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POLÍTICAS URBANÍSTICAS E TERRITÓRIO USADO EM ÁREAS RIBEIRINHAS

POLITIQUES URBANISTIQUES ET USAGE DU TERRITOIRE DANS LES BERGES

Resumo

Este artigo tem a intenção de elucidar a natureza do território usado nas políticas urbanísticas implementadas em áreas ribeirinhas da cidade do Recife. Inserindo-se na perspectiva da abordagem socioterritorial, o estudo foi viabilizado pela análise comparativa entre duas práticas diferentes de políticas urbanísticas de uso da natureza na cidade, as de Lyon (França) e Recife (Brasil), ressaltando suas semelhanças e diferenças. O principal resultado da pesquisa refere-se à comprovação de que, na primeira cidade, há tendência de usos coletivos dos espaços requalificados situados nas proximidades dos seus rios principais, enquanto que, na segunda, o uso é nitidamente seletivo; o que se deve, sobretudo, à natureza da formação histórico-territorial inerente a cada lugar considerado.

Palavras-chave:
Natureza; Políticas Urbanísticas; Áreas Ribeirinhas; Lyon; Recife

Résumé

Cet article a l'intention d'élucider la nature du territoire usé dans les politiques urbanistiques mises sur place dans les berges de la ville de Recife. Il s'agissant d'une perspective liée à l'approche socioterritoriale, l'étude a été réalisée par le moyen de l'analyse comparée entre deux pratiques diferentes de politiques urbanistiques de l'usage de la nature dans la ville, celle de Lyon (France) et celle de Recife (Brésil), en mettant l'accent sur leus similitudes et différences. Le principal résultat de la recherhce a trait à la constatation selon laquelle, dans la première ville, il y a une tendance à l'usage collectif des espaces réqualifiés situés aux proximités des leurs principaux fleuves, tandis que, dans la deuxièmes, l'usage est clairement sélectif; ce qui ce doit, surtout, à la nature de la formação historique-territoriale líée à chaque lieu considéré.

Mots-clés:
Nature; Politiques Urbanistiques; Berges; Lyon; Recife

Abstract

This article aims at elucidating the nature of used territory in urbanistical policies implemented in riverside áreas in Recife's town. Taking part in a perspective of the socioterritorial apporoach, the study was carried out by a comparative analysis between two different experiences in terms of territory used, in Lyon (France) and in Recife (Brazil), putting in evidence their similarities and differences. The main result of this research was to corroborate the fact that, in the first city, there are trend towards collective uses of requalified spaces located next to the main rivers, whereas, in the second, the territory use is more selective; which is due, mainly, to the historical-territorial nature inherent to each space taken into account.

Keywords:
Nature; Urbanistic Policies; Riverine Areas; Lyon; Recife

INTRODUÇÃO

A geografia é um campo do conhecimento científico que estuda a sociedade através da sua dimensão espacial (SANTOS, 1980; 1997______. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997. 259p.), que é usada, ao mesmo tempo, como meio e condição (LEFEBVRE, 1974LEFEBVRE, H. La production de l'espace. París: Éditions anthropos, 1974. 485p.) à realização da vida humana em todas as perspectivas do seu acontecer histórico. Isso ocorre segundo um conjunto de interesses representados por diferentes projetos de vida elaborados e implementados para conquistar posições estratégicas, durante sua existência no espaço.

Considera-se o espaço no âmbito do seu uso, aproveitando-se do que ele contém para atender aos interesses dos agentes territoriais em conflito permanente. Com efeito, qualquer ação social possui o espaço como referência, suporte e condição da sua própria dinâmica a exemplo do que ocorre com o uso do conteúdo "natural" - água, vegetação, ar, solo, etc. - e a cultura no processo permanente de valorização capitalista do espaço.

O artigo analisa o território usado nas políticas urbanísticas em áreas ribeirinhas, no atual contexto histórico de revalorização dos elementos da natureza presentes nas cidades. As águas fluviais constituem o elemento escolhido à realização da análise, tomando como base experiências de uso das áreas que se situam no seu entorno através das políticas urbanísticas em duas cidades, Recife (Brasil) e Lyon (França). A escolha justifica-se, principalmente, pela marcante presença dos rios nas paisagens e dinâmicas urbanas de ambas as cidades ora consideradas.

