deste artigo é apresentar resultados de uma pesquisa que trata da importância do conhecimento sobre a periodização por parte do professor, para uma prática pedagógica que promova o desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos de 0 a 3 anos. Compreendemos que para uma prática docente voltada ao desenvolvimento das máximas potencialidades dos alunos é necessário que este professor se aproprie de vários conhecimentos científicos, que domine os conteúdos curriculares a serem ensinados, que esteja instrumentalizado com temas direcionados a levar os alunos a aprender, que conheça a história da educação, que tenha acesso às políticas educacionais, entre outros temas que permeiam a prática pedagógica. No entanto, neste artigo, gostaríamos de destacar, dentre esses aspectos, a importância sobre os conhecimentos relacionados à periodização do desenvolvimento infantil.

Para desenvolver a temática, nesse artigo discutiremos inicialmente a periodização do desenvolvimento a partir da Psicologia Histórico-Cultural. Em seguida, abordaremos a prática pedagógica na Educação Infantil, e em um terceiro momento apresentaremos dados obtidos com profissionais que atuam com crianças de zero a três anos, de uma instituição infantil, de uma cidade localizada na região norte do Paraná.

A PERIODIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO

A Psicologia Histórico-Cultural está fundamentada no método do materialismo histórico e dialético, compreendendo que a realidade é determinada histórica e culturalmente. O desenvolvimento humano se constitui pelo entrelaçamento das leis biológicas e culturais, posto que ao longo da história da espécie humana as leis culturais foram se complexificando, de modo a deslocar as leis biológicas a um segundo plano; estas foram superadas por incorporação pelas leis sócio-históricas (Leontiev, 2004Leontiev. A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro.).

Conforme destaca Leontiev (2004Leontiev. A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro.), todo o percurso de desenvolvimento da humanidade só foi possível por meio do início da atividade de trabalho, que é analisado como uma atividade que visa à satisfação de uma necessidade. Para esse fim o indivíduo realiza alterações na natureza, Cria novos instrumentos de transformação, e por meio da linguagem (instrumento simbólico) transmite essas produções humanas para as novas gerações. O autor deixa muito claro que o homem nasce hominizado, mas para se humanizar, precisa se apropriar da cultura. Tanamachi, Asbahr e Bernardes (2018Tanamachi, E. D. R., Asbahr, F. D. S. F., & Bernardes, M. E. M. (2018). Teoria, método e pesquisa na Psicologia Histórico-Cultural. Interfaces Brasil-Cuba em estudos sobre a Psicologia Histórico-Cultural. São Paulo: Casa do Psicólogo.) ressaltam, a partir das ideias marxistas, que no processo de transformação da natureza ocorre a transformação próprio homem.

No homem, a atividade surge como um elemento da cultura, originada na vida social e sendo produto da história. A atividade, além de responsável pelo indivíduo se apropriar das produções elaboradas pela humanidade, insere-o na vida social, conforme analisa Elkonin (1987Elkonin, D. (1987). Sobre o problema da periodização do desenvolvimento psíquico na infância. In Davidov, V. & Shuare, M. La psicologia Evolutiva y pedagógica em la URSS (Antologia) (pp. 125-142). Moscou: Editorial Progresso.). O autor pontua que cada estágio do desenvolvimento psíquico é caracterizado por uma relação explícita entre a criança e a realidade, por um tipo preciso e dominante de atividade. O critério de transição de um estágio para outro é precisamente a mudança do tipo principal de atividade (Leontiev, 2010Leontiev, A. N. (2010). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In Vigotski, A. R., Luria, A. R., & Leontiev, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (11ª edição). São Paulo: Ícone Editora. , p. 64). Por conseguinte, Leontiev (2010Leontiev, A. N. (2010). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In Vigotski, A. R., Luria, A. R., & Leontiev, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (11ª edição). São Paulo: Ícone Editora. , p. 65) enfatiza que “A atividade principal é então a atividade cujo desenvolvimento governa as mudanças mais importantes nos processos psíquicos e nos traços psicológicos da personalidade da criança em um determinado estágio de seu desenvolvimento”.

Vygotski (2006Vygotski, L. S. (2006). Obras Escogidas IV: Psicologia Infantil. Boadilla Del Monte (Madrid)-ES: A. Machado Libros, S.A.) analisa que em cada período de desenvolvimento surgem as chamadas neoformações. Neoformações que provocam o surgimento das funções psicológicas superiores; nesse processo, ocorrem períodos estáveis e períodos de crises. A crise é benéfica, segundo o autor, pois significa um ponto de viragem, de transformação, de passagem para uma nova forma de relação com a realidade. O contexto histórico no qual o sujeito está inserido, juntamente com as novas necessidades que vão surgindo conforme vai ocorrendo a apropriação da cultura na interação com outras pessoas, conduz a novas formações no psiquismo, à utilização de novos recursos mediadores (instrumentos e signos) que alteram a relação do sujeito com a realidade e consigo mesmo. Entorno que, para o autor, é caracterizado pelas relações de classe (Vygotsky, 1930/2004Vygotsky, L. S. (2004). A transformação socialista do homem. URSS: Varnitso, Tradução Marxists Internet Archive, english version, Nilson Dória. (Trabalho Original publicado em 1930).).

Elkonin (1987Elkonin, D. (1987). Sobre o problema da periodização do desenvolvimento psíquico na infância. In Davidov, V. & Shuare, M. La psicologia Evolutiva y pedagógica em la URSS (Antologia) (pp. 125-142). Moscou: Editorial Progresso.) destaca três principais períodos do desenvolvimento: a primeira infância, a infância e a adolescência. Neste artigo focamos no domínio dos conhecimentos inerentes à periodização do desenvolvimento da criança de zero a três anos de idade.

O primeiro ano de vida da criança é um período de intenso desenvolvimento, e é nesse momento que ocorre a primeira crise do desenvolvimento infantil, denominada crise pós-natal. Ela é caracterizada pela passagem da vida intrauterina para a vida extrauterina e pela primeira atividade guia do desenvolvimento, a comunicação emocional direta. Conforme discorre Vygotski (2006Vygotski, L. S. (2006). Obras Escogidas IV: Psicologia Infantil. Boadilla Del Monte (Madrid)-ES: A. Machado Libros, S.A.), o período pós-natal é marcado pela dependência do bebê, que precisa do adulto para garantir sua sobrevivência. Nessa idade, Vygotsky e Luria (1996Vygotsky, L. S. & Luria, A. R. (1996). Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre: Artes Médicas.) apontam como característica da criança a sua dependência das sensações orgânicas para entender sua realidade, uma vez que falta a ela a percepção de espaço desenvolvida e as condições para distinguir os elementos que compõem a realidade. Por isso, existe uma forte necessidade de comunicação entre a criança e o adulto, porque esse processo de comunicação tem potencial para formar outras atividades e promover o conhecimento do mundo material (Magalhães, 2011Magalhães, G. M. (2011). Análise do Desenvolvimento da Atividade da Criança em seu Primeiro Ano de Vida (Dissertação de Mestrado), Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, UNESP. Araraquara. ).

