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As "propagandas do horror" e os fenômenos de massa contemporâneos

The "horror propaganda" and the contemporary mass phenomena

Las "propagandas del horror" y los fenómenos de massa contemporáneos

Resumos

Este trabalho teórico discute os fundamentos ligados a certas disposições psíquicas que subjazem aos fenômenos de massa contemporâneos, a partir da relação estabelecida entre o conto "Os Anões" e as propagandas antifumo, as denominadas "propagandas do terror", as quais são transmitidas por imagens que mostram o processo de definhamento e de decomposição do fumante. OS referenciais teóricos adotados são Theodor Adorno, Max Horkheimer e SigmundFreud. Pressupõe-se que, para a análise tanto do subtexto das mensagens quanto do conto, a tese sobre a história subterrânea do esclarecimento voltada à dominação do corpo e da natureza, e mais do "retorno do recalcado", lança luz sobre os elementos investigados.

Teoria crítica; psicanálise; dominação do corpo


This paper discusses the theoretical foundations linked to certain psychic dispositions that underlie the contemporary mass phenomena, from the relationship established between the short story "The Dwarves" and the anti-smoking advertisements, enabled by images showing the process of withering and decomposition of the smoker, from which we call "horror propaganda". The theoretical approach is based on the work of Theodor Adorno, Max Horkheimer, and Sigmund Freud. It is assumed that to the analysis of the messages subtext and the tale, the thesis on the history underground history of clarification aimed to the domination of the body and nature, besides the "return of the repressed," sheds light on matters under investigation.

Critical theory; psychoanalysis; domination of the body


Este trabajo teórico discute los fundamentos relacionados a ciertas disposiciones psiquicas que subyacen en los fenómenos de masa contemporáneos, apartir de la relación establecida entre el cuento "Los Enanos" y las propagandas anti-tabaquismo presentadas por imágenes que muestran el processo de debilitamiento y descomposición del fumador, y que denominamos de "propagandas del horror". El referencial teórico adoptado es Theodor Adorno, Max Horkheimer y SigmundFreud. Suponemos que para el análisis del subtexto de los mensajes y del cuento, la tesis sobre la historia subterránea del esclarecimiento volcada a la dominación del cuerpo y la naturaleza, y sobre el "retorno de lo reprimido", lanza una luz sobre los elementos investigados.

Teoria crítica; psicoanálisis; dominación del cuerpo


ARTIGOS

As "propagandas do horror" e os fenômenos de massa contemporâneos

The "horror propaganda" and the contemporary mass phenomena

Las "propagandas del horror" y los fenómenos de massa contemporáneos

Ana Paula Avila Gomide

Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo. Professora doutora da Universidade Federal de Uberlândia. Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Ana Paula Avila Gomide. Rua Maria Dória Cunha, 160, apt.302 - Bairro: Finotti, CEP 38408-080, Uberlândia-MG. E-mail: anapag2@gmail.com

RESUMO

Este trabalho teórico discute os fundamentos ligados a certas disposições psíquicas que subjazem aos fenômenos de massa contemporâneos, a partir da relação estabelecida entre o conto "Os Anões" e as propagandas antifumo, as denominadas "propagandas do terror", as quais são transmitidas por imagens que mostram o processo de definhamento e de decomposição do fumante. OS referenciais teóricos adotados são Theodor Adorno, Max Horkheimer e SigmundFreud. Pressupõe-se que, para a análise tanto do subtexto das mensagens quanto do conto, a tese sobre a história subterrânea do esclarecimento voltada à dominação do corpo e da natureza, e mais do "retorno do recalcado", lança luz sobre os elementos investigados.

Palavras-chave: Teoria crítica; psicanálise; dominação do corpo.

ABSTRACT

This paper discusses the theoretical foundations linked to certain psychic dispositions that underlie the contemporary mass phenomena, from the relationship established between the short story "The Dwarves" and the anti-smoking advertisements, enabled by images showing the process of withering and decomposition of the smoker, from which we call "horror propaganda". The theoretical approach is based on the work of Theodor Adorno, Max Horkheimer, and Sigmund Freud. It is assumed that to the analysis of the messages subtext and the tale, the thesis on the history underground history of clarification aimed to the domination of the body and nature, besides the "return of the repressed," sheds light on matters under investigation.

Key words: Critical theory; psychoanalysis; domination of the body.

RESUMEN

Este trabajo teórico discute los fundamentos relacionados a ciertas disposiciones psiquicas que subyacen en los fenómenos de masa contemporáneos, apartir de la relación establecida entre el cuento "Los Enanos" y las propagandas anti-tabaquismo presentadas por imágenes que muestran el processo de debilitamiento y descomposición del fumador, y que denominamos de "propagandas del horror". El referencial teórico adoptado es Theodor Adorno, Max Horkheimer y SigmundFreud. Suponemos que para el análisis del subtexto de los mensajes y del cuento, la tesis sobre la historia subterránea del esclarecimiento volcada a la dominación del cuerpo y la naturaleza, y sobre el "retorno de lo reprimido", lanza una luz sobre los elementos investigados.

Palabras-clave: Teoria crítica; psicoanálisis; dominación del cuerpo.