Existem diferenças marcantes no que tange à natureza das políticas urbanísticas, segundo os lugares de países "desenvolvidos" e "subdesenvolvidos", bem como às possibilidades concretas de mudanças em termos de uso do território visando à construção do espaço do cidadão (SANTOS, 1987______. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. 176p.) e promovendo o efetivo direito à cidade (LEFEBVRE, 2001______. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. 141p.). Portanto, o território, como instância social usada, em seu permanente processo de movimento, torna-se uma categoria de análise fundamental para a geografia. Para Santos (2007, p. 14)______. O dinheiro e o território. In: SANTOS, M. et al. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007. p. 13-21., o território

[...] não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas; [ele] tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.

França e Brasil acham-se sob uma lógica semelhante do acontecer histórico global, o da globalização, que é a face atual do processo de mundialização. Contudo, devido às especificidades socioculturais de cada formação territorial, cada lugar apresenta reações diferentes. A análise comparativa faz-se importante para apreender e aprender, dialogicamente, a complexidade e os sentidos do mundo em seu permanente movimento histórico.

É em função da complexidade do mundo - ao mesmo tempo fragmentado e articulado, sob uma dada racionalidade teórico-prática - que, desde a Antiguidade, o método comparativo tem sido um dos procedimentos mais utilizados pela ciência. Ademais, lança-se mão do raciocínio comparativo para descobrir regularidades, perceber deslocamentos e transformações, construir modelos e tipologias, identificando continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças, explicitando as determinações mais gerais que regem os fenômenos sociais. (SCHNEIDER & SCHIMITT, 1988, p. 49) A análise comparativa não é, portanto, uma simples técnica de coleta de dados e informações ao nível da empiria, mas um amplo instrumento metodológico capaz de dar suporte à abordagem socioterritorial do mundo.

Segundo Marc Bloch, '[...] aplicar o método comparativo no quadro das ciências humanas consiste [...] em buscar, para explicá-las, as semelhanças e as diferenças que apresentam duas séries de natureza análoga, tomadas de meios sociais distintos'. Os meios sociais de que fala Bloch podem ser sociedades distantes no tempo e no espaço (essa aplicação é [...] bastante própria da história), ou sociedades sincrônicas, vizinhas no espaço, e que possuem um ou mais pontos de origem comum. Este tipo de abordagem permite conciliar, de um lado, o trabalho de elaboração teórica, de outro, o interesse voltado à análise de processos sociais específicos. (SCHNEIDER & SCHIMITT, 1998SCHNEIDER, S. & SCHIMITT, C. J. O uso do método comparativo nas ciências sociais. Cadernos de sociologia, Porto Alegre, v.9, p. 49-87, 1998., p. 33)

Os processos sociais possuem sua dimensão espacial, situada em contextos temporo-espaciais diversos, articulados pela lógica do desenvolvimento histórico-geográfico desigual e combinado que privatiza e transforma em mercadoria tudo o que encontra à sua frente, muito embora isto não aconteça da mesma forma em todos os lugares do mundo.

Segundo Brandão (2013)BRANDÃO, P. R. B. Território do turismo, territórios de todos? Um estudo comparado sobre urbanização e formação de territórios em balneários turísticos do Nordeste do Brasil. 2013. 303f. Tese (Doutorado em geografia), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013., M. Santos foi um dos poucos que enfrentou o debate acerca da relevância da aplicação do método comparativo na geografia. Para Santos (1986, p. 15-16)SANTOS, M. O trabalho do geógrafo no terceiro mundo. 2ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1986. 133p., por sua vez, fundamentando-se em contribuição de Yves Lacoste, "[...] 'o procedimento comparativo, um dos principais trunfos do método geográfico, só pode frutificar quando são claramente percebidos os processos e as características fundamentais comuns às situações particulares que se compara'." E quando tais processos e características são claramente percebidos, ter-se-á condições mais propícias para se entender o espaço como uma totalidade complexa.

Além dos pressupostos acima, o texto foi estruturado de maneira a abordar a natureza do território usado nas políticas urbanísticas; a destacar, em seguida, as semelhanças e diferenças inerentes ao território usado em Lyon e Recife, segundo as especificidades socioterritoriais de cada lugar; e, por último, a tecer considerações finais sobre o raciocínio, enfatizando alguns pontos necessários para uma política urbanística que faça valer o espaço do cidadão.

POLÍTICAS URBANÍSTICAS E TERRITÓRIO USADO NO BRASIL

O urbanismo como ciência e prática, em princípio, preocupa-se com a necessidade de conter e regular os impulsos perversos do capitalismo, mesmo que mantendo as relações vigentes de dominação inerentes a este sistema socioterritorial, o que acontece, por exemplo, através da ação do Estado como agente planejador do uso do território.