Para Pasqualini (2006Pasqualini, J. C. (2006). Contribuições da psicologia Histórico-Cultural para a educação escolar de crianças de 0 a 6 anos: desenvolvimento infantil e ensino em Vigotski, Leontiev e Elkonin (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, SP.), nesse momento o papel do adulto no processo de comunicação é o de ser responsável por atender às necessidades da criança e por estabelecer seu contato com a realidade. É o adulto que apresenta todos os objetos e designa o modo como a criança se relaciona com eles. Assim, Magalhães (2011Magalhães, G. M. (2011). Análise do Desenvolvimento da Atividade da Criança em seu Primeiro Ano de Vida (Dissertação de Mestrado), Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, UNESP. Araraquara. , p. 51) destaca o seguinte:

A comunicação emocional com o adulto é a condição mais importante para todo o desenvolvimento psíquico posterior, é ela que proporciona o surgimento de uma comunicação mais complexa, realizada por meio de palavras. Neste período, o desenvolvimento da linguagem é o elemento que se vincula às novas formações e apresenta-se como premissa para a modificação das relações sociais da criança, reorganizando sua atuação no mundo, seja sua relação com o adulto ou sua relação com os objetos sociais, apresentados a ela pelos adultos.

Um bebê, inicialmente, não sente a necessidade de se comunicar, nem possui os meios para tal. Suas principais manifestações podem expressar a sensação de desconforto ou satisfação, e o adulto, com a convivência, passa a entender essas manifestações, suprindo as necessidades da criança e buscando estabelecer uma relação com ela.

Nesse primeiro ano está sendo gestada a próxima atividade-guia: a objetal manipulatória. Cheroglu (2014Cheroglu, S. (2014). Educação e desenvolvimento de zero a três anos de idade: contribuições da psicologia histórico-cultural para o ensino (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Ciências e Letras, Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, São Paulo. ) afirma que essa atividade nada mais é que o produto da relação ativa da criança no meio social, e não surge de maneira repentina, mas é elaborada desde o início da vida. Para que isso ocorra, mostra-se necessária uma efetiva comunicação emocional direta com o bebê desde o primeiro ano de vida.

Quando tem início a atividade objetal manipulatória, a criança começa a se interessar pelos objetos ao seu redor. Nos primeiros meses de vida a relação mãe/bebê pode ser considerada até mesmo como uma relação simbiótica, mas com essa transição para a atividade objetal manipulatória, o adulto cede seu lugar de centralidade para os objetos, ficando de fundo para a percepção da criança, conforme menciona Cheroglu (2014Cheroglu, S. (2014). Educação e desenvolvimento de zero a três anos de idade: contribuições da psicologia histórico-cultural para o ensino (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Ciências e Letras, Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, São Paulo. ).

Nesse sentido, Cheroglu (2014Cheroglu, S. (2014). Educação e desenvolvimento de zero a três anos de idade: contribuições da psicologia histórico-cultural para o ensino (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Ciências e Letras, Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, São Paulo. , p. 102) também destaca que essa transição do papel do adulto não deve ser encarada como algo negativo, como se ele perdesse a importância, porque “O adulto continua sendo o agente organizador e promotor das condições nas quais ocorre a atividade infantil. É ele quem introduz as ações objetais, promovendo o interesse ativo da criança pequena pela manipulação de objetos”. Na escola, o professor pode enriquecer essa relação da criança com os objetos uma vez que compreende seu papel na relação de mediar a relação desta com os instrumentos.

Uma característica da atividade objetal manipulatória é que a criança dá início à distinção entre o adulto e o objeto social, passando a compreender a funcionalidade dos objetos, analisa Magalhães (2011Magalhães, G. M. (2011). Análise do Desenvolvimento da Atividade da Criança em seu Primeiro Ano de Vida (Dissertação de Mestrado), Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, UNESP. Araraquara. ). Segundo a autora, é um período que exige da criança uma série de habilidades psicomotoras, ampliando assim as exigências do ambiente sobre ela.

Para Tolstj (1989Tolstij, A. (1989). EL Hombre y la Edad. Editorial Progreso. Moscou: Editora Progresso.), nesse período a criança recebe grande acúmulo de informações sobre o mundo e os instrumentos elaborados pela humanidade, que passam a ter significado para ela. A linguagem assume um importante papel na organização da relação de mediação do adulto com os objetos. Quase ao final desse período, quando a criança se aproxima do terceiro ano de vida, tem a possibilidade da reestruturação da memória, que passa a ter um caráter voluntário e se destaca no grupo de funções psicológicas superiores. Outro ponto a ser destacado é que é nesse período que ocorre a vinculação entre pensamento e linguagem (Vygotski, 2006Vygotski, L. S. (2006). Obras Escogidas IV: Psicologia Infantil. Boadilla Del Monte (Madrid)-ES: A. Machado Libros, S.A.).

Conforme destaca Silva (2017Silva, C. R. (2017). Análise da dinâmica de formação do caráter e a produção da queixa escolar na educação infantil: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica (Tese de Doutorado), Faculdade de Ciências e Letras UNESP. Araraquara. Recuperado de https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UNSP_0182c42ecb8c5416ea83d3b06b4e826e
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), o final do terceiro ano altera significativamente a situação social da criança, aumentando sua possibilidade de intervenção no meio. Tal fato pode levar a conflitos com os adultos, podendo então culminar na crise de três anos.

Esse é um período em que a criança, apesar das exigências do ambiente, ainda não tem condições para organizar de forma hierárquica os motivos das suas ações, sendo as emoções e interesses muito instáveis (Leontiev, 1978Leontiev, A. N. (1978). Actividad, conciencia y personalidade. Buenos Aires: Ediciones Ciências Del Hombre.). As ações da criança retratam um processo inicial da hierarquização dos motivos, em que ela tem a condição de efetuar uma ação, mas não necessariamente atrelada ao motivo que gostaria de atingir, como propõe Leontiev (1978).

Nesse sentido destacamos que a crise dos três anos é resultante da reestruturação das relações sociais recíprocas entre a personalidade da criança e as pessoas ao seu redor. Segundo Vygotski (2006Vygotski, L. S. (2006). Obras Escogidas IV: Psicologia Infantil. Boadilla Del Monte (Madrid)-ES: A. Machado Libros, S.A.), ela deve ser encarada como positiva, pois denota a busca da autonomia da criança, pois dá indícios de que está expandindo a relação da criança com a realidade e consigo mesma.

