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O sujeito na epistemologia genética

The subject in genetic epistemology

Resumos

Sugere-se neste ensaio que, na epistemologia genética, o sujeito se dirige ao mundo, se interessa por ele e é um princípio de auto-organização. Ontologicamente, seu modo de existência é o do encontro: encontro com o mundo. Epistemologicamente, seu modo de conhecimento é o da presença: presença do mundo. O construtivismo, a tese de que o conhecimento é construção de relações, começa como presença, o que exclui a noção de conhecimento como representação. Destaca-se a centralidade da noção de auto-organização na elucidação do conceito de sujeito, bem como um limite dessa noção, quando se trata de transformar o mundo. Na conclusão, são feitas algumas sugestões para superá-lo.

Epistemologia genética; auto-organização; inteligência


In this essay it is suggested that, according to genetic epistemology, the subject approaches the world, takes interest in it, and that this is a principle of self-organization. From an ontological point of view, his mode of existence is that of the encounter: the encounter with the world. From the epistemological point of view, his mode of knowledge is that of presence: presence of the world. Constructivism, the thesis that knowledge is the construction of relations, begins with presence, excluding the idea of knowledge as representation. It is emphasized the importance of a notion of self-organization to explain the concept of subject as well as a limit of this notion, when the purpose is to change the world. The conclusion brings some suggestions how to overcome it.

Genetic epistemology; self-organization; intelligence


ARTIGOS

O sujeito na epistemologia genética

The subject in genetic epistemology

José Antônio Damásio Abib

Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências, Universidade Federal de São Carlos. Pesquisador do CNPq

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências Via Washington Luiz, Km. 235 CEP 13565-905, São Carlos-SP E-mail: j.abib@zaz.com.br

RESUMO

Sugere-se neste ensaio que, na epistemologia genética, o sujeito se dirige ao mundo, se interessa por ele e é um princípio de auto-organização. Ontologicamente, seu modo de existência é o do encontro: encontro com o mundo. Epistemologicamente, seu modo de conhecimento é o da presença: presença do mundo. O construtivismo, a tese de que o conhecimento é construção de relações, começa como presença, o que exclui a noção de conhecimento como representação. Destaca-se a centralidade da noção de auto-organização na elucidação do conceito de sujeito, bem como um limite dessa noção, quando se trata de transformar o mundo. Na conclusão, são feitas algumas sugestões para superá-lo.

Palavras-chave: Epistemologia genética; auto-organização; inteligência.

ABSTRACT

In this essay it is suggested that, according to genetic epistemology, the subject approaches the world, takes interest in it, and that this is a principle of self-organization. From an ontological point of view, his mode of existence is that of the encounter: the encounter with the world. From the epistemological point of view, his mode of knowledge is that of presence: presence of the world. Constructivism, the thesis that knowledge is the construction of relations, begins with presence, excluding the idea of knowledge as representation. It is emphasized the importance of a notion of self-organization to explain the concept of subject as well as a limit of this notion, when the purpose is to change the world. The conclusion brings some suggestions how to overcome it.

Key words: Genetic epistemology; self-organization; intelligence.

Piaget (s.d./1979) afirma que as estruturas psicológicas são reguladas; e logo após enunciar isso, escreve: “Mas, então, por quem ou por que coisa?” (p. 57). Essa regulação é ativa e autônoma: é auto-regulação. Há, então, um funcionamento, ou um centro de funcionamento: é o sujeito. Nas palavras de Piaget, “podemos nos contentar em definir esse sujeito como um centro de funcionamento” (p. 57, meus grifos). A expressão, “podemos nos contentar” estabelece os limites da investigação que será desenvolvida neste ensaio. Não há a pretensão de exaurir a estrutura conceitual envolvida na concepção de sujeito. O objeto de reflexão é o sujeito como um centro de funcionamento e segue o espírito da frase de Piaget de que podemos nos contentar com essa idéia.

Piaget (s.d./1979) apresenta essa idéia de sujeito em um contexto no qual, de um lado, critica a concepção de sujeito da psicologia da Gestalt e, de outro lado, critica o sonho, segundo ele, de alguns estruturalistas: o de retornar às estruturas sem sujeito. Não é objetivo deste texto entrar nesse debate. O que se pretende é antes esclarecer a idéia de Piaget de que o sujeito é um centro de funcionamento. Desenvolver essa idéia pode contribuir para a compreensão do que significa não só um estruturalismo com sujeito (um passo necessário para aqueles que pretendem diferenciar estruturalismo sem sujeito de estruturalismo com sujeito), mas também a concepção de sujeito na epistemologia genética.

Uma epistemologia que defende uma idéia de sujeito está obrigada a - mais cedo ou mais tarde, na medida em que essa idéia é desenvolvida - dizer qual é o modo de existir e de conhecer do sujeito - o que conduz a uma certa noção de ontologia e de epistemologia. Um dos objetivos deste trabalho é precisamente elucidar o modo de existir e de conhecer do sujeito na epistemologia genética - o que nos obriga a tocar em algumas noções ontológicas e epistemológicas que rondam essa epistemologia.

O sujeito é um centro de funcionamento: é auto-regulação; porém, na epistemologia genética, a auto-regulação desemboca na auto-organização (Piaget, s.d./1987). Isso significa dizer que o conceito de auto-organização é central para o exame da concepção de sujeito. Este ensaio começa examinando o conceito de auto-organização. Que é também tão central para a concepção de inteligência que se pode dizer que inteligência é auto-organização. Contudo, o que é mais importante é que o conceito de auto-organização pode ser detalhado com o exame da noção de evolução da inteligência. Esse detalhamento reflete-se, naturalmente, na concepção de sujeito. Por isso, o conceito de inteligência é examinado na segunda parte deste texto. Em seguida, a reflexão se dirige para as conseqüências ontológicas e epistemológicas que podem ser derivadas da concepção de sujeito na epistemologia genética. Isso, por um lado, porque, por outro lado, o exame do modo de existir e de conhecer do sujeito contribui para detalhar a concepção de sujeito. Finalmente, aponta-se um possível limite da concepção de sujeito na epistemologia genética: o de que as transformações envolvidas no conceito de auto-organização não contemplam a transformação do mundo. Em outras palavras, o sujeito não transforma o mundo. Na conclusão sugere-se como esse limite poderia ser superado.

