Acessibilidade / Reportar erro

CIDADES NA AMAZÔNIA, SISTEMAS TERRITORIAIS E A REDE URBANA

CIUDADES EN LA AMAZONIA, SISTEMAS TERRITORIALES Y LA RED URBANA

RESUMO

Partindo de premissas teóricas sobre redes urbanas na Amazônia que destacam o caráter incompleto das economias das cidades e suas hinterlândias não consolidadas, propomos discussão sobre o Sistema Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR): sistema pertencente à economia popular dinamizado pela navegação. A partir de dados relativos a Parintins (AM) constata-se distribuição de bens industrializados para áreas circunvizinhas e abastecimento do mercado urbano com recursos regionais. O STUR afeta ainda a estruturação do espaço intraurbano pela formação de bairros populares, configurando beiras de rio que funcionam como nós multireticulares. Observa-se complexa interação com o sistema territorial dominante atrelado ao capital mercantil, conferindo caráter dual e complementar dessa economia popular.

Palavras chaves:
Sistema territorial; Cidade; Economia popular; Navegação

RESUMEN

La propuesta es una discusión sobre el Sistema Territorial Urbano Ribereño (STUR), un sistema dinamizado por la navegación y perteneciente a la economía popular, desde premisas teóricas sobre redes urbanas en la Amazonía que resaltan el carácter incompleto de las economías de las ciudades y las zonas del interior no consolidadas. Utilizando datos de Parintins (AM) podemos ver la distribución de bienes industrializados a las áreas circundantes y el suministro del mercado urbano con recursos regionales. El STUR también afecta la estructuración del espacio intraurbano por la formación de barrios populares, configurando la orilla del río que funcionan como nodos multireticulares. Esta economía popular muestra una compleja interacción con el sistema territorial dominante vinculado al capital mercantil, confiriendo un carácter dual y complementario.

Palabras-clave:
Sistema territorial; Ciudad; Economía popular; Navegación

ABSTRACT

Starting from theoretical premises on urban networks in the Amazon that highlight the incomplete character of the cities' economies and their unconsolidated hinterlands, this proposal discusses the Urban Riparian Territory System (STUR), which is dynamized through navigation and belongs to the grassroots economy. Data from Parintins (AM), evidences the distribution of industrialized goods to surrounding areas and supply of the urban market with regional resources. The STUR also affects the structuring of intraurban space forming low-income neighborhoods, shaping riverfronts that function as multireticular nodes. There is a complex interaction with the dominant territorial system linked to commercial capital, showing the dual and complementary character of this grassroots economy.

Keywords:
Territorial system; City; Grassroots economy; Navigation

INTRODUÇÃO

Pressupostos teóricos que indagam a capacidade de cidades na Amazônia em ordenar territórios de entorno, apontam que a maioria das economias urbanas não possuem hinterlândias consolidadas (BECKER, 2013BECKER, B. K. A Urbe Amazônida. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.), apresentando assim economias pouco diversificadas e de baixo dinamismo. Dentro deste contexto, frente ao acelerado processo de urbanização e êxodo, populações diversas tem reconstruído práticas espaciais associadas a novos elementos condicionantes a partir da cidade, com intensificação da circulação sub-regional (navegação fluvial), alterações no espaço intraurbano e retomada ou manutenção de vínculos territoriais. É o que trataremos no primeiro momento do texto.

Na segunda parte, retomamos propostas analíticas sobre redes temáticas que nos auxiliam no entendimento de tais dinâmicas, levando em consideração os fixos e fluxos que estruturam o sistema territorial. Configura-se assim o setor da economia popular urbana que necessita realizar deslocamentos constantes para manutenção de atividades econômicas.

O presente texto faz parte de pesquisa mais ampla desenvolvida em Bartoli (2017)BARTOLI, E. O Retorno ao Território a partir da cidade. Presidente Prudente: PPGG / UNESP, (Tese de Doutorado), 2017., com uso da abordagem territorial que pode dar boas contribuições para pensar o caráter relacional e processual em estudos sobre cidades na Amazônia. O sistema de análise multidimensional presente na abordagem territorial (RAFFESTIN, 1993RAFFESTIN, C. Por Uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.; DEMATTEIS, 2005DEMATTEIS, G. Il sistemi territoriali in um'ottica evoluzionista. in: DEMATTEIS G. GOVERNA, F. (orgs.). Territorialità, sviluppo locale, sostenibilità. Milano: Angeli, 2005.; 2008DEMATTEIS, G. Sistema Local Territorial (SLoT): um instrumento para representar, ler e transformar o teritório. In: ALVES, A. CORRIJO, B. CANDIOTTO, L. (orgs.). Desenvolvimento Territorial e Agroecologia. São Paulo: Expressão Popular, 2008.; SAQUET, 2007SAQUET, Marcos Aurélio. Abordagens e Concepções de Território. São Paulo: Expressão Popular, 2007.; 2011SAQUET, Marcos Aurélio. Por uma Geografia das Territorialidades e das Temporalidades. São Paulo: Outras Expressões, 2011.), abrange a economia, a política, a cultura e a natureza (EPCN). Nesse sentido, se evidenciam lutas por sistemas de apropriação, valoração e representação, carregadas de intencionalidade dos sujeitos que disputam trunfos para o ordenamento do território. Tal método é bem pouco utilizado nessa problemática, principalmente questionando o papel que elas exercem para facilitar ações de redes de sujeitos variados.

Com aplicação de questionários semi-directivos, objetivamos descrever aspectos que compõe a estrutura dos sistemas urbanos em questão, que podem ser subdivididos em duas vertentes. A primeira é relativa às atividades que possuem aspectos ligados à economia popular que estão presentes nas cidades: adaptações de técnicas, informalidade, práticas espaciais para adquirir recursos regionais e formas de propagação de conhecimentos não codificados que se associam a aspectos "modernos" da economia urbana. Esse conhecimento tradicional, associado ao "ambiente da cidade" abrange: 1) maneiras de circular pelo território; 2) de ligar o nó urbano a pontos diversos; e 3) de extrair e processar produtos regionais, complementando a economia da cidade.

A segunda vertente reside na capacidade de redes de sujeitos "usarem" a cidade para construção de projetos coletivos (possuindo certa identidade territorial). Adaptam técnicas modernas às tradicionais. Constroem ambientes em bairros populares (beiras de rio, feiras populares, palafitas e flutuantes) que, mesmo frágeis e com pouca propensão de rumar para uma autonomia relativa, produzem territórios próprios de influência através das territorialidades. Tais sistemas são responsáveis pela formação de novas "capilaridades" a partir da esfera urbana, base de ação e milieu de diversas redes de sujeitos com graus diferenciados de organização.

A coleta de dados relativa a Parintins entrevistou 114 proprietários de embarcações regionais médias pertencentes à economia popular. Contata-se que a rede local dos sujeitos da pesquisa, a partir de beiras de rio em bairros populares e área central (nós multireticulares), redesenham estratégias de deslocamentos para comunidades e municípios vizinhos, distribuindo bens industrializados e ao mesmo tempo trazem para a cidade recursos naturais regionais, como gado e produtos agrícolas, complementando circuitos populares da economia urbana (comércio informal, feiras, pequenos açougues, etc.), e também abastecem setores do capital mercantil dominante da cidade (madeireiras, frigoríficos, matadouro, etc.).

Na terceira parte do texto, o que denominamos como Sistema Territorial Urbano-Ribeirinho (STUR), trata-se da proposta metodológica para compreender as dinâmicas de tais redes locais de sujeitos pertencentes à economia popular, que através da navegação fluvial (barcos de pequeno e médio porte de uso particular e/ou familiar), interligam e sobrepõem o "urbano ao ribeirinho", complementando a economia local.

Torna-se necessário elencar elementos para recondução de uma interpretação de territórios a partir da cidade, pois populações antes distanciadas da "presença" da cidade (acesso a serviços, educação, instituições, bens de consumo, etc.), como os indígenas e populações interioranas, passam a usufruir da interação urbana como facilitadora de novas conexões com ambientes rurais, comunidades e aldeias circunvizinhas.

CIDADES E TERRITÓRIOS

Parte das interpretações acadêmicas sobre cidades na Amazônia abordam aspectos sobre dinâmicas que interferem na produção do espaço regional, como papéis de mediação, polarização, centralidade, influência política e cultural ou de sua responsabilidade territorial,1 (1) Schor e Oliveira (2016) enfatizam a presença de serviços de saúde em Parintins, o que aumenta sua responsabilidade territorial, pois a cidade passa a atender municípios circunvizinhos. caracterizando assim as funções representativas das cidades (em sentido geral).

