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ESTÁGIO EM PSICOLOGIA ESCOLAR E EDUCACIONAL: TEORIA E PRÁTICA EM UM SERVIÇO-ESCOLA

Pasantía en psicología escolar y educacional: teoría y práctica en un servicio-escuela

RESUMO

Este artigo objetiva apresentar dados de uma pesquisa que teve como finalidade investigar quais as concepções teóricas e quais atividades foram desenvolvidas no estágio curricular supervisionado de psicologia, na área escolar e educacional, em um serviço-escola de uma Universidade Estadual do Paraná. Apresentamos reflexões sobre as relações entre a psicologia, a escola e o surgimento dos serviços-escola de psicologia no Brasil; traçamos algumas considerações sobre a formação do homem; e a relação com a educação, por meio da psicologia histórico-cultural e pedagogia histórico-crítica, ambas fundamentadas no marxismo. Em seguida, expomos dados obtidos na análise de 106 relatórios de estágio. Como resultados, observamos que a teoria e a prática representadas nos relatórios de estágio apresentaram, simultaneamente, uma perspectiva tradicional e crítica de psicologia no campo escolar.

Palavras-chave:
estágio supervisionado; psicologia escolar e educacional; psicologia histórico-cultural

RESUMEN

En este artículo se tiene por objetivo presentar datos de una investigación que tuvo como finalidad investigar cuáles son las concepciones teóricas y cuáles actividades se desarrollaron en la pasantía curricular tutelado de psicología, en el área escolar y educacional, en un servicio-escuela de una Universidad Estadual en Paraná. Presentamos reflexiones sobre las relaciones entre la psicología, la escuela y el surgimiento de los servicios-escuela de psicología en Brasil; trazamos algunas consideraciones sobre la formación del hombre; y la relación con la educación, por intermedio de la psicología histórico-cultural y pedagogía histórico-crítica, ambas fundamentadas en el marxismo. Después, exponemos datos obtenidos en el análisis de 106 informes de pasantía. Como resultados, observamos que la teoría y la práctica representadas en los informes de pasantía lo presentaron, simultáneamente, una perspectiva tradicional y crítica de psicología en el campo escolar.

Palabras clave:
pasantía tutelada; psicología escolar y educacional; psicología histórico-cultural

ABSTRACT

This article aims to present data from a research work that intended to investigate which theoretical conceptions and which activities were developed in the supervised curricular internship of psychology, in the school and educational area, in a school service of the State University of Paraná. We present reflections about the relationship among psychology, the school and the emergence of psychology school services in Brazil; we outline some considerations about the formation of man; and the relationship with education, by means of historical-cultural psychology and historical-critical pedagogy, both based on Marxism. Next, we expose data obtained from the analysis of 106 internship reports. As a result, we observed that the theory and practice represented in the internship reports presented, simultaneously, a traditional and critical perspective of psychology in the school field.

Keywords:
supervised internship; school and educational psychology; historical-cultural psychology

INTRODUÇÃO

Os dados de pesquisa que apresentamos são parte de uma dissertação de mestrado que teve como objetivo investigar quais as concepções teóricas e quais as atividades foram desenvolvidas no estágio curricular supervisionado, em um serviço-escola de uma Universidade Estadual do interior do Paraná, no campo da psicologia escolar e educacional.

Os primeiros projetos de cursos para a formação de psicólogos no Brasil, antes mesmo da regulamentação da profissão, já incluíam a obrigatoriedade da realização de estágios (ABEP, CFP, & FENAPSI, 2018Associação Brasileira de Ensino de Psicologia [ABEP], Conselho Federal de Psicologia [CFP] & Federação Nacional dos Psicólogos [FENAPSI]. (2018). Ano da formação em psicologia 2018: Revisão das diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em psicologia. São Paulo: Conselho Federal de Psicologia/Associação Brasileira de Ensino de Psicologia/Federação Nacional dos Psicólogos.). Por se constituir como parte importante e imprescindível da formação profissional do psicólogo, representando a relação entre a atividade acadêmica e profissional, o Conselho Federal de Psicologia - CFP e a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia - ABEP e Federação Nacional dos Psicólogos - FENAPSI (2018)Associação Brasileira de Ensino de Psicologia [ABEP], Conselho Federal de Psicologia [CFP] & Federação Nacional dos Psicólogos [FENAPSI]. (2018). Ano da formação em psicologia 2018: Revisão das diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em psicologia. São Paulo: Conselho Federal de Psicologia/Associação Brasileira de Ensino de Psicologia/Federação Nacional dos Psicólogos. destacam que há a necessidade de sempre se tratar desse tema, tendo em vista a busca constante de qualificação teórico-metodológica, ética e técnica e da atualização do processo formativo.

Historicamente, concepções teóricas em psicologia escolar e educacional têm sido permeadas, em algumas situações, por uma visão tradicional e em outras por uma visão crítica. A primeira, uma visão hegemônica, de acordo com Lessa (2010Lessa, P. V. de. A. (2010). Atuação do psicólogo no ensino público do Paraná: contribuições da psicologia histórico-cultural (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Maringá, Paraná. Recuperado de http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UEM-10_77428ecbe7821ecfc8b26de4db35e176
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), foi influenciada pelos pressupostos da psicometria e da medicina, expressando as dicotomias entre sujeito-objeto, indivíduo-sociedade, mente-corpo, objetividade-subjetividade. Assim se fundamenta o trabalho clínico dentro da escola, com a produção de diagnósticos e tratamento dos problemas de aprendizagem, individualizando a culpa do não aprender no aluno. Constituída pela lógica formal, a prática tradicional de psicologia compreende a atuação do psicólogo na escola focalizada no indivíduo, não se analisando o contexto.

Entretanto, partindo de uma contraposição a esse modelo, a partir da década de 1970 delineou-se o caminho de uma psicologia escolar e educacional crítica. De acordo com Lessa (2010Lessa, P. V. de. A. (2010). Atuação do psicólogo no ensino público do Paraná: contribuições da psicologia histórico-cultural (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Maringá, Paraná. Recuperado de http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UEM-10_77428ecbe7821ecfc8b26de4db35e176
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), liderado por Maria Helena Souza Patto, foi um movimento de reestruturação das ideias que, até então, estavam muito ligadas a uma psicologia nos moldes tradicionais. Configurou-se em uma visão mais ampla do processo de escolarização, a qual teve no posicionamento de Patto (1984)Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar. São Paulo: T.A. Queiroz. a referência, para muitos profissionais, de um novo modo de atuação, ressaltando o compromisso da psicologia em se contrapor aos interesses das classes dominantes e a buscar o desenvolvimento de novos pressupostos para a área.