AUTO-ORGANIZAÇÃO

Auto-organização envolve duas tendências complementares: uma para a organização e outra para a adaptação (Piaget, 1936/1956, 1968/1977a). Tendência para a organização refere-se à propensão para construir um sistema de relações. Um sistema de relações envolve estruturas cujas funções são relativas umas às outras. Por exemplo, o organismo é um sistema no qual a função de cada órgão depende da função de todos os outros órgãos. O sistema é, portanto, uma totalidade funcional na qual a função de cada estrutura está em relação (ou está coordenada) com a função de todas as outras estruturas do sistema. Outro exemplo: a coordenação das ações na inteligência prática. Nesse caso uma ação está coordenada com outras ações, como na ação de olhar o objeto e pegá-lo. Há, aí, uma totalidade funcional ou uma coordenação sensório-motora. A coordenação das ações desenvolve-se como resultado da tendência para a organização.

O sistema de relações é peculiar no sentido em que se relaciona com a adaptação: refere-se à relação entre o organismo e o meio bem como à coordenação das ações com os objetos e ainda à conexão das operações formais do pensamento com as coisas. Esse é o sentido em que organização é “interdependência entre organização e adaptação” (Piaget, 1936/1956, p. 7). (O termo organização nessa citação deve ser entendido no sentido prévio de sistema de relações ou de totalidade funcional.) Em síntese, organização como sistema de relações destaca o aspecto interno das totalidades funcionais. Refere-se, portanto, às relações entre as operações dos órgãos de um organismo ou às coordenações das ações, ou ainda às conexões das operações formais do pensamento. Organização como interdependência entre os sistemas de relações e a adaptação destaca o aspecto externo das totalidades funcionais. Refere-se, portanto, à relação dos sistemas de relações com o mundo (o meio, os objetos, as coisas).

Tendência para a adaptação refere-se à propensão para a transformação. Por exemplo, um organismo tende a transformar uma substância do meio em uma substância com a qual suas estruturas possam lidar. Em um trecho divertido da entrevista que Bringuier (1977/1978) fez com Piaget, o pensador suíço disse que “um coelho que come couve não se transforma em couve; é a couve que se transforma em coelho” (citado por Bringuier, p. 62). Essa tendência é o processo de assimilação. Outro exemplo: com o esquema recém-formado de preensão, uma criança assimila um objeto aos esquemas já constituídos (pega o objeto, olha, põe na boca, chupa)1 1 Uma criança constrói suas estruturas antes de tê-las. Antes disso não as tem. Trajetória longa, que se prolonga por toda a vida e que se inicia com as estruturas vitais, desde as que são imprescindíveis para a sobrevivência do organismo fisiológico, até o reflexo, cujo exercício dá origem às estruturas psicológicas e lógicas da ação e do pensamento. Estrutura simples, o reflexo, se comparada com as estruturas evoluídas do pensamento formal - que, no entanto, também tem uma história: uma história filogenética. O organismo também construiu suas estruturas antes de tê-las. Não as tinha antes disso. Essa construção reflete a ação da função invariante. É ela que está na origem das estruturas biológicas e das estruturas da ação e do pensamento. Como se verá detalhadamente neste ensaio, essa função é o sujeito. Sem ela, as estruturas seriam estruturas sem sujeito. Tratar-se-ia de um estruturalismo sem sujeito, inaceitável para Piaget (s.d./1979). . O objeto que é pego transforma-se em objeto para olhar, pôr na boca, chupar - integra-se, desse modo, às estruturas internas da criança. A adaptação é tendência para a transformação em dois sentidos. Há, de um lado, a assimilação: a transformação do ambiente. Trata-se da integração do ambiente às estruturas internas do sujeito (o uso do termo sujeito refere-se, aqui, a organismo, criança, adulto). De outro lado, há a acomodação: a transformação do sujeito. Trata-se do ajuste das estruturas internas do sujeito ao ambiente. Por exemplo, o esquema de preensão de uma criança ajusta-se às modificações de volume ou de tamanho de um objeto: para pegar um objeto volumoso, uma criancinha terá que usar as duas mãos; e para pegar um objeto minúsculo, terá que fazê-lo com ajuste fino na coordenação dos dedos. Em síntese, o sujeito age. E agir significa isto: assimilar o meio e se acomodar a ele.