Dentro do papel logístico, as cidades amazônicas conectam modais diversos de transporte, funcionando como centros de fornecimento e distribuição de serviços e mercadorias para áreas de entorno (incluindo Terras Indígenas, Unidades de Conservação e cidades menores). Possuem milhões de consumidores, abrigam sedes de instituições públicas e privadas, facilitando acesso a serviços de saúde, ensino, oferta de alternativas de emprego e renda, barrando a migração para a floresta, ou servindo como potenciais centros dos assentamentos da reforma agrária (BECKER, 2004BECKER, B. K. Amazônia. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.).

Desde a década de 1970, diversas realidades atreladas à produção espacial regional e urbana foram se formando na Amazônia, surgindo um mosaico de cidades vinculadas às mais variadas frentes de expansão das atividades capitalistas, resultando no que Trindade Jr. (2010)TRINDADE JR. S. C. Cidades na Floresta: os "grandes objetos" como expressões do meio técnico-científico informacional no espaço amazônico. Revista IEB, n50 set./mar. 2010. chamou de urbanodiversidade.

No desenvolvimento dessa rede urbana, tais frentes de expansão de desenvolvimento de cidades se consolidaram através de "suas relações oriundas de estruturas urbanas mais antigas e sujeitas a transformações recentes" (VICENTINI, 2004VICENTINI, Y. Cidade e História na Amazônia. Curitiba: UFPR, 2004., p.62). Nesse contexto, surgem estudos de tipologias para caracterizar a mudança de padrão de organização do espaço regional e a maior complexidade nos conteúdos e formas, seja pelo papel histórico ativado e posteriormente desativado pela emersão de novas frentes, ou em cidades modernas oriundas de grandes projetos (mineração, por exemplo). Esforços teóricos para o entendimento de frentes de expansão, urbanização dirigida pela colonização particular (companhias colonizadoras), colonização oficial estatal (BECKER, 1990BECKER, B. K. Amazônia. São Paulo: Ed. Ática. Série Princípios, 1990; VICENTINI, 2004VICENTINI, Y. Cidade e História na Amazônia. Curitiba: UFPR, 2004.), cidades ribeirinhas (TRINDADE JUNIOR - 2010TRINDADE JR. S. C. Cidades na Floresta: os "grandes objetos" como expressões do meio técnico-científico informacional no espaço amazônico. Revista IEB, n50 set./mar. 2010.), ou no papel das cidades médias (OLIVEIRA & SCHOR, 2010OLIVEIRA, José Aldemir de; SCHOR, Tatiana. Urbanização na Amazônia. GEEA-Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos - Caderno Debates, vol. III, Manaus: Editora do INPA, 2010. 147-189.; SCHOR et al. 2009SCHOR, Tatiana ; COSTA, Danielle, P; OLIVEIRA, J. A. Cidades, rede urbana e desenvolvimento na Amazônia dos Grandes Rios. In: TRINDADE Jr., Saint-Clair Cordeiro; CARVALHO, Guilherme; MOURA, Aldebaran; GOMES NETO, João. (Org.). Pequenas e médias cidades na Amazônia. Manaus: FASE/UFPA, 2009, v. , p. 35-58.), são alguns exemplos da manifestação do processo urbano na região.

Tais abordagens deixam lacunas explicativas sobre as mediações multidimensionais e transescalares realizadas por redes de sujeitos locais influenciando as áreas de entorno, cuja interpretação no presente texto ocorre a partir da análise dos sistemas territoriais. De maneira geral, cidades na Amazônia estiveram vinculadas em seus percursos evolutivos a formas de dominação, concentração geográfica e social de um excedente de produção e deslocamento de populações, sendo a urbanização uma estratégia do capital para ocupar e controlar rapidamente a fronteira (GENTIL, 1988GENTIL, Janete. A noção do Urbano em Áreas de Fronteira: uma revisão teórica. in: Seminário sobre Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1988., p.74). Em sucessivos ciclos de valorização de produtos, há crescente influência das cidades mediando dinâmicas territoriais: setores da economia urbana organizam sistemas territoriais que configuram fixos e fluxos, detalhados adiante, nos indica a capacidade de redes de sujeitos em se projetar sobre o território.

Essa urbanização da fronteira regional possui característica particular, pois é "desarticulada do seu próprio desenvolvimento e vai além dos limites internos de crescimento que a velocidade do desenvolvimento da região pode impor" (BROWDER; GODFREY, 2006BROWDER J.O. GODFREY, B.J. Cidades na Floresta. Manaus: EDUA, 2006., p. 102). O espaço geográfico tem no processo de urbanização, o nervo essencial de intermediação das relações de dominação, como apontam Santos e Silveira (2003)SANTOS, M. SILVEIRA, M. L. Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2003., onde produtos mais rentáveis recebem primazia em relação a outros, inserindo uma especialização espacial, causando desvalorização de certas atividades em favor de outras. Essa especialização geográfica da produção é responsável por uma massificação do capital, que "impõe ao mercado uma escala espacial mais ampla, e pode-se tanto falar de uma alienação regional como de uma alienação do homem-produtor" (Ibid, p. 145), causando colapso em cidades locais.

Para Becker (2013)BECKER, B. K. A Urbe Amazônida. Rio de Janeiro: Garamond, 2013., a explicação do não desenvolvimento das cidades na Amazônia reside na ausência de novas divisões de trabalho capazes de mudar a condição de crescimento da economia. Tais divisões estimulariam trocas comerciais e incentivariam a substituição de importações, possibilitando a organização da rede urbana e criando relações mútuas entre as cidades, e assim, romperia vias hierárquicas que dominam núcleos urbanos onde essa falha, presente até hoje na ausência de agregação de valor aos produtos exportados, "é uma das principais razões da insuficiência de dinamismo urbano. As pequenas manufaturas geradas logo sucumbiram com o declínio do surto (BECKER, 2013BECKER, B. K. A Urbe Amazônida. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. - p. 19)".

Segundo Becker (2013, p.44-45)BECKER, B. K. A Urbe Amazônida. Rio de Janeiro: Garamond, 2013., a maioria das cidades, por terem experimentado apenas um surto de crescimento econômico, não alteraram seus conteúdos, estrutura e complexidade, permanecendo na condição de lugares centrais, não possuindo hinterlândia organizada. Também sinaliza que, ao contrário do estabelecido pela teoria dos lugares centrais, o processo de consolidação dessas cidades não leva à regularidade espacial da influência desses fluxos, onde as condições naturais das cidades na Amazônia provavelmente criam localizações de núcleos dispersos, enquanto que diferenciações sociais para o comércio podem criar padrões regionais de agrupamentos de cidades.

Nesse contexto, diversas cidades vieram desenvolvendo sistemas territoriais a partir de frações do capital mercantil associadas a setores da chamada economia popular, utilizando as cidades enquanto nós multireticulares para extração (com raros processamentos), de recursos regionais. Ao mesmo tempo, são distribuidoras de diversos produtos industrializados para áreas interioranas, sendo alguns essenciais para que o sistema territorial funcione como no caso do comércio de alimentos e combustíveis. São vários exemplos no estado do Amazonas a extração de piaçava (ARAÚJO, 2016ARAUJO, Felipe Nascimento. As diferentes formas de relação patrão/freguês. 2016. 174 f., il. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)-Universidade de Brasília, Brasília, 2016.) e peixes ornamentais na calha do rio Negro (Barcelos), a extensa rede de comercialização de peixes nas cidades do alto Solimões (MORAES, 2012MORAES, André de Oliveira. Peixes, redes e cidades. Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia) -- Universidade Federal do Amazonas, - Manaus: UFAM, 2012.), o manejo de Pirarucu em Tefé e Fonte Boa, o guaraná de Maués ou os garimpos ilegais em balsas no rio Madeira no município de Novo Aripuanã, entre tantos outros.

Tais sistemas territoriais com nó de ordenamento nas cidades são dinamizados por redes de sujeitos pertencentes à economia popular, cujas articulações com sistemas dominantes de mercados locais configuram arranjos espaciais que permitem manutenção das atividades. Garimpos, madeireiras e frigoríficos contam com forte apoio de prefeitos que se consolidam enquanto setores dominantes na cidade, atraindo fluxos migratórios e modelando a paisagem por meio de fixos diversos. Entre eles, bairros populares e suas complexas beiras de rio que estabelecem nós multireticulares conectando-os aos interiores e assim, possibilitando ainda relações transescalares, onde a maior parte dos produtos é exportado sem processamento, configurando cadeias produtivas incompletas.