No texto "Posição do narrador no romance contemporâneo", Adorno (1958/2003) afirma que no mundo tecnicamente administrado a experiência da narração outrora encontrada nos romances da era burguesa foi obstada, visto que contar algo significativamente relevante tornou-se "arcaico" em face da sociedade estandardizada e da vida submetida à mesmice da ubiquidade da indústria cultural. O romance contemporâneo é produto da desagregação da própria forma do romance, e é também resultante da desintegração da identidade da experiência, pela qual hoje a pretensão do narrador de ainda ser capaz de narrar algo se tornou ideológica. Após as catástrofes do século XX, as transformações sociais e individuais ocasionadas pelas mudanças estruturais das sociedades administradas do capitalismo tardio, cujos mecanismos de autorregulação econômica têm se sobreposto às particularidades individuais, minaram as experiências do narrador romanesco. Assim, no conto "Os Anões", Stigger (2010) leva às últimas consequências a posição do narrador sobre o mundo altamente desencantado [é claro, diferentemente da encontrada nas obras modernas de Kafka, Proust e Mann, discutidas e elogiadas por Adorno (2003), respeitadas as especificidades de cada autor1 1 Adorno (2003), para falar do novo romance no século XX, ressalta que Proust, Kafka e Mann, por meio de diferentes estratégias, ilustram a diminuição da distância estética necessária entre a figura do narrador e o leitor, mas como uma forma de crítica à realidade que não se permite mais ser narrada para, assim, expressar a realidade fora dos parâmetros estabelecidos devido à própria mudança da realidade e do sujeito em face dos perigos iminentes das duas grandes guerras e dos efeitos da industrialização moderna. ], no qual o domínio artístico e o uso da linguagem discursiva para relatar a objetividade tornaram-se questionáveis em face da mudez imposta aos sujeitos e aos objetos pelo processo social hostil e opressivo. Ao abordar no seu conto, de forma muito breve e nada complacente, a violência não declarada que faz parte do funcionamento social contemporâneo o estalar quase instantâneo da fúria de clientes no interior de uma padaria que leva ao linchamento de um casal de anões , Stigger apresenta uma curta estória, cujos personagens adquirem uma característica de impessoalidade agindo de forma totalmente absurda e irracional diante de um acontecimento corriqueiro.

Adorno (2003) entende que o material fornecido hoje pela realidade demasiado poderosa, cujos elementos de horror encontram-se disfarçados em acontecimentos cotidianos, não capazes de provocar no leitor a sua má consciência (ou seja, o estranhamento necessário para a consciência das relações petrificadas nas quais os homens se encontram e que, por isto mesmo, impedem o autoconhecimento de seus estados de reificação), traz ao escritor a ilusão de que se pode tornar algo hoje esteticamente representável, como se ainda fosse possível ao indivíduo a capacidade de individuação mediante a objetividade. Além disso, a possibilidade de o indivíduo confrontar-se com a realidade social e evoluir para a consciência crítica das mediações sociais que o constituem, para que possa "negar" e resistir a tal realidade, refletir sobre os objetos e assim se perceber também como "objeto", torna-se igualmente problemática na atual tendência histórica, que consiste em converter as qualidades humanas dos indivíduos em lubrificantes para o funcionamento da maquinaria. No tocante aos romances do século XIX, Adorno lembra que a reflexão sobre a vida ainda era permitida por meio do distanciamento estético necessário entre o leitor e o narrador encontrado nas formas narrativas, e a complexidade dos personagens era respeitada e apontada na descrição de suas características psíquicas nos enredos e tramas contados. Não obstante, no mundo contemporâneo, o recurso à narrativa dos fatos acaba cada vez mais se assemelhando à função da notícia encontrada nas reportagens proporcionadas pelo mass media que, com o intuito de apresentar e "naturalizar" os fatos de uma realidade que se apresenta imediata, contribui com a mesmice de um cotidiano empobrecido de sujeitos "empobrecidos".

Sobreos desafios do romance realista, Adorno (2003) afirma que foram absorvidos pela reportagem e pelos demais meios da indústria cultural como relato informativo. Nas palavras do autor: "Assim como a pintura perdeu muitas de suas funções tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a reportagem e para os meios da indústria cultural, sobretudo para o cinema" (Adorno, 2003, p.56). A impossibilidade de narrar algo particular e relevante relaciona-se com a supressão do objeto do romance em face da reportagem e da indústria cultural, e é nesse sentido que Stigger, por meio de sua prosa quase coloquial, breve e aparentemente "mecânica" apresentada no conto "Os Anões", dá aos leitores a impressão de que seu conto se assemelha a um filme de curta-metragem. A trama do conto aparenta produzir entretenimento e distração ao leitor, porém este é surpreendido pelo "horror" encarnado na estória, pelo absurdo de uma realidade social desencantada que tem minado os valores essenciais integrantes da promessa da cultura.

Sob a supremacia do mundo das coisas, Adorno (2003) diz que os romances que hoje contam testemunham as condições nas quais os indivíduos liquidam a si mesmos, bem como as tendências sociais e históricas que recaíram na barbárie, compartilhando da ambiguidade daqueles que não decidem se seus relatos podem mesmo servir de caminho para a emancipação da humanidade ou se simplesmente atestam o conformismo imerso no barbarismo. Nesta linha de pensamento, a autora do conto "Os Anões" tipifica tal situação de "crise" encontrada no romance contemporâneo enquanto forma, como assinala Adorno. Ao recorrer à narrativa breve e concisa, Stigger se recusa a reatar com a experiência perdida, fazendo uso da crueldade e do cinismo preponderantes, os quais, por sua vez, são incorporados à sua linguagem discursiva, que assim apresenta ao leitor uma estória que transita entre a realidade e a fantasia, entre o racional e o irracional. A imparcialidade de Stigger aprofunda a catástrofe iminente que ronda as sociedades contemporâneas de massa, pois o elemento de barbárie entrelaçado ao processo social das sociedades administradas é o material a partir do qual sua narrativa se constitui: a participação na barbárie é imposta e apresentada ao leitor que "experimenta", sob falso anonimato, um fato cotidiano (a fúria de consumidores numa confeitaria diante de um casal de anões que se demora na fila para obter mais informações sobre os doces), entremeado de doses de crueldade e de violência nas ações dos personagens, baseadas em fontes puramente irracionais. A distância entre leitor e narrador a distância estética, outrora, elemento necessário encontrado no romance tradicional (Adorno, 2003) desaparece na forma do conto. O narrador é um dos personagens que participam da ação, apresentando o estreitamento entre leitor e narrador. Dessa forma, o leitor também participa da crueldade tornando-se testemunha do terror e das ações relatadas. A objetividade absurda, recortada e imediata da estória é reconhecida na descrição do linchamento dos anões, cujos corpos "dilacerados" transformam-se numa massa amorfa derramada no chão que ao término da estória a balconista da confeitaria varre para se livrar da sujeira dos corpos esfacelados. Isso é ilustrado no seguinte trecho: "(...) Já do outro lado da calçada, olhei para trás para cumprimentar dona Sílvia, que entrava na confeitaria, e vi a balconista, com um grande rodo, empurrando para um canto toda aquela sujeira" (Stigger, 2010, p.12). A crueldade da narração de Stigger, que faz uso da "naturalidade dos acontecimentos", tal como apresentada nas notícias catastróficas cotidianas dos jornais, atesta a reificação das relações entre os indivíduos e a alienação dos homens em relação aos outros e de si mesmos, a qual se tornou cada vez mais institucionalizada.