No nível da vida, adaptação é equilíbrio entre assimilação e acomodação. Na passagem da vida para a ação o equilíbrio deixa de ser um conceito central. No nível do comportamento, adaptação é equilibração entre assimilação e acomodação. Trata-se, aqui, da diferença entre auto-regulação e auto-organização. Auto-regulação é um conceito cibernético. A cibernética é ciência da regulação: é ciência de máquinas, naturais ou artificiais, cujas operações e correções podem ser realizadas por elas mesmas. A operação de um autômato pode desviar-se de uma meta predeterminada e ser corrigida por dispositivos pré-programados. O desvio caracteriza um desequilíbrio, e o equilíbrio, o retorno ao estado anterior ou inicial de operação da máquina. Essa regulação é tecnicamente denominada de retroalimentação negativa (feedback negativo). Lembrando Jacques Monod, Piaget (s.d./1987) observa que há um sujeito, o organismo - mais exatamente, o organismo fisiológico -, que não tem nenhum motivo para evoluir, e por isso geralmente se restringe “a conservar um certo estado de equilíbrio (...) a conservação é a norma suprema ...” (p. 97). Opera, aqui, como nas máquinas cibernéticas, a auto-regulação. O organismo fisiológico é constituído por estruturas precisamente habilitadas para assimilar desvios e reconduzi-lo ao estado inicial. De modo geral, pode-se dizer que o organismo fisiológico é uma máquina cibernética ou um autômato, no qual vigora a norma do equilíbrio. Porém, é esse conceito de adaptação - adaptação como equilíbrio - que Piaget (1936/1956) não considera interessante. Passando-lhe a palavra: “Certos biólogos definem adaptação simplesmente como preservação e sobrevivência, isto é, o equilíbrio entre o organismo e o ambiente. Mas então o conceito perde todo o interesse, porque confunde-se com o da própria vida” (p. 5). Trata-se do que Piaget (1936/1956) denomina de adaptação-estado: equilíbrio é adaptação-estado. É necessário, então, transitar da vida para o comportamento, porque é somente assim que as insuficiências da concepção conservadora da adaptação são corrigidas. A ação é auto-regulação na medida em que se refere às relações estáveis do sujeito com o mundo. No entanto, a ação é também auto-organização - é ultrapassagem -, conduz precisamente a novos ajustes das estruturas do sujeito ao mundo. Nas palavras de Piaget: “(...) mas, o que é justamente próprio do comportamento, é sempre ‘ultrapassar-se e fazer da auto-regulação uma auto-organização que conduz a estruturas novas’ ” (s.d./1987, p. 100). Em síntese, trata-se da transformação da auto-regulação em auto-organização: nas relações estáveis do sujeito com o mundo, vigora a conservação; nas relações instáveis, vigora o desenvolvimento de novas estruturas, o que só pode ser feito com o ajuste a novos desvios2 2 Pode-se traçar paralelos entre a noção de auto-organização na epistemologia genética e na cibernética. Há na cibernética outro tipo de retroalimentação, a retroalimentação positiva, também denominada de amplificação do desvio (Epstein, 1986). Diferentemente da retroalimentação negativa, a retroalimentação positiva conduz a uma mudança de rumo, porque as operações efetuadas não só são incapazes de corrigir o desvio, como também amplificam-no. Sendo assim, é necessário questionar a pertinência das normas operacionais do sistema. Freqüentemente, o resultado dessa indagação conduz à transformação dessas normas. Isso pode ser verificado fazendo-se um breve exame da teoria cibernética da aprendizagem. Essa teoria relaciona-se basicamente com retroalimentação negativa e positiva (Morgan, 1986/1996). A retroalimentação negativa é central para o conceito de aprendizagem em circuito simples: um circuito com três passos. No primeiro, o sistema explora e detecta o ambiente. No segundo, compara a informação obtida com suas normas operacionais. No terceiro, inicia ações corretivas bem-sucedidas. A retroalimentação positiva é central para o conceito de aprendizagem em circuito duplo. Basicamente verificam-se os três passos anteriores. Mas, há esta diferença: indaga-se a pertinência das normas operacionais no segundo passo se as ações corretivas não são bem-sucedidas ou se amplificam o desvio. Em termos cibernéticos, aprender resume-se ao processo de auto-regulação e aprender a aprender ao de auto-organização. Auto-organização na epistemologia genética frisa a acomodação: o ajuste ao ambiente ou a transformação das estruturas internas do sujeito. Comparando-se as duas teorias, a acomodação aproxima-se de aprender a aprender ou de retroalimentação positiva. .

INTELIGÊNCIA

O que é, então, inteligência? É adaptação. Porém, é adaptação-processo ou auto-organização. Portanto, quando Piaget (1936/1956) define inteligência como adaptação, é conveniente esclarecer essa definição, pois, na exata medida em que inteligência é definida como adaptação e que adaptação sugere conservação (seja porque é pensada como auto-regulação ou porque não se preserva a distinção fundamental entre adaptação-estado e adaptação-processo), a inferência imediata é esta: trata-se de uma concepção conservadora da inteligência. Essa concepção que resvala na forma dos fenômenos, que não discerne, no nível da inteligência, processos de estados, e que iguala inteligência com uma certa concepção de vida, é equivocada em dois sentidos, ao menos. Em primeiro lugar, por tomar como modelo da inteligência o resultado de um longo processo evolutivo: a vida. Ao proceder desse modo, dificulta-se a compreensão da vida como processo de auto-organização bem-sucedido - que, na atualidade, se expressa como estado de auto-regulação ou de conservação. Em segundo lugar, é também equivocada porque vê a inteligência como auto-regulação desde o seu início, quando no máximo é finalidade (o que é discutível, como se verá a seguir). Dessa perspectiva, a inteligência seria pré-formada, cabendo apenas aguardar a maturação do sistema nervoso para que possa (espontaneamente) não só se expressar, mas também se conservar. Em síntese, se a vida for analogia plausível para se pensar a inteligência, deve-se preservar esta noção: nos seus primórdios e no seu desenvolvimento, a vida é auto-organização. E se ela parece ser fundamentalmente auto-regulação, isso só denota uma auto-organização bem sucedida com relação ao ambiente no qual evoluiu. Sendo assim, não se deve conceber a inteligência com base na noção de um estado de auto-regulação e no mesmo passo desvinculá-lo do processo de auto-organização. É possível levar essa analogia adiante e indagar se a evolução da inteligência alcançará resultados similares aos da evolução da vida. Ou, em outras palavras, se a transformação da inteligência tenderá, como a vida, a conservar-se.

Parece inquestionável a razão de Piaget (s.d./1987) quando afirma que inteligência é auto-organização e não somente auto-regulação. Auto-organização relaciona-se com dinâmicas ambientais complexas e sugere uma tarefa interminável. É bem isso o que pensa Piaget quando comenta que o processo de equilibração é: “Um deslocamento do equilíbrio como dizem os físicos. Na verdade, ele nunca é perfeito e, realmente, há sempre novos fatos exteriores que vêm perturbá-lo” (citado por Bringuier, 1977/1978, p. 64, grifos meus). E, mais adiante, escreve sobre a impossibilidade do equilíbrio perfeito: “É o processo [equilibração] que conduz ao equilíbrio. Mas como - Deus seja louvado - o equilíbrio jamais é alcançado porque ele precisa assimilar o universo inteiro (...)” (citado por Bringuier, p. 64, grifos meus). O ambiente - os fatos exteriores - é distendido até abarcar o universo inteiro, que não pode ser assimilado em sua totalidade. Por isso o equilíbrio jamais é alcançado e a conservação de estados inteligentes está sempre aberta a transformações. E “Deus seja louvado” por tal imperfeição! Como conseqüência, um estado de auto-regulação da inteligência está permanentemente aberto a novos ajustes – originando, desse modo, uma tensão enriquecedora da inteligência. Em suma, no contexto da equilibração, equilíbrio refere-se a avanços (avanços para novos estados) e não a retornos (retornos a estados anteriores).

