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Psicólogo escolar e equipe gestora: tensões e contradições de uma parceria

School Psychologist and management team: tensions and contradictions of this partnership

Psicólogo escolar y equipo gestor: tensiones y contradicciones de una alianza

Resumos

Fundamentado pelos pressupostos teórico-metodológicos da Psicologia histórico-cultural, este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado que investigou as possibilidades de parceria entre o psicólogo e a equipe gestora de uma escola pública municipal de ensino fundamental de uma cidade do interior de São Paulo. Como procedimentos metodológicos, desenvolveram-se 23 encontros reflexivos, com periodicidade semanal, ao longo do ano de 2010, com a participação do diretor, dois vicediretores e dois orientadores pedagógicos, integrantes da equipe gestora, em que se utilizava para a promoção da reflexão, expressões artísticas de várias naturezas. Cada encontro era gravado e transcrito, resultando na produção de uma síntese, cuja leitura, feita em conjunto com o grupo no início do encontro seguinte, permitia que os gestores refletissem sobre suas falas e seus conteúdos, constituindo-se em um novo momento de reflexão. Para aprofundamento de algumas questões que emergiram dos encontros, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os sujeitos, as quais, juntamente com as 18 sínteses elaboradas e registros de encontros avaliativos, constituíram-se como fonte para nossas análises. Como resultado, evidenciou-se que a relação estabelecida entre o psicólogo e a equipe gestora caracteriza-se por tensões e contradições que impedem a legitimação da inserção do psicólogo nas escolas, ainda que nelas prevaleçam grandes demandas à atuação desse profissional. Observou-se, também, a relevância de práticas que se utilizam de mediações artísticas na promoção da tomada de consciência dos gestores.

Psicologia Escolar; Psicologia Histórico-Cultural; Consciência; Administradores escolares


Substantiated by the theoretical and methodological assumptions of cultural-historical psychology, this article presents some results of a doctorate research that investigated the possibilities of a partnership between a psychologist and the management team of a local public elementary school in a city in the state of São Paulo. As methodological procedures, 23 reflective meetings were carried out on a weekly basis, throughout the year of 2010, with the participation of the principal, two vice-principals and two guidance counselors, members of the management team, which were used to promote reflection, artistic expressions of various natures. Each meeting was recorded and transcribed, resulting in the production of an abstract, whose reading, done together with the group at the beginning of the next meeting, allowed managers to reflect on their statements and its contents, constituting in a new moment of reflection. To deepen some issues that emerged from the meetings, semi-structured interviews were conducted with the subjects, which, along with the 18 prepared abstracts and recordings of evaluation meetings, made up the source for our analyses. As a result, it became clear that the relationship established between the psychologist and the management team is characterized by tensions and contradictions that prevent the legitimization of inserting psychologists in schools, even if there is great demand for this professional. We also observed the relevance of practices that use artistic mediations in promoting awareness of managers.

School psychology; Cultural-historical Psychology; Conscience; School administrators


Fundamentado por los supuestos teórico-metodológicos de la psicología histórico-cultural, este artículo presenta parte de los resultados de una investigación de doctorado que estudió las posibilidades de alianza entre el psicólogo y el equipo gestor de una escuela pública municipal primaria de una ciudad del interior de San Pablo. Como procedimientos metodológicos, se han desarrollado 23 encuentros reflexivos, con periodicidad semanal, a lo largo del año de 2010, con la participación del director, de dos vicedirectores y dos orientadores pedagógicos, integrantes del equipo gestor, en el cual se utilizaba, para el fomento de la reflexión, expresiones artísticas de varias naturalezas. Cada encuentro era grabado y transcripto, resultando en la producción de una síntesis, cuya lectura, realizada en conjunto con el grupo en el comienzo del encuentro siguiente, permitía que los gestores reflejaran acerca de sus hablas y sus contenidos, constituyéndose en un nuevo momento de reflexión. Para la profundización de algunas cuestiones que han emergido de los encuentros, se han llevado a cabo entrevistas semi-estructuradas con los sujetos, las cuales, juntamente a las 18 síntesis elaboradas y registros de encuentros evaluativos, se han constituido como fuente para nuestros análisis. Como resultado, se ha evidenciado que la relación establecida entre el psicólogo y el equipo gestor se caracteriza por tensiones y contradicciones que impiden la legitimación de la inserción del psicólogo en las escuelas, aunque en ellas prevalezcan grandes demandas a la actuación de ese profesional. Asimismo, se ha observado la relevancia de prácticas que se utilizan de mediaciones artísticas en el fomento de la toma de consciencia de los gestores.

Psicología Escolar; Psicología Histórico-Cultural; Consciencia; Administradores escolares


ARTIGOS

Psicólogo escolar e equipe gestora: tensões e contradições de uma parceria

School Psychologist and management team: tensions and contradictions of this partnership

Psicólogo escolar y equipo gestor: tensiones y contradicciones de una alianza

Ana Paula Petroni* * Doutora em Psicologia como Profissão e Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas – SP – Brasil. E-mail: anappetroni@gmail.com ; Vera Lucia Trevisan de Souza** ** Doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia e do curso de graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas – SP – Brasil. E-mail: vera.trevisan@uol.com.br

Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Ana Paula Petroni Rua Ernesto Meneghetti, 46, Jardim Santa Marta. CEP: 13607-160. Araras, SP. E-mail: anappetroni@gmail.com

RESUMO

Fundamentado pelos pressupostos teórico-metodológicos da Psicologia histórico-cultural, este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado que investigou as possibilidades de parceria entre o psicólogo e a equipe gestora de uma escola pública municipal de ensino fundamental de uma cidade do interior de São Paulo. Como procedimentos metodológicos, desenvolveram-se 23 encontros reflexivos, com periodicidade semanal, ao longo do ano de 2010, com a participação do diretor, dois vicediretores e dois orientadores pedagógicos, integrantes da equipe gestora, em que se utilizava para a promoção da reflexão, expressões artísticas de várias naturezas. Cada encontro era gravado e transcrito, resultando na produção de uma síntese, cuja leitura, feita em conjunto com o grupo no início do encontro seguinte, permitia que os gestores refletissem sobre suas falas e seus conteúdos, constituindo-se em um novo momento de reflexão. Para aprofundamento de algumas questões que emergiram dos encontros, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os sujeitos, as quais, juntamente com as 18 sínteses elaboradas e registros de encontros avaliativos, constituíram-se como fonte para nossas análises. Como resultado, evidenciou-se que a relação estabelecida entre o psicólogo e a equipe gestora caracteriza-se por tensões e contradições que impedem a legitimação da inserção do psicólogo nas escolas, ainda que nelas prevaleçam grandes demandas à atuação desse profissional. Observou-se, também, a relevância de práticas que se utilizam de mediações artísticas na promoção da tomada de consciência dos gestores.

