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CONTRIBUIÇÕES DA ÉTICA DA ALTERIDADE PARA OS ESTUDOS DA DEFICIÊNCIA: UM ESTADO DA ARTE1 1 Apoio e financiamento: agradecemos o apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFPB e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFC.

CONTRIBUCIONES DE LA ÉTICA DE LA ALTERIDAD A LOS ESTUDIOS DE DISCAPACIDAD: UN ESTADO DEL ARTE

RESUMO.

O avanço de legislações nacionais e internacionais contribuiu para a reafirmação da dignidade e dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência. Ainda assim, a efetiva participação sociocultural dessa população é prejudicada pelas barreiras discriminatórias impostas nos mais diversos âmbitos da sociedade. Faz-se necessário, portanto, promover reflexões sobre a ‘cultura da normalidade’, e sua consequente influência em situações de exclusão, opressão e discriminação dos sujeitos com deficiência. A presente pesquisa teve como objetivo analisar o conceito de deficiência na contemporaneidade sob a ótica da filosofia de Emmanuel Levinas, autor responsável por tecer críticas ao pensamento filosófico ocidental, principalmente às ações de exclusão e discriminação da alteridade dele decorrentes. Para tanto, utilizou-se o método do Estado da Arte, coletando-se 12 artigos, 11 dissertações e quatro teses. Os trabalhos foram categorizados de maneira quantitativo-descritiva e, posteriormente, analisados a partir da obra Totalidade e infinito e dos estudos contemporâneos sobre deficiência, ética e responsabilidade. Observou-se uma análise crítica dos trabalhos em relação às atuais ações e intervenções voltadas ao público com deficiência, denunciando sua insuficiência na garantia de direitos fundamentais. Constatou-se também a necessidade de substituição de concepções totalizantes e universalizantes das diferenças por perspectivas de reconhecimento do Outro e consideração da singularidade humana. Conclui-se que a Ética da Alteridade, proposta por Levinas, convida ao compromisso infinito do Mesmo para com o Outro, à ajuda sem espera de reciprocidade, fazendo-se, portanto, relevante nos campos político e acadêmico como princípio ético, teórico-prático e analítico para a interpretação de questões relativas à deficiência.

Palavras-chave:
Estado da arte; pessoas com deficiência; ética da alteridade

RESUMEN.

El avance de la legislación nacional e internacional ha contribuido a reafirmar la dignidad y los derechos fundamentales de las personas con discapacidad. Todavia, la participación sociocultural efectiva de esta población se ve obstaculizada por las barreras discriminatorias impuestas en los más diversos ámbitos de la sociedad. Por tanto, es necesario promover reflexiones sobre la ‘cultura de la normalidad’ dominante, y su consecuente influencia en situaciones de exclusión, opresión y discriminación de sujetos con discapacidad. Esta investigación tuvo como objetivo analizar el concepto de discapacidad en la época contemporánea desde la perspectiva filosófica de Emmanuel Levinas, autor responsable de criticar el pensamiento filosófico occidental, especialmente las acciones de exclusión y discriminación de la alteridad que de él resultan. Para ello se utilizó el método del estado del arte, recogiendo 12 artículos, 11 disertaciones y 4 tesis. Las obras fueron categorizadas de manera cuantitativo-descriptiva y posteriormente analizadas a partir de la obra Totalidade e infinito y estudios contemporáneos sobre discapacidad, ética y responsabilidad. Se observó un análisis crítico de las obras en relación a las acciones e intervenciones actuales dirigidas al público con discapacidad, denunciando su insuficiencia en la garantía de los derechos fundamentales. También se señaló la necesidad de reemplazar las concepciones totalizadoras y universalizadoras de las diferencias por perspectivas de reconocimiento del Otro y consideración de la singularidad humana. Se concluye que la Ética de la Alteridad, propuesta por Levinas, invita a la implicación del Mismo hacia el Otro, para ayudar sin esperar a la reciprocidad, volviéndose, por tanto, relevante en los campos político y académico como un enfoque ético, teórico-práctico y marco analítico para la interpretación de las cuestiones relacionadas con la discapacidad.

Palabras clave:
Estado del arte; personas discapacitadas; ética de la alteridad

ABSTRACT.

The advancement of national and international laws has contributed to reassuring the dignity and fundamental rights of people with disabilities. Even so, the effective sociocultural participation of these people is jeopardized by discriminatory barriers imposed across multiple spheres of society. Therefore, it is necessary to promote reflections about ‘normality culture’ and its consequences in situations of exclusion, oppression, and discrimination of people with disabilities. This study aimed to analyze the contemporary concept of disability in the light of Emmanuel Levinas’s philosophy, author responsible for criticizing Western philosophy affirming that the exclusion of alterity stems from it. To this end, a State of the Art analysis was done, and 12 papers, 11 master’s theses, and 4 doctoral dissertations were found. The works were classified by quantitative characteristics and were later analyzed in the light of Levinas’s major work, Totalidade e infinito, and the contemporary studies on disability, ethics, and responsibility. It was observed that the works had done critical analyses about governmental actions and interventions destined to people with disabilities, showing the insufficiency in ensuring fundamental rights of these people. We also identified the need to substitute conceptions that totalize and universalize the differences with perspectives that recognise the Other in its singularity. This article concludes that the Ethics of Alterity proposed by Levinas invites one to infinite commitment of the Self to the Other, who does not expect anything in return to the aid provided. Therefore, it is relevant to politics and the academic field as an ethical, theoretical, practical, and analytical principle to interpret questions relating to the field of disability studies.

Keywords:
State of the art; disabled people; ethics of alterity

Introdução

Em resposta ao longo histórico de exclusão, marginalização e violência impostos ao corpo com lesões biológicas, o Modelo Social da Deficiência foi proposto por e para pessoas com deficiência, objetivando, através de proposições teóricas e ações políticas, afirmar a deficiência como um estilo de vida e não uma sentença biológica de fracasso (Diniz, 2007, Maior, 2017Maior, I. M. (2017). Movimento político das pessoas com deficiência: reflexões sobre a conquista de direitos. Inclusão Social, 10(2), 28-36. ). A inovação paradigmática, proposta pela denominada ‘primeira geração’ do modelo social foi a de responsabilizar a sociedade pela imposição de barreiras às pessoas com deficiência, impedindo sua participação social por meio de exclusão e discriminação (Gaudenzi & Ortega, 2016Gaudenzi, P., & Ortega, F. (2016). Problematizando o conceito de deficiência a partir das noções de autonomia e normalidade. Ciência & Saúde Coletiva, 21(10), 3061-3070. http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152110.16642016.
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).