Auto-organização da inteligência, na exata medida em que envolve assimilação e acomodação, é um processo contínuo e hierárquico: não há descontinuidade na formação das estruturas. Estruturas mais complexas, como as que podem ser verificadas nos sucessivos períodos e estágios do desenvolvimento intelectual da criança, formam-se a partir de estruturas mais simples. Verifica-se nesse desenvolvimento - que se inicia com o período sensório-motor e que passa pelos períodos intermediários (pré-operacional e operacional concreto), atingindo seu ápice no período das operações formais - uma preservação via transformação das estruturas psicológicas. À primeira vista pode parecer non-sense pensar em preservação se há transformação. Bem entendido, contudo, transformação refere-se a superações, ultrapassagem de limites com preservação das possibilidades previamente constituídas. Significa isto a evolução da inteligência: preservação e construção ininterrupta de possibilidades. Ou, dito de outro modo, ultrapassagem infindável de limites, barreiras, obstáculos. Os limites das estruturas não devem ser motivo para desqualificá-las, ao contrário, são razões de novas possibilidades. Colocado assim, pode-se ver melhor que o conceito de hierarquia de estruturas não comporta as noções de melhor e pior ou de superior e inferior. Há abandonos de limites, não de possibilidades. Há evolução, no sentido de um movimento para diante. A evolução da inteligência tem uma direção, que é esse ir para frente, para o futuro. Auto-organização da inteligência não é, então, somente um sistema de relações: é, melhor, um sistema de relações hierarquicamente ordenadas. Em suma, auto-organização da inteligência tem uma finalidade intrínseca, que é a de se conservar. Não se trata, porém, da manutenção de estados ou estruturas, mas, isto sim, da preservação do processo, ele mesmo, de auto-organização: o que se preserva é a invenção incessante de novas possibilidades.

SUJEITO, ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA

O sujeito é tendência para a organização e para a adaptação. Ou ainda, é auto-organização: é um sistema de relações hierarquicamente ordenadas. Já no nível dos reflexos, suas ações abrem-se incessantemente ao mundo. De início, tal abertura é indiferenciada. Mas, à medida que se defronta com novidades, se diversifica gradualmente. Em outras palavras, o sujeito é ativo e, até que se interesse por algo, suas ações não denotam qualquer direção específica. O interesse depende de se encontrar um objeto novo. E tanto é assim que um objeto completamente familiar ou estranho ao sujeito não desperta seu interesse (o objeto per se é insuficiente para atrair ou despertar o interesse do sujeito.). Isso significa dizer duas coisas. Primeiro, que o objeto é relação: não é algo que existe aí fora no mundo, independente do sujeito. Segundo, que se refere à relação entre as estruturas psicológicas do sujeito e o “algo” a que elas se dirigem. A natureza física do objeto consiste nessa relação. Não existe uma matéria sólida, ali no mundo externo, que o sujeito conhece. Qualquer materialidade do objeto (por exemplo, o “fato de ser sólido”) é aparente: é um fenômeno constituído pela relação. Portanto, o objeto é relação e não coisa, e por isso não força a atividade do sujeito.

O sujeito abre-se ao mundo e encontra-se com ele. Resguardados os extremos das grandes diferenças e das grandes semelhanças, esse mundo, novo, desperta-lhe o interesse. Esse interesse, interesse pelo mundo, inaugura um modo de existência do mundo. Uma ontologia: o mundo é relação. Ou, o objeto é relação. Modo de existência que deve ser estendido ao sujeito. O sujeito também é relação. Pois, por que haveria essa busca do mundo, se o mundo não já houvesse participado da formação do organismo, lá, na origem da vida? Com efeito, se assim não fosse, ter-se-ia que imaginar um fiat: Um faça-se! E daí, o organismo - com suas estruturas pré-formadas - teria começado a se dirigir ao mundo. Ou ainda, se o objeto não é coisa - pois não força o interesse ou a ação do sujeito (olhar um objeto novo, por exemplo), se precisa ser encontrado pelo sujeito para se constituir como relação -, não é possível dizer algo similar com respeito ao sujeito? O que seria o sujeito se vagasse pelo mundo e nada encontrasse? Não seria também uma coisa? Mas não. Não vaga a esmo pelo mundo sem encontrar algo. Encontra-se: é relação.

É esse encontro singular - imediato e direto - que está na origem da noção de conhecimento como presentação3 3 O termo presentação ou apresentação significa ação de apresentar (Houaiss, 2001). Admite-se, aqui, que tal ação pressupõe a presença do objeto. O termo presença tem uma longa história de significados filosóficos, desde os Estóicos até Dewey e Heidegger, ao menos (Abbagnano, 1971/2000). O termo presentação tem uma história filosófica mais recente. Teria sido introduzido por Spencer e amplamente utilizado por psicólogos do século XIX, estando atualmente em desuso (Abbagnano). Os dois termos têm um significado comum: o de que conhecer é transcender em direção ao objeto e o de que o conhecimento é direto e imediato: não ocorre a mediação de representações. Neste ensaio utiliza-se o termo presentação apenas neste sentido e foi escolhido - em detrimento do termo presença - apenas porque é mais apto para fazer o contraponto com o termo representação. Contudo, o termo presença delimita um contexto mais apropriado para a noção de conhecimento que está sendo defendida neste texto. (e não como “re-presentação”). O conhecimento é auto-organização: é compreensão do mundo. E começa deste modo: o sujeito e o objeto são apresentados um ao outro. E, naturalmente, é necessário que se encontrem para que isso aconteça. Aqui estão, portanto, os termos fundamentais: encontro e presentação. O sujeito é essa síntese de direcionalidade de estruturas, interesses e auto-organização. É fundamental compreendê-lo nessa síntese, não só para não simplificar demasiadamente sua função cognitiva - desvinculando-a de suas conexões motivacionais (o mundo pode ser chato se for muito familiar ou indiferente se for muito estranho) -, mas também para entender os alicerces do construtivismo na epistemologia genética.