Palavras-chave: Psicologia Escolar, Psicologia Histórico-Cultural, Consciência, Administradores escolares.

ABSTRACT

Substantiated by the theoretical and methodological assumptions of cultural-historical psychology, this article presents some results of a doctorate research that investigated the possibilities of a partnership between a psychologist and the management team of a local public elementary school in a city in the state of São Paulo. As methodological procedures, 23 reflective meetings were carried out on a weekly basis, throughout the year of 2010, with the participation of the principal, two vice-principals and two guidance counselors, members of the management team, which were used to promote reflection, artistic expressions of various natures. Each meeting was recorded and transcribed, resulting in the production of an abstract, whose reading, done together with the group at the beginning of the next meeting, allowed managers to reflect on their statements and its contents, constituting in a new moment of reflection. To deepen some issues that emerged from the meetings, semi-structured interviews were conducted with the subjects, which, along with the 18 prepared abstracts and recordings of evaluation meetings, made up the source for our analyses. As a result, it became clear that the relationship established between the psychologist and the management team is characterized by tensions and contradictions that prevent the legitimization of inserting psychologists in schools, even if there is great demand for this professional. We also observed the relevance of practices that use artistic mediations in promoting awareness of managers.

Keywords: School psychology, Cultural-historical Psychology, Conscience, School administrators.

RESUMEN

Fundamentado por los supuestos teórico-metodológicos de la psicología histórico-cultural, este artículo presenta parte de los resultados de una investigación de doctorado que estudió las posibilidades de alianza entre el psicólogo y el equipo gestor de una escuela pública municipal primaria de una ciudad del interior de San Pablo. Como procedimientos metodológicos, se han desarrollado 23 encuentros reflexivos, con periodicidad semanal, a lo largo del año de 2010, con la participación del director, de dos vicedirectores y dos orientadores pedagógicos, integrantes del equipo gestor, en el cual se utilizaba, para el fomento de la reflexión, expresiones artísticas de varias naturalezas. Cada encuentro era grabado y transcripto, resultando en la producción de una síntesis, cuya lectura, realizada en conjunto con el grupo en el comienzo del encuentro siguiente, permitía que los gestores reflejaran acerca de sus hablas y sus contenidos, constituyéndose en un nuevo momento de reflexión. Para la profundización de algunas cuestiones que han emergido de los encuentros, se han llevado a cabo entrevistas semi-estructuradas con los sujetos, las cuales, juntamente a las 18 síntesis elaboradas y registros de encuentros evaluativos, se han constituido como fuente para nuestros análisis. Como resultado, se ha evidenciado que la relación establecida entre el psicólogo y el equipo gestor se caracteriza por tensiones y contradicciones que impiden la legitimación de la inserción del psicólogo en las escuelas, aunque en ellas prevalezcan grandes demandas a la actuación de ese profesional. Asimismo, se ha observado la relevancia de prácticas que se utilizan de mediaciones artísticas en el fomento de la toma de consciencia de los gestores.

Palavras clave: Psicología Escolar, Psicología Histórico-Cultural, Consciencia, Administradores escolares.

O presente artigo apresenta um recorte dos resultados de uma pesquisa de doutorado que teve por objetivo analisar e discutir a atuação do psicólogo escolar junto a gestores de uma escola pública municipal de ensino fundamental e sua contribuição para a ampliação da consciência desses sujeitos sobre o papel da gestão.

Essa problemática surge de alguns questionamentos que vínhamos fazendo sobre a inserção do psicólogo na escola, sua atuação e o seu reconhecimento como profissional que pode contribuir para os processos desenvolvidos na escola. Ainda que nossa experiência em pesquisas e em intervenções na escola demonstrasse a relevância das contribuições que o trabalho do psicólogo pode oferecer, também se evidenciava a dificuldade da permanência desse profissional nesse contexto. Compreender o que estaria na base desse conflito de relações e buscar contribuir para sua superação foram objetivos que direcionaram a pesquisa que ora apresentamos.

Consideramos que a desconstrução do modo como tem se desenvolvido a prática do psicólogo escolar envolve duas dimensões, sobre as quais teceremos considerações a seguir.

A primeira, de natureza mais ampla, refere-se ao estabelecimento da Psicologia como área de conhecimento que, segundo Yamamoto (2012), ainda que já disponha de 50 anos de existência, carece de elaboração de um projeto ético-político que atenda às necessidades dos psicólogos enquanto profissionais capazes de identificar e atender às demandas atuais da sociedade. Para o autor, trata-se de desenvolver um projeto em que se considerem as dimensões singulares e coletivas e se busque a transformação da realidade.

Tem-se defendido que um dos caminhos para fortalecer esse modo de atuação denominado de crítico é a produção de pesquisas e práticas que, uma vez socializadas, promovam reflexões sobre o lugar do psicólogo na escola. No entanto, é preciso cuidar para que essas produções tragam contribuições efetivas para a área, o que se constitui como nosso principal desafio como pesquisadores.