Ressaltamos que o conceito de crítica pode assumir diversos sentidos em função das orientações teórico-filosóficas adotadas, como afirmou Meira (2003Meira, M. E. M. (2003). Construindo uma concepção crítica de psicologia escolar: contribuições da pedagogia histórico-crítica e da psicologia sócio-histórica. In: M. E. M. Meira; M. A. M. Antunes, M. A. M. (Eds.), Psicologia Escolar: teorias críticas. (pp. 13-78). São Paulo: Casa do Psicólogo.). Essa autora, partindo de um referencial marxista, analisa que um pensamento que intenciona ser crítico deve ter, entre seus elementos principais, um método reflexivo que capte o movimento das contradições, das múltiplas determinações, dos fenômenos enquanto fatos sociais concretos historicamente constituídos, passíveis de transformação pela ação humana. Deve-se evidenciar o caráter ideológico da ciência, além de denunciar a separação do homem e sua humanidade provocada pelas condições colocadas pelo capitalismo, mas também, oferecer a possibilidade de ser utilizada como instrumento de transformação da realidade (Meira, 2003Meira, M. E. M. (2003). Construindo uma concepção crítica de psicologia escolar: contribuições da pedagogia histórico-crítica e da psicologia sócio-histórica. In: M. E. M. Meira; M. A. M. Antunes, M. A. M. (Eds.), Psicologia Escolar: teorias críticas. (pp. 13-78). São Paulo: Casa do Psicólogo.).

A partir dessas ideias iniciais, neste trabalho, apresentaremos brevemente, reflexões sobre as relações entre a psicologia, a escola e o surgimento dos serviços-escola de psicologia no Brasil; traçaremos algumas considerações sobre a formação do homem e a relação com a educação, por meio da psicologia histórico-cultural e pedagogia histórico-crítica, o que configura como um aporte teórico para uma psicologia escolar com base marxista; e, em seguida, faremos a exposição de alguns dados obtidos na análise dos relatórios de estágio.

Relações históricas entre a psicologia, a educação e o serviço-escola

A história da psicologia foi composta por condições concretas determinadas, que reverberam até os dias atuais. A constituição da psicologia, em sua consolidação como ciência independente, sofreu influências do estudo dos comportamentos, das ciências físicas e biológicas, além de se alinhar com a ideologia liberal.

Carregando essas ascendências, a história da psicologia no contexto das escolas constituiu-se como apoio e base científica à pedagogia e à educação. Neste entrelaçamento da psicologia com a escola e a educação no Brasil, percebemos quatro momentos marcantes. O primeiro é o período relacionado à pedagogia tradicional, o segundo, à escola nova e o terceiro à pedagogia tecnicista - essas teorias foram descritas por Saviani (2012Saviani, D. (2012). Escola e democracia (42ª ed.). Campinas: Autores Associados.) como não críticas. Encontraram respaldo na psicologia, ora por meio dos fundamentos da psicanálise, da teoria rogeriana, da teoria piagetiana, da análise do comportamento, entre outras. No entanto, o quarto momento se destaca por ser crítico, tanto no âmbito da educação como da psicologia. Na educação, a pedagogia histórico-crítica, desenvolvida por Dermeval Saviani e seus colaboradores a partir de 1979; na psicologia, com o movimento da psicologia escolar crítica, que tem como marco importante a produção “Psicologia e ideologia - uma introdução crítica à psicologia escolar” de Patto (1984Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar. São Paulo: T.A. Queiroz.). Esses dois movimentos levam em conta os determinantes concretos, históricos e sociais.

Além de conduzir o processo de crítica dentro da psicologia escolar, as influências do pensamento de Patto se refletiram também nos serviços-escola de psicologia, em especial no da Universidade de São Paulo - USP, que completou 40 anos de existência, em 2017. Docente dessa instituição, Patto foi a criadora institucional desse serviço, destacado por Souza (2017Souza, M. P. R. de. (2017). Psicologia escolar na luta por uma atuação ético-política na educação básica. In: A M. Machado; A. B. C. Lerner; P. F. Fonseca (Eds.), Concepções e proposições em psicologia e educação: a trajetória do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (pp. 57-68) [livro eletrônico]. São Paulo: Blucher. Recuperado de http://pdf.blucher.com.br.s3-sa-east-1.amazonaws.com/openaccess/9788580392906/00.pdf
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, p. 57) “[...] como um marco de grande importância na implantação de um dispositivo, uma estratégia, uma instância institucional em que uma determinada visão de mundo, homem, psicologia e psicologia escolar e educacional se materializou”.

Não podemos deixar de mencionar que a compreensão sobre a relação desenvolvimento e aprendizagem foi sendo ampliada em função da chegada no Brasil, por volta da década de 1980, da psicologia histórico-cultural. Baseada no materialismo histórico e dialético, a teoria traz elementos importantes para compreender o desenvolvimento do psiquismo atrelado à apropriação dos conhecimentos científicos, dando grande destaque à importância da escola e do professor no processo de humanização dos alunos. Tal concepção não é hegemônica, mas contribuiu em intervenções e estudos que buscavam superar uma visão biológica e natural do desenvolvimento humano. Nessa perspectiva de crítica, segundo Silva, Pedro, Silva, Rezende e Barbosa (2013Silva, S. M. C. da; Pedro, L. G.; Silva, D. da; Rezende, D.; Barbosa, L. M. (2013). Estágio em psicologia escolar e arte: contribuições para a formação do Psicólogo.Psicologia: Ciência e Profissão,33(4), 1014-1027.), a busca pela compreensão do homem deve partir do caráter concreto da sua vida social e individual, isto é, das relações por ele geradas, pois é também por meio delas que ele se constitui.

Os serviços-escola foram regulamentados junto com a profissão de psicólogo pela Lei nº 4.119 de 27 de agosto de 1962, a qual estabeleceu um currículo mínimo para a graduação em psicologia, e as então clínicas-escola1 1 A nomenclatura clínica-escola foi substituída por Serviço-Escola a partir do 12º Encontro de Clínicas-Escola do Estado de São Paulo em 2004, com a finalidade de incluir um conjunto maior de intervenções do psicólogo para além dos estritamente clínicos (Amaral et al., 2012). que tinham como principal finalidade “[...] aplicar, na prática, as técnicas psicológicas aprendidas em sala de aula [...]” (Amaral et al., 2012Amaral, A. E. V.; Luca, L.; Rodrigues, T. de C.; Leite, C. de A.; Lopes, F. L.; Silva, M. A. da. (2012). Serviços de psicologia em clínicas-escola: revisão de literatura.Boletim de Psicologia,62(136), 37-52., p. 38).

De acordo com Lima (2011Lima, C. P. de. (2011). “O caminho se faz ao caminhar”: propostas de formação para uma atuação crítica em psicologia escolar e educacional (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-23042012-112529/pt-br.php
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), esses serviços são fundamentais no processo formativo em psicologia, visto que se deve garantir, além da formação teórica proporcionada pelas disciplinas, também a participação em práticas que realizem a integração teórico-prática relativa ao fazer profissional. Isso evidencia que essa relação precisa ser compreendida de maneira dialética, a fim de que não se caia no equívoco de achar que existem soluções prontas a serem, simplesmente, implementadas na prática profissional. Esses serviços se configuram como importantes espaços de fortalecimento da psicologia enquanto ciência e profissão. Além de satisfazer as demandas da comunidade, o estágio de modo abrangente, pode se concretizar em atividades, que articulando os conhecimentos teóricos com a atuação e as necessidades apresentadas pela realidade, incitam o estagiário a adotar um posicionamento ativo diante do seu processo formativo (Lima, 2011Bogoyavlensky, D. N.; Menchinskaya, N. A. (2005). Relação entre aprendizagem e desenvolvimento psicointelectual da criança em idade escolar. In: L. S. Vygotsky et al. (Eds.), Psicologia e Pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento(pp. 63-85). São Paulo: Centauro.).