O construtivismo - a tese de que o conhecimento é história, gênese e função de estruturas; atividade do sujeito, auto-organização da inteligência ou auto-organização (Piaget, 1968/1977b)4 4 Com essa definição, Piaget aproxima o construtivismo da dialética. Comentando o debate entre Levi-Strauss e Sartre em torno do estruturalismo e da dialética, escreve: "... parece que ambos os antagonistas se esqueceram do fato fundamental de que no domínio das ciências o estruturalismo sempre foi ligado a um construtivismo ao qual dificilmente pode-se negar o epíteto "dialético". A ênfase no desenvolvimento histórico, oposição entre os contrários, e ultrapassagens (dépassements) é tão característica do construtivismo como da dialética, e é óbvio que a idéia de totalidade é central no pensamento estruturalista e dialético" (1968/1977b, p. 775). - é radicalmente diferente do representacionismo, a tese de que o conhecimento é representação, espelho, imagem ou cópia de coisas5 5 Glasersfeld (1981/1994, 1996) defende um construtivismo radical fortemente vinculado ao construtivismo de Piaget. Para o filósofo alemão, a teoria piagetiana do conhecimento como adaptação é fundamental para destronar a teoria representacional do conhecimento. Passando-lhe a palavra: "Na tradição ocidental, sempre se considera conhecimento uma representação mais ou menos verdadeira do mundo ontológico (...) uma imagem de um mundo independente do sujeito conhecedor. Piaget rompe com essa tradição porque propôs uma modificação radical do conceito de conhecimento. Para ele, em vez de ser um orgão de representação, o conhecimento transforma-se em instrumento de adaptação" (1996, p. 176). Gruber e Vonèche (1977) observam que Piaget denominou um de seus livros A Construção do Real na Criança e não A Descoberta do Real, ou seja, não se trata de representar ou de descobrir o real. . Na epistemologia genética, a construção de relações não se refere a uma realidade externa ou interna independente do sujeito, e a representação de eventos passados, que surge no sexto estágio do período sensório-motor, não se refere a coisas. A representação que aparece na infância refere-se, isto sim, a relações, a construções elaboradas em estágios anteriores. Além disso, uma representação do passado não é uma cópia que coincida exatamente com aquilo que efetivamente aconteceu. A representação do passado no construtivismo é reconstrução, pois a presença do objeto novo transforma o sujeito e invade suas representações, traindo qualquer esperança de espelhos fiéis ao que efetivamente ocorreu. O construtivismo é invenção: é invenção do futuro e do passado. E tem de ser assim, porque se não fosse, seria invenção do futuro e representação especular do passado: seria contraditório. Para operar sem paradoxo, a construção deve vigorar por todo o tempo.

Essa concepção de conhecimento em que o sujeito não se recusa a transformar-se um pouco no mundo se pode transformá-lo um pouco em si contribui para elucidar a noção de conhecimento como compreensão. Transformar-se um pouco no mundo é transformar-se um pouco no outro, no diferente, portanto. Essa transformação é condição par excellence para compreender o diferente. Que essencialmente consiste em compreender possibilidades e limites do outro. Por exemplo, compreender as possibilidades e limites da inteligência de uma criança no período sensório-motor. O conhecimento aparece, então, como aquilo que ele é em primeiro lugar: uma hermenêutica.

O sujeito é um hermeneuta ou um intérprete6 6 A hermenêutica é a disciplina que trata com a interpretação. O texto clássico de Aristóteles De Interpretatione (Da Interpretação) intitula-se Peri Hemeneias. Palmer (1969/1986) faz uma exposição ampla e detalhada da evolução da hermenêutica, abrangendo desde os usos antigos da noção de interpretação até a hermenêutica clássica (Schleiermacher e Dilthey) e filosófica (Heidegger e Gadamer). Um nome que comparece pouco no texto de Palmer e que requer um exame mais aprofundado é o de Paul Ricoeur. Com esse propósito, o leitor pode consultar a coletânea de textos de Ricoeur organizada por Thompson (1981). Ricoeur, Hermeneutics and Human Sciences. Cambridge: Cambridge University Press. . Na qualidade de intérprete, compreende ambientes como a natureza, a civilização e a cultura. Ou compreende ainda outros sujeitos, como a criança. A visão dos objetos é radicalmente modificada quando são vistos como relação e não como coisa. Quando se diz que depois de Piaget a criança jamais será a mesma, pretende-se não somente frisar a revolução no método de estudo do desenvolvimento intelectual da criança, mas também enfatizar que a compreensão da inteligência nunca mais poderá retroceder àquela que vigorava antes do advento da obra do pensador suíço. Quando se defende uma leitura ecológica da natureza, sublinham-se as conseqüências nefastas de uma concepção cega aos limites da manipulação de uma ordem reduzida ao estatuto de uma coisa. Quando se evita identificar cultura com civilização tecnológica, frisa-se a irredutibilidade da produção de bens culturais ao modus operandi de uma lógica paradoxal de sobrevivência e superfluidade. Mas não só. Evita-se também silenciar as vozes de outras culturas que passam ao largo da civilização ocidental.

A invenção do conhecimento é feita com inteligência, com auto-organização. Inteligência interessada, certamente. Contudo, interessada no mundo, em compreender o mundo, em compreender o parceiro de seu encontro: auto-organização hermenêutica. Afasta-se, como tal, do conhecimento expresso nesta célebre equação: conhecer é poder7 7 Reagindo à noção grega de que conhecimento é contemplação e comentando que só Deus e os anjos podem ser espectadores, Bacon (1620/1984a) identificou já no terceiro aforismo do Novum Organum saber com poder. "Ciência e poder do homem coincidem ..." (p. 13, aforismo III). Assim como o Novum Organum foi escrito contra o Organon de Aristóteles, Bacon (1627/1984b) escreveu, contra a Atlântida citada na República de Platão, a Nova Atlântida, na qual o exercício do saber como poder é explicitamente defendido na tese de que os problemas de ordem econômica e social devem ser resolvidos pela ciência e pela técnica, sob a responsabilidade da Casa de Salomão: a residência dos cientistas e sábios da Nova Atlântida. , e solidariza-se com esta outra não tão célebre equação: conhecer é compreender. A tese de que conhecer é poder ignora que o sujeito é relação. Ignora mais: não sabe que o objeto também é relação e que ofensas a ele são ofensas ao sujeito. Há uma ingenuidade em conceber a existência como coisa8 8 Neste ensaio a expressão ontologia da coisa ou ontologia substancialista refere-se à ontologia de Descartes (1641/1979). Essa ontologia defende a existência de duas substâncias ou coisas: a coisa pensante ( res cogitans) e a coisa extensa ( res extensa). A coisa extensa pertence ao mundo da física e pode ser explicada na linguagem fisicalista. A coisa pensante não pertence a esse mundo e não pode, portanto, ser explicada pela linguagem fisicalista. Passando a palavra a Descartes: "... de um lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma idéia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele" (p. 134, grifos meus). e conferir poder a uma coisa (o sujeito) e negá-lo a outra coisa (o objeto) - cega para ver que danos na ordem do objeto revertem-se em danos na ordem do sujeito. Compreender as possibilidades e limites do objeto é a mesma coisa que compreender as possibilidades e limites do sujeito. E é somente essa compreensão que pode limitar o ingênuo poder do sujeito sobre as coisas.