Nesse sentido, é preciso descrever as características da economia popular que articulam novas mediações técnicas, culturais e políticas (considerando também a coesão das redes de sujeitos em coletivos organizados como as cooperativas, associações e colônias de pescadores). Portanto, surgem lacunas interpretativas referentes aos vínculos territoriais existentes a partir da consolidação dos sistemas territoriais oriundos da economia popular, afetados pelo processo acelerado de crescimento urbano e êxodo rural. Tais vínculos são alterados, rompidos e, em muitos casos, recompostos pela maneira como sujeitos se articulam na cidade e "retornam a territórios".2 (2) Em Bartoli (2017) demonstramos a multidimensionalidade presente em retornos a territórios de grupos urbanos como indígenas, pescadores, extrativistas e produtores de embarcações regionais. Tais "retornos" foram diferenciados pela maneira com que os grupos formularam projetos em coletivos organizados, alterando o modo como articularam territórios a partir da cidade: novas técnicas, mercados diferenciados atingidos, saltos escalares ou maior submissão ao mercado regional urbano.

Explorar a natureza das relações internas e transescalares das cidades ribeirinhas ou cidades médias com intensa dinâmica ribeirinha (como no caso de Parintins), nos direciona para o entendimento do sentido relacional de práticas espaciais regionais que demonstram permanências e temporalidades específicas (TRINDADE JR. et al., 2008TRINDADE JR. S. C. SILVA, M. A. P. AMARAL, M. D. B. Das "Janelas" às "Portas" para os Rios: compreendendo as cidades ribeirinhas na Amazônia. in: TRINDADE JR. S. C. TAVARES, M. G. Cidades Ribeirinhas na Amazônia. Mudanças e Permanências. Belém: EDUFPA. 2008.).

Transformações recentes em cidades ribeirinhas apontam justamente para a redefinição de conteúdos e processos (TRINDADE Jr., et al., 2008TRINDADE JR. S. C. SILVA, M. A. P. AMARAL, M. D. B. Das "Janelas" às "Portas" para os Rios: compreendendo as cidades ribeirinhas na Amazônia. in: TRINDADE JR. S. C. TAVARES, M. G. Cidades Ribeirinhas na Amazônia. Mudanças e Permanências. Belém: EDUFPA. 2008.; SILVA e MALHEIRO, 2005SILVA, M. A. MALHEIRO, B. C. P. A face Ribeirinha da Orla Fluvial de Belém. In: TRINDADE JR., Saint Clair Cordeiro da; SILVA, Marcos Alexandre Pimentel da (orgs.). Belém. Belém: EDUFPA, 2005.). Para Trindade Jr. et al. (2008, p. 38)TRINDADE JR. S. C. SILVA, M. A. P. AMARAL, M. D. B. Das "Janelas" às "Portas" para os Rios: compreendendo as cidades ribeirinhas na Amazônia. in: TRINDADE JR. S. C. TAVARES, M. G. Cidades Ribeirinhas na Amazônia. Mudanças e Permanências. Belém: EDUFPA. 2008., cidades ribeirinhas possuem forte influência socioeconômica e cultural com a escala geográfica local e regional e são enraizamentos que se traduzem em modos de vida e interações estabelecidos entre os citadinos e os cursos fluviais. Também ressaltam a importância de interpretá-las para além da localização absoluta, onde essa interação assume o caráter funcional (circulação fluvial e uso para atividades domésticas), de subsistência material (fonte de recursos alimentares e econômicos), lúdico e simbólico cultural (Ibid., p. 42).

Para Oliveira (2000)OLIVEIRA, J. A. Cidades na Selva. Manaus: Valer, 2000., o processo de urbanização na Amazônia não se dá necessariamente pela presença de cidades na paisagem regional (urbanização do território), mas principalmente pela difusão da sociedade urbana, que expande, igualmente, a influência urbana. A generalização do fenômeno urbano na Amazônia é discutida a partir da identificação de processos contraditórios, baseados num tripé: a destruição de formas espaciais existentes, a criação de resistências e a reconstrução de formas e conteúdos espaciais dotados de novas dimensões e significados. O autor concebe que a prática socioespacial, lugar geográfico da ação social, é reveladora de constituir alternativas de liberação de relações na cidade.

Frente a esses reveses, o comportamento espacial a partir de sistemas territoriais mercantis e populares dessas cidades (ribeirinhas ou cidades médias com forte dinâmica ribeirinha), aparece como problema central. São poucas as cidades dinâmicas favorecidas pelo comércio associado à sua posição e situação (característica favorável no caso de Parintins). A formação de economias urbanas "incompletas", incapazes de sustentar populações a partir de atividades eminentemente urbanas, acaba suscitando reformulações de grande parte dos vínculos territoriais para complementação da economia urbana.

As diversas modalidades de retorno às áreas interioranas para complementação de renda e manutenção de atividades diversas por populares são mais intensas do que se imagina. Práticas vernaculares passam a ser adaptadas em novas territorialidades, projetos e ações através da influência que o meio urbano exerce: navegação, extrativismo, pesca etc., ganham novos "contornos" (o território de influência da cidade se expande) ao serem submetidas ao mercado urbano e à disponibilidade de técnicas, informações e incentivos propiciados no ambiente interativo da cidade.

Populações indígenas e interioranas antes distanciadas da presença da cidade como recurso, do acesso a bens de consumo, da educação, de instituições, etc., hoje usufruem do ambiente urbano que possibilita novas interações com ambientes rurais, comunidades e aldeias. Ocorre ainda possibilidade de saltos escalares através de apoios de diversas instituições (ONGs, universidades, redes de comércio justo, economia solidária, programas governamentais, etc.) com uso da base logística da cidade (BARTOLI, 2015BARTOLI, E. Ações Indígenas Sateré-Mawé na Cidade de Parintins (AM) e a Formação de Sistemas Locais Territoriais Urbano-Ribeirinhos. In: Simpósio Nacional de geografia Urbana (SIMPURB), CD-room. Fortaleza: UFCE, 2015.; 2017BARTOLI, E. O Retorno ao Território a partir da cidade. Presidente Prudente: PPGG / UNESP, (Tese de Doutorado), 2017.).

Definimos, perante a economia urbana "incompleta" da maioria das aglomerações, questões norteadoras, vinculadas a aspectos do comportamento espacial da economia popular a partir dos dados obtidos sobre Parintins. Como práticas espaciais dos setores populares são reestabelecidas a partir da cidade? Como a conformação do circuito de economia popular através da navegação, vem cumprindo também papel de distribuição de bens de consumo industrializados? E por fim, quais são os principais elementos que estruturam o STUR em sua dinâmica sub-regional e quais são os rebatimentos espaciais no espaço intraurbano?

URBANIZAÇÃO EXTENSIVA, REDES URBANAS TEMÁTICAS E SISTEMAS TERRITORIAIS

Antes de tecer reflexão a partir dos dados obtidos sobre Parintins, faremos breves considerações sobre aportes teóricos de dinâmicas de redes urbanas na Amazônia que nos ajudam a embasar o modelo STUR. Iniciamos com abordagens relacionadas à escala regional e sub-regional, onde a falta de dinamismo econômico das cidades passa a ser complementada pela comercialização de bens de consumo industrializados (urbanização extensiva); depois retomamos estudos sobre redes urbanas vinculadas a fluxos de extração e comercialização de recursos regionais: madeira, pescado, guaraná, etc. (redes temáticas), onde a escala local passa a ser considerada, cujos fixos no espaço intraurbano-ribeirinho propiciam a estruturação de tais redes.

Com a aceleração do povoamento regional após período militar, ocorreu na região amazônica formação de novos meios de comunicação e transporte que conectam cidades em diferentes meios de acessos às redes, como destaca Monte-Mór (2009)MONTE-MÓR, R.L. As Redes Para Além dos Rios. in: Nova Economia - Belo Horizonte: 19 (1), 11-39, jan-abr. 2009., que, para "além dos rios", constituem novas centralidades urbanas, extrapolando os limites das cidades e expressando um amplo processo econômico-espacial que o autor denomina de urbanização extensiva (MONTE-MÓR, 1994MONTE-MÓR, R.L. A Urbanização Extensiva e Lógica de Povoamento. SANTOS, Milton et. al. (orgs.) Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/Anpur, 1994 (pp. 169-181)). Essa urbanização ultrapassa barreiras das cidades penetrando em todos os espaços regionais, sendo favorecida pelo desenvolvimento do meio técnico-científico e informacional e pelo apoio da forte presença das relações de produção urbano-industriais. Para o autor, as relações cidade-campo entrariam nessa lógica, pois:

Essa síntese dialética que supera a relação cidade-campo dentro de uma lógica coletiva e política, centrada na luta pela vida quotidiana e privilegiando os aspectos da reprodução social, apresentando densidades, tamanhos e formas de organização sócio-espacial variadas, mas toda ela dentro de uma lógica urbano-industrial integrada por condições gerais de produção equivalentes e por um consumo coletivo de base industrial, que tenho chamado de urbanização extensiva (MONTE-MOR, 2004MONTE-MÓR, R.L. A relação urbano-rural no Brasil contemporâneo. Trabalho apresentado no "I seminário Internacional Sobre Desenvolvimento Regional". Santa Cruz do Sul - RS, UNISC, Out. 2004., p. 24).