Vygotski (2006Vygotski, L. S. (2006). Obras Escogidas IV: Psicologia Infantil. Boadilla Del Monte (Madrid)-ES: A. Machado Libros, S.A.) apresenta algumas características da crise dos três anos, sendo uma delas o negativismo, que é caracterizado pela oposição da criança a tudo que é proposto por um adulto. Essa negação se dá exclusivamente pelo fato de a criança não querer atender a uma solicitação vinda de um adulto. Outra característica descrita pelo autor é a teimosia, que diz respeito à criança insistir em determinada ação, por não aceitar que seu desejo não seja atendido e não pelo objeto da ação em si; a teimosia está vinculada a necessidade de ter sua vontade atendida (Vygotski, 2006Vygotski, L. S. (2006). Obras Escogidas IV: Psicologia Infantil. Boadilla Del Monte (Madrid)-ES: A. Machado Libros, S.A.). Por fim, a rebeldia é outra característica da crise dos três anos, a contrariedade às regras em geral, podendo ser exacerbada em crianças inseridas em ambientes demasiadamente rígidos. O comportamento também pode caracterizar-se pela insubordinação, porque a criança quer realizar todas as atividades sozinha, demonstrando o desejo de ter autonomia (Vygotski, 2006Vygotski, L. S. (2006). Obras Escogidas IV: Psicologia Infantil. Boadilla Del Monte (Madrid)-ES: A. Machado Libros, S.A.). Esse é um período que leva a uma maior independência e atividade por parte da criança, além de alteração da sua relação com as pessoas à sua volta. Nesse sentido, percebe-se uma reestruturação interna orientada para as relações sociais.

No interior da atividade objetal manipulatória temos a base para o surgimento do jogo protagonizado ou a brincadeira de papéis sociais. Nas palavras de Elkonin (2009Elkonin, D. B. (2009). Psicologia do jogo (Á. Cabral, Trad., 2 ed.). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes., p. 216), “a origem do jogo protagonizado possui uma relação genética com a formação, orientada pelos adultos, das ações com os objetos na primeira infância”. Assim, durante o segundo ano de vida, e ainda no terceiro, conforme o adulto vai apresentando os objetos à criança e mostrando seu uso, ele também está realizando a atividade de designações e significados sociais, criando possibilidades para que se desenvolva o próximo período, caracterizado pelos jogos de papéis, no qual a criança pode fazer a transposição da função e/ou significado de um objeto a outro. Nesse sentido, Elkonin (2009Elkonin, D. B. (2009). Psicologia do jogo (Á. Cabral, Trad., 2 ed.). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes., p. 226) afirma:

O típico para utilizar os objetos substitutivos no jogo é que os informes (ou seja, os objetos que carecem de uso específico determinado, como os palitos, as lascas e as peças de quebra-cabeças) se insiram no jogo como material complementar dos brinquedos temáticos (bonecas, figuras de animais etc.) e atuem como meios de execução de tal ou tal ato com os brinquedos temáticos fundamentais (...). Assim ocorrem, pois, os começos da ação lúdica. A sua evolução ulterior depende de que apareça e se desenvolva o papel que assumiria a criança, ao executar tal ou tal ação.

Para que sirva como base para o desenvolvimento da atividade de jogos de papéis, a atividade manipulatória de objetos deve se incluir no sistema das relações humanas e revelar seu verdadeiro sentido social, uma vez que dessa maneira se forma na criança o desejo de realizar uma atividade socialmente significativa e valorizada. Esse momento se constituirá na preparação para a aprendizagem escolar (Cheroglu, 2014Cheroglu, S. (2014). Educação e desenvolvimento de zero a três anos de idade: contribuições da psicologia histórico-cultural para o ensino (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Ciências e Letras, Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, São Paulo. ), destacando o caráter não linear desse processo.

Por essa razão os conhecimentos sobre a periodização do desenvolvimento infantil têm grande potencial de enriquecer a prática docente com crianças de zero a três anos, pois possibilita aos professores a compreensão de como ocorre a relação da criança com a realidade na constituição do seu psiquismo, e como podem contribuir para que o desenvolvimento ocorra por meio da apropriação dos conhecimentos curriculares. De posse desses conhecimentos, a organização do ensino pode ser direcionada considerando a atividade principal em cada idade.

PRÁTICA PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Ao realizarmos uma análise histórica da Educação Infantil, fica evidente um percurso de desvalorização dessa etapa da educação, dificultando a construção de uma identidade pedagógica nesse segmento. Pasqualini e Martins (2020Pasqualini, J. C., & Martins, L. M. (2020). Currículo por campos de experiência na educação infantil: ainda é possível preservar o ensino desenvolvente?. Política e Gestão Educacional (online ), 24 (2), 425-447. https://doi.org/10.22633/rpge.v24i2.13312) salientam que a Educação Infantil acabou sendo edificada sobre a base de ideias e teorias que descaracterizam seu papel e distorcem a escolarização de crianças nessa faixa etária. “O saldo dessa história não é outro, senão a inexistência, em pleno século XXI, da consolidação das escolas de educação infantil, como espaços educativos mediadores entre as esferas cotidiana e não cotidiana da vida das crianças” (Pasqualini & Martins, 2020Pasqualini, J. C., & Martins, L. M. (2020). Currículo por campos de experiência na educação infantil: ainda é possível preservar o ensino desenvolvente?. Política e Gestão Educacional (online ), 24 (2), 425-447. https://doi.org/10.22633/rpge.v24i2.13312, p. 444).

Arce (2012Arce, A. (2012). Pedagogia da infância ou fetichismo da infância? In: Duarte, N. (Ed.), Crítica ao fetichismo da individualidade (pp. 129-150). Campinas-SP: Autores Associados.) afirma que na Educação Infantil os pressupostos da Pedagogia da Infância vêm influenciando a prática pedagógica. Nessa perspectiva, segundo a autora, o conhecimento é visto como uma construção individual e coletiva e não como representação objetiva da realidade. Logo, o trabalho do professor acaba tendo pouca influência no desenvolvimento do aluno. Partindo de ideários escolanovistas e construtivistas, o ensino acaba ficando em segundo plano, visto que o aluno tem condições de aprender mesmo sem um adulto para ensinar, dependendo seu desenvolvimento mais das interações do que da apropriação do conhecimento, comenta Arce (2012Arce, A. (2012). Pedagogia da infância ou fetichismo da infância? In: Duarte, N. (Ed.), Crítica ao fetichismo da individualidade (pp. 129-150). Campinas-SP: Autores Associados.)