O modelo social foi essencial para denunciar a experiência de opressão vivenciada pelas pessoas com deficiência, bem como para reafirmar a necessidade de garantia de seus direitos sociais, econômicos, civis e políticos (Dhanda, 2008Dhanda, A. (2008). Construindo um novo léxico dos direitos humanos: convenção sobre os direitos das pessoas com deficiências. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, 5(8), 42-59. https://doi.org/10.1590/S1806-64452008000100003
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). A mudança de paradigma proposta por essa perspectiva foi adotada em diferentes legislações internacionais como a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) - documento assinado e incorporado pelo Brasil em suas legislações. Tais documentos enfatizam a necessidade de afirmar a deficiência como resultado da interação entre um corpo com impedimentos biológicos (lesão) e uma sociedade desigual, que exclui a diversidade de estilos de vida (Santos, 2016Santos, M. C. (2016). Contribuições do saber filosófico para a formação ética e prática do docente de atendimento educacional especializado (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica, Universidade Federal de Goiás, Goiânia.b).

Apesar dos avanços conquistados pela CIF e pela CDPD, a reafirmação dos direitos das pessoas com deficiência não garantiu a eliminação das barreiras discriminatórias e da marginalização social impostas a essa população. O surgimento da ‘segunda geração’ do modelo social foi essencial para denunciar estruturas mais profundas, inerentes à sociedade contemporânea, e que são responsáveis pela existência de uma ‘cultura da normalidade’ (disablism ou capacitismo), que reifica a autonomia individual, desconsiderando que nem todas as pessoas com deficiência desejam ou são capazes de alcançar a independência de outrem para viver em sociedade (Diniz, Barbosa & Santos, 2009Diniz, D., Barbosa, L., & Santos, W. R. (2009). Deficiência, direitos humanos e justiça. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, 6(11), 64-77. https://doi.org/10.1590/S1806-64452009000200004
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).

Diante das demandas de garantia de direitos fundamentais e de dignidade, faz-se necessário repensar não apenas os referenciais, mas as relações estabelecidas com as pessoas com deficiência, a fim de promover uma efetiva inclusão social. A partir de tais reflexões, o presente trabalho objetivou contribuir para o avanço do atual modelo de inteligibilidade da deficiência adotado pelas áreas das ciências humanas, através das contribuições da filosofia de Emmanuel Levinas, especialmente das ideias expressas em sua principal obra: Totalidade e infinito.

Levinas (1993Levinas, E. (1993). Humanismo do outro homem. Petrópolis, RJ: Vozes., 2015Lévinas, E. (2015). Ética e infinito. Lisboa, PT: Edições 70.) tece uma crítica profunda e mordaz ao pensamento filosófico moderno que, por sua predileção pela universalidade, seria responsável por embasar ações de exclusão e discriminação do Outro, operadas pela supressão e pela indiferença à diferença presentes em sua tendência à totalização. Segundo o autor, a filosofia ocidental parte de uma concepção ontológica, na qual o Ser - o Eu absoluto e autônomo - é o centro, e a medida de todas as coisas (Almeida, 2013Almeida, R. R. (2013). A ética como filosofia primeira: uma introdução à filosofia de Emmanuel Levinas. SynThesis Revista Digital FAPAM, 4(4), 1-27.). A consequência dessa perspectiva é a realização de práticas que desconsideram completamente o Outro e que, em última análise, representam tentativas de impor domínio e poder sobre a alteridade, de embotar e silenciar sua diferença irredutível (Poirié, 2007Poirié, F. (2007). Emmanuel Lévinas: ensaio e entrevista. São Paulo, SP: Perspectiva.).

A alteridade é a “[...] heterogeneidade radical do Outro” (Levinas, 1980Levinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Lisboa, PT: Edições 70., p. 23), que não pode ser transformada em um mero objeto de conhecimento do Eu e estabelecer relações de identidade com este, visto que se constitui em uma resistência incontestável a qualquer tipo de dominação, captura ou inteligibilidade. Por ser infinito, o outro transcende toda e qualquer tentativa de conceitualização e totalização do Eu, a quem Levinas denomina ‘Mesmo’.

Ainda que Levinas não faça relação direta entre sua filosofia e as questões da deficiência, pode-se afirmar que a alteridade da pessoa com deficiência é ignorada e esquecida pela sociedade atual que, centrada numa perspectiva ontológica do ser, valoriza a uniformização em detrimento da diferença e se nega a assumir a responsabilidade pelo outro na relação face a face (Martinelli, 2015Martinelli, A. V. (2015). A responsabilidade como fundamento da ética. Kínesis, VII(15), 271-281. https://doi.org/10.36311/1984-8900.2015.v7n15.5717
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). Por esse motivo, o autor afirma que a ética deve ser adotada como Filosofia Primeira, de modo a operar um deslocamento da questão do Ser e do conhecimento para o ‘ser-para-o-outro’, como um novo fundamento para pensar o humano (Almeida, 2013Almeida, R. R. (2013). A ética como filosofia primeira: uma introdução à filosofia de Emmanuel Levinas. SynThesis Revista Digital FAPAM, 4(4), 1-27.), diverso dos moldes do contrato social hobbesiano (Carrara, 2010Carrara, O. V. (2010). Levinas: do sujeito ético ao sujeito político: elementos para pensar a política outramente. Aparecida, SP: Idéias & Letras.). A ética do face a face é a base para esse novo fundamento, no qual predomina uma assimetria em que o Outro é superior ao Mesmo, que tem como base a ‘responsabilidade’ e não a reciprocidade da relação (Levinas, 1987Levinas, E. (1987). De otro modo que ser, o más allá de la esencia. Salamanca, ES: Sígueme.).

No encontro face a face, o Rosto - parte manifesta do Outro, aquela que se revela ao Eu e, ao mesmo tempo, resiste às tentativas de domínio e poder - abala os fundamentos do Mesmo e questiona sua liberdade egoísta, obrigando-o a olhar para fora de si e despertar a inquietude constitutiva da subjetividade, que é a semente da possibilidade de acolhimento e responsabilidade pelo Outro (Martinelli, 2015Martinelli, A. V. (2015). A responsabilidade como fundamento da ética. Kínesis, VII(15), 271-281. https://doi.org/10.36311/1984-8900.2015.v7n15.5717
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). O Rosto apresenta-se como um apelo, um clamor que suplica ao Eu que não o extermine e o chama a uma responsabilidade infinita, a partir do qual surge a possibilidade da resposta ética do Mesmo (Levinas, 1980Levinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Lisboa, PT: Edições 70.). O Eu, por seu turno, não é capaz de se tornar indiferente ao apelo do Rosto, pois este obriga o Mesmo a sair de si.

Existe, na sociedade contemporânea, uma tendência ao embotamento do Rosto (Levinas, 2001Levinas, E. (2001). La huella del otro. México, ME: Taurus.), representada, no caso das pessoas com deficiência, por ideologia e organização social totalizadora, dominada por perspectivas medicalizantes e normalizadoras, que desconsideram a diversidade e as diferenças, e submetem as pessoas com deficiência a uma série de barreiras educacionais, físicas e atitudinais e a uma consequente exclusão social (Diniz, 2007Diniz, D. (2007). O que é deficiência. São Paulo, SP: Brasiliense.).