Desde o final do século XIX, no Brasil, os laboratórios de psicologia estiveram presentes e foram fundamentais para a pesquisa e para a formação de novos profissionais. Conforme afirmou Firmino (2011Firmino, S. P. de M. (2011). Clínica-Escola: um percurso na história e na formação em psicologia no Brasil. São Paulo: Casa do Psicólogo.), por meio dos primeiros laboratórios, a prática em psicologia surgiu aliada à pesquisa. No entanto, na década de 1980, o processo formativo em psicologia tinha uma ênfase maior nos conteúdos que deveriam ser assimilados e aplicados. O estágio era deixado apenas para o último ano e se tratava mais de um campo de aplicação do que de pesquisa (Ferreira Neto, 2004Ferreira Neto, J. L. (2004). A formação do psicólogo: Clínica, Social e Mercado. São Paulo: Escuta.).

Ainda na década de 1990, houve debates que englobaram o Conselho Federal e os Regionais de psicologia de onde surgiu uma proposta, que “[…] baseada na LDB, desloca uma concepção curricular antiga, centrada em disciplinas e conteúdos programáticos, para outra cuja preocupação maior é a construção de competências e habilidades profissionais [...]” (Ferreira Neto, 2004Ferreira Neto, J. L. (2004). A formação do psicólogo: Clínica, Social e Mercado. São Paulo: Escuta., p. 156). O autor segue afirmando que se partiu de um “currículo mínimo” para psicologia, com caráter conteudista para uma perspectiva que visa à aplicação do conhecimento, exigindo, assim, que a prática esteja mais presente, desde os primeiros períodos do curso.

Após amplo debate com as instâncias formadoras e de profissionais, finalmente foram publicadas as Diretrizes Nacionais para os cursos de graduação em psicologia, por meio da Resolução CNE/CNS n. 8, de 07/05/2004, republicadas sete anos depois pela Resolução CNE/CES nº 5, de 15 de março de 2011. As DCN 2004/2011, “[...] introduziram um novo conceito e uma nova modalidade de prática: os estágios básicos. Essa introdução teve por objetivo incentivar a integração entre teoria e prática durante todo o curso, e não apenas em sua fase final, como acontecia anteriormente […] (ABEP, CFP & FENAPSI, 2018Associação Brasileira de Ensino de Psicologia [ABEP], Conselho Federal de Psicologia [CFP] & Federação Nacional dos Psicólogos [FENAPSI]. (2018). Ano da formação em psicologia 2018: Revisão das diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em psicologia. São Paulo: Conselho Federal de Psicologia/Associação Brasileira de Ensino de Psicologia/Federação Nacional dos Psicólogos., p. 57). Recentemente, ocorreu a revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em psicologia, em 2018. A minuta das Diretrizes já foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde em 13 de setembro de 2018 e agora segue para ser apreciado pelo Conselho Nacional de Educação e Ministério da Educação e Cultura.

Nesse breve percurso histórico é importante mencionar que em 1990 foi fundada a Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), visando agrupar profissionais e estudiosos desse campo da psicologia, com o objetivo de fomentar e divulgar as pesquisas da área e obter o reconhecimento legal do psicólogo escolar nas instituições de ensino. Juntamente com o Conselho Federal de Psicologia e as demais associações que compõem o Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (FENPB), a ABRAPEE empreendeu várias ações para aprovação do PL 3688/2000 que dispõe sobre a inserção de psicólogos e assistentes sociais no sistema de ensino. O referido PL foi aprovado no final de 2019, constituindo-se em marco importante para a atuação do psicólogo escolar e educacional.

Após essa exposição sobre a história da psicologia escolar e educacional e do serviço-escola, no próximo item, vamos abordar a concepção de homem e educação que permeou as análises da pesquisa aqui relatada.

Formação do homem e as relações com a educação

A concepção marxista de homem notabiliza que o trabalho possui um aspecto essencial na constituição do homem, formando-o em todos os momentos de sua vida. Em nível filogenético, com o desenvolvimento corporal, o aperfeiçoamento do trabalho e a sociabilidade, possibilitou-se, em cada homem, a consciência da importância da cooperação e a necessidade de comunicação, originando, assim, a linguagem humana, possibilitando a complexificação do cérebro e o aperfeiçoamento dos órgãos dos sentidos (Engels, 1976Engels, F. (1976). Humanização do macaco pelo trabalho. In: F. Engels. A dialética da natureza(pp. 215-228). Rio de Janeiro: Paz e Terra.).

Em decorrência disso, o homem tornou-se capaz de planejar o trabalho e pôde fazê-lo ser executado por outras mãos, por meio desse planejamento. Engels (1976Engels, F. (1976). Humanização do macaco pelo trabalho. In: F. Engels. A dialética da natureza(pp. 215-228). Rio de Janeiro: Paz e Terra.) destaca o fato de que, ao desenvolvimento da atividade do cérebro, é atribuído todo o mérito do rápido progresso da civilização. No entanto, para o autor, “[…] os homens acostumaram-se a explicar seus atos como resultantes de seus pensamentos, ao invés de explicá-los como consequência de suas necessidades (que, rapidamente, se refletem e atingem a consciência, ou seja, o cérebro) [...]” (Engels, 1976Engels, F. (1976). Humanização do macaco pelo trabalho. In: F. Engels. A dialética da natureza(pp. 215-228). Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 222), fundando assim a concepção idealista de mundo e não reconhecendo o papel essencial do trabalho.

Como afirmaram Politzer, Besse e Caveing (1954Politzer, G.; Besse, G.; Caveing, M. (1954). Princípios fundamentais de filosofia (J. C. Andrade, Trad.). São Paulo: Hemus.), Marx partiu da observação concreta da realidade para afirmar que o homem é produto da história das sociedades e não se forma separado do seu meio. Assim, toda a “[…] história mundial nada mais é do que o engendramento do homem mediante o trabalho humano […]” (Marx, 2010Facci, M. G. D.; Leonardo, N. S. T.; Souza, M. P. R. de. (2019). Avaliação psicológica e escolarização: contribuições da psicologia histórico-cultural. Teresina, PI: Edufpi., p. 81). Destacamos a contradição entre o aspecto do trabalho que funda e liberta o homem permitindo a apropriação da riqueza social e o desenvolvimento ilimitado. E, o outro que o escraviza, tomando a forma de mero gasto de energia física e intelectual do trabalhador, aspecto presente na sociedade de classe quando o trabalho adquire valor-de-troca no mercado (Marx, 2013Marx, K. (2013). O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital(R. Enderle, Trad.). São Paulo: Boitempo.).

Podemos afirmar que o psicólogo, como todos os trabalhadores da sociedade capitalista, se coloca à disposição do mercado e dispõe como mercadoria a sua atividade laboral, seja ele enquanto profissional autônomo ou como assalariado. Dessa forma, trazemos para essa discussão o pensamento de Saviani (2013Saviani, D. (2013). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (11ª ed.). Campinas: Autores Associados .) sobre a especificidade do trabalho na educação, que em grande medida se relaciona com o trabalho do psicólogo e também pode contribuir para a compreensão do trabalho do professor-orientador de estágio e do psicólogo escolar e educacional. O autor enfatiza que o trabalho é uma ação intencional antecipada mentalmente e que possui uma finalidade. Assim, afirma que a educação, própria dos seres humanos, é um processo de trabalho e faz uma diferenciação deste enquanto produtor da subsistência humana, que ele nomeia de “trabalho material” e o “trabalho não material”, que diz respeito à “[…] produção de ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata da produção do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana [...]” (Saviani, 2013Saviani, D. (2013). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (11ª ed.). Campinas: Autores Associados ., p. 12).

