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Inteligência humana: abordagens biológicas e cognitivas

RESENHA

FPCE - Universidade do Porto - Portugal

Falar de inteligência implica debater um dos temas mais importantes e mais controversos da Psicologia e, simultaneamente, um dos atributos psicológicos mais valorizados e mais temidos socialmente: por exemplo, a existência de uma correlação positiva entre o quociente de inteligência (QI) e os resultados escolares é uma das constatações mais antigas e mais regularmente confirmadas pela Psicologia.

A falta de acordo quanto à definição e formas de avaliação deste construto, bem visível nas polêmicas travadas por psicólogos e educadores, em debates, obras e simpósios sobre o tema, sobretudo durante o século XX, não diminui a aceitação generalizada de que estamos perante um dos atributos psicológicos mais relevantes e com maior impacto na realização, no sucesso e no bem-estar global dos indivíduos e das sociedades.

Mas afinal o que é a inteligência? Haverá uma inteligência ou várias? Como se mede e quais as qualidades de uma boa medida da inteligência? De que fatores dependem a sua evolução - hereditariedade ou meio? Haverá diferenças de sexo na capacidade intelectual? Será a inteligência treinável? E as novas inteligências - por exemplo, a social e a emocional - qual a sua importância na sociedade atual?

Estes são alguns dos temas que a obra "Inteligência humana. Abordagens biológicas e cognitivas" debate, de forma direta, sucinta, pragmática e didática, com uma linguagem simultaneamente cuidada e acessível a vários públicos - estudantes, professores, psicólogos e educadores em geral .

Ao longo de 14 capítulos e cerca de 250 pági nas, o Prof. José Aparecido da Silva demonstra-nos de que forma a inteligência atravessa praticamente toda a história da Psicologia, dando-nos, assim, a oportunidade de utilizar a obra como um instrumento de consulta e de atualização rápida no domínio.

Esta obra diz-nos muito sobre o seu autor, principalmente diz-nos da sua curiosidade intelectual e da sua capacidade de atualização sobre um tema, nomeadamente pelo seu desejo de divulgar as mais recentes e desafiadoras conclusões sobre a inteligência, mesmo quando são controversas.

Passemos, então, à apresentação da obra.

O capítulo 1, "Teoria da inteligência através dos tempos", faz-nos uma resenha histórica acerca da definição e da estrutura da inteligência, desde a antiguidade clássica, com Pitágoras (580 a.C.-500 a.C.) e o dualismo mente-corpo, até à era da medida da inteligência, nos séculos XIX e XX, onde são destacadas as contribuições de Galton - que inicia a avaliação objetiva da inteligência -, Cattell, Binet, Stern, Spearman, Terman e Wechsler, entre outros. Como balanço, o autor fala-nos das controvérsias natureza-educação (nature-nurture) e entre o caráter unitário ou polifacetado da inteligência, que continuam a manter acesa a discussão em torno deste construto.

No capítulo 2, "Concepções de inteligência", o autor aborda as teorias implícitas de inteligência, ou seja, as concepções do senso comum, do leigo, do não especialista acerca da inteligência. De fato, todos nós somos capazes de definir e avaliar a nossa inteligência e a dos outros nas mais variadas situações do quotidiano, e tais concepções ou teorias implícitas afetam o nosso comportamento e as nossas interações.

Por sua vez, os especialistas no domínio, os que constroem as teorias explícitas - teorias formais sobre a natureza e desenvolvimento da inteligência, fundadas em avaliações presumivelmente objetivas da mesma, através de testes -, também são influenciados pelas suas próprias teorias implícitas.

Assim, a partir de estudos de Sternberg com leigos, nas teorias implícitas surgem três dimensões caracterizadoras da inteligência, que curiosamente também constituem dimensões valorizadas pelas principais teorias explícitas: referimo-nos à capacidade para resolver problemas (problem solving), à aptidão verbal e à competência social.

Contudo, a constatação de que as concepções dos leigos são influenciadas pela cultura, leva o autor a assinalar o fato das concepções de inteligência variarem entre culturas: na verdade, diferentes sociedades e diferentes culturas valorizam aspectos diversos da capacidade intelectual.

O capítulo 3, "Abordagens fatoriais da inteligência", e o capítulo 4, "Abordagens biológicas e cognitivas da inteligência", apresentam-nos, cronologicamente, as principais teorias sobre a inteligência, começando com a perspectiva psicométrica ou fatorial, que vigorou até aos anos 60 do século XX, centrando-se na identificação dos fatores explicativos da capacidade intelectual (através da técnica de análise fatorial) e preocupando-se em medir e identificar quem tem inteligência e quem é mais e menos inteligente, mas mostrando menos preocupação em saber o que é a inteligência.

Começando com Spearman e o fator g, até Guilford e a visão polifacetada da inteligência (com 150 aptidões diferentes), esta perspectiva é desenvolvida pelo autor, sendo fundamental realçar a sua importância na avaliação, na medida e na seleção dos indivíduos, permanecendo muitos dos seus conceitos ainda atuais em Psicologia, nomeadamente o fator g, a visão polifacetada da inteligência e a importância das qualidades psicométricas das medidas de inteligência.

No capítulo 4 surgem as abordagens biológicas e cognitivas, mais recentes e alvo de investigação contemporânea. Salientamos, nas abordagens biológicas, a perspectiva de Hebb e as três inteligências - A (potencial), B (aprendida ou realizada) e C (inteligência avaliada pelos testes) -, bem como a conclusão do autor pela falta de indicadores biológicos, claros e categóricos, acerca da inteligência.