O primado da ética também antecede a justiça e a política. Para Levinas (1980Levinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Lisboa, PT: Edições 70.), a relação entre o Mesmo e o Rosto estende-se a um ‘terceiro’- representação de toda a humanidade - que é apresentado ao Eu a partir da interação com o Outro. A singularidade do Outro que se revela através do Rosto, chama a atenção do Mesmo às múltiplas singularidades, a todos os Outros que necessitam de atenção à sua condição de vulnerabilidade. O clamor do terceiro, obriga o Mesmo a ir além da proximidade ética, para a fraternidade, e a comparar os incomparáveis em sua singularidade, estabelecendo por meio da justiça e da política, formas de igualdade. Assim, a justiça e a política são necessárias, porém não como modelos acabados, mas constantemente postos em questão pela ética de forma que a igualdade não se fixe em totalitarismos ontológicos e políticos (Carrara, 2010Carrara, O. V. (2010). Levinas: do sujeito ético ao sujeito político: elementos para pensar a política outramente. Aparecida, SP: Idéias & Letras.).

Levando em conta a centralidade das questões éticas e da alteridade, a filosofia levinasiana pode contribuir para o campo dos estudos da deficiência e para a discussão do conceito de deficiência na contemporaneidade, uma vez que centra sua perspectiva na ética da relação entre o Mesmo e o Outro, que chama o Eu à responsabilidade infinita e assimétrica pelo Outro, que não se esgota nem anula a justiça e a política. A presente pesquisa volta-se, desse modo, para uma investigação da literatura científica, por meio da realização de Estado da Arte sobre a relação deficiência, ética e responsabilidade. Consideram-se as contribuições do campo das ciências humanas, tais como psicologia, direito, educação e filosofia, associados aos pensamentos de Emmanuel Levinas, propondo a ética como chave hermenêutica de interpretação das questões relacionadas às pessoas com deficiência.

Metodologia

Foi realizada uma pesquisa do tipo Estado da Arte sobre os conceitos de deficiência, ética e responsabilidade na contemporaneidade, a partir das contribuições da filosofia de Emmanuel Levinas. O Estado da Arte é de caráter bibliográfico e tem como objetivo mapear e discutir a produção acadêmica sobre determinado tema, analisando quais aspectos e dimensões vêm sendo destacados e privilegiados em diferentes épocas e lugares (Ferreira, 2002Ferreira, N. S. (2002). As pesquisas denominadas "Estados da Arte". Educação & Sociedade, 23(79), 257-272. https://doi.org/10.1590/S0101-73302002000300013
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).

Além do enfoque qualitativo, os dados receberam um tratamento quantitativo, por meio dos seguintes indicadores bibliométricos: ano, área de publicação, qualis Capes da revista, instituição de ensino e grupo de pesquisa aos quais os autores estavam vinculados. Tal levantamento foi submetido à análise cientométrica, que consiste na mensuração do progresso científico por meio de inter-comparações entre a atividade e a produtividade das diferentes publicações científicas (Silva & Bianchi, 2001Silva, J. A., & Bianchi, M. d. (2001). Cientometria: a métrica da ciência. Paidéia (Ribeirão Preto ), 11(21), 5-10. doi: https://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2001000200002
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).

Os procedimentos adotados partiram das contribuições de Ferreira (2002Ferreira, N. S. (2002). As pesquisas denominadas "Estados da Arte". Educação & Sociedade, 23(79), 257-272. https://doi.org/10.1590/S0101-73302002000300013
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) e Romanowski e Ens (2006Romanowski, J. P., & Ens, R. T. (2006). As pesquisas denominadas do tipo "estado da arte" em educação. Diálogo Educacional, 6(19), 37-50.). Inicialmente, realizou-se a busca de artigos, dissertações e teses disponíveis nas bases de dados: Scientific Electronic Library Online (SciELO); Portal de Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC); Bases de Dados de Teses e Dissertações (BDTD) - escolhidas por serem plataformas relevantes de divulgação científica e acadêmica no Brasil. Os descritores combinados foram deficiência; Levinas; ética; responsabilidade.

Os critérios de inclusão para o levantamento foram: a) estudos nas áreas de ciências humanas, ciências jurídicas e educação; b) investigações relacionadas com as discussões sobre pessoas com deficiência, alteridade e ética; c) estudos teóricos e/ou filosóficos, de pesquisa empírica, ou de pesquisa intervenção; d) artigos, dissertações ou teses publicados entre os anos de 2009 a 2019; e) textos escritos em português; f) trabalho completo disponível online.

Pelas limitações de tempo da pesquisa, fez-se necessário adotar procedimentos distintos para a análise dos artigos e das dissertações e teses. Para os artigos foram realizadas as seguintes etapas: 1) busca nas bases de dados a partir das combinações deficiência AND ética; deficiência AND responsabilidade; deficiência AND Levinas; deficiência AND ética AND responsabilidade; Levinas AND ética AND responsabilidade; 2) leitura e seleção dos textos a partir dos títulos e resumos, levando em consideração os critérios de inclusão supracitados; 3) leitura integral dos textos; 4) síntese e categorização de acordo com os objetivos da pesquisa.

As dissertações e teses foram coletadas na base de dados BDTD com as mesmas combinações de descritores, porém geraram grande quantidade de materiais não diretamente relacionados aos objetivos da pesquisa. Assim, os pesquisadores optaram por especificar o descritor ‘deficiência’, dividindo-o em quatro descritores - deficiência física; deficiência visual; surdez; deficiência intelectual. Tal divisão engloba os grupos mais comuns de lesões biológicas ou impedimentos fisiológicos que recebem classificação de deficiência, o que auxiliou a discriminação de materiais voltados às especificidades deste trabalho. É importante enfatizar que tal opção remete às limitações temporais e orçamentárias do presente estudo, portanto, não esgota a complexidade nem a totalidade dos estudos e abordagens sobre o tema, assim como não capta a singularidade do encontro face a face com a alteridade radical e infinita da pessoa com deficiência. Outra modificação foi a exclusão da etapa de leitura integral dos materiais, pelo volume de páginas dos trabalhos e pela restrição de tempo da pesquisa.

Assim, para as dissertações e teses, foram realizadas as seguintes etapas: 1) busca nas bases de dados a partir das combinações deficiência física AND ética; deficiência visual AND ética; surdez AND ética; deficiência intelectual AND ética; deficiência AND responsabilidade; deficiência AND Levinas; Levinas AND ética AND responsabilidade; 2) leitura e seleção dos materiais a partir dos títulos e resumos, levando em consideração os critérios de inclusão supracitados; 3) leitura da fundamentação teórica e das considerações finais, caso faltassem informações nos resumos 4) síntese e categorização de acordo com os objetivos da pesquisa.

Ao final dos procedimentos de coleta, o corpus foi composto por 12 artigos, 11 dissertações de mestrado e quatro teses de doutorado, categorizados inicialmente de maneira quantitativo-descritiva e, posteriormente, analisados qualitativamente.

