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EDITORIAL

EDITORIAL

O senhor mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão. (Guimarães Rosa, 1956, Grande Sertão Veredas).

Neste Editorial pretendemos apresentar algumas reflexões a respeito da biologização e medicalização dos problemas de aprendizagem e de comportamentos considerados inadequados socialmente. As discussões em torno destas questões estão se fazendo cada vez mais presentes devido a iniciativas de conselhos de Psicologia, instituições e demais órgãos. Tais questões foram o foco das discussões do I Seminário Internacional "Educação Medicalizada: Dislexia, TDAH e outros Supostos Transtornos", realizado em São Paulo, entre os dias 11 a 13 de novembro deste ano, o qual contou com a participação de profissionais da saúde, educação, representantes de entidades e estudantes.

O maior objetivo do evento foi constituir um espaço de discussão e crítica à medicalização de problemas de aprendizagem e de comportamento. Podemos considerar este evento como um marco político, devido ao lançamento do Fórum permanente "Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade", que tem por intuito articular discussões entre grupos, entidades da educação, da assistência social, saúde, sociedade civil e demais interessados, mobilizando a sociedade para o enfrentamento e a superação de ações voltadas à medicalização.

As queixas relacionadas à falta de atenção, impulsividade e dificuldade na leitura e escrita estão cada vez mais frequentes. Um número maior de crianças são diagnosticadas e medicadas devido a problemas de atenção, em especial TDAH e a dislexia, "identificados" por pais, professores e avaliados por especialistas. O aluno com suposto diagnóstico de TDAH ou Dislexia foge do comportamento esperado e considerado adequado socialmente, ou seja, espera-se uma escola homogênea, uma classe homogênea e aquele que não se enquadra ao modelo ideal de aluno precisa ser contido, para que se aproxime ao máximo do modelo proposto.

Essa visão idealizada, pautada em um modelo orgânico mecânico simplista, delega ao aluno a responsabilidade por seu sucesso ou fracasso escolar e o considera um amontoado de reações neuroquímicas, sujeitas a alterações que o "desafina" do contexto social. Gentili1 1 Gentili, Pablo (1998). Educar para o desemprego: a desintegração da promessa integradora. In: Gaudêncio Frigotto (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século (Cap. 3 pp. 76-99). Petrópolis. RJ: Vozes. (Coleção estudos especiais em educação). (1998) destaca que a educação passou a enfatizar a lógica econômica privada, voltada para as capacidades e competências individuais para atender à lógica do mercado. Nesta perspectiva podemos compreender o mercado como diapasão das condutas sociais e o "afinar" e "desafinar" como resultado de um reducionismo orgânico que retira o caráter histórico do psiquismo humano.

O tom da afinação deve ser compreendido como a constituição de experiências sociais mediadas, nas quais o homem significa a si próprio, o que indica a importância do outro, do coletivo para a internalização no plano individual, de significados e interpretações sobre a realidade.

Não se pode negar a importância do outro para a constituição dos sujeitos, compreende-se que "A natureza e individualidade são tecidas pela materialidade concreta do conjunto de relações sociais historicamente possíveis" (Frigotto2 2 Frigotto, Gaudêncio. Educação, crise do trabalho assalariado e do desenvolvimento: teorias em conflito. In Gaudêncio Frigotto (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectiva de final de século. (Cap. 1, p. 25-54). Petrópolis. RJ: Vozes. (Coleção Estudos Especiais em Educação). , 1998, p.30). Seria incoerente pensar o homem fora de suas relações, como um sujeito a-histórico, visto que a subjetividade não é dada a priori, mas se constitui a partir do outro e se caracteriza como produto histórico. Se não estamos sempre iguais, e não estamos terminados como diz Guimarães Rosa neste fragmento da obra Grande Sertão Veredas, por que querem enquadrar crianças e adolescentes? Por que tornar natural, orgânico, questões que são da ordem do social?

Estamos vivendo um momento de medicalização do fracasso escolar e das dificuldades de aprendizagem desconsiderando as questões econômicas, sociais e culturais envolvida no processo ensino aprendizagem. Entende-se por medicalização o ato de tornar médico fenômenos não médicos, assim "(...) desloca-se o eixo de uma discussão político-pedagógica para causas e soluções pretensamente médicas, portanto inacessíveis à Educação" (Moisés & Collares3 3 Collares, Cecília de Azevedo Lima, Moisés, Maria Aparecida Affonso (2010). Preconceitos no cotidiano escolar: a medicalização do processo ensino-aprendizagem. In: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Grupo Interinstitucional (Org.). Medicalização de crianças e adolescentes. Conflitos silenciosos pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. (Cap. 11, pp.193-213). São Paulo: Casa do Psicólogo. , 2010, p. 197). As autoras denominam esse fenômeno de medicalização do processo ensino-aprendizagem, tornando natural, questões sociais.

O uso indiscriminado e abusivo de medicamentos em caso de problemas escolares e de comportamento está se tornando um caso de saúde pública, neste sentindo todos são co-responsáveis em promover ações que combatam a redução do ser humano a um corpo sem desejo, necessidades, identidade que pode se controlado socialmente com "pílulas mágicas". Isso nos remete ao romance de Aldous Hexley, "Admirável mundo novo", escrito em 1913, no qual faz a referência à "Soma", droga distribuída pelo estado como estratégia de doping coletivo, a fim de tornar as pessoas mais calmas e disciplinadas. Não seria a ritalina uma forma de "afinar", de dar o tom aos desafinados?

Cabe a nós psicólogos das diversas áreas, educadores e pesquisadores levantarmos debates críticos a cerca de questões como estas e demais temas pertinentes à Psicologia, que discutam a constituição do sujeito, suas expressões e as relações estabelecidas entre os homens. Um pouco destas discussões são abordadas neste número que nos possibilita o contato com inúmeras pesquisas cada uma em seu tom, desafiando o leitor a compreender a harmonia contida nesta sinfonia rica em detalhes e beleza.

Rosana Aparecida Albuquerque

Editora de Seção

E-mail: raalbuquerque@uem.br

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    Gentili, Pablo (1998). Educar para o desemprego: a desintegração da promessa integradora. In: Gaudêncio Frigotto (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século (Cap. 3 pp. 76-99). Petrópolis. RJ: Vozes. (Coleção estudos especiais em educação).
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    Frigotto, Gaudêncio. Educação, crise do trabalho assalariado e do desenvolvimento: teorias em conflito. In Gaudêncio Frigotto (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectiva de final de século. (Cap. 1, p. 25-54). Petrópolis. RJ: Vozes. (Coleção Estudos Especiais em Educação).
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    Collares, Cecília de Azevedo Lima, Moisés, Maria Aparecida Affonso (2010). Preconceitos no cotidiano escolar: a medicalização do processo ensino-aprendizagem. In: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Grupo Interinstitucional (Org.). Medicalização de crianças e adolescentes. Conflitos silenciosos pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. (Cap. 11, pp.193-213). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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