Souza (2010), ao fazer um levantamento das produções da área da Psicologia Escolar, pontua essa questão:

é importante destacar que, a partir de nossas análises, percebemos que apesar dos autores proporem uma atuação baseada em uma perspectiva crítica, há uma diversidade de modos de compreender a instituição escolar e as relações que nela se dão, pois se verificou que existem psicólogos que defendem que a tônica do fracasso escolar é de responsabilidade da criança, ou seja, buscam explicações e justificativas no mundo interno da criança, nos problemas familiares, na carência cultural e em outros fatores, acabando por excluir a escola deste processo (p. 73)

O que se destaca nessa colocação da autora é o fato de a escola ser desconsiderada nesse processo. Como esperar que seja construída uma identidade profissional de psicólogo escolar pautada por uma visão crítica da realidade se seu lócus de atuação é desconsiderado? Ao assumir uma perspectiva crítica, assume-se a responsabilidade de levar em conta toda a complexidade do contexto em que se realiza a atuação profissional.

Esses apontamentos nos direcionam à segunda dimensão que mencionamos, relativa à sustentação do trabalho do psicólogo na escola: as relações empreendidas com os profissionais da escola e a natureza do trabalho desenvolvido com eles.

Delari (2009) destaca a construção de uma prática de intervenção que esteja em consonância com os princípios éticos que se encontram na base da Psicologia histórico-cultural: a superação, a cooperação e a emancipação. A superação envolveria ações que visam ultrapassar os limites impostos à atuação dos profissionais da escola em direção à possibilidade de se encontrar caminhos para além do que está estabelecido, tendo como referência para essas ações as condições materiais e concretas que caracterizam o espaço de intervenção. De nossa experiência, podemos dizer que os limites a serem superados pelos atores escolares referem-se àqueles que se colocam como empecilhos ao desenvolvimento de um trabalho efetivo como, por exemplo, as políticas públicas que não atendem às necessidades reais do contexto escolar e às novas demandas sociais direcionadas à escola; enfim, aspectos que se apresentam no cotidiano desses atores gerando conflitos. Assim, ao propormos a ampliação da consciência dos gestores sobre seu papel, colocávamos estes frente aos problemas que enfrentavam, conduzindoos a reflexões sobre formas de superá-los, propondo que pensassem os conflitos como potencializadores de mudanças no modo de exercer a gestão, de verem a si próprios e aos outros de suas relações.

Entretanto, por tratar-se de espaço coletivo, a superação de problemas que aportam na escola só se viabiliza por meio da cooperação. Isso porque, a ação do outro sobre nós, a um só tempo, contribui para que possamos avançar em relação aos problemas enfrentados e para conhecermos a nós próprios e aos outros. Em nossa pesquisa, esse princípio da cooperação foi fundamental para compreensão de modos de promover a superação das condições observadas na escola, sobretudo na vivência dos gestores. Apostamos na parceria, por acreditarmos ser esta a condição para a superação dos embates entre psicólogos escolares e educadores.

Por fim, em relação à emancipação, que diz respeito à conquista última do homem, especialmente com a cooperação do outro, a partir da relação com o outro, deve ser buscada pelo exercício da autonomia no coletivo, visto só ser possível como conquista social.

Procuramos estabelecer uma parceria com a escola, em que os sujeitos pudessem participar ativamente, entrar em contato com diferentes formas de representação e de produção humana; um espaço em que fosse possível aos sujeitos pensarem, discutirem, falarem, ouvirem e serem ouvidos, enfim, queríamos desencadear um processo de trabalho em que novos significados e sentidos sobre os aspectos relativos à prática profissional, à escola e à educação pudessem ser configurados, resultando na ampliação de consciência dos gestores sobre suas condições de vida e trabalho, sobre seu papel na produção e promoção da educação escolar. Nesse sentido, a parceria com a gestão nos pareceu configurar a possibilidade de sustentação do psicólogo na escola, visto representar o apoio necessário a uma atuação mais efetiva.

A Psicologia histórico-cultural como fundamento para a atuação do psicólogo escolar

Temos utilizado em nossas pesquisas e intervenções na escola os pressupostos da Psicologia histórico-cultural, em particular, aqueles que fazem parte da produção teórica de Vigotski. As discussões que realizamos têm nos indicado que essa perspectiva contribui, sobremaneira, para a compreensão de contextos institucionais e do desenvolvimento dos sujeitos que neles se inserem por sustentar-se no materialismo histórico e dialético. Contudo, vale ressaltar que não desconsideramos as contribuições que outras abordagens teóricas tenham para a compreensão da Psicologia escolar enquanto área de atuação, assim como reconhecemos que há lacunas na perspectiva por nós adotada.

Marinho-Araujo (2010), ao introduzir a Psicologia histórico-cultural como base à atuação do psicólogo, diz que:

os caminhos para a intervenção do psicólogo escolar devem, portanto, estar ancorados na compreensão de que as relações sociais originam o processo interdependente de construções e apropriações de significados e sentidos que acontece entre os indivíduos, influenciando, recíproca e/ou complementarmente, como eles se constituem. Para intervir na complexidade intersubjetiva presente nas instituições educativas, o psicólogo deve fazer uma escolha deliberada e consciente por uma atuação preventiva sustentada por teorias psicológicas cujo enfoque privilegie uma visão de homem e sociedade dialeticamente constituídos em suas relações históricas e culturais (p. 27)

A escola apresenta-se como um espaço em que as relações entre os sujeitos se evidenciam e, nesse sentido, exige-se que o profissional que nela atua tenha conhecimento de como os sujeitos se constituem e são constituídos por essas relações. Acreditamos, em consonância com o que afirmam vários autores (Facci, 2009; Facci & Souza, 2011; Marinho-Araujo, 2010; Souza, 2010; Souza, 2004, 2008, 2009; Souza & Andrada, 2013) que os postulados dessa perspectiva teórica permitem compreender o desenvolvimento do psiquismo e a constituição do sujeito, assim como as condicionantes que atuam nesse processo.