O autor situa a educação na categoria de “trabalho não-material” e analisa que esse possui duas modalidades: a primeira trata das atividades que tem como resultado um produto, sejam eles livros ou objetos artístico, que se separam do produtor e a segunda, por exemplo a aula, em que não há essa separação do ato da produção e do produto, no qual “[…] a aula é, pois, produzida e consumida ao mesmo tempo (produzida pelo professor e consumida pelos alunos)” (Saviani, 2013Saviani, D. (2013). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (11ª ed.). Campinas: Autores Associados ., p. 12). Isso posto, partindo dessas ideias, podemos dizer que o trabalho do psicólogo é “trabalho não-material”, pois da mesma forma que o professor, o psicólogo escolar e educacional trabalha com conceitos, valores, hábitos, atitudes, habilidades, mais ainda, procura compreender e auxiliar na transformação desses aspectos no sujeito.

Dentro do tema estágio, é necessário compreender a relação entre teoria e prática. Esses dois termos são dicotomizados na sociedade capitalista, mas para o pensamento marxista, no fazer profissional do psicólogo escolar e educacional, seja enquanto aprendiz no estágio supervisionado, ou atuando diretamente no mercado de trabalho, tanto a prática como a teoria estão conjugados. Nessa linha de análise, em relação aos estágios, Nasciutti e Silva (2014Nasciutti, F. M. B.; Silva, S. M. C. da. (2014). O processo de ensinar/aprender uma perspectiva crítica em psicologia escolar e educacional.Psicologia em Estudo,19(1), 25-37.) analisam que a relação dialética entre teoria e prática é imperativa para a apropriação conceitual e, dessa forma, as autoras indicaram a necessidade de compreender teoria e prática como uma unidade. Assim, o estágio supervisionado se configura como atividade fundamental para o exercício profissional do futuro psicólogo escolar, assim como se constitui também, como analisa Machado (2014Machado, A. M. (2014). Exercer a Postura Crítica: Desafios no Estágio em Psicologia Escolar.Psicologia: Ciência e Profissão,34(3), 761-773), um campo de investigação, uma vez que para a autora, intervenção e investigação caminham juntas.

Não há separação entre o conhecimento teórico e a intervenção, conforme vimos afirmando nesse artigo. O estágio supervisionado na escola não deve ser entendido unicamente como local de aplicação de teoria, mas também como uma experiência de produção de conhecimentos teóricos que, partindo da prática, podem permitir compreender o real movimento do que está posto, isto é, ver para além das aparências fenomênicas, ampliando assim as possibilidades de ação e de transformação das práticas. Vázquez, (2011Vázquez, A. S. (2011). Filosofia da Práxis. São Paulo: Expressão Popular., p. 153), nesse sentido, afirma que “[…] o homem conhece o mundo na medida em que atua sobre ele de tal maneira que não há conhecimento à margem dessa relação prática [...]”.

Coerentemente com o pensamento marxista, a psicologia histórico-cultural também nos ajuda a pensar a teoria e a prática efetivada no estágio pelos alunos e pelo fazer do professor orientador. Para essa teoria, de acordo com Leontiev (1978Leontiev, A. (1978). O Desenvolvimento do Psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte.), as aquisições humanas, adquiridas por meio do trabalho, estão objetivadas sob a forma material e intelectual sendo transmitidas de geração em geração. Com base no grau de desenvolvimento das funções psicomotoras e da complexidade da linguagem, se expressam como aperfeiçoamento de instrumentos e utensílios, obras de arte, entre outros.

Vigotski (1993)Vigotsky, L. S. (1993). Obras escogidas II: Pensamiento y Lenguaje: Conferencias sobre Psicología. Madrid: Visor., ao pesquisar o desenvolvimento das funções psíquicas superiores (FPS) - tais como memória lógica, atenção concentrada, raciocínio abstrato, entre outras funções - formula a lei geral da gênese do desenvolvimento cultural, anunciando que toda a função no desenvolvimento cultural aparece duas vezes. Da primeira vez, socialmente (interpsíquico) e posteriormente, no plano psicológico (intrapsíquico). Isto quer dizer que na gênese das FPS estão as relações sociais humanas. Nesse processo, a mediação ocorre por meio de outros homens, mas também, pela mediação dos instrumentos técnicos de trabalho, e os instrumentos psicológicos, os signos, tais como “[…] a linguagem, as diferentes formas de numeração e cálculo, os dispositivos mnemotécnicos, o simbolismo algébrico, as obras de arte, a escrita, os diagramas, os mapas, os desenhos, todo tipo de signos convencionais, etc.” (Vigotski, 1996Vygotsky, L. S. (1996). O método instrumental em Psicologia. In: Vygotsky, Lev Semenovich. Teoria e método em Psicologia (p. 93-101). São Paulo: Martins Fontes., p. 93/94). Trata-se, pois, de uma interação complexa do indivíduo com o mundo.

A apropriação do saber escolar não se dá de forma natural, espontânea, nem pela simples observação. Assim sendo, é preciso a relação entre os homens e o processo de aprendizado para que ela ocorra. Dessa forma, a fim de esclarecer as características da interrelação entre desenvolvimento e aprendizagem, Vigotski (2005)Vygotsky, L. S. (2005). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: Vigotsky, L. S. et al. Psicologia e Pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento (pp. 25-42). São Paulo: Centauro anuncia o conceito de Zona de Desenvolvimento Próximo (ZDP), na qual o indivíduo realiza atividades com auxílio e desenvolvimento atual, referindo-se aquilo que já está efetivado no sujeito. O autor parte da premissa de que existe uma relação entre o nível de desenvolvimento e a potencialidade de aprendizado da criança e que a escola deve propor atividades que incidam no nível de desenvolvimento próximo, promovendo o desenvolvimento psicológico.

No caso do processo de avaliação, o psicólogo deve levar em conta os dois níveis de desenvolvimento para fazer um diagnóstico do desenvolvimento cognitivo do aluno. Essa compreensão de avaliação, proposta por Vigotski (2005)Vygotsky, L. S. (2005). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: Vigotsky, L. S. et al. Psicologia e Pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento (pp. 25-42). São Paulo: Centauro, difere do ponto de vista da psicologia tradicional, que mensura apenas o nível de desenvolvimento atual. Para Facci e Souza (2014Facci, M. G. D.; Souza, M. P. R. de. (2014). O processo de avaliação-intervenção psicológica e a apropriação do conhecimento: uma discussão com pressupostos da escola de Vigotski.Revista Psicologia Política,14(30), 385-403.), o processo de avaliação das queixas escolares é também intervenção, no qual o psicólogo atua com a criança utilizando recursos mediadores que permitem conhecer tanto o que se encontra no nível de desenvolvimento atual como próximo, assim como possibilita o desenvolvimento cognitivo durante a realização das atividades. Partindo dessa premissa, “[...] a aprendizagem não é em si mesma desenvolvimento, mas uma correta organização da aprendizagem da criança que conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia produzir-se sem a aprendizagem [...]” (Vygotsky, 2005Vygotsky, L. S. (2005). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: Vigotsky, L. S. et al. Psicologia e Pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento (pp. 25-42). São Paulo: Centauro, p. 40). No entanto, há que se ressaltar, sobre as investigações relativas à atividade escolar, como afirmaram Bogoyavlensky e Menchinskaya (2005Bogoyavlensky, D. N.; Menchinskaya, N. A. (2005). Relação entre aprendizagem e desenvolvimento psicointelectual da criança em idade escolar. In: L. S. Vygotsky et al. (Eds.), Psicologia e Pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento(pp. 63-85). São Paulo: Centauro.), que o aluno não tem um papel passivo no processo educativo. Ele é também sujeito do desenvolvimento, pois o nível de desenvolvimento alcançado, as relações do indivíduo com o ambiente e os objetivos da atividade são elementos que influem na aprendizagem.