Resultados e discussão

Para facilitar a compreensão, a análise de dados foi subdividida em dois momentos: inicialmente, o material coletado foi analisado em termos quantitativos e cientométricos, com objetivo de observar a relevância científica das produções encontradas; posteriormente, foram observados os conteúdos qualitativos de cada artigo, em comparação com a obra de Levinas e dos estudos contemporâneos acerca da deficiência.

Como apresentado na seção de procedimentos metodológicos, os descritores foram combinados de forma a analisar a produção científica através da relação entre os conceitos de deficiência, ética e responsabilidade. Porém, também buscou-se entender como a filosofia de Levinas foi interpretada na última década (através da combinação de descritores ‘Levinas AND Ética AND Responsabilidade’), ainda que não estivesse diretamente relacionada ao conceito de deficiência. Tal divisão temática foi utilizada para a interpretação e categorização dos objetivos e resultados das publicações encontradas, uma vez que tais seções se modificaram em consonância com a temática enfatizada.

Análise cientométrica

As informações e dados coletados dos materiais foram categorizados e descritos nas seções seguintes, a partir do fluxo de publicações (número de publicações por ano), autoria, grupos de pesquisa, região de origem, revistas e áreas de publicação. Além disso, optou-se por destacar a fundamentação teórica e os objetivos propostos pelos autores, a fim de analisar os enfoques priorizados em cada trabalho científico.

Fluxo de publicações

O ano de 2017 destacou-se como tendo o maior número de trabalhos (07 no total). Nos demais anos, observou-se uma produção que variou entre dois ou três trabalhos, estando a maior consistência localizada entre 2013 a 2015, com duas produções anuais. Cabe destacar, além disso, que na última década não foram encontradas publicações nos anos de 2009 e 2012.

Alguns fatores podem estar associados ao aumento do número de trabalhos produzidos no ano de 2017: em 2015 foi aprovada a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) que garantiu a adaptação da legislação brasileira à CDPD. Além disso, no ano de 2016, foi instituída a lei 13.409/2016, através da qual se tornou obrigatória a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnicos de nível médio e superior das instituições federais de ensino. Tais avanços legislativos podem ter se tornado disparadores para a publicação de pesquisas sobre inclusão e deficiência no Brasil em 2017, com declínio considerável em 2018 (02 publicações) e 2019 (03 publicações).

Autoria, grupos de pesquisa e local de origem das publicações

Os artigos totalizaram 28 autores e coautores, enquanto as teses e dissertações totalizaram 15 autores (01 por trabalho). Não houve repetição de autoria entre as publicações, o que representa, por um lado, uma diversidade de autoras e autores com interesse sobre as temáticas investigadas e, por outro, sugere a ausência de grupos de estudos focados no desenvolvimento sistemático de tais referenciais teóricos.

A mesma diversidade foi identificada quanto aos grupos de pesquisa cadastrados no CNPq aos quais os autores estavam vinculados: observou-se um total de 24 grupos, não ocorrendo repetição entre as publicações. Apenas três autores não apresentaram vinculação a nenhum grupo de pesquisa, sendo que um deles não é brasileiro (Eric Plaisance) e teve seu artigo traduzido; e dois outros foram responsáveis pela publicação de dissertações de mestrado (Jefferson Polidoro Dias e Cecilia Inês Tamiozzo). No caso das dissertações e teses, pesquisou-se também a vinculação das orientadoras(res) quando não havia vinculação direta do orientando a um grupo de pesquisa.

Os resultados apresentados demonstram que não há autores, na última década, que se dedicaram especificamente à pesquisa dentro das temáticas da ética e da inclusão relacionadas à deficiência e a Emmanuel Levinas. Tal constatação é relevante para destacar a carência de autores e grupos de pesquisas que foquem nessa direção teórica, o que aponta para a necessidade do desenvolvimento de mais pesquisas que relacionem sistematicamente tais referenciais.

Quanto ao local de publicação, foi observada uma concentração nas regiões Sudeste (12 publicações no total) e Sul (10 publicações no total) do Brasil; em seguida, veio a região Nordeste, com quatro publicações, e a Centro-Oeste, com uma publicação. As instituições que mais apresentaram vinculação de autores foi a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cada uma associada a três publicações. A escassa quantidade de produções nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país indica a necessidade da discussão de tais referenciais filosóficos de forma mais abrangente no Brasil. No caso da região Nordeste, destaca-se também um considerável contraste: segundo o IBGE (2015IBGE. (2015). Pesquisa Nacional de Saúde: 2013: ciclos de vida: Brasil e grandes regiões. Recuperado de:https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=294525
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), nessa região reside o maior número de pessoas com deficiência do Brasil, entretanto, apresenta escassa produção científica sob o enfoque deficiência, ética e responsabilidade.

Revistas e áreas de publicação

O Qualis representa a relevância de determinado periódico para uma área do conhecimento, sendo de caráter internacional (representado pelo Qualis A) ou nacional (representados pelos Qualis B e C). A maior parte dos artigos foi publicada em revistas de Qualis A1 e A2 (09 artigos no total), seguidos dos qualis B1 e B2 (03 artigos no total). Desse modo, observa-se que os artigos encontrados foram publicados em revistas com relevância internacional e nacional, o que traz maior reconhecimento e impacto de divulgação na comunidade acadêmica.

Observou-se, assim como no caso da autoria, uma diversidade de revistas, dentre as quais apenas duas se repetiram, sendo elas: Cadernos de Pesquisa e Ciência & Saúde Coletiva, cada uma responsável por duas publicações. Quanto às áreas, levou-se em consideração a temática da própria publicação, ou seja, o artigo foi selecionado se seu tema se encaixasse nas temáticas de deficiência, ética e responsabilidade, ainda que a revista estivesse vinculada a outras áreas que não ciências humanas, ciências jurídicas e educação. Assim, observou-se predominância de publicações na área de educação (06 artigos), seguida da área de psicologia (03 artigos).

As teses e dissertações, por sua vez, foram classificadas quanto à área de publicação de acordo com o programa de pós-graduação ao qual estavam vinculadas. A área de educação também foi predominante (com 05 trabalhos), seguida de direito e filosofia (com 03 trabalhos em cada área).

Nota-se que a área de educação predomina quando o foco está nas temáticas de deficiência e inclusão, o que indica a necessidade de ampliação dos estudos sobre a participação social da pessoa com deficiência em âmbitos como cultura, trabalho e política. O pensamento de Emmanuel Levinas, apesar de aparecer relacionado à inclusão educacional, também foi enfoque de trabalhos nas áreas de direito e filosofia, principalmente ao tratarem da intersecção entre ética e justiça.