Para a crise da objetividade literária em face da desintegração da experiência dos indivíduos, de acordo com Adorno (1958/2003), só restaria ao romance contemporâneo se concentrar "naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato" - o inenarrável -, o que constitui um paradoxo, já que a linguagem o impele à narrativa. Nesses termos, também lançamos a ideia de que Stigger consegue registrar no seu conto os limites do "inenarrável" quando, ao se "exceder" nas passagens sobre o olfato dos anões e sugerir o prazer sentido por eles no cheiro e nas degustações dos doces, assim evocando as particularidades dos personagens, acaba por instilar no leitor "lembranças de imagens arcaicas", cujos conteúdos remetem aos impulsos condenados pela civilização comumente atribuídos à esfera psicológica e dentro dela reconhecidos; ou seja, tudo aquilo que é considerado repulsivo, irracional e sem utilidade e que, não obstante, foi interdito pelo processo civilizatório, segue persistindo nos traços e vestígios de comportamentos arcaicos (o "retorno do recalcado") que são, por sua vez, assimilados à "rebelião da natureza" (Horkheimer & Adorno, 1985, p. 217) e às pulsões condenadas. A título de exemplo, transcrevemos a passagem do conto:

(...) Os dois eram tão pequenos que mal alcançavam o alto da bancada dos doces. Ela dava saltinhos para tentar ver o que a confeitaria tinha de bom. Ele, mais circunspecto, espichava o pescoço, apontava o nariz para cima e aspirava fundo como se pudesse, pelo olfato, identificar as guloseimas que o olhar não divisava (...) (Stigger, 2010, p. 6; 8).

No trecho acima, os elementos ressaltados ganham força e iluminam algumas questões a serem aqui desenvolvidas. A autora apresenta a espontaneidade dos anões, seus momentos de fruição, de abandono e de sensibilidade, atributos essencialmente humanos e "fontes de memória" que materializam momentos de experiências dos sujeitos em face dos objetos. Não obstante, tais experiências corpóreas foram limitadas e proscritas pela lógica instrumental da razão tecnológica do capitalismo organizado (Horkheimer & Adorno, 1985).

Pois bem, para agora delimitar a discussão sobre o que está sendo mostrado nas entrelinhas do conto - para além das discussões propugnadas por Adorno acerca do romance contemporâneo e seus aspectos formais -, extraímos do conto alguns elementos necessários para o estudo de fenômenos de massa da sociedade contemporânea, fenômenos nos quais todos nós nos encontramos imersos. Tal postura aponta, inclusive, para os fundamentos ligados a certas disposições subjetivas, a serem discutidas mais adiante, que subjazem a esses fenômenos de caráter irracional e que o conto em questão pode nos ajudar a enxergar, como que "em um tubo de ensaio" (Adorno, 2008). Para tais propósitos, estabelecemos a relação entre o conto e as propagandas antifumo que denominamos de "propagandas do horror", tratando a ambos como objetos de estudo para a elucidação dos fenômenos de massa. Ora, não à toa que nas críticas ao conto de Stigger encontramos análises sobre como esse representa a "alegoria da origem do fascismo" e introduz a crítica às "sociedades dos espetáculos", em que o cotidiano violento tornou-se naturalizado e material de notícia (Cera, 2010).

O CONTO 'OS ANÕES' E AS PROPAGANDAS ANTIFUMO.

Na publicidade antifumo são reproduzidas imagens de cunho apelativo que mostram o processo de definhamento e de decomposição do fumante e sua conversão em um cadáver. Nessa direção, também nas imagens de "fumantes cadáveres" encontram-se presentes discursos que fortalecem tendências sociais regressivas e que, possivelmente, indicam a massificação dos sujeitos enquanto "corpo objeto" e alvo de crueldade. Nas imagens atuais vemos presente o princípio que rege a lógica de nossa sociedade: preparar as pessoas para as máximas do "sacrifício" e do sofrimento individual, tendo em vista que a cultura tem se dado em função da adaptação à luta pela sobrevivência, sob a ideologia prevalecente de que o prazer conduz à exclusão social e à morte, com isso não mais precisando ocultar o sofrimento gerado. Como afirmaram Horkheimer e Adorno (1985): "a tortura é a adaptação acelerada". Aliás, sobre os bombardeios audiovisuais da publicidade e do entretenimento referentes à reprodução da violência que têm transformado as percepções e os sentidos das pessoas no mundo moderno, Turcke (2010, p. 68) afirma: "A dose atual de imagens e sons de pessoas feridas, desfiguradas, aterrorizadas, fugindo de algo, sem roupa, as cenas de assassinato e de sexo (...) praticamente não mais podem ser percebidas senão como uma preparatória para novas doses aumentadas de excitação." As sensações mediadas pelo espetáculo do mundo audiovisual criam a necessidade de outras mais fortes, já que os sentidos dos indivíduos ficaram "anestesiados" com a superexcitação de imagens da moderna sociedade tecnológica.