Pasqualini (2006Pasqualini, J. C. (2006). Contribuições da psicologia Histórico-Cultural para a educação escolar de crianças de 0 a 6 anos: desenvolvimento infantil e ensino em Vigotski, Leontiev e Elkonin (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, SP.) pontua que dentro das perspectivas pedagógicas autointituladas Pedagogia da Infância ou Pedagogia da Educação Infantil, nota-se um caráter pejorativo atribuído ao ensino na Educação infantil. Apregoa-se nesse sentido que a instituição de Educação Infantil deve figurar como um espaço educativo e não-escolar. Dentro dessa ótica alguns autores defendem que exista uma distinção entre escola e creche, propondo que a escola tenha como sujeito o aluno e seu objeto fundamental seja o ensino por meio das aulas, e a creche tenha como sujeito a criança e seu objeto seja as relações educativas dentro de um espaço de convívio coletivo.

Entendemos que a Educação Infantil ocupa um espaço fundamental na promoção do desenvolvimento infantil. Em uma perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural ensinar dirige-se as dimensões intelectuais e afetivas da criança, uma vez que essas são indissociáveis. O ensino parte do ato intencional e consciente do professor objetivando a apropriação do patrimônio humano-genérico pela criança, desta forma defendemos o ensino junto a criança de 0 a 3 anos (Pasqualini, 2006Pasqualini, J. C. (2006). Contribuições da psicologia Histórico-Cultural para a educação escolar de crianças de 0 a 6 anos: desenvolvimento infantil e ensino em Vigotski, Leontiev e Elkonin (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, SP.).

Outro ponto a ser destacado no que tange a construção teórica na educação infantil seria o binômio cuidar-educar, que historicamente também está presente na prática pedagógica, conforme destacam Pasqualini e Martins (2008Pasqualini, J. C., & Martins, L. M. (2008). A Educação Infantil em busca de identidade: análise crítica do binômio “cuidar-educar” e da perspectiva antiescolar em educação infantil. Psicologia da Educação, (27), p. 71-100.). A constituição desse binômio é fruto de a educação infantil ter passado de forma tardia para o quadro de instituições de ensino. Antes desse período o atendimento a crianças de zero a três anos era realizado em instituições intituladas como de cuidados, partindo de uma visão assistencialista. Segundo Pasqualini e Martins (2008Pasqualini, J. C., & Martins, L. M. (2008). A Educação Infantil em busca de identidade: análise crítica do binômio “cuidar-educar” e da perspectiva antiescolar em educação infantil. Psicologia da Educação, (27), p. 71-100.), esses locais tinham como principal objetivo garantir alimentação, higiene e segurança, e as ações educativas eram voltadas à compensação das deficiências apresentadas pelas famílias, que eram julgadas incapazes. Para Pasqualini e Martins (2008Pasqualini, J. C., & Martins, L. M. (2008). A Educação Infantil em busca de identidade: análise crítica do binômio “cuidar-educar” e da perspectiva antiescolar em educação infantil. Psicologia da Educação, (27), p. 71-100.), o binômio educar-cuidar traz prejuízos quando tenta estabelecer limites entre cuidar e educar, uma vez que cuidado e educação constituem dimensões intrinsecamente relacionadas.

Em nossa compreensão, a escola deve sempre primar pelo conhecimento científico e pelo desenvolvimento cognitivo e afetivo dos alunos. Nesse sentido, Mukhina (1996Mukhina, V. (1996). Psicologia da idade pré-escolar: Um manual completo para compreender e ensinas a criança desde o nascimento até os sete anos (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.) destaca a importância da valorização dos conhecimentos sobre o desenvolvimento infantil, principalmente para professores, para que tenham suporte para reconhecer as manifestações infantis que devem ser observadas em cada período do desenvolvimento. Quando o professor conhece o desenvolvimento do psiquismo do aluno, pode ser capaz de criar estratégias para conduzir o ensino de forma a provocar, com direcionamento, esse desenvolvimento.

A formação do psiquismo da criança não se dá de forma espontânea, de forma passiva, pois é necessário que se desenvolva uma relação de interação, de apropriação da cultura, para que a criança se aproprie das formas mais desenvolvidas de conhecimentos (Vigotski, 2010Vigotski, L. S. (2010). Quarta aula: A questão do meio da pedologia (M. P. Vinha, trad.). Psicologia USP, São Paulo, 21(4), 681-701.). Nesse sentido, é necessária a sistematização dos conteúdos curriculares a serem ensinados às crianças, independentemente do nível de ensino.

Para o aperfeiçoamento da prática pedagógica, é importante que o professor se aproprie de diversos conteúdos; quando destacamos a importância de valorizar os conhecimentos inerentes à periodização do desenvolvimento humano para enriquecimento da prática pedagógica, não estamos excluindo a importância dos demais. É preciso entender como se relacionam as leis do desenvolvimento com a aprendizagem.

Mukhina (1996Mukhina, V. (1996). Psicologia da idade pré-escolar: Um manual completo para compreender e ensinas a criança desde o nascimento até os sete anos (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.) ainda afirma que o ensino promoverá o desenvolvimento por meio da apropriação da experiência social. O adulto deve compreender que o ensino deve levar em consideração o desenvolvimento, com o objetivo de guiá-lo. “O papel diretivo do ensino no desenvolvimento psíquico da criança manifesta-se no fato de que a criança assimila novas ações, inicialmente pela ação do adulto e posteriormente sozinha” (Mukhina, 1996Mukhina, V. (1996). Psicologia da idade pré-escolar: Um manual completo para compreender e ensinas a criança desde o nascimento até os sete anos (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Martins Fontes., p. 51).

Desse modo, o trabalho do professor deve almejar a requalificação das funções psicológicas do aluno, tais como percepção, atenção, memória e pensamento, por exemplo. O ensino deve ser orientado considerando-se, além do desenvolvimento real - aquilo que já foi efetivado -, também o desenvolvimento próximo, ou seja, aquilo que está em vias de desenvolvimento. Para Vigotski (2010Vigotski, L. S. (2010). Quarta aula: A questão do meio da pedologia (M. P. Vinha, trad.). Psicologia USP, São Paulo, 21(4), 681-701., p. 114, grifo do autor),

Um ensino orientado até uma etapa de desenvolvimento já realizado é ineficaz do ponto de vista do desenvolvimento geral da criança, não é capaz de dirigir o processo de desenvolvimento, mas vai atrás dele. A teoria do âmbito de desenvolvimento potencial origina uma fórmula que contradiz exatamente a orientação tradicional: o único bom ensino é o que se adianta, ao desenvolvimento.