Por sua vez, nas abordagens cognitivistas, são focadas as importantes contribuições quer de Gardner, com a teoria das inteligências múltiplas (verbal-linguística, musical, lógico-matemática, espacial, corporal-cinestésica, pessoal, naturalista, espiritual e existencial) e as suas implicações educacionais, quer de Sternberg, com a teoria triárquica (três sub-teorias ou três tipos de inteligência - componencial ou convencional, experiencial ou criativa e contextual ou prática) e as respectivas implicações para o ensino.

O autor conclui salientando não só a falta de visão conceptual e metodológica comum às várias teorias, mas também a multiplicidade de estudos e de técnicas e os sinais de vitalidade no domínio.

Os capítulos 5, "Inteligência geral", e 6, "Inteligências múltiplas", discutem a questão do número de inteligências, ou seja, a controvérsia fator g vs. múltiplas aptidões, que atravessou a Psicologia desde a polêmica entre Spearman e Thurstone.

O capítulo 7, com o sugestivo título "Quem é mais inteligente: o Homem ou a Mulher?", aborda outro tema clássico no domínio, o das diferenças de sexo, concluindo pela superioridade feminina nos domínios verbal, das habilidades motoras finas, da velocidade perceptiva e da descodificação não-verbal, e pela superioridade masculina nos domínios visuo-espacial, da matemática e das ciências, das analogias verbais e do raciocínio mecânico. A controvérsia acerca das diferenças de sexo continua, havendo, contudo, evidências empíricas de um progressivo esbatimento das referidas diferenças a que não será alheio, entre outras causas, uma maior aproximação nas práticas de socialização.

Os capítulos 8, "Quociente intelectual e hereditariedade", e 9, "Interação gene-ambiente: mitos e verdades", abordam outro tema clássico no estudo da inteligência - a polêmica natureza-educação, hereditariedade-meio ou nature-nurture.

Aqui é apresentada a tendência para fazer equivaler a hereditariedade à irreversibilidade ou imutabilidade e a educação ou ambiente à possibilidade de transformação, que o autor discute, a partir de resultados de estudos com gêmeos monozigóticos e dizigóticos, crianças adotadas e indivíduos aparentados.

Assim, o autor discute uma série de mitos acerca da hereditariedade e do meio, apresentando exemplos, como o das crianças com fenilcetonúria, e pondo em relevo a importância da intervenção precoce.

Conclui que o meio faz a diferença, sobretudo nos primeiros anos de vida, pois pode potenciar os efeitos da hereditariedade: nas suas palavras, "os genes determinam a probabilidade de ocorrência dos comportamentos, mas não os comportamentos per se" (p. 112).

O capítulo 10, "Inteligência emocional", define esta nova e controversa inteligência, popularizada pelo best seller de Daniel Goleman, em 1995, falan-do-nos do Quociente Emocional (QE), em vez do popular QI, e da forma como vai afetar as nossas vidas e o nosso sucesso profissional.

Diz-nos o autor que a inteligência emocional, enquanto capacidade para "monitorizar as suas próprias emoções e as dos outros, para discriminar entre os diferentes tipos de emoções e, também, a capacidade para usar as informações sobre as diferentes emoções com o objetivo de controlar e orientar o seu próprio pensamento e as suas ações" (pp. 114-115), se tem revelado de enorme interesse e valor preditivo no domínio profissional (liderança, desempenho individual e em grupo) e nas organizações em geral, justificando o investimento atual - teórico, empírico e da medida - neste domínio.

O capítulo 11, "Inteligência: ensino e tecnologia", fala-nos do treino da inteligência e das inúmeras possibilidades de "ensinar a inteligência", com a apresentação breve de alguns programas de treino e aceleração cognitiva, concluindo pela importância da contribuição das novas tecnologias para o ensino da inteligência, mas também para o fato incontornável do papel do professor na sala de aula ser insubstituível.

O capítulo 12, "Inteligência: mitos e verdades", apresenta e discute 12 mitos acerca da inteligência, nomeadamente se a inteligência é unitária ou múltipla, se a inteligência pode ser medida, se está correlacionada com o tamanho da cabeça, se é determinada pela data de nascimento, se tem evoluído geracionalmente, se difere entre sexos, funcionando como um capítulo-síntese de alguns temas discutidos ao longo da obra.

Finalmente, os capítulos 13, "Mensuração da inteligência", e 14, "Propriedades metrológicas dos testes de inteligência", falam-nos dos primórdios da medida da inteligência em Psicologia, com Galton, Cattell e Binet, do movimento dos testes e das escalas mais usadas, como a Stanford-Binet e a WISC e WAIS de Wechsler, e das qualidades psicométricas dos testes.

Em síntese, resta-nos concluir, dizendo que estamos perante uma obra que vale a pena descobrir, pela sua atualidade e exaustividade, a bem da Inteligência e da Psicologia.

Texto que serviu de suporte à apresentação oral da obra, no âmbito do Seminário - "Inteligência(s) e comportamento(s)", que decorreu na Universidade Fernando Pessoa (UFP), no Porto, em 27 de Janeiro de 2003.

  • Inteligência humana. Abordagens biológicas e cognitivas

    Luísa Faria
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2003
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