Monte-Mór (2009)MONTE-MÓR, R.L. As Redes Para Além dos Rios. in: Nova Economia - Belo Horizonte: 19 (1), 11-39, jan-abr. 2009., aponta ainda situação de fragilidade das redes urbanas amazônicas devido à existência de uma série de impedimentos como: as grandes distâncias que separam as capitais das demais cidades, a carência de infraestrutura (transporte e comunicação), e a grande proporção de população desprovida de recursos materiais e educacionais decisivos para sua participação ativa nos diversos tipos de fluxos. Para o autor, os fluxos não podem se realizar se não há uma rede de comunicações adequada às suas características, sendo assim, um impedimento para uma propagação mais rápida de inovações exógenas.

Portanto, para entendimento das redes amazônicas, torna-se necessário averiguar quais fluxos interligam cidades. Nesse contexto, existe demanda de alimentos no mercado urbano cujo atendimento vem alterando cada vez mais itens da dieta regional, sendo marcante a presença crescente de conserva, frango congelado, embutidos e outros produtos industrializados (MORAES E SCHOR, 2010MORAES, A. O. SCHOR, T. ALVES-GOMES, J. A. O Mercado de Bagres e a Configuração da Rede Urbana no Alto e Médio Solimões, Amazonas, Brasil. Caderno Prudentino de Geografia. V.1, n.32, p.93-110. 2010.; MORAES, 2008MORAES, A. O. "peixe, farinha e frango congelado: rede urbana e alimentação na calha do rio Solimões." In: Anais do XV Encontro Nacional de Geógrafos (ENG). São Paulo: 2008.; 2014MORAES, A. Embalando Mercados em Redes Urbanas: alimentação e pesca articulando cidades na Amazônia brasileira. in: SCHOR, T. (org.). Dinâmica Urbana na Amazônia - vol. 1. Manaus: Valer, 2014.). Outros alimentos industrializados chamados junk food como os da Nestlé, recebem incentivo da empresa para que cheguem aos mais distantes rincões de países subdesenvolvidos. Na Amazônia, a empresa utilizou grandes barcos distribuidores que foram sendo paulatinamente substituídos por embarcações regionais menores pertencentes à economia popular urbana (o que reforça a proposição do STUR), pois existe quantidade considerável de sujeitos portadores de habilidades para navegar e circular pelo território dispostos a atingir longínquos pontos de comunidades e aldeias.

A circulação fluvial a partir de deslocamentos sazonais ou pendulares acaba também reconfigurando o espaço intraurbano como detalhado em Bartoli (2017)BARTOLI, E. O Retorno ao Território a partir da cidade. Presidente Prudente: PPGG / UNESP, (Tese de Doutorado), 2017.. Se a extração de recursos naturais ligada à demanda urbana ou mercados externos aumenta, a demanda por pessoas dispostas a navegar, praticar extrativismo ou realizar cultivos agrícolas diversos também cresce. Isso intensifica a necessidade da mediação entre território-cidade-mercado dinamizada pela circulação fluvial. Os ciclos passados em Parintins da extração do óleo de pau rosa (seiva para perfumes), cultivo de juta e malva (fibras) ou na ininterrupta extração madeireira ou na pesca são bons exemplos. Tais conhecimentos (saber navegar, transitar e explorar o território num sentido zonal/areal), passam a ser apropriados a serviço de setores mercantis da cidade direta ou indiretamente.

A estrutura de relações reticulares de Parintins a partir de seus Sistemas Territoriais é condicionada pela situação da cidade: um espaço geográfico relativizado que se molda em função das técnicas, das estruturas econômicas e sociais e dos sistemas de relações. É uma dinâmica processual que leva em conta redes e fluxos diversos a partir de um processo de centralização (DAMIANI, 2006DAMIANI, A. L. Cidades Médias e Pequenas no Processo de Globalização. In: América Latina. CLACSO: São Paulo, 2006.).

Situada a extremo leste do estado do Amazonas, o município encontra-se na divisa com o Pará, limítrofe ao município de Juruti (PA) e os demais municípios amazonenses de: Nhamundá, Barreirinha, Urucará e Urucurituba. Possui uma extensão territorial de 5.952,369 km2 e em 2010 contava com uma população de 102.033 habitantes (IBGE, 2010IBGE. Censo Demográfico 2010. Disponível em <www.ibge.gov.br>. 2010. Acesso em 23/10/2014.
www.ibge.gov.br...
). A sede municipal se encontra na margem direita da calha do rio Amazonas, com navegação sem restrições durante todo o ano (mesmo em anos de secas severas), que posiciona a cidade em ponto estratégico entre as duas metrópoles regionais, Manaus (AM) e Belém (PA).

O sítio urbano é formado por arquipélago flúvio-lacustre, acessível somente via fluvial, outras conexões para comunidades e pequenos municípios (norte e sul da sede municipal) são mais afetadas no período de secas, alterando rotas de navegação que se tornam mais longas. As ligações com a rede urbana são primordialmente fluviais, o que confere maior peso ao papel das embarcações, e as tipologias dos sistemas territoriais a que estão vinculadas.

Desta forma, devido sua posição, Parintins se torna um centro distribuidor de produtos industrializados oriundos tanto de Manaus como da rede urbana paraense (figura 1). Cidades médias como Parintins possuem especializações comerciais não existentes nas menores do seu entorno, como por exemplo o caso de materiais de construção, onde quatro grandes grupos são responsáveis pela distribuição para municípios circunvizinhos e comunidades sobre sua área de influência. Tais grupos acabam controlando também a distribuição de outras mercadorias como gás, estivas e alimentos industrializados, por possuírem balsas próprias que trazem mercadorias da capital amazonense, contribuem para que tais grupos dominem e concentrem os mercados locais, ainda mais nos últimos anos.

Figura 1
Produtos transportados de Parintins para interiores por embarcações de médio porte pertencentes ao STUR.

Nas pequenas cidades locais do entorno, existem apenas estabelecimentos comerciais mais "generalistas" que vendem de tudo, alimentos, eletrodomésticos até materiais de construção, adquiridos via Parintins, mas transportados pela enorme quantidade de embarcações de madeira pertencentes a populares residentes nas cidades, que são os principais articuladores do STUR. Algumas comunidades mais próximas e de fácil conexão fluvial (inclusive na vazante), também possuem pequenos comércios desse tipo, funcionando como nós secundários de distribuição para comunidades menores e mais longínquas.

A distribuição de gelo produzido na cidade e dos insumos para pecuária vindos de Manaus e Santarém (PA) são necessárias para que outros fluxos se realizem, como no transporte de pescado para entrepostos pesqueiros, e da produção pecuária para abate no matadouro municipal da cidade.

Portanto, a tese da urbanização extensiva só é passível de ser entendida se nos detivermos na análise das direções, intensidades e modalidades dos fluxos que partem da cidade (força centrífuga), a partir de embarcações médias, complementando fluxos para a cidade (força centrípeta), compondo parte da dinâmica do STUR.

Com a consolidação da economia urbana e formação de extensos bairros populares, novas redes se formam em topologias variáveis, que determinam a posição de seus nós e suas condições de acesso às variadas conexões. Partem tanto de beiras de rio populares para busca de complementação de renda, como de áreas de antigas e novas centralidades urbanas associadas ao capital mercantil.

Outro conjunto de aportes teórico-conceituais contribui para entendimento dessas dinâmicas reticulares. Entre as abordagens sobre cidades na Amazônia, devemos tecer considerações relacionadas à dialética entre especializações econômicas, no que tange às funções que cidades cumprem na divisão territorial do trabalho, e as diversificações, no que diz respeito às inúmeras manifestações produtivas como as da economia popular4 (4) Coraggio (1991, p. 335) define por economia popular en una primera aproximación, el conjunto de recursos, prácticas y relaciones económicas propias de los agentes económicos populares de una sociedad", Le., aqueles agentes que compõem unidades de reproducción [que] dependen de su propio fondo de trabajo (Ias capacidades conjuntas de trabajo de sus miembros)..." (Idem, p. 336) (CORAGGIO - 1991CORAGGIO, J. L. Ciudades sin rumbo. Quito: Ciudad - SIAP, 1991.), sempre atentos à identidade territorial de cada município propiciada pela tradição de exploração de determinados recursos regionais.