O ensino sistematizado, orientado pelo professor, proporciona desenvolvimento e leva o indivíduo a maior compreensão da realidade, a ter acesso ao patrimônio cultural. Entendemos, como analisa Saviani (2011Saviani, D. (2011). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas-SP, Autores Associados., p. 06), que o trabalho educativo “(...) é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. Sobre o exercício da prática pedagógica, essa deve ter por objetivo fazer com que o aluno se aproprie das produções mais elaboradas da cultura, uma vez que o “desenvolvimento histórico explicita os traços da atividade humana objetivada e cristalizada nos objetos da cultura e organiza a atividade da criança” (Pasqualini, 2006Pasqualini, J. C. (2006). Contribuições da psicologia Histórico-Cultural para a educação escolar de crianças de 0 a 6 anos: desenvolvimento infantil e ensino em Vigotski, Leontiev e Elkonin (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, SP., p. 193).

Para Pasqualini e Abrantes (2013Pasqualini, J. C., & Abrantes, A. A. (2013). Forma e conteúdo do ensino na educação infantil: o papel do jogo protagonizado e as contribuições da literatura infantil. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, 5, p. 13-24.), a preocupação da organização da prática pedagógica deve levar em consideração a tríade conteúdo-forma-destinatário, necessitando de sintonia entre os elementos culturais que devem ser ensinados aos alunos. Na Educação Infantil é importante considerar as leis gerais que governam o desenvolvimento de cada faixa etária com a qual o professor atua, tendo compreensão das capacidades já alcançadas pelas crianças e suas possibilidades futuras, que estabelecem o objetivo a ser alcançado no processo de ensino.

Entendemos que o domínio do conhecimento quanto à periodização do desenvolvimento infantil pode auxiliar na proposição de um ensino que promova o desenvolvimento. Entretanto, não podemos deixar de lado os demais conhecimentos que são imprescindíveis no processo educativo, seja o científico, o artístico ou o filosófico, dentre outros. Dessa forma, o professor precisa estar instrumentalizado em relação aos conhecimentos que norteiam a transmissão/apropriação dos conteúdos curriculares.

No próximo item nos dedicaremos a apresentar como esses dados apresentados são verbalizados pelas professoras que participaram da pesquisa que temos como objetivo expor neste artigo.

A PESQUISA COM PROFESSORAS

A pesquisa de campo foi realizada em 2020 com cinco profissionais: uma professora de Educação Infantil e quatro auxiliares de creche que atuam na docência com crianças em faixa etária de zero a três anos de idade. O objetivo foi apreender as concepções que as professoras tinham sobre os conceitos de periodização do desenvolvimento infantil e sua relação com o desenvolvimento de sua atuação docente.

A pesquisa foi desenvolvida em um Centro Municipal de Educação Infantil no norte do estado do Paraná, que atende às seguintes turmas: Integral A: 4 meses a 1 ano e 8 meses; Integral B: 1 ano e 8 meses a 2 anos e oito meses; Integral C: 2 anos e oito meses a três anos; Infantil IV: 4 anos; Infantil V: 5 anos. Foram convidadas para participar do estudo os profissionais que atuavam na ocasião nas turmas do integral A, B e C. O critério para seleção das participantes foi atuar na faixa etária de recorte da pesquisa e aceitar voluntariamente a participação.

A pesquisa contou com a aprovação do Comitê Permanente de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos de uma universidade pública do Paraná. Como procedimento para obtenção das informações, optamos pela realização de uma entrevista semiestruturada. Em função do período histórico vivenciado, no qual a população estava sendo acometida, desde 2020, pela pandemia mundial de Covid-19, que impôs diversos protocolos de distanciamento social e proibições de atividades coletivas e presenciais, as entrevistas aconteceram de forma remota. A entrevista realizada de forma semiestruturada foi direcionada por um roteiro, contando com 12 (doze) questões referentes à compreensão sobre o desenvolvimento infantil e a atuação docente das entrevistadas. Utilizamos nomes fictícios para nominar as profissionais.

As participantes do estudo eram todas do sexo feminino, apresentando média de idade de 39 anos. Em relação à qualificação profissional, todas apresentavam formação em nível superior e pós-graduação, sendo duas com pós-graduação em Educação Infantil. No que tange à experiência docente na Educação Infantil, o grupo tem uma média de 7,6 anos de atuação docente, e de 5,8 anos de experiência acumulada na educação infantil.

A partir do material levantado durante as entrevistas, selecionamos três eixos principais de análise. A escolhas desses eixos se deu mediante a contribuição para os objetivos da pesquisa e diante da importância percebida durante a análise das entrevistas. A análise do material partiu do referencial teórico da Psicologia Histórico-Cultural.

Os eixos foram os seguintes: o Eixo I, “Compreensão do desenvolvimento e da aprendizagem”, traz a apresentação de como as participantes entendem essa temática, como forma de alimentar a discussão sobre como essas concepções impactarão a prática pedagógica. O Eixo II, “Função da escola de Educação Infantil”, analisa a proposição sobre os objetivos da instituição participante, no que tange a seus objetivos como espaço de ensino. E, por fim, o Eixo III, “Organização da prática docente e as atividades realizadas”. É importante mencionar que todos os nomes são fictícios.

A seguir apresentamos algumas discussões acerca das respostas obtidas.

Compreensão do desenvolvimento e da aprendizagem

Para a presente pesquisa, o entendimento das participantes em relação ao desenvolvimento e à aprendizagem é fundamental para a discussão sobre como o domínio dos conhecimentos inerentes à periodização do desenvolvimento infantil podem influenciar na atuação docente. Quando realizamos o questionamento sobre como se dá o desenvolvimento humano, nos chamaram a atenção falas que apontam que o desenvolvimento ocorre de maneira natural desde a concepção, não apresentando ênfase aos fatores históricos e culturais envolvidos no processo.

  • - Rosa: O desenvolvimento ocorre de forma contínua. (...) a pessoa vai durante toda vida passar por desenvolvimento em cada passo, de um jeito ou de outro, ela vai se adaptando. (...) na escola vai de acordo com seu rendimento pela idade.

  • - Margarida: Desde a concepção da criança e com o passar do tempo.

  • - Jasmim: O desenvolvimento humano ocorre desde a concepção daquela criança.

  • - Hortência: Começa desde o berçário (...). A mãe traz a criança, aí já temos que começar o desenvolvimento humano desde ali do berço.

  • - Violeta: Ele ocorre junto com o desenvolvimento, vai desde a concepção até o resto da vida.

  • Buscando ilustrar os achados na pesquisa de campo, encontramos as seguintes respostas em relação à questão referente ao processo de aprendizagem.

  • - Margarida: Eu acredito muito em estímulos, o que eles veem, ouvem e o que podemos estimular eles a fazerem.