Colocando-se cético com relação ao planejamento convencional executado pelo Estado e defendendo-o como um ato político de interesse coletivo que, portanto, deveria dialogar com a coletividade socioterritorial, Friedmann (1987)FRIEDMANN, J. Planning in the public domain: from knowledge to action. Princeton: Princeton University Press, 1987. 229p. compreendera o planejamento como norteador do futuro da sociedade no âmbito de uma perspectiva efetivamente democrática capaz de controlar e regular os impulsos negativos e perversos de um capitalismo perverso.

Entretanto, a retomada dos princípios da razão neoliberal de mundo vem reconfigurando a perspectiva de urbanismo acima ressaltada, reduzindo-o a meras ações mecânicas legitimadoras dos interesses hegemônicos. Nesta perspectiva, define-se as políticas urbanísticas ora analisadas como ações do Estado no espaço urbano cujas intencionalidades, sob o capitalismo, tornaram-se ainda mais obscuras, visando esconder seu caráter privatista-seletivo.

Políticas são atos oriundos das relações de força [...] na sociedade materializados sob diversas formas. São [...] públicas quando essas ações são comandadas por agentes estatais e destinadas a alterar as relações sociais existentes. As políticas públicas são manifestações das relações de forças sociais referidas nas instituições estatais e atuam sobre campos institucionais diversos [...], destinando-se a alterar as relações sociais estabelecidas. (NETTO OLIVEIRA, 2008NETTO OLIVEIRA, L. V. Estado e políticas públicas no Brasil: desafios ante a conjuntura neoliberal. Serviço social & sociedade, São Paulo, ano XXIX, 93, p.101-123, 2008., p. 102)

Na perspectiva urbano-ambiental, políticas públicas, segundo Franco (2001, p. 285)FRANCO, M. de A. R. Planejamento ambiental para a cidade sustentável. 2ª ed. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001. 296p., constituem ações implementadas para induzir a concretização da chamada

[...] Cidade Sustentável, apoiando-se no princípio da integração homem-ambiente através da prática [...] da preservação, recuperação e conservação nas intervenções humanas sobre o território e [...] na construção e manejo dos artefatos urbanos [...], vistas como ecossistemas humanos e [...] em suas complexas relações com os ecossistemas chamados 'naturais', bem como com a rede de cidades de seu entorno regional e tendo em vista a rede mundializada.

Se por um lado a implementação de ações urbanísticas não respeita as territorialidades das classes subalternizadas em função dos imperativos da razão neoliberal; por outro, poderá mudar esse quadro de referências, tornando-se políticas públicas quando se conseguir alterar o contexto de desigualdades e injustiças socioterritoriais, fazendo valer o interesse público para garantir o Bem Viver. Este refere-se a uma perspectiva de valor proveniente de experiências latino-americanas - especificamente proveniente do Equador e da Bolívia - que, considerando a revalorização da dimensão da natureza como parte intrínseca do ser humano, ultrapassa a do Bem-Estar. Esta última é proveniente de experiências da Europa materializadas em ampla escala desde o Pós Segunda Guerra Mundial, sobretudo em França, Alemanha, Suécia, etc. Destarte, o discurso ambiental pode constituir-se como uma última cartada rumo a outra possibilidade de mundo na medida em que, segundo Freitas (2017, p. 13)FREITAS, Clarissa F. Sampaio. Regulações territoriais e expansão urbana informal: é possível preservar e incluir? Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Paranoá, 19, 2017, DOI: http://dx.doi.org/10.18830/issn.1679-0944.n19.2017.02
http://dx.doi.org/10.18830/issn.1679-094...
, "[...] ao relacionar a questão da degradação ambiental com a questão habitacional, podem-se unir dois movimentos sociais que têm até então seguido trajetórias paralelas, e muitas vezes entrado em conflito entre si".