E A TRANSFORMAÇÃO DO MUNDO?

Há que se destacar a centralidade da noção de auto-organização. Foi dito que inteligência é auto-organização e que o sujeito é auto-organização. Dando continuidade à entrevista com Piaget e comentando sua observação de que o equilíbrio jamais é alcançado, Bringuier escreve: “Sempre corremos atrás!” (1977/1978, p. 64). Eis a resposta de Piaget: “Sempre corremos atrás e isso é a ciência” (citado por Bringuier, p. 64, grifo meu). Isso significa dizer que auto-organização é conhecimento, ciência. Parece que basicamente deve-se entender que o sujeito, a inteligência e o conhecimento referem-se à integração do mundo e ao ajuste ao mundo. Contudo, o que se enfatiza é o ajuste ao mundo, porque é somente assim que as estruturas assimilativas do sujeito são alargadas, o que amplia sua inteligência do mundo bem como lhe propicia os elementos para a crítica de seus próprios limites: o sujeito tem uma finalidade, que é a de romper incessantemente seus próprios limites e conquistar a compreensão do mundo. Esse sujeito é o sujeito crítico-hermenêutico: o sujeito que compreende o mundo e é crítico de si.

Aparentemente, o conceito de auto-organização é limitado em um aspecto importante: o sujeito também transforma o mundo9 9 A noção de transformação do mundo a ser examinada agora não deve ser confundida com aquela que está presente na noção de assimilação ou de integração do mundo. Não há assimilação do mundo se não houver transformação do mundo. Contudo, esse tipo de transformação do mundo visa a realimentar ou fortalecer as estruturas assimilativas do sujeito. Não é necessariamente crítica do valor ou da qualidade do que está sendo transformado com vistas à integração (naturalmente, escapam a esse juízo os casos que representam sérias ameaças à própria sobrevivência). Grosso modo, o conceito de auto-organização trata com transformações que se referem à noção de evolução. A transformação de que se trata neste momento aproxima-se da noção de revolução. (não é somente integração do mundo e ajuste ao mundo). Aqui está um exemplo. O sujeito criou um ambiente - a cultura epistemológica do poder, a cultura ontológica da coisa e a civilização tecnológica - que transformou a natureza na qual a vida evoluiu (uma natureza transformada que ameaça a conservação da vida). Para defender a vida, o sujeito terá de lidar com as complexidades e idiossincrasias próprias desses ambientes e de suas inter-relações. Uma civilização que na sua relação com a natureza se oriente pela cultura epistemológica do poder e ontológica da coisa (como é o caso da civilização ocidental) pode, certamente, gerar benefícios incalculáveis, mas pode também ameaçar a manutenção da vida no planeta. A transformação que essa cultura e civilização vem operando na natureza tem sido tão extensa e profunda que “a natureza não é mais natural”: é histórica. Os recursos naturais se esgotam, os desequilíbrios ecológicos e a poluição ameaçam a vida. Essa natureza deixa paulatinamente de ser a natureza na qual a vida evoluiu, não representa mais o ambiente no qual a vida se transformou e se conservou10 10 A vida evoluiu em uma natureza que também é histórica na medida em que há uma história da natureza ou uma reconstrução da natureza contada pela ciência. Porém, essa história da natureza precisa ser diferenciada da natureza histórica no sentido tratado aqui, em que a natureza é história porque é um cenário construído pelo homem. . Aparentemente vive-se um dilema. Com os avanços de uma cultura do poder e da coisa e de uma civilização tecnológica, criou-se um ambiente no qual a vida pode se prolongar e se conservar ainda mais. Todavia, um entorno desse gênero penetra e transforma o ambiente original da vida, colocando-a em risco.

A natureza também invade a civilização e a cultura. No processo de auto-organização e de conservação, os organismos visaram sempre a objetivos imediatos. Por exemplo, a agressão imediata possivelmente foi mais efetiva para a sobrevivência das espécies do que a agressão protelada: o agressor lento provavelmente foi ferido ou morto pelo agressor mais rápido. Outro exemplo: a alimentação imediata possivelmente também foi mais efetiva para a sobrevivência dos organismos do que a alimentação protelada: o organismo que atrasava sua alimentação provavelmente tinha um estoque mais limitado de energia, ou era mais suscetível a doenças do que o organismo que não adiava suas refeições. Na cultura e civilização, o imediatismo da natureza necessita ser regulado. Associado à tecnologia de produção de armas e de alimentos, é ele que está na base de conflitos, guerras e doenças. Mais uma vez a vida nesse entorno que é chamado de civilização e cultura corre risco. Criou-se um ambiente no qual o imediatismo da natureza se encaixa além das medidas necessárias à sobrevivência das pessoas. O imediatismo da natureza na “natureza pré-histórica” produzia suas vítimas, mas também seus sobreviventes. O imediatismo da natureza na civilização e na cultura pode produzir somente vítimas.

Como se vê, viver é perigoso nos dois ambientes criados pelo homem: de um lado, a natureza; de outro, a civilização e a cultura. A vida não pode mais depender apenas de si mesma para se conservar. Sua manutenção depende da ação transformadora do sujeito. Provavelmente a vida será preservada na exata medida em que o sujeito fizer por ela aquilo que por si só ela não pode mais fazer, e para isso ele precisa corrigir a civilização e cultura que criou. Mas há, então, que se regular a cultura epistemológica do poder e ontológica da coisa com uma cultura epistemológica da compreensão e ontológica da relação. Em síntese, com uma hermenêutica crítica não só do sujeito, mas do próprio mundo, pois, afinal de contas, qual o sentido de se integrar o mundo ou de se ajustar ao mundo, se, apenas para dar mais um exemplo, o mundo for egoísta e cruel?