  • - Jasmim: Ele vai receber os primeiros estímulos, que é o que vai acarretar a sua aprendizagem significativa

  • - Hortência: (...) através de atividades práticas (...) É livre, atividade livre. Porque eu aprendi que o aprendizado deles ali é mais isso. Ali [na educação infantil] eles são mais livres mesmo, não têm muito o que fazer não.

  • - Violeta: Eu acredito que o meio que a criança fica e vive, e o jeito que ela é estimulada, se dá por imitação.

A ênfase dada aos estímulos recebidos pelos alunos no processo de aprendizagem é provavelmente influenciada pela visão piagetiana que permeia a educação desde a década de 1930. Nessa época, no Brasil, o sistema educacional foi influenciado pela Escola Nova, que foi retomada com as ideias construtivistas na década de 1990, com base na Epistemologia Genética (Facci, 2004Facci, M. G. D. (2004). Valorização ou esvaziamento do trabalho do professor? Um estudo crítico-comparativo da Teoria do Professor Reflexivo, do Construtivismo e da Psicologia Vigotskiana. Campinas-SP: Autores Associados.). No caso da Educação Infantil, ao discorrer sobre as principais influências pedagógicas neste nível de ensino, Arce (2012Arce, A. (2012). Pedagogia da infância ou fetichismo da infância? In: Duarte, N. (Ed.), Crítica ao fetichismo da individualidade (pp. 129-150). Campinas-SP: Autores Associados.) afirma que a Pedagogia da Infância vem pautando discussões e práticas que unem influências de diversos autores que poderiam ser aglutinados como escolanovistas. Tal aspecto pode ser percebido nas falas das professoras.

Destacamos as palavras de Vigotski (2010Vigotski, L. S. (2010). Quarta aula: A questão do meio da pedologia (M. P. Vinha, trad.). Psicologia USP, São Paulo, 21(4), 681-701.) sobre a relação entre aprendizagem e desenvolvimento, quando afirma que existe uma relação de interdependência entre eles, frisando, no entanto, que esses são processos diferentes. A aprendizagem promove o desenvolvimento dos processos internos da criança, porém ocorrendo somente quando há um direcionamento desse processo. A apropriação dos conteúdos curriculares provoca o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, o que por sua vez, possibilitará a apropriação de novos conhecimentos e, assim, vai se estabelecendo uma relação dialética entre ensino e aprendizagem.

Nas falas apresentadas fica evidente, além da concepção maturacionista do desenvolvimento, a falta de ênfase no papel da escola como promotora do desenvolvimento e a necessidade de aprimorar os conhecimentos para fundamentar a discussão. Abrantes e Martins (2007Abrantes, A. A., & Martins, L. M. (2007). A produção do conhecimento científico: relação sujeito-objeto e desenvolvimento do pensamento. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, 11 (22), 313-325.) discutem a importância de a prática pedagógica estar pautada principalmente em conhecimentos científicos, tanto dos conteúdos curriculares como do desenvolvimento do psiquismo da criança. Saviani (2011Saviani, D. (2011). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas-SP, Autores Associados.) também esclarece a importância da escola na socialização dos conhecimentos, no processo de humanização. Lembramos, como afirma Leontiev (2004Leontiev. A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro.), que o processo de humanização ocorre por meio do processo educativo, da apropriação da cultura.

Outro apontamento que podemos realizar diante do material levantado, diz respeito ao movimento de valorização dos conhecimentos práticos em detrimento das produções teóricas. Uma das entrevistadas expõe que a atividade de ensino se dá “mais através de atividades práticas, porque eles não têm muito como aprender a ler, a escrever, então a gente passa mais as práticas mesmo”. Esse trecho ilustra um pensamento recorrente entre as participantes, de que existe uma divisão entre os conteúdos pedagógicos e o que elas nomeiam de “atividade prática”, evidenciando que existe a valorização de certos conhecimentos que ainda não podem ser alcançados por crianças que frequentam a creche.

Both (2016Both, I. I. (2016). Esvaziamento do trabalho educativo na pré-escola, suas causas e implicações na formação das crianças: investigação em uma unidade escolar pública municipal em Manaus. (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas, Manaus. Recuperado de: https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/5055
https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/505...
, pp. 127-128) versa sobre a valorização dos diversos conteúdos presentes na escola:

Na perspectiva Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica o conhecimento capaz de promover as capacidades humanas não é somente aquele materializado na escrita, mas, também, em outras formas de objetivação como nos gêneros musicais, nas artes, no cinema, no teatro. Todos integram o patrimônio cultural da humanidade que necessita ser apropriado por cada indivíduo para formar e promover o desenvolvimento das suas capacidades humanas.

Função da escola de Educação Infantil

A Psicologia Histórico-Cultural compreende que cabe à escola proporcionar ao aluno a apropriação das formas culturais mais desenvolvidas disponíveis na sociedade na qual ele está inserido. Conforme fica destacado nas palavras de Scherer (2010Scherer, C. de A. (2010). Musicalização e desenvolvimento infantil: um estudo com crianças de três a cinco anos (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Maringá, Programa de Pós-Graduação em Educação, área de concentração: Aprendizagem e Ação Docente, Maringá, PR., p. 20), a educação “(...) é uma atividade social sem a qual o gênero humano não se reproduz, uma vez que o desenvolvimento psíquico dos sujeitos depende especialmente do conhecimento que lhe é transmitido. Com sua interiorização, modifica-se não só a forma, como também o conteúdo da atividade mental da criança.” Nessa perspectiva, o trabalho do professor necessita ser direcionado e planejado.

Durante o processo de entrevista, questionamos sobre qual seria a finalidade da escola de Educação Infantil, obtendo as seguintes respostas:

  • - Rosa: A escola está ali para ajudar a formar novos cidadãos, para ensinar a contribuir para ela [criança] poder se tornar uma pessoa tranquila dentro da sociedade, então, a escola vem com essa finalidade.

  • - Margarida: Muitos falam que é só cuidar, mas eu acredito que vai muito, além disso. Levar eles a conhecer um mundo novo, interagir na socialização com outras pessoas, crianças, afetividade criar afeto, carinho, amizade, acho que vai além de só cuidar.

  • - Jasmim: Acredito que é de lá [Educação Infantil] que acontece o primeiro suporte, ensino e aprendizagem daquela criança, a escola tem que ser acolhedora, tem que ser uma escola estimulante, precisa sempre buscar pelo melhor da criança.

  • - Hortência: [O CMEI] não só escola, ali conta de um tudo, não só aprendizagem como escola. Eu acho que precisa de carinho, amor, reconhecimento, acolhimento dos pais primeiramente.

  • - Violeta: No meu ponto de vista eu acredito que ainda falta muito para a educação infantil. É vista como assistencialista e não como centro de educação.