Importa destacar que a contribuição mais efetiva dessa teoria é a centralidade do social no processo de constituição do sujeito. Para Vigotski (2010), o social é fonte de desenvolvimento, o que implica necessariamente considerá-lo em estudos que pretendem compreender o sujeito dessa perspectiva. Isto porque, ao dar essa dimensão ao social, o autor tira o foco do indivídio, conduzindo-o às condicionantes que produzem esse social, o qual inclui o indivídio, seu produto e produtor. Ademais, o fato de se utilizar do método dialético, o qual postula como único capaz de conduzir à compreensão dos aspectos constitutivos do desenvolvimento humano, Vigotski nos faz enxergar que sujeito e meio, individual e social, interno e externo se influenciam mutuamente, não se caracterizando como polos cindindos, mas se complementando, constituindo-se em um processo único e permanente, em que momentos do desenvolvimento representam sínteses de modos de ser do sujeito e do meio em que se insere.

De acordo com Vigotski (2000; 2010), não há desenvolvimento possível sem a mediação da cultura, colocando esse processo como elo epistemológico da Psicologia históricocultural, o que, em suas últimas produções, ganha sustentação nos conceitos de situação social de desenvolvimento e vivência.

No processo de apropriação da cultura, de desenvolvimento das funções psicológicas superiores por meio da mediação exercida pelo outro, o signo assume grande relevância, visto ser a fala o meio de comunicação que possibilitará esse processo.

Segundo Vigotski (1999),

em todas essas operações, a própria estrutura do processo mental muda substancialmente; ações diretas sobre o ambiente são substituídas por atos mediados por complexos. A fala incluída nessas operações constitui o sistema de signos psicológicos que adquiriu uma importância funcional especial, resultando em uma reorganização completa do comportamento [tradução nossa] (p. 27)

Aqui nos deparamos com dois pontos fundamentais para compreendermos de que maneira essa teoria pode contribuir para a atuação do psicólogo na escola. O primeiro deles, de aspecto mais geral, diz respeito à função de mediador que é atribuída ao psicólogo. Perguntamo-nos: mediador do quê? E as proposições de Vigotski nos ajudam a responder: mediador das relações, das diversas possibilidades de transformação, de mudança, possíveis pela conscientização sobre si e sobre outro.

O outro aspecto a que nos referimos é a importância da fala. Vigotski (1999) a coloca como a forma superior do signo, dando base para afirmarmos que a fala é um instrumento do psicólogo. A fala assume a função de viabilizar o acesso aos indicadores de sentidos sobre a realidade que auxiliam na compreensão do modo de funcionar do sujeito, ao mesmo tempo em que o coloca para refletir sobre si mesmo. Ela permite ao sujeito narrar-se, narrar o outro e narrar suas vivências, revelando suas condições materiais de existência e significando-as; pela atribuição de significados e sentidos ao que se vivencia.

Para realizar a mediação, o psicólogo deve lançar mão de instrumentos que permitam acessar os sujeitos e promover a configuração de novos significados e sentidos, movimento que exige uma reorganização de todas as funções psicológicas e resulta na ampliação da consciência (Souza & Andrada, 2013).

São essas ações que temos buscado empreender em nossas inserções na escola, e o modo como o sujeito e sua constituição são compreendidos e discutidos pela Psicologia histórico-cultural tem se mostrado como um fundamento sólido. A nosso ver, tal compreensão evidencia a dimensão humana que, muitas vezes, acaba sendo esquecida nas intervenções e pesquisas, ao lado da importância dada ao outro das relações estabelecidas entre os sujeitos, o que realça a importância da parceria entre o psicólogo e os demais sujeitos escolares.

Pensamos que ações desenvolvidas pelo psicólogo escolar, que levem em consideração esses aspectos, podem contribuir para a desconstrução da representação desse profissional como especialista que só vai à escola para resolver problemas individuais e, via de regra, de alunos.

Método

Assumimos como fundamentos metodológicos os pressupostos de Vigotski, que parte do materialismo histórico e dialético para construir as bases do que denominou Psicologia geral, elegendo como objeto de estudo o sujeito histórico (Zanella, Reis, Titon, Urnau & Dassoler, 2007), que permitiria focalizar o fenômeno investigado desde seu surgimento, buscando-se responder como dado fenômeno chegou a ser o que é. Tal abordagem permitiria identificar e analisar dialeticamente as transformações e contradições constituintes do fenômeno, indo além do evidente.

De acordo com Souza (2011),

é nesse movimento dialético que o sujeito é constituído e constitui o social, via mediação semiótica processada nas interações de que participa. Essa constituição implica a apropriação de significados e sentidos, e, a forma como se apropria, é única e irrepetível, constituindo-se como fundamento da singularidade do sujeito (p.2)

Ressalta-se, portanto, a dimensão singular e social do sujeito postulado por Vigotski, o que nos direciona à ideia de que para se compreender determinado fenômeno é preciso partir do todo, de sua complexidade; e focalizar o papel fundamental exercido pela mediação em sua constituição.

Na tentativa de buscar compreender os fenômenos estudados pelo nosso grupo de pesquisa, temos realizado intensos estudos sobre as formas possíveis de fazer emergir os sentidos e significados que os sujeitos configuram. No caso da presente pesquisa, esses esforços são direcionados para o estudo da ampliação da consciência dos gestores sobre si e sobre seu papel na escola.

Foi com esse intento que sistematizamos o uso de materialidades mediadoras, representadas pelas diversas expressões artísticas – textos literários, músicas, filmes, fotografias, reproduções de pinturas – tomando como base Vigotski (1925/2001a), quando diz que a arte pode ser utilizada como um instrumento psicológico mediador, um signo que possibilita ao sujeito o desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores, das quais destacamos a consciência.