CONCLUSÃO

É esse sentido de transformação do mundo que, aparentemente, o conceito de auto-organização não alcança. Talvez uma maneira de superar esse limite seja complementar uma hermenêutica crítica do sujeito com uma hermenêutica crítica do mundo. Uma hermenêutica crítica do sujeito sugere que, sem a crítica do sujeito, a transformação do mundo ou a revolução tende ao fracasso. E uma hermenêutica crítica do mundo sugere que, sem a crítica do mundo, a auto-organização ou a evolução tende a reproduzir sociedades perigosas para a natureza e para o homem. Isso significa dizer que, embora não seja suficiente, a evolução é necessária para a revolução. E que a revolução sem evolução tende a trair os ideais libertários do ser humano. Em outras palavras, evolução e revolução são processos complementares - e não antagônicos. Dessa perspectiva, a hermenêutica crítica do mundo pode ser um complemento sugestivo à dialética do construtivismo - que inclui uma hermenêutica crítica do sujeito. E sendo o sujeito auto-organização, é necessário para a transformação do mundo. Em suma, precisamos do sujeito da epistemologia genética.

Se auto-organização é crítica e transformação do sujeito, não será possível orientar essa crítica e transformação para transformar o mundo? E se o ajuste ao mundo visa ao fim e ao cabo a compreensão do mundo, não será possível orientar essa compreensão para uma compreensão crítica do mundo? O sujeito é necessário para transformar o mundo, porque, ao se auto-organizar, alarga suas estruturas assimilativas do mundo - o que o deixa em condições propícias para transformar o mundo (obviamente se admitirmos que transformar o mundo só será possível se o sujeito se transformar para compreendê-lo). O sujeito poderá vir a ser agente efetivo de transformação do mundo se o ajuste ao mundo não for cego ou, em outras palavras, se o ajuste ao mundo for crítico do mundo. Isso pode exigir a preservação de estruturas assimilativas previamente adquiridas, o que equivale a dizer que nem toda mudança que ocorre no mundo (e, conseqüentemente, nem todo ajuste) é boa. Um sujeito orientado desse modo é resistente a certas mudanças do mundo, e como um ajuste crítico ao mundo requer a resistência do sujeito bem como sua transformação quando as mudanças do mundo são boas, é o ajuste crítico ao mundo que, em última análise, pode contribuir para formar sujeitos singulares: os sujeitos com condições efetivas de transformar o mundo. E por quê? Porque suas estruturas assimilativas apresentarão uma configuração original, proveniente da resistência do sujeito e de suas transformações que contemplam as boas mudanças do mundo. Esse é o sujeito que pode vir a criar novos ambientes e a mudar o mundo: é ele que tem condições de introduzir variações novas no mundo - coisas que, quem sabe, o mundo nunca viu e gostaria de ver.

Com esses ajustes, o conceito de auto-organização talvez possa enfrentar a crítica de que é, aparentemente, limitado para transformar o mundo. O que significa dizer que o sujeito na epistemologia genética não é somente necessário para transformar o mundo (o que, de qualquer modo, já seria muito importante), mas também é resistência ao mundo e invenção do mundo. Mas, como sempre, esse tipo de discurso esbarra nesta indagação: como decidir quando o mundo muda para o bem ou para o mal? Talvez um ambiente educacional hermenêutico crítico, do sujeito e do mundo, tenha a resposta.

Recebido em 30/05/2003

Aceito em 02/12/2003

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  • Endereço para correspondência

    Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências
    Via Washington Luiz, Km. 235
    CEP 13565-905, São Carlos-SP
    E-mail:
  • 1
    Uma criança constrói suas estruturas antes de tê-las. Antes disso não as tem. Trajetória longa, que se prolonga por toda a vida e que se inicia com as estruturas vitais, desde as que são imprescindíveis para a sobrevivência do organismo fisiológico, até o reflexo, cujo exercício dá origem às estruturas psicológicas e lógicas da ação e do pensamento. Estrutura simples, o reflexo, se comparada com as estruturas evoluídas do pensamento formal - que, no entanto, também tem uma história: uma história filogenética. O organismo também construiu suas estruturas antes de tê-las. Não as tinha antes disso. Essa construção reflete a ação da função invariante. É ela que está na origem das estruturas biológicas e das estruturas da ação e do pensamento. Como se verá detalhadamente neste ensaio, essa função é o sujeito. Sem ela, as estruturas seriam estruturas sem sujeito. Tratar-se-ia de um estruturalismo sem sujeito, inaceitável para Piaget (s.d./1979).
  • 2
    Pode-se traçar paralelos entre a noção de auto-organização na epistemologia genética e na cibernética. Há na cibernética outro tipo de retroalimentação, a retroalimentação positiva, também denominada de amplificação do desvio (Epstein, 1986). Diferentemente da retroalimentação negativa, a retroalimentação positiva conduz a uma mudança de rumo, porque as operações efetuadas não só são incapazes de corrigir o desvio, como também amplificam-no. Sendo assim, é necessário questionar a pertinência das normas operacionais do sistema. Freqüentemente, o resultado dessa indagação conduz à transformação dessas normas. Isso pode ser verificado fazendo-se um breve exame da teoria cibernética da aprendizagem. Essa teoria relaciona-se basicamente com retroalimentação negativa e positiva (Morgan, 1986/1996). A retroalimentação negativa é central para o conceito de aprendizagem em circuito simples: um circuito com três passos. No primeiro, o sistema explora e detecta o ambiente. No segundo, compara a informação obtida com suas normas operacionais. No terceiro, inicia ações corretivas bem-sucedidas. A retroalimentação positiva é central para o conceito de aprendizagem em circuito duplo. Basicamente verificam-se os três passos anteriores. Mas, há esta diferença: indaga-se a pertinência das normas operacionais no segundo passo se as ações corretivas não são bem-sucedidas ou se amplificam o desvio. Em termos cibernéticos, aprender resume-se ao processo de auto-regulação e aprender a aprender ao de auto-organização. Auto-organização na epistemologia genética frisa a acomodação: o ajuste ao ambiente ou a transformação das estruturas internas do sujeito. Comparando-se as duas teorias, a acomodação aproxima-se de aprender a aprender ou de retroalimentação positiva.
  • 3
    O termo
    presentação ou
    apresentação significa ação de apresentar (Houaiss, 2001). Admite-se, aqui, que tal ação pressupõe a presença do objeto. O termo
    presença tem uma longa história de significados filosóficos, desde os Estóicos até Dewey e Heidegger, ao menos (Abbagnano, 1971/2000). O termo
    presentação tem uma história filosófica mais recente. Teria sido introduzido por Spencer e amplamente utilizado por psicólogos do século XIX, estando atualmente em desuso (Abbagnano). Os dois termos têm um significado comum: o de que conhecer é transcender em direção ao objeto e o de que o conhecimento é direto e imediato: não ocorre a mediação de representações. Neste ensaio utiliza-se o termo
    presentação apenas neste sentido e foi escolhido - em detrimento do termo
    presença - apenas porque é mais apto para fazer o contraponto com o termo representação. Contudo, o termo
    presença delimita um contexto mais apropriado para a noção de conhecimento que está sendo defendida neste texto.
  • 4
    Com essa definição, Piaget aproxima o construtivismo da dialética. Comentando o debate entre Levi-Strauss e Sartre em torno do estruturalismo e da dialética, escreve: "... parece que ambos os antagonistas se esqueceram do fato fundamental de que no domínio das ciências o estruturalismo sempre foi ligado a um construtivismo ao qual dificilmente pode-se negar o epíteto "dialético". A ênfase no desenvolvimento histórico, oposição entre os contrários, e ultrapassagens (dépassements) é tão característica do construtivismo como da dialética, e é óbvio que a idéia de totalidade é central no pensamento estruturalista e dialético" (1968/1977b, p. 775).
  • 5
    Glasersfeld (1981/1994, 1996) defende um construtivismo radical fortemente vinculado ao construtivismo de Piaget. Para o filósofo alemão, a teoria piagetiana do conhecimento como adaptação é fundamental para destronar a teoria representacional do conhecimento. Passando-lhe a palavra: "Na tradição ocidental, sempre se considera conhecimento uma representação mais ou menos verdadeira do mundo ontológico (...) uma imagem de um mundo independente do sujeito conhecedor. Piaget rompe com essa tradição porque propôs uma modificação radical do conceito de conhecimento. Para ele, em vez de ser um orgão de representação, o conhecimento transforma-se em instrumento de adaptação" (1996, p. 176). Gruber e Vonèche (1977) observam que Piaget denominou um de seus livros
    A Construção do Real na Criança e não
    A Descoberta do Real, ou seja, não se trata de representar ou de descobrir o real.
  • 6
    A hermenêutica é a disciplina que trata com a interpretação. O texto clássico de Aristóteles
    De Interpretatione (Da Interpretação) intitula-se
    Peri Hemeneias. Palmer (1969/1986) faz uma exposição ampla e detalhada da evolução da hermenêutica, abrangendo desde os usos antigos da noção de interpretação até a hermenêutica clássica (Schleiermacher e Dilthey) e filosófica (Heidegger e Gadamer). Um nome que comparece pouco no texto de Palmer e que requer um exame mais aprofundado é o de Paul Ricoeur. Com esse propósito, o leitor pode consultar a coletânea de textos de Ricoeur organizada por Thompson (1981).
    Ricoeur, Hermeneutics and Human Sciences. Cambridge: Cambridge University Press.
  • 7
    Reagindo à noção grega de que conhecimento é contemplação e comentando que só Deus e os anjos podem ser espectadores, Bacon (1620/1984a) identificou já no terceiro aforismo do
    Novum Organum saber com poder. "Ciência e poder do homem coincidem ..." (p. 13, aforismo III). Assim como o
    Novum Organum foi escrito contra o
    Organon de Aristóteles, Bacon (1627/1984b) escreveu, contra a
    Atlântida citada na
    República de Platão, a
    Nova Atlântida, na qual o exercício do saber como poder é explicitamente defendido na tese de que os problemas de ordem econômica e social devem ser resolvidos pela ciência e pela técnica, sob a responsabilidade da
    Casa de Salomão: a residência dos cientistas e sábios da
    Nova Atlântida.
  • 8
    Neste ensaio a expressão
    ontologia da coisa ou
    ontologia substancialista refere-se à ontologia de Descartes (1641/1979). Essa ontologia defende a existência de duas substâncias ou coisas: a coisa pensante (
    res cogitans) e a coisa extensa (
    res extensa). A coisa extensa pertence ao mundo da física e pode ser explicada na linguagem fisicalista. A coisa pensante não pertence a esse mundo e não pode, portanto, ser explicada pela linguagem fisicalista. Passando a palavra a Descartes: "... de um lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma idéia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma
    coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele" (p. 134, grifos meus).
  • 9
    A noção de transformação do mundo a ser examinada agora não deve ser confundida com aquela que está presente na noção de assimilação ou de integração do mundo. Não há assimilação do mundo se não houver transformação do mundo. Contudo, esse tipo de transformação do mundo visa a realimentar ou fortalecer as estruturas assimilativas do sujeito. Não é necessariamente crítica do valor ou da qualidade do que está sendo transformado com vistas à integração (naturalmente, escapam a esse juízo os casos que representam sérias ameaças à própria sobrevivência).
    Grosso modo, o conceito de auto-organização trata com transformações que se referem à noção de
    evolução. A transformação de que se trata neste momento aproxima-se da noção de
    revolução.
  • 10
    A vida evoluiu em uma natureza que também é histórica na medida em que há uma história da natureza ou uma reconstrução da natureza contada pela ciência. Porém, essa
    história da natureza precisa ser diferenciada da
    natureza histórica no sentido tratado aqui, em que a natureza é história porque é um cenário construído pelo homem.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Aceito
      02 Dez 2003
    • Recebido
      30 Maio 2003
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