Fundamentação teórica

Quanto à fundamentação teórica, as publicações, principalmente as teses e dissertações, fizeram uso de uma diversidade de autores e de teorias, de acordo com os objetivos específicos de cada trabalho. Houve a predominância de teorias que tratam da ética como enfoque: no total, 21 trabalhos se utilizaram desta temática, sendo que a maioria (15 trabalhos) utilizaram elementos da Filosofia de Emmanuel Levinas associados a outros referenciais teóricos. Os subtemas focalizados pelos trabalhos foram: bioética; ética, segundo Emmanuel Kant; Ética do Discurso de Habermas; Ética em pesquisa, considerando a teoria de Bruno Latour.

A segunda fundamentação com mais expressão entre os trabalhos foi aquela voltada ao Modelo Social da Deficiência (6 trabalhos no total). A autora mais citada nestas publicações foi Débora Diniz (utilizada em 03 publicações), enquanto dois trabalhos utilizaram documentos oferecidos pela Organização Mundial da Saúde, que se baseia nessa perspectiva para formular recomendações voltadas às pessoas com deficiência.

De interesse da presente pesquisa, também apareceram nos trabalhos encontrados a abordagem antropológica, representada pelos Estudos Culturais da Surdez, perspectiva que afirma a surdez como uma diferença, um modo específico de vivenciar o mundo que deve ser respeitado em sua singularidade - defendida por autores como Carlos Skliar e Karin Strobel. Além disso, encontra-se um enfoque na temática da justiça, com destaque para o pensamento dos autores Emmanuel Levinas, Jacques Derrida e Amartya Sen.

Métodos

A maior parte dos artigos encontrados (11 no total) foi classificada como produções teóricas, pertencentes ao gênero ensaio (7 artigos). Tais materiais foram categorizados de acordo com a indicação dos próprios autores ou, quando o método não estava explícito, de acordo com as características textuais. Os demais métodos utilizados - relato etnográfico; análise teórico-prática; análise crítica do discurso; e estudo teórico-conceitual - foram abordados por um artigo cada. Apenas um material se caracterizou como artigo empírico, utilizando a abordagem qualitativa de pesquisa e a técnica de entrevista semiestruturada.

As teses e dissertações consistiram, em sua maioria, em publicações teóricas (10 trabalhos no total), sendo o método de revisão bibliográfica o mais expressivo (05 trabalhos), seguido do hermenêutico (03 trabalhos). As pesquisas empíricas foram em sua maioria qualitativas (04 trabalhos), desenvolvidas através do método etnográfico e da técnica de entrevista semiestruturada. Apenas uma dissertação adotou ambos os métodos quantitativo e qualitativo, utilizando a revisão bibliográfica, a análise documental e aplicação de questionários como técnicas.

A caracterização dos métodos e as abordagens utilizadas permitem observar maior quantidade de produções de cunho qualitativo, focadas na revisão bibliográfica e análise teórica de outros trabalhos já publicados. Aponta-se, desse modo, para a carência de estudos de aplicação empírica e prática voltados à intersecção entre ética, responsabilidade e deficiência.

Objetivos

A análise dos objetivos de cada publicação foi subdividida de acordo com a temática abordada. Dos 27 trabalhos coletados, 17 abordam diretamente a questão da deficiência, enquanto nove se focam no entendimento da filosofia de Emmanuel Levinas. Tal diferença justifica-se pela escolha metodológica da presente pesquisa, uma vez que seu enfoque está na reflexão sobre a deficiência na contemporaneidade.

Os trabalhos que tratam da pessoa com deficiência tiveram seus objetivos subdivididos em três grupos: 1) reflexão teórica acerca da relação entre ética e inclusão: os autores enfocam a importância da discussão sobre o posicionamento ético, a consideração da diferença e a responsabilidade pelo Outro em questões relativas à inclusão; 2) análise crítica da atual participação das pessoas com deficiência na sociedade: os autores buscam afirmar o prejuízo que perspectivas biomédicas e normalizantes causam à participação efetiva de pessoas com deficiência; 3) reflexão crítica acerca da garantia de direitos e serviços à pessoa com deficiência: os autores discutem a responsabilidade social e ética envolvendo o cuidado, a educação e a pesquisa, além de problematizarem a efetiva garantia de direitos e a atual forma de se tomar decisões legislativas, que exclui a participação ativa de pessoas com deficiência.

Os trabalhos com base na filosofia de Levinas, por sua vez, focaram nas seguintes temáticas: 1) o Rosto como interpelação que gera a infinita responsabilidade do Eu diante do Outro; 2) a alteridade e o reconhecimento do Outro como princípios éticos fundamentais para efetivar a inclusão social em áreas diversas, como educação e direito; 3) a análise do conceito de justiça e sua relação com a filosofia levinasiana; 4) a análise das bases filosófico-religiosas que fundamentaram o pensamento ético de Levinas.

Principais resultados das publicações

Descritos nas seções a seguir, os resultados dos trabalhos foram categorizados de acordo com as aproximações entre os mesmos. Observou-se uma postura crítica dos autores quanto à realidade de opressão das pessoas com deficiência, tanto em termos de atitudes excludentes e discriminatórias (‘Totalização da alteridade deficiente na atualidade’), quanto da insuficiência das políticas públicas e legislações voltadas a essa população (‘Insuficiência das atuais intervenções’). Outro ponto de convergência foi o apontamento da necessidade de abandono de concepções teórico-filosóficas voltadas à normalização dos sujeitos e supressão da singularidade (‘Reconhecimento da diferença/Abandono da normalização’), relacionado à adoção de medidas concretas, que ultrapassem o conhecimento teórico (‘Necessidade de medidas práticas/concretas’).

Totalização da alteridade deficiente na atualidade

Entre os principais resultados das publicações, observou-se uma crítica à exclusão e totalização da alteridade da pessoa com deficiência na contemporaneidade. Mello (2016Mello, A. G. (2016). Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Coletiva, 21(10), 3265-3276. http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152110.07792016
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) denuncia em seu artigo como os comitês de ética adotam perspectivas biomédicas ao analisar pesquisas voltadas a pessoas com deficiência, tratando essa população como ‘incapaz’ de responder por si e desconsiderando os princípios de dignidade e de liberdade para fazer as próprias escolhas, defendidos pela CDPD.

A totalização da pessoa com deficiência também ocorre através de uma ideologia de normalização, que acontece, por exemplo, quando o corpo com deficiência é desconsiderado nas discussões sociais. Nessa direção, Sella e Muller (2011Sella, A. C., & Muller, M. C. (2011). É possível a Ética do discurso de Habermas para pessoas com deficiência? Revista Brasileira de Educação Especial, 17(2), 181-194. doi: https://dx.doi.org/10.1590/S1413-65382011000200002
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) criticam o modo como a ética do discurso é utilizada apenas para pessoas que são capazes de falar por si mesmas abertamente, desconsiderando a alteridade e especificidade do corpo com deficiência - a exemplo de pessoas com deficiência intelectual severa, que apresentam formas diferentes de comunicação.