A mediação realizada pela arte possibilita que acessemos os sujeitos pelo afeto, elemento este que, como veremos adiante, é fundamental para a compreensão da constituição e ação humanas, estando na base das funções psicológicas superiores. Para Vigotski (1930/1991b), a compreensão dos próprios afetos pelo sujeito promove alterações em sua vida psíquica, pois ele se volta para si mesmo e desenvolve novas conexões entre as funções psicológicas. Pensar sobre seus afetos, suas emoções, faz com que o sujeito não se volte somente para aquilo que é externo a ele. Foi esse movimento que buscamos realizar ao utilizarmos as materialidades mediadoras, ampliando não só a consciência dos gestores, mas a nossa própria, enquanto participantes do processo de pesquisa.

Considera-se a pesquisa realizada, desta perspectiva, como uma pesquisa-intervenção, visto a intenção clara dos pesquisadores de transformar os sujeitos e o contexto em que se inserem. De acordo com Rocha e Aguiar

o processo de formulação da pesquisa-intervenção aprofunda a ruptura com os enfoques tradicionais de pesquisa e amplia as bases teórico-metodológicas das pesquisas participativas, enquanto proposta de atuação transformadora da realidade sócio-política, já que propõe uma intervenção de ordem micropolítica na experiência social (2003, p. 67)

Para nós, essa modalidade de pesquisa coaduna com a perspectiva teórico-metodológica adotada, pois auxilia a compreender a não neutralidade do pesquisador e a intencionalidade em promover transformações no sujeito e no espaço em que ele se insere. Se tomarmos a escola como um lugar em que concorrem influências de diversos âmbitos, podemos dizer que nossa atuação volta-se, como pontuado pelas autoras, para os aspectos micropolíticos e sociais.

Como já destacamos, acreditamos que o papel do psicólogo é promover condições que possibilitem a reflexão crítica sobre si, sobre o outro e sobre seu meio. Ao se inserir no contexto, o pesquisador também se modifica na medida em que vai se apropriando da realidade física e social em que passa a atuar. Ao propor um estudo que toma por base o método dialético não se fica imune ao processo vivido na pesquisa, tampouco se priva de atuar frente às informações acessadas.

No entanto, concordamos com Rocha e Aguiar (2003) que criar as condições para que essa transformação micropolítica se dê não seja suficiente, é preciso que se permita o emergir dos possíveis, o devir dos sujeitos, que eles também façam parte do processo de pesquisa e de intervenção. São os avanços, as transformações de ambos, pesquisador e pesquisado, que estão em evidência.

Foi com base nesses pressupostos que construímos nossa atuação nessa escola, junto aos gestores. Ao longo do ano letivo de 2010, realizamos 23 encontros. Participavam dos encontros um diretor (Marcos)1, dois vice-diretores (Ernesto e Estevão) e dois orientadores pedagógicos (Beatriz e Ângelo) de uma escola pública municipal de ensino fundamental, contando com um quadro docente de 47 profissionais, atendendo a mais de 1000 alunos e funcionando em três períodos – matutino, vespertino e noturno (sendo este destinado à Educação de Jovens e Adultos (EJA)). Nem sempre havia a presença de todos, impedidos por situações do cotidiano de comparecer, porém, nas raras vezes em que foram desmarcados encontros, sempre o fizeram com antecedência. A seguir, apresentaremos brevemente os sujeitos com informações acessadas à época da realização da pesquisa:

• Marcos: diretor nessa escola há oito anos. Anteriormente, já havia sido orientador pedagógico em outra unidade escolar. Formado em História e Filosofia. É viúvo e tem um filho adolescente. Tem 59 anos.

• Estevão: exerce a função de vice-diretor há três anos, sendo sua primeira experiência na função. Chegou a frequentar o seminário, mas desistiu, formando-se em Pedagogia e Jornalismo. É responsável pelos ciclos I e II. Morador em uma cidade localizada a 32 km de onde se encontra a escola. Tem 47 anos, é casado e pai de três filhos adolescentes.

• Ernesto: solteiro, tem por volta de 40 anos, chegou a ser vice-diretor em outra escola, mas acabou pedindo transferência, iniciando sua trajetória nessa instituição há sete anos. Formou-se em Pedagogia. Responsabiliza-se pelos ciclos III e IV e pela EJA.

• Ângelo: orientador pedagógico responsável pelos ciclos I e II. Exerce essa função há sete anos e possui experiência anterior em uma escola particular localizada em outra cidade. Formado em Pedagogia, com especialização em Educação Especial. Solteiro, tem 58 anos, morador na cidade de São Paulo, viaja 192 km todos os dias para ir ao trabalho.

• Beatriz: solteira, 32 anos, orientadora pedagógica responsável pelos ciclos III e IV e EJA. Essa é sua primeira experiência na função e encontra-se nessa escola há dois anos – o ano de 2010 caracteriza-se por sua inserção nessa escola, o que contribuiu para a divisão de trabalho com Ângelo, pois, até então, ele era o único orientador pedagógico da escola. Formada em Pedagogia e Letras.

Os encontros eram organizados da seguinte maneira: na primeira parte, realizávamos atividades que envolviam as materialidades mediadoras, suscitando discussões que giravam em torno das demandas apresentadas pelos sujeitos e enfrentadas no dia a dia da escola. Esses encontros duravam em média 1h30min. Algumas vezes, levávamos a mater ial idade já pronta, quando apresentávamos músicas, textos literários, poesias, imagens, em outras, pedíamos que eles produzissem algo, de acordo com o assunto discutido, oferecendo-lhes materiais diversos, como massa de biscuit, cartolinas, cola, tintas e riscadores.

Todos os encontros foram gravados em áudio e, dessas gravações, elaborávamos sínteses que eram lidas no início do encontro seguinte e traziam, além do relato do encontro anterior, os sentidos que, do ponto de vista das pesquisadoras, haviam sido configurados. Tal escolha se justifica na medida em que a síntese permite observar o movimento do grupo como um todo já que, diferentemente de um resumo, em que apenas os pontos principais são apresentados, nela encontramos os sujeitos, suas falas e, ao ser discutida, incorpora também a reflexão dos gestores.