Por isso, a compreensão de ensino que irá pautar o trabalho do psicólogo escolar e educacional, ou mesmo o próprio ensino na formação do psicólogo, em específico o estágio em psicologia escolar e educacional, não pode se fundamentar apenas no saber tecnicista, com receitas prontas que não proporcionam alcançar o nível de generalizações e abstrações coerentes com a apropriação de conceitos científicos. No processo de socialização-apropriação dos saberes científicos, o papel do professor-orientador deve ser o de mediador para promover a tensão do empírico (prática) com o abstrato (teórico). Dessa forma, o processo formativo deve ser uma formação humana integral que estimule o pensamento crítico pela ação docente, contrapondo-se à mera adaptação passiva do indivíduo à sociedade.

Apresentados alguns pressupostos teóricos, a seguir vamos discorrer sobre a pesquisa nos relatórios de estágio na área escolar.

DADOS OBTIDOS NOS RELATÓRIOS DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM PSICOLOGIA ESCOLAR E EDUCACIONAL

O levantamento dos dados foi realizado por meio de análise documental em relatórios de estágio supervisionado de psicologia da área escolar e educacional. O local em que foi desenvolvida a pesquisa, uma Universidade Estadual do interior do Paraná, oferta o curso de psicologia desde o ano de 1979, e desde 1984 possui o serviço-escola, criado a fim de possibilitar o desenvolvimento dos estágios curriculares supervisionados.

Ao concluir o estágio, os grupos apresentam um relatório das atividades realizadas para cada área: escola, trabalho, e saúde e processos clínicos. Assim, ao longo dos 35 anos de funcionamento do serviço, existe uma grande quantidade de relatórios armazenados. Nos detivemos à área escolar e definimos uma estratificação de tempo, considerando relatórios a cada cinco anos. Elegemos o ano de 1984 para iniciar a pesquisa, pois foi quando principiou o funcionamento do serviço-escola. Na sequência, analisamos os relatórios dos anos: 1989, 1994, 1999, 2003, 2009 e 2014. Foi necessário substituirmos o ano de 2004 pelos relatórios do ano de 2003, visto que não localizamos uma quantidade suficiente para análise. No total foram analisados 106 relatórios.

Para a análise das informações, buscamos identificar alguns aspectos nos textos: concepção de psicologia e função do psicólogo escolar; visão de homem; relação desenvolvimento e aprendizagem; concepção de educação e papel da escola; atividades desenvolvidas e público envolvido.

Ressaltamos que, desde o primeiro ano por nós analisados, isto é, 1984, até o último, 2014, todos os estágios desenvolveram caracterização da escola, com base na análise do Projeto Pedagógico do local do estágio, observação e, muitas vezes, também entrevistas com a equipe pedagógica, professores e alunos, a fim de conhecer o ambiente escolar e identificar qual a necessidade apresentada pela escola, para então, eleger quais delas seriam atendidas e com base nisso, desenvolver um projeto de intervenção a ser seguido durante o estágio.

Na tabela 1, apresentamos o público e as atividades desenvolvidas; no entanto, descartamos aqueles relatórios que apresentavam somente uma ocorrência no ano correspondente.

Tabela 1
Público e Atividades Desenvolvidas de Maneira Geral.

Com base na Tabela 1, observamos que as atividades de intervenção coletiva com alunos, curso, orientações e reuniões com professores ou equipe pedagógica e a avaliação e atendimento individual de alunos foram ações desenvolvidas em todos os anos que analisamos. Assim, pudemos levantar a hipótese de que essas três foram as atividades mais representativas nesse processo formativo em relação ao estágio.

Com relação às práticas, nos relatórios, observamos que o primeiro ano, 1984, parte de um fazer pautado na avaliação e no atendimento individual, característica das primeiras intervenções do psicólogo na escola, conforme analisam Facci e Souza (2014Facci, M. G. D.; Souza, M. P. R. de. (2014). O processo de avaliação-intervenção psicológica e a apropriação do conhecimento: uma discussão com pressupostos da escola de Vigotski.Revista Psicologia Política,14(30), 385-403.). Em 1989, a prática principal é concernente, sobretudo, ao trabalho com os professores, o que sugere uma mudança no foco de intervenção, antes agindo diretamente com o aluno, e posteriormente auxiliando o professor a intervir com eles. No ano de 1994, a centralidade passa a ser na intervenção coletiva com os alunos, seguida ainda de perto pelo trabalho com os professores, no entanto, também se faz presente a avaliação e atendimento individuais. Tal forma de intervenção também foi localizada na pesquisa realizada por Lessa (2010Lessa, P. V. de. A. (2010). Atuação do psicólogo no ensino público do Paraná: contribuições da psicologia histórico-cultural (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Maringá, Paraná. Recuperado de http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UEM-10_77428ecbe7821ecfc8b26de4db35e176
http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UEM-1...
).

Conforme comentam Checchia e Souza (2003Checchia, A. K. A; Souza, M. P. R. (2003). Queixa Escolar e Atuação Profissional: Apontamentos para a formação de Psicólogos. In: M. E. M. Meira; M. A. M. Antunes(Eds), Psicologia Escolar: teorias críticas (pp. 105-137). São Paulo: Casa do Psicólogo.), a psicologia, quando da regulamentação da profissão, já havia desenvolvido uma história que foi impressa nos novos cursos e profissão, reafirmando o caráter clínico. Os novos cursos enfatizam na formação o psicodiagnóstico, as psicoterapias, técnicas e atendimento individual, transformando os alunos em psicólogos clínicos. Ainda, de acordo com essas autoras, nos anos de 1970, as críticas ainda não haviam surtido efeito no processo formativo e na profissionalização.

Checchia e Souza (2003Checchia, A. K. A; Souza, M. P. R. (2003). Queixa Escolar e Atuação Profissional: Apontamentos para a formação de Psicólogos. In: M. E. M. Meira; M. A. M. Antunes(Eds), Psicologia Escolar: teorias críticas (pp. 105-137). São Paulo: Casa do Psicólogo.) destacaram também que, no final da década de 1980, a formação profissional ainda estava pautada no trabalho curativo e no ensino de técnicas psicológicas. Nesse ínterim, a psicologia já havia passado pelo período de exceção imposto pelo regime militar, que fomentou a adaptação do indivíduo à sociedade, buscando eliminar as críticas de homem e sociedade. No processo formativo em psicologia, acreditou-se que, ao explicar a realidade por meio dos aspectos psicológicos, se eliminaria as concepções que discutem a organização e o funcionamento da sociedade permeada por desigualdades sociais. No entanto, aos poucos, o contexto social volta a ser incorporado nas discussões da psicologia, e são realizadas críticas aos referencias teóricos utilizados, entre eles, a psicanálise pautada na dimensão individual e interpessoal (Checchia & Souza, 2003Asbahr, F. da S. F.; Martins, E.; Mazzolini, B. P. M. (2011). Psicologia, formação de psicólogos e a escola: desafios contemporâneos.Psicologia em Estudo,16(1), 157-163.). Nesse contexto, a psicologia escolar e educacional foi avançando no sentido de superação de uma visão individualizante, culpabilizante e adaptativa, por meio do processo de crítica.