Para Santos (2004)SANTOS, M. A Natureza do Espaço. São Paulo: EDUSP, 2004. os fluxos são os movimentos e a circulação, e assim eles nos dão a explicação dos fenômenos da distribuição e do consumo, enquanto os fixos são os próprios instrumentos do trabalho e as próprias forças produtivas em geral, incluindo a massa dos homens. O espaço econômico é um conjunto de pontos e fluxos, enquanto o espaço geográfico é o espaço banal, sendo ambos indistinguíveis. Os fixos provocam fluxos em função de seus dados técnicos, que são geralmente locacionais, mas, também, em função dos dados políticos. As massas criadas pelos fixos exigem capacidade de mobilidade no espaço, sendo executada pelo poder econômico, político ou social, essa mobilidade é maior ou menor segundo as comunidades, as instituições instituídas em cada grupo social e os homens em ação (Ibid., p. 84).

É uma riquíssima reflexão para problematizar a existência de sistemas territoriais que possuem base em diferentes formas de circular pelos rios, adaptando técnicas e utilizando recursos regionais, ligando e interpenetrando o urbano aos diversos ambientes circunvizinhos: a capacidade de mobilizar esforços para obtenção de resultados, ativar pontos a partir do nó principal (cidade), tecer estratégias-rede conectando o urbano aos interiores através dos rios, diferenciando-se de acordo com o poder de ação de cada rede de sujeitos ou coletivo organizado.

Cidades do Amazonas possuem perfis urbanos diferenciados, com outros papéis na rede, incorporando não somente as funções tradicionais (bancos, hospitais, serviços, comércios, transporte), mas também se consolidando a partir de outras dinâmicas: extrativismos, pesca, caça, agricultura de pequena escala, garimpos ilegais, tráfico de entorpecentes, etc. Junta-se a essa dinâmica, as particularidades do transporte fluvial e a sazonalidade do regime hídrico, somando dimensões culturais, naturais, e temporalidades que não podem ser negligenciadas, caracterizando assim os diferenciais de tais redes das demais no Brasil.

Nesse contexto, metodologia inovadora ocorre em Schor (2014)SCHOR, T. (org.). Dinâmica Urbana na Amazônia Brasileira. Manaus: Valer, 2014. e Moraes (2014)MORAES, A. Embalando Mercados em Redes Urbanas: alimentação e pesca articulando cidades na Amazônia brasileira. in: SCHOR, T. (org.). Dinâmica Urbana na Amazônia - vol. 1. Manaus: Valer, 2014., que propõem uso das redes urbanas temáticas tratando da atividade pesqueira e da formação da cesta básica regionalizada nas cidades da calha do rio Solimões (AM), onde o peixe comercializado através de pescadores artesanais urbanos ou de comunidades formam relações que extrapolam os limites municipais. Resultado das pesquisas de Moraes (2014)MORAES, A. Embalando Mercados em Redes Urbanas: alimentação e pesca articulando cidades na Amazônia brasileira. in: SCHOR, T. (org.). Dinâmica Urbana na Amazônia - vol. 1. Manaus: Valer, 2014. demonstra que as cidades analisadas no Alto-Solimões (AM) representaram os últimos nós na rede estabelecida pela cesta básica regionalizada, por outro lado são os primeiros na rede internacional de mercado de bagres; aponta ainda que ocorre variação sazonal dos itens e preços da cesta básica regional, com influência do pulso de cheias e vazantes dos rios (MORAES, 2014MORAES, A. Embalando Mercados em Redes Urbanas: alimentação e pesca articulando cidades na Amazônia brasileira. in: SCHOR, T. (org.). Dinâmica Urbana na Amazônia - vol. 1. Manaus: Valer, 2014.). Para o autor, as redes urbanas temáticas foram essenciais para compreender processos de sobre, super e justaposição dessas redes,7 (7) Outra análise de rede temática, relativa ao manejo do pirarucu no município de Fonte Boa (calha do rio Solimões - AM), Carvalho (2010) que envolve a participação de um centro em várias redes com diferentes funções, articulando diversas escalas.

O estudo sobre redes temáticas requer método classificado como fragmentação conceitual do objeto (MORAES, 2012MORAES, André de Oliveira. Peixes, redes e cidades. Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia) -- Universidade Federal do Amazonas, - Manaus: UFAM, 2012.), que consiste na utilização de conceitos e/ou definições que constituam partes do objeto a serem exploradas de forma particularizada e ilustrativas quando analisadas particularmente. Visa principalmente apreender especificidades importantes para o entendimento do processo no qual a análise do todo poderia omitir. Moraes (2012, p. 57)MORAES, André de Oliveira. Peixes, redes e cidades. Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia) -- Universidade Federal do Amazonas, - Manaus: UFAM, 2012., analisando o comércio de bagres, usa elementos que podem ser classificados como: rede referencial (comércio de bagres), fixos referenciais (flutuantes e frigoríficos) e fluxos referenciais (trajetos que a mercadoria percorre). Para o autor, a descrição dos fixos compreende a forma de revelar a estrutura da rede em seus pontos constituintes, cuja disposição dos objetos espaciais é constante e a dinâmica maior fica realmente por conta dos fluxos.

Em tais redes, fixos e fluxos só conseguem se estabelecer caso haja suporte para seu funcionamento, sendo chamados de fluxos adjacentes, que consiste em produtos considerados insumos básicos para determinada atividade escolhida para análise: 1) fluxos de abastecimento de alimentos; 2) fluxos de abastecimento de combustível para as cidades; 3) fluxos de comunicação via telefone; 4) fluxos financeiros (Ibid., p. 58).

Esses aportes teóricos são úteis na estruturação do modelo STUR, pois ampliamos a análise das redes temáticas, propondo que tais fluxos: a) são responsáveis pelo abastecimento de feiras e comércios populares com produtos regionais; b) fornecem itens para reprodução do capital mercantil de médias empresas urbanas (entrepostos pesqueiros, frigoríficos, madeireiras, matadouro, etc. - figura 2); c) funcionam como "retornos a territórios", pois redes locais de sujeitos da economia popular passam a reconstruir projetos via consolidação de coletivos organizados ou incentivos dos mercados de demandas urbanos, sem perder os laços "umbilicais" que tais populações possuem com suas comunidades de origem (BARTOLI, 2017BARTOLI, E. O Retorno ao Território a partir da cidade. Presidente Prudente: PPGG / UNESP, (Tese de Doutorado), 2017.); d) modelam o espaço intraurbano alterando a morfologia da cidade como veremos, a partir da análise do conjunto de fixos em extensos bairros populares oriundos de ocupações irregulares.

Figura 2
Redes temáticas existentes em Parintins

As redes temáticas existentes em Parintins (figura 2), enquanto fluxos referenciais, auxiliam no entendimento da rede urbana sub-regional sendo primordiais para estruturação da lógica de funcionamento do STUR. Os fluxos de farinha, frutas e tubérculos, são oriundos de agricultura familiar de pequena escala, abastecendo barracas, feiras e pequenos mercadinhos de bairros populares. Já os fluxos de madeira são de difícil obtenção de dados, pois ocorrem na maior parte de forma ilegal, mas facilmente detectáveis nas beiras de rio em bairros populares. A pesca está estritamente condicionada a aspectos físicos, com lagos a oeste da cidade, possuindo maior piscosidade, onde rios de águas escuras e mais ácidas são menos atrativas para pesca comercial, e a aspectos legais (áreas protegidas por Unidades de Conservação ou Acordos de pesca). Os fluxos de transporte de gado também requerem estudos detalhados, pois 83% da produção pecuária municipal oriunda de pequenos produtores (SEMPA, 2017SEMPA. Plano de Ação para o Setor Primário de Parintins, Prefeitura Municipal de Parintins - PMP- Secretaria Municipal de Pecuária, Agricultura e Abastecimento - Sempa, 2017.) que também realizam funções secundárias na cidade sendo donos de pequenos açougues populares e barraquinhas de churrasco, sinalizando características do STUR: sua dualidade, pois além de conectar cidade-interiores, os sujeitos possuem atividades na cidade e interiores para complemento de renda.

A PROPOSTA METODOLÓGICA DO STUR: TERRITORIALIDADES "NAVEGANTES" E A ECONOMIA POPULAR

Essa contínua e acelerada reprodução de espaços urbano-regionais com constantes fluxos migratórios, êxodo, consolidação e crescimento das cidades, remete abordar conceitos (reinterpretados a outros contextos) como os de território e territorialidade (DEMATTEIS, 2005DEMATTEIS, G. Il sistemi territoriali in um'ottica evoluzionista. in: DEMATTEIS G. GOVERNA, F. (orgs.). Territorialità, sviluppo locale, sostenibilità. Milano: Angeli, 2005.; SACK, 2013SACK, R. O significado de territorialidade. in: Leila Cristina Dias e Maristela Ferrari (orgs.). Territorialidades Humanas e Redes Sociais. Florianópolis: Insular, 2013.; RAFFESTIN, 2009RAFFESTIN, C. A produção das estruturas espaciais e sua representação. In: SAQUET, M. e SPOSITO. Territórios e territorialidades. Teorias, processos e conflitos. São Pailo: Expressão popular, 2009.; RAFFESTIN; BRESSO, 1979RAFFESTIN, C. BRESSO, M. Travail, Space, Pouvoir. Lausanne: L' Age d' Homme, 1979.; SAQUET, 2011SAQUET, Marcos Aurélio. Por uma Geografia das Territorialidades e das Temporalidades. São Paulo: Outras Expressões, 2011.). Um espaço se faz território a partir de processos de apropriação, influência, controles e dominação, por isso, territórios devem ser entendidos como múltiplos em suas relações, manifestações e organizações. O território não está vinculado apenas a sua esfera político-administrativa. Antes envolve relações simbólicas, culturais e econômicas, assim como o modo como as pessoas fazem uso do seu espaço e dão significado ao lugar (HAESBAERT, 2012HAESBAERT, R. O Mito da Desterritorialização. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.).