A nosso ver, as sínteses também se constituem em narrativas que permitem compreender o contexto, podendo evidenciar o momento da discussão, seus sujeitos, ou seja, ir além do que está evidente. Buscamos, nas sínteses, indicadores de vivências promovidas pela arte, assim como evidências do movimento de ampliação de consciência dos sujeitos.

Esse movimento permitiu que os sujeitos olhassem para o que realizávamos de um modo diferente e permitia que novos sentidos fossem configurados, já que eles acessavam essas informações, reformulavamnas, sugeriam mudanças nos encontros e no rumo de nossas reflexões. Dos 23 encontros, ao todo, realizamos 18 sínteses, ficando os encontros destinados à avaliação do trabalho sem a produção de síntese.

Para a construção das informações, utilizamos essas sínteses e os encontros de avaliação realizados em 2011 e 2012, visto a intervenção ter continuado nos referidos anos. Foram realizadas, também, entrevistas semiestruturadas, no final do ano de 2010, com todos os sujeitos.

O procedimento de análise das informações envolveu várias leituras dos dados em níveis mais aprofundados, procurando-se identificar nas expressões regularidades concernentes às questões investigadas. Novas leituras foram feitas, buscando expressões de aspectos que pudessem ajudar na compreensão do investigado, ainda que pouco citadas. Partimos, então, desses temas, utilizandoos como direcionadores das entrevistas e dos encontros de avaliação e fizemos uma nova leitura aprofundada desses dados, aproximando as falas das três técnicas de pesquisa utilizadas – sínteses reflexivas, encontros avaliativos e entrevistas.

Resultados e discussões

Em nossas intervenções na escola, sempre buscamos deixar clara nossa posição de parceria com os outros profissionais, destacando que nosso objetivo não era realizar um trabalho individualizado com os sujeitos, mas, ainda assim, éramos questionados a todo o momento sobre o que vínhamos desenvolvendo e solicitados a realizar atendimentos individuais. Nesse movimento, ficava cada vez mais evidente que precisaríamos (re)afirmar o trabalho do psicólogo na escola tal como o concebemos, ou seja, um trabalho que só faz sentido quando desenvolvido em parceria com os profissionais da escola, tendo como objetivo superar as condições apontadas pelos profissionais, suas dificuldades, pautados no respeito às singularidades.

Significação do vivido

O espaço que conquistamos na escola ao longo da intervenção realizada demonstra que conseguimos estabelecer uma parceria com os gestores, um trabalho que não dependia somente de nós para acontecer. Mas, como os gestores viam essa parceria? Nas entrevistas realizadas, assim como nos encontros avaliativos que aconteciam ao final de cada semestre, buscávamos compreender qual o significado de nossos encontros para os gestores e como eles concebiam nosso papel nos encontros. Os trechos de fala apresentados nas análises a seguir expressam o movimento de construção da significação do vivido pelos gestores.

Então, me atrai muito, muito, muito essa coisa que a gente está fazendo; coisa diferente, que não está dando para descrever.

[Pesquisadora] Você acha que é um status de diálogo, você chamaria assim, de reflexão?

Não, olha só, é pouco. Talvez uma reflexão involuntária. Porque você não vem para essa reflexão, eu não venho, os outros não vêm e ela acontece. E a gente não tem poder sobre isso. (Trecho da entrevista de Marcos quando questionado sobre o trabalho desenvolvido)

Eu acho que não é bem parceria, Ângelo, não. Elas [pesquisadoras] colocam como uma parceria, mas eu acho que não é bem uma parceria, é alguma coisa que a gente não sabe ainda, mas que existe. Existe. (Fala de Marcos quando questionado sobre o trabalho desenvolvido – encontro de avaliação de junho de 2011)

Marcos diz que o diálogo e a parceria eram pouco para descrever o trabalho que havíamos desenvolvido ao longo de 2010. Para ele, o que vivia nesses encontros era maior e parece que o vivido era tão significativo que lhe era impossível nomear, pois se tratava de algo inusitado, não antes experimentado no seu espaço de trabalho.

A fala de Marcos, para nós, revela a construção de um vínculo de confiança estabelecido com as pesquisadoras a ponto de se envolver com nossa proposta, empreendendo-se em um processo reflexivo sobre os temas do encontro, o que, em se tratando de um diretor de escola com as características de Marcos, representado pelos docentes e mesmo pelos demais gestores como autoritário, pouco afeito ao diálogo ou a relações mais próximas com os funcionários, não é pouco. Ao longo dos encontros, no momento da leitura das sínteses, podíamos perceber que o vínculo entre nós e os gestores ia estreitando nossos laços, pois eles se mostravam cada vez mais a vontade para expor suas dúvidas, seus anseios, suas angústias e não saberes.

Ainda assim, no entanto, Marcos reluta em reconhecer nossa posição de parceria com o grupo. Por quê? Pensamos que uma provável explicação pudesse ser dada pela representação que se tem do psicólogo na escola. Esse profissional ainda não é visto como parte integrante desse meio, mas como alguém que vem de fora para observar, avaliar, diagnosticar e resolver os problemas e demandas da escola, mas sem se envolver com os sujeitos. Se a parceria não tivesse sido estabelecida, talvez não tivéssemos dado continuidade ao trabalho. É aqui que encontramos a representação da não legitimidade de nossa inserção nesse espaço. Mas o diálogo prossegue, em reflexões cada vez mais aprofundadas, rumo a vivências que promovem a tomada de consciência.

A ampliação da consciência como processo vivido no e com o grupo

O objetivo da pesquisa, como mencionamos, era investigar de que maneira a atuação do psicólogo escolar, ao utilizar materialidades mediadoras, favoreceria a ampliação da consciência dos gestores sobre o seu papel na escola. Dessa forma, buscamos lançar mão de diversas expressões artísticas que possibilitassem por em movimento o processo reflexivo desses sujeitos, isto é, oferecer a eles diferentes formas de representação da realidade e a possibilidade de expressar suas vivências ante essas representações em um movimento de significação permanente.