Leva-se em conta, portanto, uma concepção ampla de políticas públicas, considerando a complexidade da dimensão vivida dos territórios atingidos. A "[...] concepção ampla de políticas públicas inclui a [...] integração e interação entre as diversas modalidades de políticas governamentais [preventivas, compensatórias e redistributivas], bem como entre os diferentes níveis do governo [municipal, estadual, federal]". (NETTO OLIVEIRA, 2002NETTO OLIVEIRA, L. V. Estado e políticas públicas no Brasil: desafios ante a conjuntura neoliberal. Serviço social & sociedade, São Paulo, ano XXIX, 93, p.101-123, 2008., p. 106)

Procurando demonstrar a complexidade das ações em epígrafe, a autora ainda ressalta que "[...] as políticas públicas de cunho social devem ser entendidas historicamente em relação aos processos de avanços e retrocessos das orientações do Estado [principal 'comandante' das políticas públicas]" (Ibidem). Para isso, deve-se considerar as relações entre Estado e mercado no âmbito da luta de interesses envolvidos no processo de definição da política pública.

Todavia, como escrito por Araújo (2000)ARAÚJO, T. B. de. Ensaios sobre o desenvolvimento brasileiro. Heranças e urgências. Rio de Janeiro: Revan/Fase, 2000. 392p., não se pode também deixar de levar em conta o conjunto das dificuldades inerentes às heranças autoritárias, patrimonialistas e conservadoras da natureza do Estado brasileiro, as quais em certa medida dificultam a realização dos avanços significativos das políticas públicas implementadas no Brasil.

De acordo com a natureza do Estado brasileiro, as políticas urbanísticas usam o território segundo parâmetros inerentes aos princípios do higienismo, visando à gentrificação dos espaços, a fim de atender aos interesses do Complexo Fundiário Imobiliário Comercial Financeiro (CFICF). Este reúne os agentes que possuem capacidade de controlar o processo de produção do espaço urbano. O higienismo, ação alienadora do espaço, permaneceu no curso da história das políticas urbanísticas, demonstrando o compromisso da gestão urbana para com os interesses homogeneizadores do capitalismo. As intenções de "sanear, embelezar e ordenar" o espaço urbano constituem, como acentuara Moreira (1992, p. 186)MOREIRA, F. D. Higienismo enquanto prática urbanística: o exemplo do Recife no início do século. Cad. Est. Soc., Recife, v. 8, n. 2, p. 185-205, 1992.,

[...] partes interligadas de qualquer projeto de intervenção urbana da época [...]. Tais intervenções se pautam pelo alargamento e criação de grandes avenidas (constantemente implicando em demolições), pela criação de parques e jardins, pela construção e reforma de edifícios públicos [...], além de uma série de posturas que regulamentavam a construção, a disposição hidrosanitária e o aspecto externo dos edifícios.

Não se pode negligenciar a relevância que tais intervenções desempenharam no saneamento da cidade, propiciando a infraestrutura necessária à efetivação de políticas públicas de acesso à água potável, ao tratamento das águas usadas e à coleta do lixo. A universalização do acesso a estes serviços evitou, portanto, a proliferação das epidemias que frequentemente vinham ameaçando a vida humana das cidades.

O higienismo é uma perspectiva de medicina urbana que se ressignifica na história, buscando sempre, segundo Foucault (1990, p. 89)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 9ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990. 174p., fazer a distribuição territorial dos indivíduos colocando-os uns ao lado dos outros, mas alienando-os, isolando-os, individualizando-os, vigiando-os para esquadrinhar o espaço da sociedade, dividindo-o e inspecionando-o, sob um olhar permanentemente controlado. Tais intencionalidades associam-se à da valorização capitalista dos espaços representada pela gentrificação, a qual, na verdade, é o propósito central da implementação dos projetos urbanísticos atuais. Este processo concretiza-se em áreas e

[...] edifícios reabilitados e apartamentos reformados, ou seja, a gentrificação abrange cada vez mais os novos restaurantes e as vias comerciais do centro, os parques em frente ao rio e os cinemas, as torres dos edifícios das marcas famosas, os museus das grandes fundações, os locais turísticos de todo tipo, os complexos culturais, em resumo, [as] grandes operações na paisagem das áreas centrais. [...] Essa renovação representa [...] uma conquista altamente integrada do espaço urbano, na qual o componente residencial não pode ser racionalmente dissociado das transformações das paisagens do emprego, do lazer e do consumo. (SMITH, 2006______. A gentrificação generalizada: de uma anomalia local à "regeneração" urbana como estratégia urbana global. In: BIDOU-ZACHARIASEN, C. (Org.) De volta à cidade: dos processos de gentrificação às políticas de "revitalização" dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006. p. 59-87., p. 72)

A despeito das diferenças contextuais em termos de tempo-espaço, as ações urbanísticas higienistas-gentrificadoras, incentivadas pelo Estado que usa o território como recurso econômico, têm alienado os territórios que se acham no caminho dos imperativos da razão neoliberal que reforça os interesses capitalistas, tal como se pode perceber nos estudos de Pontes (2017)PONTES, B. A. N. M. Desenvolvimento e governança ambiental: em busca de uma outra praxis na dinâmica territorial da Reserva do Paiva-PE. 2017. 200f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017. e Soeiro (2017)SOEIRO, Í. C. de M. Reaproximação forjada da natureza: a utilização da retórica ecológica na produção do espaço urbano de uma cidade latino-americana. 2017. 241f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017..