A diversificada produção acadêmica considerada até agora, nos fornece alicerce para apontamentos em nossa investigação que tem como chave interpretativa a capacidade das redes de sujeitos pertencentes à economia popular de cumprir importante papel de interconexão com interiores. A dinâmica ribeirinha é ampliada por ser relacional. É tanto ponto de conexão enquanto fluxo para formação de redes, quanto materialização do projeto de cada grupo embasado nas "facilidades" e possibilidades que a cidade oferece.

O STUR demonstra o comportamento espacial dos circuitos da economia popular inseridos em contexto específico, ocorrendo práticas espaciais cujo recorte analítico prioriza áreas de influência da cidade de Parintins. Apesar de privilegiar dinâmica sub-regional e intraurbana, considerar dinâmicas transescalares é imprescindível, necessitando de estudos futuros para melhor detalhamento dessas complexas relações existentes com a rede urbana regional (com forte influência da metrópole Manaus em disputa com a rede urbana paraense), e escalas nacionais e globais. Tais conexões acabam sendo evidenciadas pelo tipo de bens industrializados que são distribuídos por Parintins, vindos da capital amazonense, e outras regiões a partir de Santarém (PA) e Belém (PA). A existência de fixos e fluxos adjacentes é também necessária na realização das forças centrífugas e centrípetas do STUR.

Resumidamente, o papel mediador que o STUR abrange aparece em cinco vertentes: i) zonal e topológico: conectando a cidade através de redes temáticas a pontos diversos do entorno sub-regional pela navegação fluvial; ii) produção e configuração de fragmentos do espaço intraurbano constituindo fixos úteis para a navegação por exemplo; iii) econômico dual e complementar: sendo dinamizado principalmente pela economia popular mas em interação constante com as esferas de valorização do capital mercantil dominantes na cidade (em alguns casos, saltos escalares ocorrem em relações diversas que ultrapassam a sub-região); iv) organizacional e institucional: outros tipos de coalizão de sujeitos ganham relevância (cooperativas, associações, colônias de pescadores, etc.), mediando ações que se desdobram em práticas sobre o território; v) simbólico-cultural: traços da cultura cabocla e ribeirinha, indígena ou de conhecimentos populares são absorvidos e resignificados pela inserção ao processo urbano. Pela natureza dos dados apresentados, detalharemos a primeira vertente. As demais são apresentadas em Bartoli (2017)BARTOLI, E. O Retorno ao Território a partir da cidade. Presidente Prudente: PPGG / UNESP, (Tese de Doutorado), 2017..

i) Navegação fluvial e a dinâmica sub-regional

Na escala sub-regional, os fluxos de navegação dinamizam áreas de abrangências variadas. Incontáveis canoas de portes variados, não registradas em Capitanias, nas beiras de rio da cidade são muito úteis à configuração do STUR, pois percorrem pequenas e médias distâncias atravessando canais hídricos rasos, alcançando áreas e recursos não acessíveis por outras embarcações. Rabetas e bajarinhas são ágeis em canais estreitos e extraem recursos que abastecem também o sistema mercantil dominante com peixe, madeira e até ouro nos garimpos clandestinos ou mesmo a maconha cultivada no município de Maués (AM). Usadas para burlar territórios de acordos de pesca (lagos protegidos pelas comunidades com apoio do IBAMA e outras instituições) ou Unidades de Conservação, são dificilmente pegos pela escassa fiscalização ou por comunitários locais que vigiam lagos protegidos. São circuitos de circulação extremamente complexos atingindo também áreas longínquas, internalizando tensões e conflitos raramente noticiados nas cidades e abastecendo, ainda, setores mercantis urbanos de várias formas. Ajudam assim a formar sistemas territoriais fortalecidos pela ilegalidade, denotando poder às elites urbanas que enriquecem com tais atividades.

Já o batelão, casco médio de madeira que varia entre 12 e 20 metros recebe vários tipos de funções, aparecendo como uma das materializações mais claras entre o STUR e o Sistema Territorial estruturado pelas grandes empresas comerciais. É o modelo de barco mais difundido regionalmente sendo adaptado a diversas atividades como transporte de gado, pescado, madeira e até posto de gasolina. Servem ainda como moradias pelo enorme déficit habitacional da cidade. Podem ser comandados por experientes comandantes, conhecedores de intrincados e complexos caminhos que mudam de acordo com a sazonalidade hídrica. Todavia, também abastecem setores mercantis como empresas de pesca, extração de madeira ou transporte de poucas cabeças de gado.

Tais embarcações usadas no STUR são conectoras flexíveis da intermediação entre "dois mundos" (cidades - interiores) que, a nosso ver, se interpenetram e se sobrepõem em variadas instâncias, aparecendo como mediação técnica dessa lógica: antigos barcos, bajaras, balieiros e canoas que vão se adequando cada vez mais às características da economia popular influenciada pela reprodução do capital mercantil urbano ou de circuitos superiores ligados a grandes empresas (realizando distribuição e consumo de produtos, como vimos). Servem os habitantes da Amazônia na oscilação sazonal das águas no cada vez mais intenso "vai e vem" entre cidade-rios-interiores. Tais embarcações de madeira ainda transportam pessoas de comunidades que não possuem translado via lanchas de alumínio, que ultimamente ganham destaque nas sedes municipais.

ii) Espaço intraurbano

Na escala intraurbana, beiras de rio em bairros populares são interpretadas como nós para construção de práticas espaciais, possuindo importantes pontos de centralidade (feiras, flutuantes, trapiches, aglomerados palafíticos, pequenos portos, etc.). Tais espaços contribuem na formação das territorialidades urbano-ribeirinhas, condicionando a maneira com que sujeitos circulam e delimitam esses nós multireticulares compostos por conjunto de fixos.

Somam-se às atividades econômicas que compõem o STUR, os pequenos comércios informais dos bairros populares, e as diversas interações e condicionamentos vinculados à reprodução do capital mercantil. Este capital vem transmutando as formas da cidade em benefício próprio (descrito nas tipologias de beiras de rio - BARTOLI, 2017BARTOLI, E. O Retorno ao Território a partir da cidade. Presidente Prudente: PPGG / UNESP, (Tese de Doutorado), 2017., p. 196), reduzindo cada vez mais os espaços de vivências ribeirinhas com a privatização das margens que são submetidas ao domínio da troca, cuja lógica da propriedade se sobrepõe aos usos livres que populações diversas sempre tiveram com os rios, mas sem anulá-las. Longos trechos nas beiras de rio em Parintins acabaram se submetendo quase totalmente a essa lógica de apropriação do espaço, segregando e proibindo atracagem de pequenos barcos, impondo racionalidade externa (formas geométricas ao uso das margens alteradas na evolução do plano urbano), afetando outras formas de apropriação. Em detrimento das pequenas e médias embarcações de madeira, surgem grandes balsas e barcos de ferro, barcos postos de combustível e lanchas "à jato".8 (8) Nome popular dado às lanchas de alumínio que fazem trajetos em até um quarto do tempo gasto pelas embarcações de madeira mais lentas.