Elegemos, para o propósito deste artigo, outras falas de Marcos sobre nossos encontros, em que se evidencia o movimento de conscientização sobre o que se é, o que se quer, rumo à mudança do modo de conceber a si próprio, ao outro e a realidade. Também explicita sua busca para significar essa experiência que não é semelhante às formações de que já participou e acaba por reconhecer a importância de nossa intervenção. Vejamos:

Faz sentido para todos que estão participando, que alguma coisa que eu não sei explicar está por vir. [...] Eu só não estou conseguindo entender muito bem, porque eu já tenho a experiência do que eu não quero. Eu só não estou descobrindo o que eu quero. Então, eu acho que é interessante. E você passa a pensar, como um diferente, já que você não quer o igual: ‘ – Olha, onde mais está se fazendo isso? Onde mais?'. Eu não conheço outra escola que vocês estejam fazendo isso. [...] Ou que outros profissionais da mesma área tua estejam fazendo. Mas eu tenho certeza absoluta e eu começo pelos meus professores a perguntar o que é que a gente faz, e às vezes eles pensam que é segredo, mas na verdade não sabem explicar. (Trecho da entrevista de Marcos)

É um negócio assim, que é diferente. É aí que eu acho que tem um valor e eu não consigo explicar. Porque, enquanto a gente está fazendo isso, e eu acho que é certo... Por que eu acho que é certo? Porque, se eu acredito em uma mudança, eu já cansei de falar para vocês: ‘ – Olha, no futuro, a condição de vocês dentro da escola vai ser fundamental.'. [...] Porque vai ser necessário. Então, a gente está caminhando com alguma coisa que eu acredito que vai ser no futuro. (Trecho da entrevista de Marcos)

Observa-se que, mesmo não conseguindo definir claramente o vivido, Marcos acredita que nossas atividades nos encontros estavam direcionando-o a algo positivo, a ponto de considerar que, no futuro, nossa atuação será fundamental para todas as escolas.

Parece-nos que o que falta para essa compreensão do agora é justamente a legitimação de nossa parceria, um trabalho realizado com os sujeitos, e não por eles ou para eles, em que se evidencie a importância da construção de um vínculo mediado pelo respeito e reconhecimento do valor do outro como profissional, como pessoa. Esse movimento põe em relevo o cuidado que se deve ter ao adentrar as práticas escolares: não podemos impor nossos conhecimentos, crenças ou expectativas, nem tampouco agir como juízes do que está certo ou errado, mas, sim, assumir uma postura de parceria, de cumplicidade sem ser complacente, o que é possível pelo investimento na reflexão, pela assunção a uma postura crítica frente ao observado. Interessante a posição de Marcos frente ao nosso trabalho. O que poderia estar promovendo esse modo de compreender nossos encontros? Pensamos que ele manifesta uma vivência.

Delari (2009), ao discutir esse conceito, diz que

o sentir a experiência presente [grifo do autor] para nós mesmos, seja ela qual fonte for, mesmo que não tenha ainda um nome preciso que a defina. Nossa apropriação do mundo e de nossos próprios estados corporais estará posta para nós não como algo que nos é totalmente estranho. Mas como algo com o que, ao nos estranharmos e percebermos o peso dessa singularidade, poderemos, ao mesmo tempo, nos identificarmos e sentirmos como nosso (p. 18)

Seria isso o que acontece a Marcos quando tenta definir o trabalho desenvolvido por nós? Esse movimento dele parece ser o próprio processo de conscientização – já sabe o que não quer, mas ainda não encontrou o que quer, pois ele se desprende das representações existentes com relação ao trabalho do psicólogo e dele mesmo enquanto gestor, e começa a configurar novos significados e sentidos. Ele se coloca no processo, como sujeito, vê-se como participante ativo e identifica-se com o movimento e os resultados alcançados.

Processo semelhante acontece com Estevão, como podemos ver no trecho de fala abaixo:

Eu acho que fortalece até a própria relação nossa aqui. Porque é o momento em que a gente se expõe um pouco mais, e de uma outra forma acaba conhecendo um pouco mais do outro. (Fala de Estevão quando questionado sobre o trabalho desenvolvido – encontro de avaliação de junho de 2011)

Nesse movimento, os gestores conhecem a si próprios, ampliando a consciência de si, e conhece ao outro, ampliando a consciência do outro, que influencia em sua constituição enquanto sujeito e gestor, integrante de uma equipe, em um movimento do “em si” e do “para si”.

O papel do psicólogo na escola

Como já pontuamos, é frequente na literatura especializada a menção ao papel do psicólogo escolar como mediador e voltamos a afirmar que acreditamos que ele seja o mediador das relações, já que estas são o objeto de seu trabalho na escola. Relações essas que constituem e são constituídas pelos sujeitos, que influenciam e são influenciadas no processo de desenvolvimento do psiquismo humano. E é exatamente isso que encontramos na expressão de Estevão.

Nossos encontros permitiram que um espaço de expressão, de escuta, de diálogo fosse estabelecido e isso contribuiu para a relação entre os gestores, que, como vimos, também era permeada por tensões. Esse processo também contribui para a ampliação da consciência, pois, como já demonstramos, para Vigotski (1925/1991a)

“temos consciência de nós mesmos porque a temos dos outros e, segundo o mesmo procedimento, pelo que sabemos dos outros, porque nós mesmos, com respeito a nós, somos os mesmos que somos para os demais” [tradução nossa] (p. 57)

Dessa forma, nossa atuação se pauta em ações que buscam promover o coletivo na escola pelo investimento no estabelecimento de relações, pois a partir delas é que se torna possível a ampliação da consciência dos gestores sobre seu papel na escola. As reflexões empreendidas nos encontros contribuíram para que os gestores se aproximassem, construíssem um posicionamento comum, conhecendo a si próprios e aos outros, instituindo a construção de nossa parceria.