Se por um lado, a razão neoliberal de mundo tem negado e destruído a natureza; por outro, as relações de proximidade entre sociedade e natureza nunca deixaram de existir, suscitando sua retomada, principalmente quando se deseja resgatar a dimensão ambiental dos territórios usados.

Qu'il s'agisse de la nature abiotique ou du vivant, l'une comme l'autre nécessitent une réflexion approfondie pour aboutir à leur gestion durable. [...] La responsabilité des pouvoirs locaux est engagée dans la création d'un environnement de qualité et dans la protection des écosystèmes. [...] La protection de la nature contribue à développer le sentiment d'appartenance et l'engagement des citadins et citadines vis-à-vis de la communauté. (VEYRET, 2006VEYRET, Yvette. Ville et "nature" dans le monde occidental. In: DORIER-APPRILL, E. (Org.) Ville et environnement. Paris: Sedes, 2006. p. 61-83., p. 79)

Trata-se, enfim, de oportunidades abertas para dar início a mudanças culturais sobre a necessidade de se restabelecer as inter-relações entre sociedade e natureza no pensar e, concomitantemente, no agir, a fim de superar os problemas de grande envergadura; muito embora ainda se tenha que superar problemas de fundo.

Le champ de l'environnement urbain préoccupe fortement les acteurs opérationnels de la ville. [...] Cependant, rares sont les équipes de recherche où les formations de géographes qui, dans ce contexte renouvelé, ont saisi les liens entre l'urbain et l'environnement comme objet central, comme si cette thématique n'était pas digne d'une réflexion scientifique et conceptuelle. [...] Parallèlement, l'émergence de 'l'écologie humaine' et la puissance institutionnelle de l'urbanisme et de l'aménagement qui cherchent à se constituer en disciplines scientifiques autonomes, ont conduit à disqualifier la spécificité des approches géographiques sur ce thème et à oublier leur richesse. (DORIER-APPRILL, 2006DORIER-APPRILL, Elisabeth. La géographie, les villes et l'environnement: débats épistémologiques et enjeux contemporains. In: DORIER-APPRILL, E. (Org.) Ville et environnement. Paris: Sedes, 2006. p. 9-58., p.11)

De acordo com o raciocínio de Veyret (2006)VEYRET, Yvette. Ville et "nature" dans le monde occidental. In: DORIER-APPRILL, E. (Org.) Ville et environnement. Paris: Sedes, 2006. p. 61-83., no que concerne à questão da integração dos cursos fluviais nas políticas urbanísticas em cidades francesas, o que tem ocorrido, em geral, é o reforço dos processos de requalificação urbanística através da reorganização territorial das áreas ribeirinhas com ações de implementação de projetos que viabilizam: a instalação/modernização de vias de acesso; a combinação das funções terciárias, recreativas e residenciais; e a substituição de populações de menor renda pelas mais abastadas, incrementando o setor imobiliário.

O território usado, no capitalismo, é permanentemente reorganizado, como recurso, pelos agentes vinculados ao CFICF no âmbito de um processo contraditório e conflituoso. No caso do espaço urbano, Corrêa (1989, p. 11)CORRÊA, R. L. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 1989. 94p. argumenta que ele é, ao mesmo tempo,

[...] fragmentado, articulado, reflexo, condicionante social, cheio de símbolos e campo de lutas - é um produto social, resultado de ações acumuladas através do tempo, e engendradas por agentes que produzem e consomem espaço. São agentes sociais concretos, e não um mercado invisível ou processos aleatórios atuando sobre um espaço abstrato. A ação destes agentes é complexa, derivando da dinâmica de acumulação de capital, das necessidades mutáveis de reprodução das relações de produção, e dos conflitos de classe que dela emergem.