Por meio das respostas, observamos que as entrevistadas apresentam uma visão de que o objetivo das instituições de educação infantil está mais ligado à inserção da criança na sociedade, sendo opinião expressa nas palavras de Rosa e Margarida. Já no discurso de Hortência fica evidente a cisão entre cuidar e educar. E, por fim, apenas Jasmim cita um objetivo relacionado ao desenvolvimento do ensino e da aprendizagem na criança.

A Educação Infantil convive com uma contradição sobre seu objetivo, que diverge entre exercer atividades de ensino ou de cuidados, o que impacta diretamente na relação entre professores, alunos e a apropriação de conhecimentos científicos para embasar as atividades realizadas pelos docentes. Essa etapa de ensino tem sua origem associada ao avanço da sociedade capitalista, modificando o papel da mulher na sociedade produtiva e a necessidade de solução para a demanda subjacente, que seria o cuidado dos filhos dessas mulheres que precisaram ser incorporadas ao mercado de trabalho. Essa origem, entre outros fatores, acabou dando destaque às questões afetivas em detrimento da importância dos conhecimentos científicos. As professoras deram grande ênfase à necessidade de transmitir confiança às crianças, valorizando mais fatores emocionais do que fatores relacionados ao processo de aprendizagem de conteúdos curriculares.

As professoras destacaram a importância do afeto, o que consideramos imprescindível no processo ensino e aprendizagem. No entanto, não fica clara a compreensão da unidade afeto-cognição, dando destaque aos aspectos afetivos, ao “amor”, como se isso, sozinho, promovesse o desenvolvimento do aluno, desvalorizando os conhecimentos científicos.

Como ressalta Vigotski (1934/2001Vigotski, L. S. (2001). A construção do pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1934).), para que ocorra a superação dos conhecimentos espontâneos é fundamental o acesso aos conhecimentos científicos. Como vão humanizar seus alunos, no sentido de apropriação dos conhecimentos produzidos historicamente, se elas mesmas não estão instrumentalizadas nesses conhecimentos? Um modo de alcançar esse objetivo seriam os cursos de formação inicial e continuada que instrumentalizem os professores acerca da função e da importância da escola no processo de humanização dos alunos.

Organização da prática docente e as atividades realizadas

É de suma importância a compreensão de como as professoras organizam as atividades pedagógicas, verificando se levam em consideração as características do desenvolvimento do psiquismo da criança em relação à turma que trabalham. A seguir apresentamos alguns relatos das profissionais acerca desse tema.

  • - Rosa: Ele [professor] tem que ter a sua rotina ali depois do planejamento que ele produz semanal. As atividades, conforme ele [Aluno] consegue. Eu creio que dessa maneira o professor consiga fazer essa diferença para as crianças e para os alunos. Nós temos o planejamento anual, que a gente divide em bimestres, e tem o semanal, que a gente desenvolve os conteúdos por semana.

  • - Margarida: Ah! Eu acho que buscar mais e mais a conhecer coisas novas, estar sempre atualizado nas novas propostas. Eu acho que a gente tem que estar sempre disposto a aprender mais, buscar mais.

  • - Jasmim: O professor tem que ser uma pessoa que gosta de trabalhar, que gosta de criança, o primeiro requisito. Tem que ser uma pessoa dedicada, que conhece todo o processo de ensino. Porque tem que ser um professor estimulador, também ativo, participativo e procurar sempre ir de acordo com a faixa etária da criança. Não adianta nada preparar uma aula que não condiz com a realidade daquela sala de aula também.

  • - Hortência: Eu sempre procurei trabalhar dentro, como se diz assim, dentro do que eles consigam trabalhar, nunca faço uma coisa fora (...). Eu respeito sempre dentro da idade deles. Não tentei fugir não, porque eles falam assim: é uma aula fraquinha. Mas é o que eles conseguem fazer, se tentar forçar um pouquinho eles já não querem, dá preguiça, e você levando assim, fazendo mais o prático ali, com blocos, tapete pedagógico, uns brinquedos pedagógicos e trabalhando aquilo que você quer deles, é melhor, é bem mais produtivo, vamos dizer assim. [Hortência cita exemplo de um acordo realizado entre a equipe pedagógica como solução para conseguir desenvolver atividades com turmas de nível de desenvolvimento distinto, foi de reduzir o planejamento a atividades práticas].

  • - Violeta: Acredito que buscando mais formações, conhecendo mais o público, a criança que está trabalhando. Acredito que seja isso.

Um ponto relevante a ser destacado nas falas apresentadas se refere à associação da qualidade da prática docente com o trabalho dentro das possibilidades materiais da escola ou a capacidade individual dos alunos, não realizando menção sobre o avanço que a atividade de ensino deve produzir no educando.

Podemos destacar que a criança pequena se relaciona com o ambiente de forma empírica, o que não exime os profissionais responsáveis pelo direcionamento de seu processo de ensino e aprendizagem de se pautarem no pensamento teórico para orientar e planejar sua prática. Apenas desse modo é possível compreender a realidade; logo, cabe ao educador desenvolver nas crianças as bases sobre as quais se desenvolverá o pensamento teórico (Martins, 2011Martins, L. M. (2011). O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. (Tese apresentada ao concurso público para obtenção de título de Livre Docente). Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista, Bauru, SP.).

A atividade de ensino não deve ser orientada pelo senso comum ou pela vivência empírica do professor em relação à organização da atividade docente. Moraes (2009Moraes, M. C. M. D. (2009). “A teoria tem consequências”: indagações sobre o conhecimento no campo da educação. Educação & Sociedade, 30, 585-607.) destaca que, por mais que os conhecimentos práticos do professor sejam ricos, é necessária uma fundamentação teórica para a efetivação de uma prática de qualidade.

Com o objetivo de compreender a relação entre atividade docente e domínio dos conhecimentos científicos, realizamos o questionamento: que critérios são utilizados para selecionar as atividades realizadas com as crianças?

  • - Rosa: Em primeiro lugar nós fazemos o planejamento. Depois a gente vai para a observação e observando muito, vai de acordo com o que eles tão aprendendo no momento. A idade deles influencia muito também, mas é através da observação das atividades com experiências novas para eles, seja atividade em grupo ou individual. Vai do espaço e do tempo que a gente tem aqui. Então, tudo isso, observação, experiência, atividade em grupo ou individual, espaço e tempo.

  • - Margarida: Pesquisas de acordo com a BNCC. Organizamos o plano de aula por exemplo, vamos trabalhar um pouco o movimento das crianças, mas de que forma, vamos trabalhar música pra eles dançar, é tipo assim tudo pesquisado. É focado em plano de aula, aí tem desenvolvimento, aí a gente vai observar a criança como se ela se desenvolve na atividade, na brincadeira, se desenvolve no movimento deles no correr. (...) Esse planejamento é anual, que a gente costumava fazer e através disso a gente fazia o semanal (...) cada dia tem um registro da atividade aplicada àquele dia ou se a atividade for durante a semana, por exemplo, essa semana a gente vai trabalhar uma coisa a semana toda, aí cada dia a gente trabalha com algum objetivo com aquela aula, mas dentro daquela semana.