A intervenção junto aos professores e alunos de maneira coletiva segue sendo a atividade mais desenvolvida em 1999 e 2003. Também fica marcada uma diminuição significativa na avaliação e intervenção individual com alunos. A partir da década de 1990, houve maior divulgação das obras de Vigotski que, conforme Facci (2004Facci, M. G. D. (2004). Valorização ou esvaziamento do trabalho do professor? Um estudo crítico-comparativo da teoria do professor reflexivo, do construtivismo e da psicologia vigotskiana. Campinas: Autores Associados.), começaram a ser publicadas no Brasil em 1984. Essa teoria começou a influenciar a educação, contrariando as premissas que dão ênfase aos conhecimentos cotidianos e defendendo a socialização do saber sistematizado. Ademais, nesses relatórios, percebemos a inserção de elementos da psicologia histórico-cultural, tais como o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, periodização do desenvolvimento, desenvolvimento humano e processo ensino-aprendizagem.

Vigotski (1993)Tanamachi, E. de R. (2006). A mediação da psicologia histórico-cultural na atividade de professores e do psicólogo. In: S. G. de L. Mendonça; S. Miller (Eds.), Vigotski e a escola atual: fundamentos teóricos e implicações pedagógicas. Araraquara: Junqueira & Marin. salienta que o ensino escolar é a principal fonte de desenvolvimento dos conceitos científicos e é determinante no desenvolvimento intelectual da criança. Diante dessa compreensão da teoria vigotskiana, é preciso evidenciar que o papel do professor no processo educativo é o de colaborar para o processo de humanização dos indivíduos, uma vez que: “A educação escolar, portanto, diferencia-se de outras formas de educação espontâneas, pois a sua finalidade é a produção da humanidade no indivíduo [...]” (Facci, 2004Facci, M. G. D. (2004). Valorização ou esvaziamento do trabalho do professor? Um estudo crítico-comparativo da teoria do professor reflexivo, do construtivismo e da psicologia vigotskiana. Campinas: Autores Associados., p. 227).

Na escola, o professor faz a mediação dos conhecimentos, no sentido de que já se apropriou da cultura elaborada pelos homens e deve levar os alunos à essa apropriação, e a sistematização do ensino pode influenciar no desenvolvimento das formas superiores do psiquismo. A formação das funções psicológicas superiores é decorrência da mediação da atividade humana, portanto, precisa existir a intencionalidade na mediação dos conhecimentos escolares, de forma que o professor guie as funções psíquicas superiores, tendo a compreensão daquelas que já estão formadas e as que precisam ainda de desenvolvimento. Assim, o psicólogo necessita valorar o trabalho desse profissional, e a intervenção necessita ocorrer no processo de instrumentalização do profissional e não culpabilização e desvalorização do saber docente, conforme observamos em alguns relatórios dos primeiros anos.

No ano de 2009, a totalidade dos relatórios apresentou o desenvolvimento de grupos psicoeducacionais com alunos, que se configuraram como resultado de uma grande demanda de avaliações individuais, que nesse caso, não representam um “retorno” ao modo tradicional de operar a psicologia na escola, mas como consequência das diretrizes da Secretaria de Estado da Educação do Paraná, ao indicar que todos os alunos matriculados em classes de Educação Especial deveriam ser previamente avaliados por equipe multidisciplinar. Dessa forma, o curso de psicologia colaborou com avaliações, na maioria das vezes, que superaram o uso exclusivo de testes e que levavam em conta as multideterminações das queixas escolares, conforme pode se encontrar em autores que trabalham numa perspectiva da psicologia histórico-cultural (Facci, Leonardo, & Souza, 2019Facci, M. G. D.; Leonardo, N. S. T.; Souza, M. P. R. de. (2019). Avaliação psicológica e escolarização: contribuições da psicologia histórico-cultural. Teresina, PI: Edufpi.).

Em 2014, as atividades pautaram-se em grande medida na intervenção coletiva junto aos alunos, seguida por intervenção coletiva junto aos professores ou equipe pedagógica. A avaliação individual de alunos ainda foi uma prática desenvolvida, mas em menor medida. Com relação à perspectiva teórica, percebemos em alguns momentos uma junção de teorias psicológicas, dado o processo de aprendizagem em que os alunos se encontram. No entanto, de forma geral sempre esteve presente uma perspectiva crítica de psicologia e da função do psicólogo, visto muitas vezes como agente de mudanças, mesmo quando se pautaram em perspectivas teóricas que não almejam a transformação social.

A partir de 2003, permanece um certo ecletismo teórico em alguns relatórios, mas quando se tratou da psicologia histórico-cultural, como teoria que fundamentou o estágio, percebemos aumento da clareza teórica e diminuição na pluralidade de concepções utilizadas para se tratar a demanda que foi atendida na prática do estágio.

Precisamos destacar que, apesar da psicologia histórico-cultural ter sido desenvolvida enquanto perspectiva teórica que norteou os relatórios, perspectivas hegemônicas também foram utilizadas aliando-as à perspectiva crítica. Nesse sentido, nos alerta Meira (2003Meira, M. E. M. (2003). Construindo uma concepção crítica de psicologia escolar: contribuições da pedagogia histórico-crítica e da psicologia sócio-histórica. In: M. E. M. Meira; M. A. M. Antunes, M. A. M. (Eds.), Psicologia Escolar: teorias críticas. (pp. 13-78). São Paulo: Casa do Psicólogo.) que:

Contrariando as tendências hegemônicas, consideramos que é possível empreender a tarefa da crítica neste momento histórico. Isto não significa que esta empreitada seja fácil ou tranquila. Ao contrário, atualmente é preciso um grande esforço para impedir que as visões progressistas sejam diluídas pela onda conservadora que varre o mundo, e a reflexão teórico-crítica tem um papel privilegiado neste processo. (p. 15).

A exposição da visão de homem foi claramente uma preocupação daqueles que partem da concepção marxista/materialista histórica-dialética, ou também, como mencionado nos relatórios, uma visão histórico-crítica de homem, conforme propõe Vigotsky (1993Vigotsky, L. S. (1993). Obras escogidas II: Pensamiento y Lenguaje: Conferencias sobre Psicología. Madrid: Visor.), Vázquez, (2011Vázquez, A. S. (2011). Filosofia da Práxis. São Paulo: Expressão Popular.) e Tanamachi (2006Tanamachi, E. de R. (2006). A mediação da psicologia histórico-cultural na atividade de professores e do psicólogo. In: S. G. de L. Mendonça; S. Miller (Eds.), Vigotski e a escola atual: fundamentos teóricos e implicações pedagógicas. Araraquara: Junqueira & Marin.). Consideramos que ocorreu um desenvolvimento dessa perspectiva, visto que, em 2014, o último ano analisado, o marxismo foi a visão de homem preponderante, sendo destacada por onze dos catorze relatórios analisados.