A mesma ideologia de normalização aparece quando se analisam os discursos presentes na legislação brasileira, afirmam Tavares, Duarte e Sena (2017Tavares, T. S., Duarte, E. D., & Sena, R. R. (2017). Direitos sociais das crianças com condições crônicas: análise crítica das políticas públicas brasileiras. Escola Anna Nery, 21(4). doi: https://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2016-0382
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). As autoras denunciam o fato de que as leis brasileiras revelam lutas ideológicas entre o paradigma biomédico e o modelo social da deficiência, pois, ainda que partam do modelo social, voltam seus textos para a normalização e adaptação da pessoa com deficiência aos mecanismos sociais, em vez de propor uma modificação da cultura para promover uma participação social efetiva.

A partir da filosofia levinasiana pode-se inferir a denúncia, realizada pelos diferentes autores supracitados, de um pretenso universalismo - através do qual se pressupõe que todas as pessoas são iguais e possuem as mesmas necessidades - o que resulta na totalização da alteridade da pessoa com deficiência por meio de um embotamento das diferenças e consequente exclusão social das singularidades (Levinas, 2001Levinas, E. (2001). La huella del otro. México, ME: Taurus.).

Essa tentativa de totalização é resultado de perspectivas centradas na Ontologia do Mesmo, nas quais o Eu se torna o âmago das discussões em detrimento da relação ética com outrem (Almeida, 2013Almeida, R. R. (2013). A ética como filosofia primeira: uma introdução à filosofia de Emmanuel Levinas. SynThesis Revista Digital FAPAM, 4(4), 1-27.; Ribeiro, 2015Ribeiro, L. M. (2015). A subjetividade e o outro: ética da responsabilidade em Emmanuel Levinas. São Paulo, SP: Idéias & Letras.). A consequência, como pontuado na seção a seguir, é o desenvolvimento de ações coletivas e sociais que não contemplam as singularidades e necessidades específicas das pessoas com deficiência, levando à discriminação, à exclusão e ao apagamento das diferenças do Outro.

Insuficiência das atuais intervenções

Outro fator apontado pelos trabalhos foi a insuficiência existente nas atuais ações, intervenções e serviços direcionados às pessoas com deficiência. Tavares et al. (2017Tavares, T. S., Duarte, E. D., & Sena, R. R. (2017). Direitos sociais das crianças com condições crônicas: análise crítica das políticas públicas brasileiras. Escola Anna Nery, 21(4). doi: https://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2016-0382
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) concluem que as ações voltadas para crianças com deficiência são incipientes e, quando analisadas em sua aplicação, demonstram restrição de financiamento por parte do governo. Tal dado é corroborado por Coutinho (2017Coutinho, M. A. (2017). A responsabilidade de educar e de cuidar: quando a deficiência segrega mães-cuidadoras de estudantes com TEA (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea, Universidade Católica de Salvador, Salvador.), que constata a insuficiência da rede de cuidado, provisão e proteção das atuais políticas de inclusão brasileiras, impondo à família, principalmente às mães, a responsabilidade pela ‘profissão do cuidado’.

Arantes (2017Arantes, M. L. (2017). A inclusão das pessoas com deficiência na comunidade: o direito à moradia e as barreiras que impedem a sua efetivação (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais, Faculdade de Direito de Vitória, Vitória.) amplia a discussão da insuficiência da garantia de direitos das pessoas com deficiência ao analisar sua inserção na comunidade. A autora defende que, além das barreiras físicas impeditivas da acessibilidade, existem barreiras atitudinais, como o preconceito e a discriminação, que prejudicam a participação social efetiva dessa população.

Por fim, discutindo as questões que envolvem a realização de pesquisas, Pereira (2015Pereira, R. A. (2015). A ética na pesquisa com grupos vulneráveis: estudo com famílias e instituições de atendimento às pessoas com deficiência (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.) destaca a falta de devolutiva das pesquisas científicas realizadas tanto com os cuidadores quanto com os gestores de instituições de atendimento a pessoas com deficiência, apontando para a necessidade de reflexão ética dos pesquisadores ao estudar grupos em situação de vulnerabilidade.

Reconhecimento da diferença/Abandono da normalização

O reconhecimento do Outro como diferente de mim é apontado pelos autores como o princípio ético fundamental para a saída da ideologia de normalização, que promove a totalização e o encobrimento da alteridade. A normalização como ideologia só é superada através da preservação de uma heterogeneidade que respeite as diferenças e que não exija que o Outro seja semelhante ao Eu (Tonatto, 2017Tonatto, R. C. (2017). Este barco é nosso! Do ciberespaço aos caminhos rumo à alteridade (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras, Universidade Estatual do Oeste do Paraná, Francisco Beltrão.).

A adoção de uma postura e uma direção ética leva ao reconhecimento da deficiência em seus aspectos positivos, considerando o sujeito em suas necessidades e potencialidades (Santos, 2016Santos, W. (2016). Deficiência como restrição de participação social: desafios para avaliação a partir da Lei Brasileira de Inclusão. Ciência & Saúde Coletiva, 21(10), 3007-3015. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.15262016
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a). Tal direcionamento implica, no âmbito educacional, a consideração de que as diferenças entre os sujeitos não são impeditivas do direito de aprender junto, o que auxilia a promoção de uma nova práxis pedagógica que respeite a singularidade e que tenha como foco a educação para a formação humana.

Além disso, o reconhecimento ético da alteridade auxilia na postura adotada em pesquisas com grupos vulneráveis, uma vez que retira o pesquisador do lugar de saber e superioridade, e estabelece o posicionamento do sujeito de pesquisa como essencial para a obtenção do consentimento e para o desenvolvimento da escrita de trabalhos acadêmicos (Figuerêdo, 2015Figuerêdo, R. B. (2015). O impacto da vulnerabilidade decorrente da deficiência auditiva na manifestação do consentimento informado em casos de experimentação humana (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador.).

Necessidade de medidas práticas/concretas

O princípio da ética, associado ao abandono da ideologia de normalização, é contrastado com a necessidade de adoção de medidas práticas, que impactem concretamente o cotidiano das pessoas com deficiência. Faz-se necessário repensar a maneira negativa como a deficiência ainda é concebida na contemporaneidade, passando a compreendê-la positivamente, em suas potencialidades (Santos, 2016Santos, W. (2016). Deficiência como restrição de participação social: desafios para avaliação a partir da Lei Brasileira de Inclusão. Ciência & Saúde Coletiva, 21(10), 3007-3015. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.15262016
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a). Porém, assumir tal posicionamento deve ir além do discurso da inclusão e se materializar em medidas práticas que favoreçam uma efetiva participação e pertencimento dos sujeitos com deficiência na sociedade (Plaisance, 2010Plaisance, E. (2010). Ética e inclusão. Cadernos de Pesquisa, 40(139), 13-43. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000100002
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).