Esses rebatimentos espaciais aparecem como "pistas" interpretadas como manifestações de disputas por acesso a pontos na cidade que servem como apoios para conectar interiores ou ligar a cidade à rede urbana regional. Tais fragmentos em beiras de rio indicam que o processo urbano não se encerra em tais formas. Antes, se desdobra na maneira como as embarcações formam eixo mediador-conector do STUR. A construção desses fragmentos demonstra a diferencial capacidade que redes de sujeitos possuem em produzir tais configurações espaciais, salientando o exercício do poder: pontos privilegiados para uso exclusivo do sistema territorial dominante.

iii) Sistema territorial mercantil dominante

O STUR é extremamente necessário para as atividades realizadas no sistema territorial mercantil dominante, sendo impulsionado e explorado pelo mesmo. É possível afirmar, portanto, que há formação de um Sistema Territorial Urbano-Fluvial (STUF), atrelado a esse capital mercantil, que cada vez mais se sobrepõe e absorve dinâmicas ribeirinhas. Isso é perceptível pela apreensão da paisagem e mapeamento de usos do solo urbano beira-rio associado aos relatos dos pescadores (exercícios de cartografia participativa - BARTOLI, 2017BARTOLI, E. O Retorno ao Território a partir da cidade. Presidente Prudente: PPGG / UNESP, (Tese de Doutorado), 2017.). Usamos o termo fluvial considerando que, para os sujeitos que impulsionam esse sistema, os rios são usados primordialmente para circulação de mercadorias. Não há intenção de manter práticas diárias, que tem no rio um aspecto simbólico, cultural/identitário (ribeirinho), lúdico ou para subsistência, sendo um sistema vinculado a atividades ligadas a relações escalares diversas, principalmente com a metrópole Manaus.

Grupos de grandes empresários locais configuram o STUF tendo a cidade com nó para extração de recursos naturais e base de ações onde: i) Há rebatimento espacial, pois possuem maior poder de organizar espaços partindo da posse de lotes e glebas, materializados principalmente nos portos, o que confere maior extração de renda; ii) Incentivam circuitos econômicos geradores de maior impacto ambiental em extensas áreas a partir de ações como extração de madeira, areia, seixo e criação de gado, búfalos, pesca comercial, etc.; iii) uso de embarcações: grandes balsas de carga, balsas de combustíveis, empurradores, barcos tanque de gasolina, barcos grandes de ferro, lanchas e iates de veraneio.10 (10) Deixaremos de lado os cargueiros utilizados para transporte de produtos produzidos pelo Polo industrial de Manaus e os transatlânticos de turistas que ancoram em Parintins, pois exigiriam ampliação dos sistemas atrelados a outras frações do capital, mas sendo tema de estudos frutíferos em pesquisas futuras.

Apesar de também afetados pelos ciclos da natureza (sazonalidade fluvial, principalmente), o STUF possui maior margem recursiva para minimizar efeitos. Destaca-se a posse dos terrenos frontais da cidade navegáveis o ano todo e pela natureza das embarcações e lugares acessados. Não necessitam transitar por furos, paranás menores ou lagos para busca de recursos (delegam isso ao STUR!). Exemplo marcante ocorre na comparação entre os portos do STUF que se localizam nos terrenos frontais da cidade que não secam, e os flutuantes-marina de bairros populares, situados em lagos periféricos da cidade, sujeitos às secas que impedem acesso a tais bairros via navegação. Essa produção desigual do espaço afeta a mobilidade de populares que sofrem por deixar suas embarcações longe de suas moradias na seca, necessitando pagar vigias.

Cada vez mais o STUR e o STUF se complementam, interpenetram. Isso ocorre com a aceleração dos processos de urbanização, intensificação da demanda por recursos naturais na cidade, e propagação do modo de vida e consumo urbano.

De maneira resumida, apresentamos na figura 3 a interação e composição entre os sistemas. As circunferências pontilhadas (permeabilidades e interpenetrações) representam a abrangência dos sistemas e interações entre STUR e o STUF, atingindo sistemas territoriais ribeirinhos com pouca interação com a cidade.

Figura 3
Conexões entre os sistemas territoriais mediados pela cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A falta de dinamismo econômico interno de cidades com intensa dinâmica ribeirinha como Parintins, requer que outras propostas metodológicas sejam discutidas cuja análise pretende contribuir, pois: em cidades dinamizadas por fluxos via transporte fluvial (regional e sub-regional), as redes locais de sujeitos realizam distribuição de produtos industrializados para as comunidades interioranas através de embarcações de médio e pequeno porte, cujos proprietários são também pequenos comerciantes, produtores rurais, criadores de gado ou pescadores, que transitam entre a cidade e interiores. Tais redes de sujeitos que compõem o STUR requerem metodologias inovadoras para entendimento de suas dinâmicas: transescalar, reticular e nodal.

A partir das práticas espaciais são construídas territorialidades onde podem ser delimitados acessos restritos e direitos desiguais de produção e ordenamento do território (principalmente no espaço intraurbano como nó multireticular) conferindo a este, sua definição clássica atrelada ao exercício de poder. O Sistema Territorial Urbano-Fluvial passa a ordenar a divisão territorial do trabalho a seu favor, afetando os demais sistemas ao impor uma lógica mais funcional, ditando preços e controlando o mercado urbano de absorção dos produtos e mercadorias advindos de florestas e rios. Por outro lado, não anula práticas espaciais (com fortes características culturais) e criativas territorialidades dos demais sistemas.

A força centrífuga do STUR é aquela relativa à busca do complemento dual repetido ao longo do texto: economia mercantil dominante influenciando a popular (usufruindo de seus saberes) e compondo parte expressiva da economia urbana. A estrutura da cidade propicia condições para práticas espaciais fornecendo base de ação para que sujeitos atinjam localidades cada vez mais distantes, distribuindo assim produtos industrializados, dialogando com a tese da urbanização extensiva. Os dados levantados evidenciam o aumento substancial da circunscrição espacial que essa economia popular é capaz de atingir, que propicia também exploração de produtos regionais para a cidade.

Já a força centrípeta no STUR consiste no movimento contínuo de populações que: a) Migram na busca de benesses e melhorias que a cidade oferta, como no acesso a serviços, instituições de fomento, bancos, mercados e tantas outras "facilidades" urbanas, indutoras de novos contextos de inserção de sujeitos na cidade. b) Necessitam "absorver" complementos recursivos dos interiores para complementar renda: madeira para moradia popular, barcos ou para pequena indústria moveleira; peixes para alimento ou processamento; palha; piaçava; carne de caça ou quelônios, pequenas produções de gado, etc.

A complexa interação entre os dois sistemas territoriais (STUR e STUF) funcionam como estruturadores da esfera direta de influência urbana de Parintins. Tanto no aspecto nodal-zonal, ligam fragmentos do espaço intraurbano através de seus caudais hídricos a territórios circundantes. Como no aspecto relacional, permitem interpenetração de atividades para o complemento da economia urbana, influenciando (ou sendo influenciados como no caso do STUR) para o uso e reordenamento de territórios. Tais tipos de estudos podem ser boas alternativas para o entendimento das dinâmicas na produção de territórios que circundam cidades na Amazônia.

  • (1)
    Schor e Oliveira (2016)SCHOR, Tatiana ; COSTA, Danielle, P; OLIVEIRA, J. A. Cidades, rede urbana e desenvolvimento na Amazônia dos Grandes Rios. In: TRINDADE Jr., Saint-Clair Cordeiro; CARVALHO, Guilherme; MOURA, Aldebaran; GOMES NETO, João. (Org.). Pequenas e médias cidades na Amazônia. Manaus: FASE/UFPA, 2009, v. , p. 35-58. enfatizam a presença de serviços de saúde em Parintins, o que aumenta sua responsabilidade territorial, pois a cidade passa a atender municípios circunvizinhos.
  • (2)
    Em Bartoli (2017)BARTOLI, E. O Retorno ao Território a partir da cidade. Presidente Prudente: PPGG / UNESP, (Tese de Doutorado), 2017. demonstramos a multidimensionalidade presente em retornos a territórios de grupos urbanos como indígenas, pescadores, extrativistas e produtores de embarcações regionais. Tais "retornos" foram diferenciados pela maneira com que os grupos formularam projetos em coletivos organizados, alterando o modo como articularam territórios a partir da cidade: novas técnicas, mercados diferenciados atingidos, saltos escalares ou maior submissão ao mercado regional urbano.
  • (3)
  • (4)
    Coraggio (1991, p. 335)CORAGGIO, J. L. Ciudades sin rumbo. Quito: Ciudad - SIAP, 1991. define por economia popular en una primera aproximación, el conjunto de recursos, prácticas y relaciones económicas propias de los agentes económicos populares de una sociedad", Le., aqueles agentes que compõem unidades de reproducción [que] dependen de su propio fondo de trabajo (Ias capacidades conjuntas de trabajo de sus miembros)..." (Idem, p. 336)
  • (5)
    O termo "interior" é o mais utilizado pelas populações locais, tendo sentido generalista que abarca a multiplicidade de lugares, vilas, fazendas, aldeias e comunidades existentes.
  • (6)
    Esse tipo de metodologia é extremamente importante, pois o olhar estabelecido pelo IBGE para análise da hierarquia urbana não abarca toda a multiplicidade de relações existentes nessas cidades, sendo preciso investigar outros conjuntos de variáveis para a melhor compreensão da rede urbana amazônica, propondo tipologias de cidades e superando recursos analíticos que se apoiam na dicotomia rural-urbano.
  • (7)
    Outra análise de rede temática, relativa ao manejo do pirarucu no município de Fonte Boa (calha do rio Solimões - AM), Carvalho (2010)SCHOR, Tatiana ; COSTA, Danielle, P; OLIVEIRA, J. A. Cidades, rede urbana e desenvolvimento na Amazônia dos Grandes Rios. In: TRINDADE Jr., Saint-Clair Cordeiro; CARVALHO, Guilherme; MOURA, Aldebaran; GOMES NETO, João. (Org.). Pequenas e médias cidades na Amazônia. Manaus: FASE/UFPA, 2009, v. , p. 35-58.
  • (8)
    Nome popular dado às lanchas de alumínio que fazem trajetos em até um quarto do tempo gasto pelas embarcações de madeira mais lentas.
  • (9)
    Há variada pulverização dos investimentos do chamado capital mercantil, que em constante metamorfose se adapta a diversas circunstâncias e cenários. No caso de Parintins, tais esferas também se aproveitam do boom gerado pelo sucesso do Festival Folclórico, se inserindo em atividades hoteleiras, redes de supermercados, agências de turismo, empresas de locação de equipamentos de som e iluminação, etc.
  • (10)