Levantamos a hipótese de que muitos relatórios não apresentavam uma visão de homem, porque esta não é uma preocupação de algumas perspectivas positivistas da psicologia. Parece-nos que isso é secundário em algumas abordagens que não levam em conta as relações de classes e o posicionamento político, como se houvesse neutralidade na ciência e, consequentemente, na intervenção dos estagiários. Marx (2010Marx, K. (2010). Manuscritos econômicos-filosóficos (J. Ranieri, Trad.). São Paulo: Boitempo.) deixa claro a existência de duas classes - trabalhadores e proprietários - e a consideração desse aspecto é fundamental em uma atuação com vistas à transformação, ao processo de humanização de professores, alunos e pais, por exemplo. Assim, por que falar de visão de homem? Porque o homem se forma, se desenvolve, aprende, se humaniza, por meio da relação com outras pessoas, por meio do trabalho. A historicidade é fundante na compreensão dos fatos, mas isso nem sempre é levado em conta, hoje, em muitas produções/intervenções na área da psicologia e, mais especificamente, no campo escolar.

A relação entre o desenvolvimento e aprendizagem também seguiu esse trajeto, sendo o ponto crucial do ecletismo teórico, delineado ao longo do tempo pela perspectiva piagetiana, rogeriana, e a psicanálise, entre outras. No entanto, a concepção da psicologia histórico-cultural também esteve presente e ganhou força ao longo dos anos, destacando que a aprendizagem gera desenvolvimento, conforme destacam Vigotski (2005)Vygotsky, L. S. (2005). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: Vigotsky, L. S. et al. Psicologia e Pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento (pp. 25-42). São Paulo: Centauro, Vigotski (2000)Vigotski, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes., Asbahr, Martins e Mazzolini (2011Asbahr, F. da S. F.; Martins, E.; Mazzolini, B. P. M. (2011). Psicologia, formação de psicólogos e a escola: desafios contemporâneos.Psicologia em Estudo,16(1), 157-163.), Facci (2004Facci, M. G. D. (2004). Valorização ou esvaziamento do trabalho do professor? Um estudo crítico-comparativo da teoria do professor reflexivo, do construtivismo e da psicologia vigotskiana. Campinas: Autores Associados.).

Com relação à concepção da educação e a função da escola, essas, desde 1984, entendidas como reprodutoras da ideologia do Estado, mas também como libertadoras, vão se alterando em decorrência do desenvolvimento/divulgação da pedagogia histórico-crítica e da psicologia histórico-cultural, resultado de um processo histórico que permite acesso às novas produções. Essas teorias destacam uma concepção crítica de educação, na qual a função da escola, em suma, se pauta na socialização e apropriação dos conhecimentos científicos, promovendo desenvolvimento psíquico dos alunos. Como vimos anteriormente, Vigotski, (1993) é muito claro quando afirma que aprendizagem promove desenvolvimento, por sua vez Saviani (2013Saviani, D. (2013). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (11ª ed.). Campinas: Autores Associados .) entende que a função social da escola é a socialização dos conhecimentos produzidos pelos homens.

Foi possível identificar que diferentes perspectivas teóricas estão presentes nos relatórios, principalmente a psicologia comportamental, psicanálise, teoria piagetiana e psicologia histórico-cultural e que essas foram se alterando com o passar dos tempos. Ao observarmos as produções da equipe de professores que supervisionaram os trabalhos, entendemos que eram coerentes com o posicionamento desses profissionais que orientavam os estágios e que se fundamentavam em diferentes perspectivas teóricas. Assim, em determinados anos era mais presente a teoria piagetiana, por exemplo, por constar com mais grupos orientados por professor dessa linha teórica, assim como houve um crescimento da psicologia histórico-cultural, porque cresceu o número de supervisores que trabalhavam nessa perspectiva e que propiciaram características diferenciadas ao trabalho. No entanto, independentemente da perspectiva teórica, observamos que a psicologia escolar e educacional proposta nos estágios envolvia alunos, professores e, em várias situações, também os pais.

Cabe aqui uma ponderação. Na nossa análise, a relação teoria e prática foi se modificando nos relatórios. Nos primeiros anos analisados, ressaltava-se a impressão de que no estágio só interessava relatar as intervenções. Posteriormente, observamos um aumento na preocupação em deixar claro os fundamentos teóricos que norteavam as ações. Podemos arriscar a dizer, utilizando as ideias de Santos (2006Santos, C. M. dos. (2006). Os instrumentos e técnicas: mitos e dilemas na formação profissional do assistente social no Brasil (Tese de Doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Recuperado de http://objdig.ufrj.br/30/teses/665082.pdf
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), que o desenvolvimento dos estágios permitiu a formação de ideias, que voltaram à prática. Sair do concreto e instrumentalizar teoricamente permite que o aluno regresse à prática em busca da essência, da compreensão da totalidade dos problemas que se põem aos estagiários. Nesse aspecto, consideramos que essa tomada de consciência se constitui como uma visão de uma psicologia escolar com base marxista.

Checchia e Souza (2003Checchia, A. K. A; Souza, M. P. R. (2003). Queixa Escolar e Atuação Profissional: Apontamentos para a formação de Psicólogos. In: M. E. M. Meira; M. A. M. Antunes(Eds), Psicologia Escolar: teorias críticas (pp. 105-137). São Paulo: Casa do Psicólogo.) consideraram que um dos grandes desafios da formação de psicólogos consiste em implementar discussões e elementos de uma atuação crítica em psicologia escolar. Nasciutti e Silva (2014Nasciutti, F. M. B.; Silva, S. M. C. da. (2014). O processo de ensinar/aprender uma perspectiva crítica em psicologia escolar e educacional.Psicologia em Estudo,19(1), 25-37.) também defendem que em uma concepção crítica, a mediação do supervisor é fundamental para que o aluno estabeleça uma relação dialética entre teoria e prática. Com relação à parte do processo formativo, representado pelo estágio supervisionado que originaram os relatórios que analisamos, o ponto mais claro dos resultados dessa pesquisa é que se buscou a superação desse desafio. Não só se implementaram discussões, como desenvolveu-se um olhar crítico, principalmente, com base na psicologia histórico-cultural, ainda que a visão tradicional insiste em permanecer em menor medida, deixando claro que as contradições presentes na sociedade permeiam a ação do psicólogo. Nesse sentido, é necessário dizer que avanços e recuos se fazem presentes, pois é muito forte, em uma sociedade capitalista, a necessidade de conter a transformação, mas são as contradições presentes que contribuem para que psicólogos se posicionem em um processo de transição entre uma visão crítica e uma visão tradicional da psicologia no campo escolar e educacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No ano pelo qual iniciamos a análise, 1984, o entendimento de Patto (1984Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar. São Paulo: T.A. Queiroz.) sobre o fracasso escolar ainda era bem recente, pois o movimento de crítica ocorreu em final dos anos de 1970 e início da década de 1980. Assim a influência desse pensamento, em contradição ao método tradicional de operar a psicologia na escola, com o foco individualizante e adaptativo, ainda não se apresentava nos relatórios. Somente posteriormente é que percebemos a incorporação de uma intervenção crítica na psicologia praticada.