Associadas às mensagens das propagandas sobre os malefícios do cigarro, as qualidades morais do fumante, sob o discurso social dominante, também são questionadas. Os fumantes são apresentados como pessoas de "caráter fraco" e seres não suficientemente "fortes" e "racionais" para se adequarem às normas e à ética da saúde, contradizendo o bom-senso calcado nos discursos racionalizantes sobre a saúde do corpo (corpo, por sua vez, massificado e coisificado). No contexto das sociedades administradas, as formas de dominação social da subjetividade, por meio de sutis aparatos de controle narcísico (Ramos, 2004) - como os padrões de beleza inculcados, a ideia de virilização do corpo, apelos à saúde e modos de vida sob a ideologia da "qualidade de vida" por meio de produtos de consumo farmacêuticos e estéticos -, passam a ilusória ideia de que os sujeitos poderiam, por si mesmos, obter o controle de suas vidas e a possibilidade de superar as contraditórias exigências irracionais do existente. Com a concomitante transformação do hábito de fumar em tabu, perguntamos se as propagandas antifumo não reforçam tendências básicas das sociedades administradas voltadas especificamente para a administração e dominação do corpo, as quais perpetuam o atrofiamento da esfera privada e particular dos sujeitos as suas possibilidades de "fruição" mediadas pelo tragar (ainda que o vício do tabaco2 2 A respeito do vício, remetemos às seguintes constatações de Turcke: "O vício é a busca de um apoio vital num objeto falso, sendo que aqueles que o procuram não devem ser informados de que se trata de algo falso. Eles sentem, eles sabem que a substância na qual se aferram não fornece nenhum apoio, mas eles não têm outra e, por isso, cada vez mais se jogam a ela, a mesma substância que os priva daquilo que lhes deveria proporcionar" (Turcke, 2010, p. 239). Não há espaço neste trabalho para desenvolver a relação do tabaco com o vício no mundo moderno, porém é importante mencionar que o "idílio" do fumante é, na realidade, mera aparência de felicidade que, mesmo assim, não deixa de encerrar certa verdade: a que diz respeito ao sofrimento a que os sujeitos estão submetidos tendo em vista as tarefas estupidificantes que a nossa cultura exige. seja uma ilusória forma de prazer) que, por sua vez, lembrariam a promessa de felicidade não realizada na nossa cultura. Mais ainda: a publicidade antifumo possivelmente tem o poder de acostumar as pessoas ao "horror" gerado na sociedade com tendências totalitárias, por meio de uma nova espécie de barbárie exacerbada nas fotos publicitárias de corpos desfigurados e em estado de debilidade (o avesso do narcisismo), cujas vítimas "sacrificadas" nas imagens veiculadas possam representar a vida sem encanto, a "unidade perdida do corpo e da alma" (Horkheimer & Adorno, 1985) a que todos somos submetidos.

Voltando à estória de Stigger, a descrição do prazer do olfato e da degustação dos doces por parte dos personagens centrais (os anões) pode ser relacionada aos momentos da "proto-história biológica" (Horkheimer & Adorno, 1985), pois a discriminação das guloseimas pelo olfato guarda certo conteúdo de verdade com as reações mais primitivas dos sentidos. Os momentos da proto-história biológica (reações fisiológicas do homem-animal, ou, como apontam os autores frankfurtianos, "reações miméticas originárias" para a adaptação ao meio) relacionam-se aos motivos a que respondem os comportamentos idiossincráticos que fogem do contexto funcional da sociedade tendo, por isto, efeitos irritantes nos sujeitos cujas vidas tiveram que ser reduzidas aos objetivos da autoconservação e à existência desencantada voltada, exclusivamente, à adaptação em face das novas relações de trabalho. A descrição de Stigger sobre o "abandono" dos anões a esses momentos de prazer e de capricho, a despeito da impaciência dos outros consumidores que se encontram na fila da confeitaria, apresenta-se como um dos acontecimentos do conto que desencadeia a fúria dos outros personagens contra os anões que, assim, representam o "retorno do recalcado", figuras vistas como "estranhas" e diferentes. Assim dizem Horkheimer e Adorno acerca dos pressupostos subjetivos da discriminação social racial:

Os homens obcecados pela civilização só se apercebem de seus próprios traços miméticos, que se tornaram tabus, em certos gestos e comportamentos que encontram nos outros e que se destacam em seu mundo racionalizado como resíduos isolados e traços rudimentares verdadeiramente vergonhosos. O que repele por sua estranheza é, na verdade, demasiado familiar. São os gestos contagiosos dos contatos diretos reprimidos pela civilização: tocar, aconchegar-se, aplacar, induzir (...). Nas ambíguas inclinações dos prazeres do olfato sobrevive ainda a antiga nostalgia pelas formas inferiores da vida, pela união imediata com a natureza ambiente, com a terra e o barro (Horkheimer & Adorno, 1985, p.170; 171).

Tendo como referência o pensamento freudiano, Horkheimer e Adorno lembram, a respeito das disposições psíquicas das mentalidades preconceituosas e antissemitas, quanto os cheiros e odores para o homem "modelo" do processo civilizatório tornaram-se atributos das camadas sociais mais baixas, das raças inferiores e dos animais abjetos, sendo os odores considerados uma ignomínia e somente permitidos ao civilizado quando o seu intuito é destruir e dominar "como é o caso do gracejo ou da facécia, a mísera paródia da satisfação" (Horkheimer & Adorno, 1944/1985, p.172). As minorias representariam, assim, a lembrança da natureza dominada que deve ser domesticada e destruída pelos aparatos autoritários de poder, tal como o discurso sobre as "raças inferiores" agenciado pelo nazismo com relação aos judeus, ciganos, deficientes físicos e loucos, que mobilizou psicologicamente as massas do Terceiro Reich. O ato de cheirar tornou-se nesse contexto um dos sentidos mais "rebaixados" pela civilização, por ser considerado o mais expressivo e o que testemunha a ânsia mais evidente do sujeito de se "perder no outro" e no ambiente circundante, remetendo aos impulsos miméticos regressivos existentes no homem primitivo para fins de sobrevivência e de conhecimento. Nessas perspectivas, os autores da teoria crítica propõem como necessária a construção de uma sociedade livre, com homens livres, bem como a atenção e a possibilidade da realização das fruições e dos prazeres pulsionais associadas às transformações de condições históricas objetivas (Marcuse, 1997), assim criticando os rumos tomados pelo esclarecimento que, de forma unívoca, dominou a natureza, o corpo e as "paixões" humanas. Os sacrifícios pulsionais exigidos ao civilizado também deram ensejo aos mecanismos políticos e institucionais de controle e perseguição a tudo que remete aos fatores "naturais" recalcados e convertidos em matéria pela história da humanidade: "O fascismo atual, onde o que estava oculto aparece à luz do dia, revela também a história manifesta em sua conexão com esse lado noturno que é ignorado tanto na legenda oficial dos Estados nacionais, quanto em sua crítica progressista" (Horkheimer & Adorno, 1985, p.216). Na obra "O Mal-Estar na Civilização", Freud (1974) fala do processo fatídico civilizatório relacionado à passagem nunca totalmente concluída do animal para o homem. Freud sugere que o sentido da visão, a partir da conquista da postura ereta pelo homem, prevaleceu sobre o sentido olfativo, tornando-se um símbolo do rompimento do homem com a sua proximidade da natureza, e, assim, símbolo da dominação sobre a natureza mediada pelo distanciamento exercido pelo olhar, tal como destacaram os frankfurtianos na obra "Dialética do Esclarecimento". Nas palavras de Freud, "(...) A própria diminuição dos estímulos olfativos parece ser a consequência de o homem ter-se erguido do chão, de sua adoção de uma postura ereta (...). O processo fatídico ter-se-ia assim estabelecido com a adoção pelo homem de uma postura ereta (Freud, 1974, p.120).