Nesse sentido, as autoras Dainez e Smolka (2014Dainez, D., & Smolka, A. L. (2014). O conceito de compensação no diálogo de Vigotski com Adler: desenvolvimento humano, educação e deficiência. Educação e Pesquisa, 40(4), 1093-1108. https://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014071545
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) defendem que a teoria histórico-cultural de Vigotski é relevante para o estudo da deficiência, visto que parte da compreensão do sujeito em suas condições sociais e concretas de vida para propor a necessidade de intervenções que compensem social e culturalmente as limitações orgânicas da pessoa com deficiência.

A ética, desse modo, só se efetiva no campo da prática, pois é uma resposta à demanda do Outro. É nesse ponto que a justiça e a garantia de direitos humanos se encontram, uma vez que mais do que tomar a dignidade, a diferença e a singularidade como princípios a serem assegurados, são necessárias ações práticas, tais como a formação de profissionais em ética e direitos humanos, e intervenções que levem em consideração as necessidades e especificidades das pessoas com deficiência nos campos da educação, da saúde e do direito, assim como da pesquisa com grupos vulneráveis (Farinon, 2018Farinon, M. J. (2018). Ética, justiça e educação sob o enfoque da alteridade. Cadernos de Pesquisa, 48(167), 204-224. https://dx.doi.org/10.1590/198053144687
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; Figuerêdo, 2015Figuerêdo, R. B. (2015). O impacto da vulnerabilidade decorrente da deficiência auditiva na manifestação do consentimento informado em casos de experimentação humana (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador.; Pozzer, 2013Pozzer, A. (2013). A formação de professores em e para direitos humanos na perspectiva filosófica de Emmanuel Levinas (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.).

Implicações da ética da alteridade de Emmanuel Levinas

Os resultados encontrados demonstraram também a visão dos próprios autores acerca do pensamento de Emmanuel Levinas, bem como as implicações inerentes a essa perspectiva. A ética da alteridade, mais do que uma teoria, é um princípio e um horizonte a ser alcançado, exigindo a não indiferença, o abandono dos privilégios do Eu, o reconhecimento do Outro como diferente de mim e a responsabilidade infinita pelo Outro como base das ações (Farinon, 2018Farinon, M. J. (2018). Ética, justiça e educação sob o enfoque da alteridade. Cadernos de Pesquisa, 48(167), 204-224. https://dx.doi.org/10.1590/198053144687
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).

Assim, encontra-se nos materiais pesquisados a ideia de que a responsabilidade deve traduzir-se não só na relação face a face, como acontece nas relações professor-aluno, pesquisador-sujeito de pesquisa ou nas relações interpessoais em geral (Pozzer, 2013Pozzer, A. (2013). A formação de professores em e para direitos humanos na perspectiva filosófica de Emmanuel Levinas (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.; Santos, 2016Santos, W. (2016). Deficiência como restrição de participação social: desafios para avaliação a partir da Lei Brasileira de Inclusão. Ciência & Saúde Coletiva, 21(10), 3007-3015. doi: https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.15262016
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a), mas também no âmbito da justiça, da legislação e das políticas públicas.

É nesse ponto que aparece a figura do terceiro em Levinas, que representa a necessidade da criação de princípios reguladores da sociedade que tenham como base o relacionamento intersubjetivo, mas que também o ultrapassem para dimensões mais amplas, tais como as da política, do direito e da legislação (Dias, 2016Dias, J. P. (2016). A justiça em Emmanuel Levinas: uma análise do terceiro (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria.). O compromisso com a alteridade, mesmo que realizado no âmbito do estado, tem como consequência a impossibilidade de neutralidade. A responsabilidade exige um posicionamento ético do Eu, uma resposta de acolhimento e hospitalidade para com o Outro (Lazzari, 2019Lazzari, A. (2019). Ética, justiça e direito: um olhar a partir do pensamento de Emmanuel Levinas (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul.). Segundo Pozzer (2013Pozzer, A. (2013). A formação de professores em e para direitos humanos na perspectiva filosófica de Emmanuel Levinas (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.), tal responsabilidade se expressa ainda mais quando está voltada para seres humanos que tiveram sua alteridade ferida ou negada, como é, no recorte do presente trabalho, o caso das pessoas com deficiência.

A justiça materializada a partir da ética se caracterizaria, portanto, nos mesmos princípios de acolhimento, responsabilidade e solidariedade para com os mais vulneráveis dentro da sociedade (Dias, 2016Dias, J. P. (2016). A justiça em Emmanuel Levinas: uma análise do terceiro (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria.). Segundo Zevallos (2014Zevallos, V. P. (2014). Ética do impossível: um estudo da justiça a partir de Derrida e Levinas (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo.), tais princípios pressupõem, então, o questionamento constante das possibilidades universalizantes e normalizadoras estabelecidas pelas legislações e políticas atuais, fazendo com que a justiça e a ética se traduzam em horizontes a serem alcançados, impossíveis de redução a um único modelo.

Análise qualitativa

Deficiência, ética e responsabilidade a partir de Emmanuel Levinas

Os estudos encontrados nos últimos dez anos (2009-2019) sobre a relação ética, deficiência e responsabilidade apontam para a existência de atitudes excludentes, discriminatórias e totalizadoras da alteridade da pessoa com deficiência na contemporaneidade, além de políticas públicas e legislações com aplicação insuficiente na promoção da garantia de direitos básicos dessas pessoas no Brasil. Os trabalhos sinalizam para a necessidade do reconhecimento da diferença e da singularidade como base para o abandono de ideologias normalizadoras, associada a medidas concretas de garantia de dignidade e combate à exclusão da população com deficiência no plano jurídico e político.

Para Levinas (1980Levinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Lisboa, PT: Edições 70.), é a partir da relação de proximidade - desenvolvida por meio do encontro face a face entre o Mesmo e o Rosto - que surge a resposta ética de responsabilidade infinita do Eu para com o outro em sua vulnerabilidade. A ética da alteridade é centrada no reconhecimento da diferença radical do Outro, não apenas em sua fragilidade, desamparo e indigência, mas também, de modo absolutamente indissociável, em sua altura (Levinas, 1980Levinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Lisboa, PT: Edições 70.), que interdita a reciprocidade na proximidade (Ribeiro, 2015Ribeiro, L. M. (2015). A subjetividade e o outro: ética da responsabilidade em Emmanuel Levinas. São Paulo, SP: Idéias & Letras.; Menezes & Reis, 2009Meneses, R. D. B., & Reis, A. M. M. G. (2009). Responsabilidade em Kant e em Lévinas: entre os conceitos e os fundamentos. Revista Ágora Filosófica, 1(2), 103-126.). Assim, o ponto de partida para inclusão é o reconhecimento de outrem e de sua diferença irredutível, o qual se inicia na proximidade e no acolhimento.