Entretanto, quando o movimento de crítica passa a fazer parte da psicologia em sua relação com a escola, percebemos que não há dicotomização entre esses dois modos de olhar os fenômenos escolares pela psicologia tradicional e a crítica, elas se inter-relacionam nos relatórios por nós analisados e também na profissão, na pesquisa e na formação como um todo. É possível perceber, assim, a relação entre os relatórios e o processo formativo do curso de psicologia da instituição analisada, com o processo histórico da psicologia escolar e educacional no Brasil, bem como com a constituição da psicologia enquanto ciência.

Os relatórios, a princípio, evidenciaram um modo de compreensão da ideologia neoliberal, que influenciou e influencia o processo formativo e a profissão dos psicólogos escolares e educacionais, apenas entendendo as contradições da sociedade capitalista, refletidas na escola, como fatalistas, sem perspectivas de mudanças. No entanto, com o passar dos anos, os determinantes sociais na escola começaram a ser compreendidos em uma visão dialética, por meio da qual, além de se reproduzir a sociedade, é possível que essa seja alterada pelos homens. Isto é, a escola não tem o poder supremo de dominar as ideias, atitudes e comportamentos dos alunos, visto que eles se encontram em relação ativa com o conhecimento e com os atores que nela atuam. Entretanto, quando cumpre sua função social de socialização do saber sistematizado, pode permitir que o aluno desenvolva formas mais elaboradas de pensamento, desatando algumas amarras que o impedem de aprofundar sua visão sobre o mundo.

Meira (2003Meira, M. E. M. (2003). Construindo uma concepção crítica de psicologia escolar: contribuições da pedagogia histórico-crítica e da psicologia sócio-histórica. In: M. E. M. Meira; M. A. M. Antunes, M. A. M. (Eds.), Psicologia Escolar: teorias críticas. (pp. 13-78). São Paulo: Casa do Psicólogo.) e Tanamachi (2006Tanamachi, E. de R. (2006). A mediação da psicologia histórico-cultural na atividade de professores e do psicólogo. In: S. G. de L. Mendonça; S. Miller (Eds.), Vigotski e a escola atual: fundamentos teóricos e implicações pedagógicas. Araraquara: Junqueira & Marin.), entre outros autores, afirmam que uma leitura crítica de psicologia e sua relação com a escola é aquela que leva em consideração as multideterminações do contexto. Isto é, trata-se de uma perspectiva que não compreende a escola como uma ilha isolada do resto do mundo. Nesse sentido, podemos destacar, por meio da análise dos relatórios, que a atuação dos estagiários e seus orientadores, seguiram em sua grande maioria uma perspectiva crítica, evidenciando as determinações sociais. Mas, como pudemos verificar no processo histórico de constituição da psicologia, de maneira geral, e da psicologia escolar no Brasil de maneira específica, desde suas raízes elas foram orientadas pelo ideário reacionário. Assim, mesmo havendo a contradição presente nas práticas e na teoria, o ideário neoliberal também esteve presente. Algumas vezes culpabilizou-se e individualizou-se a queixa, ora a atribuindo ao aluno, ora ao professor, também sugerindo o ajustamento/adaptação do aluno. Ou seja, nem sempre se trabalhou no sentido de transformar a situação vigente na sociedade.

Asbahr, Martins e Mazzolini (2011Asbahr, F. da S. F.; Martins, E.; Mazzolini, B. P. M. (2011). Psicologia, formação de psicólogos e a escola: desafios contemporâneos.Psicologia em Estudo,16(1), 157-163.) afirmam que na psicologia escolar e educacional perspectivas reducionistas persistem em ser reeditadas, salientando a necessidade da reconstrução do que caracteriza o trabalho do psicólogo, entendido por essas autoras como a identidade profissional. Uma característica dessa necessidade de reconstrução é evidenciada por Machado (2014Machado, A. M. (2014). Exercer a Postura Crítica: Desafios no Estágio em Psicologia Escolar.Psicologia: Ciência e Profissão,34(3), 761-773) ao frisar que o processo de crítica teve consequência, pois psicólogos em processo de formação no campo escolar sabem que existem práticas que reproduzem as relações de desigualdade, que discriminam e rotulam, mas não têm clareza de como agir com isso, de como exercer uma postura crítica. No entanto, pelo fato de haver profissionais/docentes comprometidos com uma concepção teórica transformadora, isso acaba se refletindo no processo formativo, pois observamos que o professor é quem direciona o caminho a ser trilhado nos estágios. Isso ficou evidente na forma como a educação e o processo ensino-aprendizagem eram compreendidos nos relatórios, coerentes com a perspectiva adotada pelos supervisores.

Para Abrantes (2016Abrantes, A. A. (2016). Formação do psicólogo e compromisso social: uma experiência educativa com a literatura infantil. In: M. G. D. Facci; M. E. M. Meira (Eds.), Estágios em psicologia escolar: proposições teórico-práticas (pp. 19-53). Maringá: EDUEM.), dentro da estrutura classista de sociedade, a instrumentalização do corpo discente está diretamente relacionada ao processo de formação profissional em Psicologia, visto que, a partir de um posicionamento sobre as contradições básicas do capitalismo, o professor pode colaborar para que o aluno se insira em um dos polos da contradição, isto é, entre os processos de alienação e humanização. Assim, se o professor orientador de estágio tem um papel importante na formação profissional do psicólogo, fica evidente que o processo formativo precisa acontecer de forma presencial, posto que as orientações presenciais e certamente, as trocas desenvolvidas entre estudantes e professor, são relevantes para a apropriação dos conhecimentos teóricos e práticos necessários ao psicólogo em formação.

Quando questionamos se o estágio é a aplicação prática da teoria aprendida, ressaltamos, como afirmou Vieira Pinto (1969Vieira Pinto, A. (1969). Ciência e Existência: Problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra.), que a vida humana é sempre prática, uma vez que as situações não se repetem precisamente iguais. Sempre há a solicitação da compreensão racional para atender às necessidades postas pelas circunstâncias variáveis. Isto é, a prática se pauta na capacidade de refletir sobre o real, buscando a concretização de uma finalidade. Assim, no sentido marxista do termo, há um indissolúvel nexo entre teoria e prática. Entretanto, a prática dá origem a novas finalidades para o ser humano, pois gera novas ideias, que farão o homem ver e conhecer o mundo de maneira mais ampla e profunda. Dessa forma, o estágio, além da aplicação prática da teoria, representa também produção de conhecimento.

Ressaltamos que a teoria e a prática representadas nos relatórios de estágio refletiram as contradições da sociedade capitalista de alienação e humanização. Tais produções apresentaram, simultaneamente, uma perspectiva tradicional e crítica de psicologia no campo escolar, progredindo em direção mais evidente para a superação da visão individualista e adaptacionista. É oportuno mencionar o que Meira (2003Meira, M. E. M. (2003). Construindo uma concepção crítica de psicologia escolar: contribuições da pedagogia histórico-crítica e da psicologia sócio-histórica. In: M. E. M. Meira; M. A. M. Antunes, M. A. M. (Eds.), Psicologia Escolar: teorias críticas. (pp. 13-78). São Paulo: Casa do Psicólogo.) constatou, de que estamos longe de completar o processo de contextualização crítica em psicologia escolar e educacional, no entanto complementamos: longe, mas mais perto do que antes.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2019
  • Aceito
    02 Abr 2020
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