A tese do "recalque orgânico" de Freud acima exposta ilumina as relações problemáticas [e autoritárias] do homem com a natureza interna e externa, com o seu passado arcaico execrado pela razão instrumental e com descrédito em relação à sua vida pulsional, para além do âmbito das neuroses individuais. Na "Dialética do Esclarecimento", Horkheimer e Adorno fazem menção à tese freudiana para esclarecer os fatores relacionados à constituição histórica da subjetividade tendo em vista a vida reduzida aos objetivos da autoconservação, otimizada pela lógica da divisão social do trabalho, fatores importantes para a teoria social referente à análise da dominação social do indivíduo. A teoria crítica de discussão sobre a "dialética do progresso" e a recaída da civilização à barbárie fascismo e formas políticas totalitárias predominantes nas sociedades modernas , dentro da tese sobre a história do esclarecimento calcada na dominação da natureza (Horkheimer & Adorno, 1985), precisou recorrer a certa "antropologia freudiana" para demarcar a questão da repressão orgânica para a origem da civilização. Isto significa que a substância corporal e a proto-história biológica das pulsões que determinam a base material da subjetividade iluminam os pontos de convergência entre natureza e história, entre dominação das pulsões e dominação histórica dos homens sobre a natureza (Ramos, 2004), cujos efeitos funestos culminaram no rebaixamento e na instrumentalização do corpo para fins de reprodução social e, posteriormente, na manipulação autoritária das massas pelas políticas fascistas. Assim:

Com o auto-rebaixamento do homem ao corpus, a natureza se vinga do fato de que o homem a rebaixou a um objeto de dominação, de matéria bruta. A compulsão à crueldade e à destruição tem origem no recalcamento orgânico da proximidade ao corpo, de maneira análoga ao surgimento do nojo, que teve origem, de acordo com a intuição genial de Freud, quando, com a postura ereta e o afastamento da terra, o sentido do olfato, que atraía o animal humano para a fêmea menstruada, tornou-se objeto de um recalcamento orgânico (Horkheimer & Adorno, 1985, p. 217).

Para a análise dos elementos sociopsicológicos do antissemitismo, Horkheimer e Adorno (1985) dizem que o "medo arcaico" manifestado nos movimentos irracionais de massa e mobilizado pelos chefes fascistas resultaram do processo civilizatório que se desenvolveu com base na violência contra a subjetividade por meio da opressão ao prazer corporal e do sacrifício introjetado pelos homens para o domínio. A evolução técnica da fase avançada do capitalismo tardio conseguiu administrar racionalmente tal violência sobre os sujeitos, e assim contribuiu para a regressão das massas. O antissemitismo, enquanto "ritual da civilização", seria a violência sedimentada historicamente nos sujeitos frustrados, herdeiros do malogro civilizatório da divisão social injusta do trabalho. Na caracterização dos movimentos antissemitas são identificados traços de crueldade e de ressentimento de uma coletividade enfurecida que foi forçada a se identificar e se integrar às imposições do trabalho de uma sociedade com tendências totalitárias, cuja vida, embrutecida em decorrência dessas relações de poder estabelecidas, não é totalmente desconhecida das massas.

Também a ideia do "retorno do recalcado" foi um dos constructos freudianos utilizados pelos filósofos da teoria crítica da sociedade além, é claro, da utilização de conceitos da teoria social e da tradição filosófica para dar subsídios aos elementos subjetivos encontrados nas ações de crueldade humana manifestas nas perseguições a "minorias sociais", rebaixadas como "objetos" de dominação a serem explorados e massacrados (Gomide, 2007). As ideias referentes ao "retorno do recalcado" para a questão da ambivalência do homem em relação ao corpo e sobre as ações de crueldade humana resultantes do "esquema de dominação histórica sobre a natureza" que afligiram os homens e seus corpos são os aspectos subjetivos lembrados pelos frankfurtianos acerca dos movimentos de massa irracionais, voltados à perseguição de minorias. Tais minorias sociais vem a representar a debilidade da natureza no imaginário social: "Na relação do indivíduo com o corpo, o seu e de outrem, a irracionalidade e a injustiça da dominação reaparecem como crueldade, que está tão afastada de uma relação compreensiva e de uma reflexão feliz, quanto a dominação relativamente à liberdade" (Horkheimer & Adorno, 1985, p. 216).