Voltemo-nos para a fala de Estevão:

Eu não encontro uma palavra que possa sintetizar. Parceria, cumplicidade. Não é, também não é. Eu acho que, assim, porque somos cada indivíduo aqui completamente diferente um do outro, pensando diferente, com habilidades diferentes, mas a gente consegue colocar tudo isso para fazer a coisa caminhar. Então, é parceria, tem que ter essa cumplicidade, mas é algo mais ainda. Que já começa a se tornar presente, a gente consegue ir sintetizando o que cada um é, fazer uma síntese disso. (Fala de Estevão quando questionado sobre o trabalho desenvolvido – encontro de avaliação de junho de 2011)

Afinal, por que não haveria de ser parceria? O que seria esse algo além, citado por Estevão? Pensamos na parceria como uma via de mão dupla, em que os gestores e nós, enquanto psicólogas, fomos construindo nossas ações, nos desenvolvendo, nos constituindo enquanto participantes desse meio. Reconhecemos que não somos parte da equipe, mas somos parceiras dela, aprendemos com seus integrantes. E, nesse movimento, nos constituímos como síntese, de acordo com Estevão, que une em si todos os elementos, síntese de um todo maior que tem em si possibilidades de superação, de emancipação, de novas formas de agir.

Assim como Marcos, Estevão não encontra uma palavra que defina o que se construiu, mas sabe que há algo concreto, novo, que se configura no movimento do grupo.

Destacamos, nesse processo, as materialidades mediadoras. Ao lançarmos mão delas em nossa intervenção, também sofríamos sua ação. Não possibilitávamos somente a ampliação de consciência dos gestores, mas a nossa própria também, enquanto psicólogas que atuavam nesse espaço. Até mesmo durante a preparação dos encontros, sofríamos influência das materialidades, pois era necessário que elas fizessem sentido para nós, para conseguirmos estabelecer um processo de reflexão com os gestores e, assim, nos tornamos, também, sujeitos da pesquisa-intervenção.

Considerações finais

Nosso objetivo neste artigo era ressaltar a importância da parceria como estratégia de intervenção do psicólogo na escola – representada por gestores, professores, alunos, pais e demais funcionários. Temos acreditado e defendido que investir em ações que a promova, contribui para a desconstrução de representações cristalizadas sobre o trabalho do psicólogo escolar e ao rompimento da resistência à inserção desse profissional na escola, evidenciando-se, porém, a necessidade de, por um lado, quebrarmos nossas próprias resistências e representações e, por outro, investirmos na formação profissional e de recursos humanos, no âmbito da formação inicial e continuada.

A parceria estabelecida com os gestores constitui-se como uma forma de cooperação, em que ambos contribuíram para a ampliação da consciência de si e do outro e sobre os papéis de cada um dentro da escola e em relação à educação. A grande contribuição trazida pela parceria, a nosso ver, foi a objetivação da influência mútua entre os sujeitos, a percepção da importância do vínculo como mediador das relações estabelecidas e o próprio modo de conceber a gestão, como constituída por sujeitos singulares, cujas dimensões subjetivas se expressam no movimento de ver a si por intermédio do outro, resultando na constituição de um grupo que se guia pelos objetivos comuns na tarefa de conduzir os processos administrativos e pedagógicos da escola.

É somente nesse movimento de cooperação que a equipe gestora poderá, como e somente como equipe, superar os problemas que aportam na escola e a caracterizam, como os conflitos de relações, as deficiências nos resultados da aprendizagem dos alunos, as inadequações das práticas dos professores, as ingerências do sistema de ensino, enfim. Também pela cooperação será possível a apropriação, pelos profissionais da escola e de seus alunos, de suas condições materiais de existência, reconhecendo, cada um, seu papel na transformação dessas mesmas condições e na instituição de formas de educar e de aprender mais efetivas, viabilizadas pela conscientização de seu lugar de produtor da realidade e da história, conforme concebe Vigotski (2006).

Pensamos que da mesma forma que nossa intervenção promoveu nos gestores a configuração de novos significados e sentidos, nós não ficamos imunes a esse movimento. A todo o momento, a cada nova intervenção, a cada materialidade utilizada, (re)configurávamos os sentidos e significados sobre a atuação do psicólogo, ampliando, também, nossa consciência sobre o papel do profissional que se insere na escola.

Reconhecemos, no entanto, as limitações do presente estudo, sobretudo concernentes a dois aspectos: o fato de ter sido realizado em apenas uma escola, com um grupo pequeno de sujeitos, o que indica a necessidade de se investir em novas pesquisas, abrangendo outras escolas e outros gestores; e o acercamento metodológico que impõe dificuldades relativas à investigação do movimento de conscientização, ainda muito pouco explorado pelas pesquisas empíricas no campo da Psicologia. Sobre este último aspecto, importa considerar que mesmo o conceito de consciência na obra de Vigotski e Leontiev, principais autores da Psicologia histórico-cultural que estudam essa função psicológica, ainda é objeto de discussão dos pesquisadores que se ocupam dessa temática. Evidencia-se, assim, a necessidade de outros estudos sobre o psiquismo humano, que ponham em relevo a consciência, investindo-se em procedimentos de investigação que possam lançar luz à compreensão dos processos psicológicos em geral e de movimentos de conscientização, em particular.

De nossa perspectiva, permanece ainda como desafio compreender de que maneira a inserção e a atuação do psicólogo na escola pode contribuir para o desenvolvimento saudável do sujeito, compreendendo suas condições materiais de existência, seus motivos e promovendo meios para a ampliação de sua consciência. Insistimos nesse movimento porque acreditamos em seu potencial para por em relevo a dimensão do humano dos sujeitos com quem trabalhamos, que o coloca como participante ativo do meio em que está inserido, o que se constitui como condição para sua emancipação.

Recebido 03/03/2013

1ª Reformulação 30/10/2013

Aprovado 12/12/2013.

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  • Endereço para correspondência
    Ana Paula Petroni
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    Doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia e do curso de graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas – SP – Brasil. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Aceito
      12 Dez 2013
    • Revisado
      30 Out 2013
    • Recebido
      03 Mar 2013
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