  • - Jasmim: Aí no berçário eu auxiliava no banho na alimentação, atividades, quando a professora estava produzindo, banho, fralda e auxiliar para professora era essa minha rotina. Já tinha rotina pronta, eu também ficava na hora do sono às vezes.

  • - Hortência: Olha, eu procuro assim, procuro dentro da (...) lei nova (...), eu sempre procurei trabalhar dentro dela (...), trabalhar com apostila, eu pesquiso bastante, assim não de ficar copiando, eu gosto assim de pesquisar, e entrar dentro dessa lei e ler, tudo aquelas apostilas que estão as idades que eu tô trabalhando, procurar sempre trabalhar ali, porque aqui, agora, eles não querem que a gente trabalhe fora.

  • - Violeta: Então, com as minhas crianças, como eu trabalho com os bebês, eu utilizo atividades de acordo com a idade deles e o potencial. Eu busco trabalhar atividades que consigam envolver todos eles, porque são idades diferentes. Dentro do possível, então, eu trabalho aquilo que eu acredito que seja o melhor para o desenvolvimento deles.

Rosa, Margarida e Hortência dão ênfase à fundamentação de sua atuação. Diante das respostas apresentadas, visualizamos uma dificuldade para explicitar em quais critérios está ancorada a prática docente das entrevistadas.

Dentre tudo que foi apresentado, fica evidente, na organização da prática pedagógica das entrevistadas, a cisão entre as atividades de cuidado e educação. Diante dessa cisão, o tempo destinado às atividades pedagógicas fica reduzido em relação às demais atividades cotidianas e até mesmo relegada a segundo plano. Em contrapartida, defendemos que as instituições de Educação Infantil devem se configurar como espaços educativos completos, não existindo uma divisão entre tipos de atividade, como mencionado nas palavras de Chaves e Franco (2016Chaves, M., & Franco, A. F. (2016) Primeira infância: educação e cuidados para o desenvolvimento humano. In Martins, L. M., Abrantes, A. A. & Facci, M. G. D. (Eds.), Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico: do nascimento a velhice. Campinas: Autores Associados.).

Nas entrevistadas, observamos a intenção de uma busca pelo aprendizado dos alunos, entretanto não percebemos aprofundamento do conhecimento teórico, apenas uma experiência pela vivência dos anos acumulados de profissão.

Conforme podemos observar, as respostas evidenciam que as entrevistadas expõem ideias que estão colocadas na sociedade, permeadas pelo reflexo de uma história da Educação Infantil que ainda atribui pouca ênfase ao processo de apropriação dos conhecimentos científicos nesse nível de ensino. Alegam que se fundamentam no documento pedagógico que direciona a prática na instituição, no entanto, ao observarmos os documentos, consideramos uma proposta pedagógica que não afirma os rumos a serem seguidos no processo de ensino da instituição. Esta não é uma característica única da instituição pesquisada, mas comum à realidade da Educação Infantil.

Incorrer nessa discussão não pode resumir a realidade de uma determinada instituição, que apresenta suas particularidades. No entanto, é necessário discutir as condições de trabalho impostas na nossa sociedade regida pelo capitalismo, partindo da ideia de que o capitalismo não tem como objetivo a emancipação humana. Devemos debater principalmente a precarização da formação profissional e a falta de incentivo institucional para a formação permanente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fundamentados nos pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural defendemos a necessidade de os professores da Educação Infantil, que atuam com crianças com faixa etária entre zero três anos, se apropriarem dos conhecimentos inerentes à periodização do desenvolvimento infantil, para subsidiarem a prática pedagógica.

Salientando que nosso objetivo não é resumir a atividade docente na educação infantil a esses conhecimentos, defendemos um ensino, em qualquer etapa do processo de escolarização, calcado em fundamentos teóricos consistentes em relação aos conteúdos ensinados, à história da educação, a uma compreensão da sociedade e escola vinculada a relações de classe, entre outros fatores que permeiam o processo ensino-aprendizagem.

Observamos, no que tange às correntes teóricas que influenciam a prática pedagógica a Educação Infantil, que há grande influência da Pedagogia da Infância, trazendo como resultado um modelo escolar de centralidade no aluno como principal objeto da prática docente, que tem autonomia e capacidade para direcionar quais conteúdos serão desenvolvidos em sala de aula. Uma visão naturalista do desenvolvimento, que defende o potencial de aprendizado como algo que já está posto após o nascimento, cabendo ao professor apenas estimular e acompanhar o que já é dado à criança pela natureza.

A Educação Infantil sofre com as marcas deixadas por sua constituição histórica, seu reconhecimento tardio como pertencente ao campo do ensino, deixando-a ainda mais vulnerável aos meios de produção do conhecimento contemporâneo. Frente a tudo isso, ainda busca romper com as proposições das Pedagogias da Infância, das ideias antiescolares e, principalmente, do binômio cuidar e educar. Todo esse contexto se reflete no esvaziamento dos conhecimentos teóricos referentes à periodização do desenvolvimento infantil, reproduzindo ações pedagógicas baseadas na experimentação, na prática, sem estabelecer a relação necessária com a teoria. Tal forma de realizar a prática pedagógica pode dificultar a contraposição às condições sociais vigentes que vêm desvalorizando a ciência, que não destacam a importância do conhecimento em todos os níveis de ensino.

Por meio da análise do planejamento pedagógico e das relações estabelecidas entre desenvolvimento infantil e prática docente, salientamos um cenário onde estamos distantes de oferecer para as crianças que frequentam as creches um ensino que contribua para o processo de desenvolvimento omnilateral. Destacamos que tal realidade não é particular e única da instituição participante da pesquisa de campo, mas que essa pode ser considerada um elemento representativo de uma totalidade, constituída pelo histórico dessas instituições e das correntes pedagógicas que servem de base à educação nacional.

Não pretendemos neste momento esgotar as possibilidades de estudo nessa área, pois compreendemos que existe um longo trajeto ainda na pesquisa no que se refere ao ensino da criança de zero a três anos. A Psicologia Histórico-Cultural pode contribuir para uma educação voltada ao desenvolvimento das máximas possibilidades do aluno e para uma escolarização emancipadora. Conhecendo as leis gerais do desenvolvimento e o papel ativo que este deve ter neste processo, o professor pode se instrumentalizar para organizá-lo de forma consciente.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2022
  • Aceito
    04 Set 2022
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