As dimensões jurídicas e políticas, ao se configurarem como forma de universalizar as necessidades das pessoas com deficiência, se mostram insuficientes para garantir intervenções e ações que de fato beneficiem pessoas concretas em situação de vulnerabilidade. É por esse motivo que a justiça e a política, tal como propõe o autor, não podem se dar de maneira posta e acabada, mas devem ser sempre questionadas e revisadas a partir da relação ética, que preserva a assimetria e a altura do outro (Levinas, 1987Levinas, E. (1987). De otro modo que ser, o más allá de la esencia. Salamanca, ES: Sígueme., 1988Levinas, E. (1988). Ética e infinito(1982) (João Gama, trad.). Lisboa, PT: Edições 70.). A luta por igualdade e cidadania não anula a responsabilidade infinita por outrem, ao contrário, deve emergir da ética da alteridade e do reconhecimento da diferença radical da pessoa com deficiência, visto que não se trata de diminuir a importância do terceiro, mas de garanti-la a partir das relações de proximidade e fraternidade (Duque, 2015Duque, J. M. (2015). Fraternidade originária: da violência mimética à responsabilidade pelo outro. Forma Breve, (12), 71-78. https://doi.org/10.34624/fb.v0i12.5107
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). A igualdade da justiça e da política nasce da desigualdade da proximidade ética, a qual abre a possibilidade da relação de fraternidade com o terceiro (Levinas, 1987Levinas, E. (1987). De otro modo que ser, o más allá de la esencia. Salamanca, ES: Sígueme.). É na constante tensão entre ética, justiça e política que se preserva a heterogeneidade do outro e se combate as tendências à totalização e normalização da diferença.

A CDPD e a CIF garantem direitos sociais, econômicos, civis e políticos às pessoas com deficiência. Entretanto, as políticas públicas, com base em ações afirmativas, que são a via de aplicação de tais leis e de realização da participação social plena das pessoas com deficiência, têm se revelado insuficientes em termos de concretização dessas mudanças estruturais na sociedade contemporânea (Souza, 2013Souza, R. (2013). Nada sobre nós, sem nós: uma análise da legitimidade jurídica da convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Revista Opinião Jurídica(Fortaleza), 11(15), 213. http://dx.doi.org/10.12662/2447-6641oj.v11i15.p213.2013
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). Nesse sentido, deve-se atentar para o risco da justiça e da política, quanto distantes ou dissociadas da ética, servirem apenas embotar e negar a diferença (Bensussan, 2009Bensussan, G. (2009). Ética e experiência: a política em Levinas. Passo Fundo, RS: IFIBE.), e criar um simulacro de inclusão da pessoa com deficiência (Diniz et al., 2009Diniz, D., Barbosa, L., & Santos, W. R. (2009). Deficiência, direitos humanos e justiça. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, 6(11), 64-77. https://doi.org/10.1590/S1806-64452009000200004
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).

Por mais desafiador que seja, em Levinas, a ética não possui vinculação com a teleologia aristotélica nem com a deontologia kantiana, ambas centradas em concepções ontológicas racionais do humano (Rial, 2015Rial, G. (2015). A Filosofia de Levinas como alternativa aos paradigmas éticos teleológico e deontológico. Pensar-Revista Eletrônica da FAJE, 6(2), 281-296.). A ética em Levinas se inscreve na alteridade, na sensibilidade e na substituição (Levinas, 1980, 1987). A sensibilidade se dá na proximidade com outrem e sua diferença. Nesse sentido, é preciso operar uma inversão da ontologia para a ética primeira. O encontro face a face deve anteceder as representações, a preparação para a intervenção pela justiça e pelos direitos humanos, e iniciar pela singularidade da nudez do Rosto. É preciso, portanto, que a dimensão legislativa esteja em constante processo de revisão e questionamento, tendo como base a singularidade do Outro - representado, nesse caso, pelas pessoas com deficiência. A dimensão ética - que emerge no encontro face a face por via da sensibilidade ao outro e provoca uma resposta de responsabilidade infinita (Levinas, 1980) - adquire, na visão dos autores deste trabalho, uma centralidade na promoção de ações e práticas inclusivas, visto que é a partir dessa dimensão que é possível assumir uma postura de acolhimento e hospitalidade ao Rosto que apresenta ao Eu as suas necessidades.

Partindo das discussões propostas neste trabalho, é possível afirmar que a filosofia proposta por Emmanuel Levinas serve para colocar em questão a problemática da exclusão de pessoas com deficiência aquém e além dos aspectos jurídicos e políticos. Levinas convida o Eu a deixar de olhar para si, sair de sua posição de conforto, e assumir uma responsabilidade infinita ao apelo do Rosto que se apresenta face a face. Provoca, desse modo, as pessoas e a sociedade como um todo a sair de suas bases normalizadoras e universalizantes.

Considerações finais

Ainda que existam avanços legislativos em prol das pessoas com deficiência, a ideologia social dominante, amparada em uma ‘cultura da normalidade’, cria barreiras discriminatórias que impedem a efetiva participação social. A necessidade de repensar a implicação da sociedade na eliminação da opressão vivenciada pelos sujeitos com deficiência foi o ponto de partida da presente pesquisa, que teve como objetivo discutir o conceito de deficiência na contemporaneidade a partir das contribuições da filosofia de Emmanuel Levinas.

Diante da análise dos resultados encontrados, observou-se a existência de barreiras atitudinais, educacionais e culturais que excluem a pessoa com deficiência da participação social. Tal constatação recai sobre a necessidade de substituição das concepções totalizadoras e universalizantes das diferenças - ainda dominantes na contemporaneidade - para perspectivas de reconhecimento do Outro e de consideração da singularidade e da multiplicidade humana. Nesse ponto, segundo a análise desenvolvida na presente pesquisa, a filosofia de Levinas se faz relevante, uma vez que propõe a saída de si mesmo e a responsabilidade infinita pelo Rosto que se revela e clama por ajuda, operando uma descentração da subjetividade.

Os resultados obtidos neste estudo auxiliam na reflexão acerca da perspectiva ontológica dominante na cultura ocidental, caracterizada pela individualização, autonomia, independência, que resulta na exclusão social daqueles em situação de vulnerabilidade, como é o caso das pessoas com deficiência. A filosofia de Emmanuel Levinas convida à implicação do Mesmo para com o Outro, à ajuda sem espera de reciprocidade, fazendo-se relevante como base teórico-prática no campo dos estudos da deficiência. Ao mesmo tempo, tais princípios precisam ser considerados em níveis mais amplos, do direito e da legislação, a partir da fraternidade para com o terceiro, para que haja de fato a concretização da justiça.

De modo geral, foi possível observar a carência de investigações que relacionem diretamente estudos da deficiência com a ética da alteridade levinasiana. Aponta-se, desse modo, a necessidade do desenvolvimento de maior número de investigações que considerem as relações entre a Ética da Alteridade de Levinas, a justiça e a política, como base para as reflexões e práticas de inclusão e participação social de pessoas com deficiência.

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    Apoio e financiamento: agradecemos o apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFPB e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFC.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2020
  • Aceito
    21 Fev 2022
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