Freud (1974) desenvolveu sua tese sobre a repressão das pulsões na e para a civilização, cujo resultado é o descompasso encontrado entre indivíduo e cultura e, seus efeitos funestos, o aumento da hostilidade entre os homens e desses com relação à sociedade. O caráter repressivo da civilização tem por base a idealização cultural, um artifício (necessário, mas também nocivo à liberdade humana) para maquiar as pulsões recalcadas o recalque orgânico e o medo e a negação do homem civilizado de seu passado mítico e de suas ligações filogenéticas com a natureza e assim estabelecer as regras sociais e manter as pulsões sexuais e destrutivas nos freios. Não obstante, Freud não deixa de apontar quanto a civilização engendra por si mesma o anticivilizatório e o reforça progressivamente, e assim empreende sua crítica à cultura. A dialética entre indivíduo e cultura apontada por Freud tornou-se um forte material de análise para o esclarecimento dos mecanismos subjetivos que, na atual fase do esclarecimento, tornam as pessoas inclinadas à violência e à barbárie, endossando, assim, a dominação social (Horkheimer & Adorno, 1985; Adorno, 1995). Nas palavras de Freud:

Durante as últimas gerações, a humanidade efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, estabelecendo seu controle sobre a natureza de uma maneira mais imaginada (...). Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes (Freud, 1974, p.107).

Freud, um dos defensores do esclarecimento, atenta para o fato de que a promessa da cultura de felicidade e de liberdade, para "livrar os homens do medo frente às forças naturais", não se realizou. O sacrifício exigido aos indivíduos para sua adequação à realidade não foi de fato compensado na nossa civilização, cujas regras sociais e mandamentos éticos não levaram em conta as "disposições psíquicas" e particularidades de cada sujeito (Freud, 1974). A pressão civilizatória observada por Freud multiplicou-se em um grau insuportável na fase corrente do capitalismo tardio, o que tem revigorado a raiva e a hostilidade das pessoas contra a civilização, ou sentimentos de "apatia" como defesa ante a pressão social insuportável. Adorno (1995) fala de uma possível "claustrofobia das pessoas no mundo administrado", em face de uma situação cada vez mais totalitária e socializada, que não tem permitido a resistência particular possível.

Acerca da irracionalidade reforçada e gerada pela racionalidade técnica voltada exclusivamente à autoconservação dos sujeitos, a respeito da qual citamos também os meios de comunicação de massa nas propagandas de horror das campanhas antifumo, encontram-se disponibilizadas imagens de fumantes martirizados pelo fumo e em estado de decomposição que, a nosso ver, tem a função de desencadear no público uma impressão nauseante. Nessas imagens, a diabólica humilhação do fumante testemunha o desejo de destruição generalizada, o apelo à vingança e aos "impulsos mortais e destrutivos" das massas, além do prazer associado ao autossacrifício, indicando a cumplicidade secreta na desgraça do outro. A exortação à saúde nas campanhas torna-se suspeita, visto que o corpo destruído e degradado nas imagens anuncia a natureza mutilada, qual seja, o corpo reduzido à sua mera função biológica e orgânica, cuja debilidade não permitida transformou-se em tabu, principalmente nas sociedades modernas, com seu acelerado desenvolvimento técnico. As tentativas malfadadas de reconciliação do homem com a "natureza recalcada" e silenciada se expressam nas imagens que mostram o corpo do fumante desvitalizado, uma "substância viva sem eu", de um corpo e de uma individualidade com as fantasias e simbologias negadas, assim negando o corpo também como meio de individuação. Por exemplo, nas fotos que mostram um feto morto, a noção do humano ligada ao corpo é destruída e expressa da forma mais crua possível, e nelas os limites entre o humano e a natureza (sua animalidade) são retomados de maneira regressiva e destrutiva. A respeito da ambivalência que a civilização burguesa guarda em relação ao corpo, Horkheimer e Adorno (1985) dizem que, na cultura moderna, o tabu do corpo é mais fortalecido nas campanhas racionalizantes sobre saúde e higienização do corpo, cuja louvação visa disfarçar o ódio e o repúdio que os homens sentem com relação à sua "sede natural": "Não podemos nos livrar do corpo e nós o louvamos quando não podemos golpeá-lo." (Horkheimer & Adorno, 1985, p. 219). Não obstante, nas imagens que mostram explicitamente o "corpo golpeado", o amor-ódio pelo corpo é representado alimentando, provavelmente, o ódio e ressentimento daqueles cujo rancor à reificação sofrida se faz presente de forma abrupta e não refletida. Dos elementos acima discutidos, perguntamos: que tipo de disposição psíquica as propagandas de horror antifumo têm mobilizado nas pessoas? Qual a mensagem que se oculta por trás das imagens degradantes de fumantes "mortos-vivos"?

Na tentativa de responder parcialmente a essas questões, tendo em vista aspectos aqui levantados, afirmamos que a perseguição ao fumante relaciona-se também ao que o fumo acaba por representar, bem como aos seus efeitos sobre aquele que o usufrui: a plenitude do prazer do olfato é obstada no hábito de fumar, restando só o cheiro de nicotina e da fumaça e, além disso, o corpo do fumante é socialmente enxergado como "dominado pelo cigarro", e a partir daí a sua identidade, reduzida às suas características corporais, torna-se alvo de críticas dirigidas aos "cheiros fortes" de nicotina que o fumante exala. Acrescentamos, ainda, que, em oposição ao corpo asséptico e viril louvado em nossa cultura, o gozo do fumante, durante a inalação da fumaça, poderia relembrar aspectos típicos do automatismo biológico, demonstrando o pouco controle que o sujeito tem sobre seu próprio corpo, embora o fumo seja algo mediado e socialmente aceito para fins da adaptação. Pressupomos que, para além das funções irracionais e adaptativas do cigarro (o fumar principalmente como atividade desestressante que permite ao sujeito seu retorno ao trabalho), no prazer sentido pelo fumante ao tragar também encontramos outras discussões, que podem ser resumidas nas seguintes questões: o que a intransigência do fumante em face do discurso higiênico de cuidados ao corpo relembra da natureza não dominada? Em que medida o fumar pode vir a representar a rebelião "não sublimada" do corpo que, a despeito das campanhas sobre a saúde que vão contra o cigarro, acaba por expressar o martírio a que foi submetido na história, pela divisão social do trabalho? A tentação que é atribuída ao fumo não seria, talvez, a lembrança do prazer independente da razão autoconservadora, ainda que o fumo exerça sua função adaptativa à realidade? Tais questões são levantadas tendo-se em vista a linguagem oculta das imagens de "horror" das campanhas antifumo. No subtexto comum às imagens encontra-se um teor destrutivo e repressivo que pressupõe a mentalidade do consumidor hoje: o seu prazer é o do corpo morto e destruído, pois hoje a vida já não é possível, por causa da repressão das possibilidades expressivas e prazerosas dos sujeitos no mundo administrado; mas perguntamos: de fato, as imagens das campanhas antifumo possuem o poder de chocar seu público?