    Deixaremos de lado os cargueiros utilizados para transporte de produtos produzidos pelo Polo industrial de Manaus e os transatlânticos de turistas que ancoram em Parintins, pois exigiriam ampliação dos sistemas atrelados a outras frações do capital, mas sendo tema de estudos frutíferos em pesquisas futuras.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

  • ARAUJO, Felipe Nascimento. As diferentes formas de relação patrão/freguês 2016. 174 f., il. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)-Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
  • BARTOLI, E. Ações Indígenas Sateré-Mawé na Cidade de Parintins (AM) e a Formação de Sistemas Locais Territoriais Urbano-Ribeirinhos. In: Simpósio Nacional de geografia Urbana (SIMPURB), CD-room. Fortaleza: UFCE, 2015.
  • BARTOLI, E. O Retorno ao Território a partir da cidade Presidente Prudente: PPGG / UNESP, (Tese de Doutorado), 2017.
  • BECKER, B. K. Amazônia São Paulo: Ed. Ática. Série Princípios, 1990
  • BECKER, B. K. Amazônia Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
  • BECKER, B. K. A Urbe Amazônida Rio de Janeiro: Garamond, 2013.
  • BROWDER J.O. GODFREY, B.J. Cidades na Floresta Manaus: EDUA, 2006.
  • CORAGGIO, J. L. Ciudades sin rumbo Quito: Ciudad - SIAP, 1991.
  • DAMIANI, A. L. Cidades Médias e Pequenas no Processo de Globalização. In: América Latina CLACSO: São Paulo, 2006.
  • DEMATTEIS, G. Il sistemi territoriali in um'ottica evoluzionista. in: DEMATTEIS G. GOVERNA, F. (orgs.). Territorialità, sviluppo locale, sostenibilità Milano: Angeli, 2005.
  • DEMATTEIS, G. Sistema Local Territorial (SLoT): um instrumento para representar, ler e transformar o teritório. In: ALVES, A. CORRIJO, B. CANDIOTTO, L. (orgs.). Desenvolvimento Territorial e Agroecologia São Paulo: Expressão Popular, 2008.
  • GENTIL, Janete. A noção do Urbano em Áreas de Fronteira: uma revisão teórica. in: Seminário sobre Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1988.
  • HAESBAERT, R. O Mito da Desterritorialização Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
  • IBGE. Censo Demográfico 2010 Disponível em <www.ibge.gov.br>. 2010. Acesso em 23/10/2014.
    » www.ibge.gov.br
  • MONTE-MÓR, R.L. A Urbanização Extensiva e Lógica de Povoamento. SANTOS, Milton et. al. (orgs.) Território, globalização e fragmentação São Paulo: Hucitec/Anpur, 1994 (pp. 169-181)
  • MONTE-MÓR, R.L. A relação urbano-rural no Brasil contemporâneo. Trabalho apresentado no "I seminário Internacional Sobre Desenvolvimento Regional". Santa Cruz do Sul - RS, UNISC, Out. 2004.
  • MONTE-MÓR, R.L. As Redes Para Além dos Rios. in: Nova Economia - Belo Horizonte: 19 (1), 11-39, jan-abr. 2009.
  • MORAES, A. O. "peixe, farinha e frango congelado: rede urbana e alimentação na calha do rio Solimões." In: Anais do XV Encontro Nacional de Geógrafos (ENG) São Paulo: 2008.
  • MORAES, André de Oliveira. Peixes, redes e cidades Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia) -- Universidade Federal do Amazonas, - Manaus: UFAM, 2012.
  • MORAES, A. Embalando Mercados em Redes Urbanas: alimentação e pesca articulando cidades na Amazônia brasileira. in: SCHOR, T. (org.). Dinâmica Urbana na Amazônia - vol. 1. Manaus: Valer, 2014.
  • MORAES, A. O. SCHOR, T. ALVES-GOMES, J. A. O Mercado de Bagres e a Configuração da Rede Urbana no Alto e Médio Solimões, Amazonas, Brasil. Caderno Prudentino de Geografia V.1, n.32, p.93-110. 2010.
  • OLIVEIRA, J. A. Cidades na Selva. Manaus: Valer, 2000.
  • OLIVEIRA, José Aldemir de; SCHOR, Tatiana. Urbanização na Amazônia GEEA-Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos - Caderno Debates, vol. III, Manaus: Editora do INPA, 2010. 147-189.
  • RAFFESTIN, C. Por Uma Geografia do Poder São Paulo: Ática, 1993.
  • RAFFESTIN, C. A produção das estruturas espaciais e sua representação. In: SAQUET, M. e SPOSITO. Territórios e territorialidades. Teorias, processos e conflitos São Pailo: Expressão popular, 2009.
  • RAFFESTIN, C. BRESSO, M. Travail, Space, Pouvoir Lausanne: L' Age d' Homme, 1979.
  • SACK, R. O significado de territorialidade. in: Leila Cristina Dias e Maristela Ferrari (orgs.). Territorialidades Humanas e Redes Sociais Florianópolis: Insular, 2013.
  • SANTOS, M. A Natureza do Espaço São Paulo: EDUSP, 2004.
  • SANTOS, M. SILVEIRA, M. L. Brasil Rio de Janeiro: Record, 2003.
  • SAQUET, Marcos Aurélio. Abordagens e Concepções de Território São Paulo: Expressão Popular, 2007.
  • SAQUET, Marcos Aurélio. Por uma Geografia das Territorialidades e das Temporalidades São Paulo: Outras Expressões, 2011.
  • SEMPA. Plano de Ação para o Setor Primário de Parintins, Prefeitura Municipal de Parintins - PMP- Secretaria Municipal de Pecuária, Agricultura e Abastecimento - Sempa, 2017.
  • SCHOR, Tatiana ; COSTA, Danielle, P; OLIVEIRA, J. A. Cidades, rede urbana e desenvolvimento na Amazônia dos Grandes Rios. In: TRINDADE Jr., Saint-Clair Cordeiro; CARVALHO, Guilherme; MOURA, Aldebaran; GOMES NETO, João. (Org.). Pequenas e médias cidades na Amazônia Manaus: FASE/UFPA, 2009, v. , p. 35-58.
  • SCHOR, T. (org.). Dinâmica Urbana na Amazônia Brasileira Manaus: Valer, 2014.
  • SILVA, M. A. MALHEIRO, B. C. P. A face Ribeirinha da Orla Fluvial de Belém. In: TRINDADE JR., Saint Clair Cordeiro da; SILVA, Marcos Alexandre Pimentel da (orgs.). Belém Belém: EDUFPA, 2005.
  • TRINDADE JR. S. C. Cidades na Floresta: os "grandes objetos" como expressões do meio técnico-científico informacional no espaço amazônico. Revista IEB, n50 set./mar. 2010.
  • TRINDADE JR. S. C. SILVA, M. A. P. AMARAL, M. D. B. Das "Janelas" às "Portas" para os Rios: compreendendo as cidades ribeirinhas na Amazônia. in: TRINDADE JR. S. C. TAVARES, M. G. Cidades Ribeirinhas na Amazônia. Mudanças e Permanências Belém: EDUFPA. 2008.
  • VICENTINI, Y. Cidade e História na Amazônia Curitiba: UFPR, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2018
  • Aceito
    17 Jul 2018
Universidade Federal do Ceará UFC - Campi do Pici, Bloco 911, 60440-900 Fortaleza, Ceará, Brasil, Tel.: (55 85) 3366 9855, Fax: (55 85) 3366 9864 - Fortaleza - CE - Brazil
E-mail: edantas@ufc.br