Com base nos autores da teoria crítica e na psicanálise, levantamos a seguinte ideia: mais do que "chocar" o público, assim instilando nas pessoas a consciência dos malefícios do cigarro, as propagandas de horror antifumo são "instrumentos publicitários" que reproduzem a irracionalidade objetiva, visto que, a ordem social, para a preservação de interesses econômicos e políticos de pequenos grupos, tem se servido das pulsões destrutivas e narcísicas das massas para fins de controle social. Não podemos deixar de enfatizar que, segundo Adorno (1991), mesmo após seu término, o período fascista ainda se preserva subterraneamente sob os mecanismos das sociedades de massa, denominadas de "sociedades democráticas". Trata-se, assim, de imagens de teor irracional que mobilizam o que há de mais regressivo nas pessoas, tendo-se em vista a estrutura social vigente, que ainda funciona por meio da ameaça física, mobilizando nos homens seus impulsos agônicos (Adorno, 1991), a saber, a pressão social econômica sobre os sujeitos com capacidade de suscitar nas pessoas o medo da exclusão social, o trabalho sem sentido que não satisfaz e no qual o indivíduo não se reconhece, a felicidade ilusória do consumo e do corpo saudável que trazem em si os mandamentos de uma sociedade capitalista, entre outros. Assim, pensamos que a angústia socialmente mediada também se expressa de forma mais patente na mutilação dos corpos transformados em objetos descartáveis e sem "utilidade" para os ditames da reprodução social. O fetichismo das imagens de pessoas degradadas pelo fumo, juntamente com os dados estatísticos, revelam a relação patógena com o corpo social e industrialmente legitimada, além do cálculo egoísta dos efeitos da indústria do cigarro: a porcentagem de doenças e de mortes causadas pelo vício - a partir do qual a sociedade de outrora se serviu para a manutenção do sistema indica mais uma vez quanto a barbárie por trás do discurso técnico-científico ainda faz parte de nossa cultura.

A ambivalência e a relação patógena com o corpo na contemporaneidade se apresentam de forma socialmente mediada em alguns fenômenos contemporâneos, que ora expressam o intenso apego de homens aos seus corpos coisificados (como objetos de consumo), ora apresentam a repulsão perversa que o indivíduo sente com relação ao seu corpo e ao de outrem. Neste sentido, citamos o comércio lucrativo de cosméticos e de cirurgias plásticas, a moda fitnnes e as campanhas de saúde e de higienização do corpo, assim como o próprio discurso social sobre o sexo saudável a "healthy sexlife" (Adorno, 1969). Nisso percebemos o aparato narcísico de controle social sobre o corpo (Ramos, 2004). Por outro lado, destacamos a crueldade legitimada pelos meios de comunicação de massa acompanhada do "gozo autodestrutivo" presente em nossa cultura, promovido pelos aparatos de poder: os movimentos de mutilação e de deformação de partes de corpo (o movimento body modification); as notícias corriqueiras sobre homicídios voltados contra minorias que representam (de forma real e/ou imaginária) a "debilidade" da natureza ou a fruição corporal proscrita (homofobia, grupos de extermínios de moradores de rua, etc.); e, enfim, os "monstros" e pessoas desfiguradas reproduzidas nas imagens antifumo, os quais, segundo nossos propósitos, têm um importante papel para economia psíquica das massas. Com relação a esse último aspecto, tais mecanismos publicitários, longe de restituírem o equilíbrio psíquico das pessoas, resultam, ao contrário, em fortalecer da forma mais autoritária possível a adaptação regressiva das pessoas aos interesses do sistema econômico: "A propaganda fixa o modo de ser dos homens tais como eles se tornaram sob a injustiça social, na medida em que ela os coloca em movimento" (Horkheimer & Adorno, 1985, p. 238).

Para efeitos deste trabalho, as disposições psíquicas mobilizadas pela propaganda do horror antifumo também são indicadas e abordadas no conto "Os Anões". Das características psíquicas estudadas pelos frankfurtianos a respeito da mentalidade antissemita destacamos o mecanismo de "projeção pática" (Horkheimer & Adorno, 1985). Apoiados na psicanálise, os autores partem do princípio de que tal mecanismo de defesa elementar pode ser explorado para fins de manipulação ideológica, caso em que a projeção se torna patológica, em vista das massas de manobra do nazismo que aderiram quase "espontaneamente" ao sistema político totalitário. A projeção pática ou a "falsa projeção" (no contraponto que os autores estabelecem entre a projeção pática e a projeção "autêntica", esta, com base na epistemologia kantiana) é o mecanismo psicológico mais evidente utilizado pelas mentalidades preconceituosas, associado, muitas vezes, à "estrutura psicótica de caráter" (Adorno, 2008) de sujeitos predispostos à violência generalizada, tal como a vista nos movimentos antissemitas. Assim, a falsa projeção seria a incapacidade do sujeito de perceber que o mundo passou a ser cópia (projeção) de seu "terror" íntimo e de seu medo interno - é claro - histórica e socialmente constituído pelas relações econômicas expropriadoras da subjetividade (Horkheimer & Adorno, 1985). As percepções distorcidas que os sujeitos têm da realidade devem-se à depauperação das instituições culturais pelas sociedades industrializadas, que promoveu o processo de desintegração da experiência individual. Tais fenômenos, dentro das análises da teoria crítica, são relacionados ao desenvolvimento da racionalidade instrumental moderna da fase tardia do capitalismo. Nessa direção, no conto isso é ilustrado no horror dos clientes da confeitaria projetado nas figuras dos anões, que, por sua vez, representam o "diferente", o "estranho". Vejamos a longa passagem do conto sobre a fúria dos personagens ante o fato de os anões terem furado a fila dos doces:

E lá estavam eles [o casal de anões], mudos novamente. Seu Aristides, impaciente, elevou a voz: andem logo, seus merdas! É, acrescentou a senhora, vamos logo! (...). Foi aí que a pequeninha se virou e me olhou. A boca minúscula ainda estava suja de doce. Ela piscou, passeou a língua pelos lábios e continuou a me olhar por cima do ombro, como se, até então, não tivesse percebido que estávamos todos ali, esperando (...). Nisso, cheguei bem junto da biscazinha e a puxei com força pelo braço (...). Com a minha puxada, desquilibrou-se e caiu no chão, de cabeça. Meu marido, que vinha logo atrás de mim, deu um empurrão no homenzinho, que parecia querer socorrer a esposa (...). A senhora que estava na fila passou a dar bengaladas nas cabeças e nas costas do casalzinho (...). Meu marido pulava em cima das pernas do homenzinho, enquanto seu Aristides chutava seu tronco (Stigger, 2010, p.10-11).

A descrição do linchamento torna-se elemento suficiente para fazermos as relações com a violência presente em fenômenos destrutivos de massa, principalmente quando os sujeitos alvo da fúria cega em questão são um casal de anões - figuras que evocam o encantamento e a fragilidade, o mistério e a magia, e até a proximidade com o pré-civilizado [vide os anões de circo e a função que exercem nas fantasias infantis] e, por isso, alvo de preconceito. Damos especial destaque à reação da narradora ao olhar da anã. O olhar da pequeninha recordou quanto somos desprovidos de individualidade ante a frieza imperante da vida condicionada à autoconservação. A nosso ver, a anã sustenta o olhar despreocupado, não paranoico, que ofende a narradora, lembrando-lhe seu "aprisionamento" expresso subjetivamente no seu olhar persecutório. Para aprofundar o tema do fascismo latente na sociedade e o que se vincula a ele sobre a perseguição antissemita, na análise do conto os personagens centrais objetos de repulsa e escárnio lembram as minorias cujas representações sociais permitem enriquecer as fantasias e mentalidades preconceituosas. A falsa projeção se manifesta no auge da destruição como revolta da natureza recalcada contra o absurdo, o estranhamento e o temor provocados pelos anões, identificados, exclusivamente, em termos de suas características >corporais particulares associadas às "falhas de caráter", como pequeninos, defeituosos, etc., pelos outros personagens do conto: "- Poderíamos sentir compaixão ou mesmo simpatia por eles, se não fossem tão evidentes suas graves falhas de caráter" (Stigger, 2010, p.7). Por meio desse exemplo, destacamos quanto na coletividade bárbara o "diferente", o "não adaptado" e o "fraco" são enxergados por meio de suas características corporais, assim sustentando a tese dos frankfurtianos sobre a história oculta do esclarecimento voltada à dominação do corpo e da natureza. A perseguição das minorias encontra sua essência na tentativa dos sujeitos reificados e desprovidos de subjetividade de se autoafirmarem enquanto "senhores" e sujeitos, à custa da inferiorização e destruição dos outros. Esses últimos, por sua vez, relembrariam ao perseguidor sua própria mutilação, insatisfação e privação do prazer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De nosso ponto de vista, o conto "Os Anões" repõe a questão dos mecanismos psíquicos mobilizados pelos fenômenos de massa contemporâneos projeção pática, masoquismo e sadismo, pulsões agressivas, narcisismo , e assim lança luz sobre as mensagens ocultas das imagens antifumo dirigidas ao gozo autodestrutivo das massas, motivado pela história subterrânea da dominação do corpo. As propagandas antifumo, segundo nossa hipótese, reforçam tendências básicas das sociedades administradas voltadas especificamente à dominação do corpo que perpetuam o atrofiamento da esfera privada e particular dos sujeitos: as suas possibilidades de fruição, que lembrariam a promessa de felicidade não realizada na nossa cultura. As fotos industrializadas que mostram fumantes quase cadáveres, com seus corpos reduzidos à função biológica e à debilidade da natureza, possivelmente têm o poder de reforçar mentalidades predispostas ao preconceito, estas, por sua vez, resultantes das instâncias sociais de controle do mundo administrado.

Recebido em 21/11/2010

Aceito em 08/02/2012

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  • Turcke, C. (2010). Sociedade excitada: filosofia da sensação. (A, Zuin; F. Durão; F. Fontanella, & M. Frungilo, Trad.). Campinas: Ed. da UNICAMP.
  • Endereço para correspondência

    Ana Paula Avila Gomide. Rua Maria Dória Cunha, 160, apt.302 - Bairro: Finotti, CEP 38408-080, Uberlândia-MG.
    E-mail:
  • 1
    Adorno (2003), para falar do novo romance no século XX, ressalta que Proust, Kafka e Mann, por meio de diferentes estratégias, ilustram a diminuição da distância estética necessária entre a figura do narrador e o leitor, mas como uma forma de crítica à realidade que não se permite mais ser narrada para, assim, expressar a realidade fora dos parâmetros estabelecidos devido à própria mudança da realidade e do sujeito em face dos perigos iminentes das duas grandes guerras e dos efeitos da industrialização moderna.
  • 2
    A respeito do vício, remetemos às seguintes constatações de Turcke: "O vício é a busca de um apoio vital num objeto falso, sendo que aqueles que o procuram não devem ser informados de que se trata de algo falso. Eles sentem, eles sabem que a substância na qual se aferram não fornece nenhum apoio, mas eles não têm outra e, por isso, cada vez mais se jogam a ela, a mesma substância que os priva daquilo que lhes deveria proporcionar" (Turcke, 2010, p. 239). Não há espaço neste trabalho para desenvolver a relação do tabaco com o vício no mundo moderno, porém é importante mencionar que o "idílio" do fumante é, na realidade, mera aparência de felicidade que, mesmo assim, não deixa de encerrar certa verdade: a que diz respeito ao sofrimento a que os sujeitos estão submetidos tendo em vista as tarefas estupidificantes que a nossa cultura exige.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      21 Nov 2010
    • Aceito
      08 Fev 2012
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