Em Recife, como em outras cidades que possuem sítios geográficos semelhantes, os conflitos acontecem em torno dos interesses entre as classes que desejam reapropriar-se das áreas ribeirinhas e as que se recusam a abandoná-las. As classes dominantes usam o território para a manutenção dos interesses intrinsecamente vinculados às intencionalidades da razão neoliberal (através de uma complexidade de ações para conquista e apropriação das áreas ribeirinhas que lhes interessam com vistas à sua gentrificação), enquanto que as classes subalternizadas usam o território como proteção, visando à manutenção dos interesses vinculados ao mundo do trabalho e, por sua vez, da sua existência no mundo.

Em tomando consciência da complexidade da natureza do território usado, ter-se-á condições de pensar e refletir sobre perspectivas concretas de mudar ou, pelo menos, de mitigar o sofrimento das pessoas, como dizia Elisée Réclus ainda no século XIX. Do contrário, o espaço continuará sendo alienado (FRÉMONT, 1999FRÉMONT, A. La région espace vécu. Paris: Flammarion, 1999. 288p.) e privatizado, sob o imperativo da conquista permanente de território como recurso econômico. A aceleração desse imperativo acontece para superar o problema da escassez de terrenos com a finalidade de favorecer os interesses do CFICF, que precisam continuar expandindo-se no espaço.

Destarte, em vez do uso do território - e dos elementos da natureza nele presentes - como direito social coletivo, o que se nota é a sua privatização vinculada a demandas extralocais que norteiam os diversos empreendimentos que se utilizam, através do Estado, de ações higienistas para gentrificar os espaços que lhes serve de suporte.

A apropriação e a produção da natureza têm como objetivo a valorização destes referidos empreendimentos, atrelando-os a uma ideia de natureza 'sempre verde e tranquila' [...]. Observa-se o aumento significativo dos empreendimentos imobiliários que usam a 'propaganda verde' [...]. Desta forma, [...] a natureza na cidade é produto da ação social e histórica do homem, as quais, atualmente, estão repletas das intencionalidades capitalistas. Também há uma preocupação na superação da utilização da natureza [...], através da construção de um processo de ação e uso da natureza como uma forma de emancipação coletiva, constituindo no mundo contemporâneo, um direito à natureza na cidade para todos os seus habitantes. (HENRIQUE, 2009HENRIQUE, W. O direito à natureza na cidade. Salvador: Edufba, 2009. 186p., p. 14)

Compreende-se que as classes subalternizadas, autoconscientizando-se de que o conceito de natureza não é natural e estático, podem mudar a situação quando se organizam e se mobilizam, reclamando do Estado as garantias necessárias para fazer valer, também, os seus interesses e, por sua vez, o seu direito a políticas efetivamente públicas com a qualidade que lhes é devida.

No âmbito dos movimentos ambientalistas, por exemplo, o "[...] território não é mais dado a priori, como 'matéria primordial'. Ele é um resultado, uma produção, uma criação coletiva". (MONGIN, 2009MONGIN, O. A condição urbana. A cidade na era da globalização. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. 344p., p. 302)

Sobre esse território local, aquele onde a luta do lugar substitui a luta de classes, pode surgir uma cidade como Insurgent City, [esta] não é uma cidade isolada, uma cidade líquida e aleatória prestes a desaparecer ao primeiro golpe de vento da história; o enredo utópico da cidade coloca cidades em relação entre si. [...] O urbano é então uma criação coletiva contínua, um projeto comum refundador da ligação social e 'recriador de um imaginário social'. (Ibidem, p. 302-303).

É nesta perspectiva que se encontram as possibilidades para a concretização da justiça ambiental/espacial, aproximando autores filiados a diferentes ideologias sobre a questão, tais como Leff (2009)LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis: editora Vozes, 2009. 343p. e Bret (2017)BRET, B. Notion à la une: justice spatiale. Géoconfluences. Disponível em: < http://geoconfluences.ens-lyon.fr/informations-scientifiques/a-la-une/notion-a-la-une/notion-a-la-une-justice-spatiale> Acesso em: março/2018.
http://geoconfluences.ens-lyon.fr/inform...
. Mas que, por outro lado, rumam na construção de uma racionalidade diferente, vislumbrando processos mais justos de território usado. Em sendo assim, não bastaria rearticular natureza e sociedade visto que, na realidade, estas duas dimensões dos homens e das mulheres no mundo nunca se separaram de fato; mas, como dito anteriormente, utilizar-se do discurso ambiental como rearticulador das lutas sociais pelo direito à cidade.

LYON E RECIFE: UMA LÓGICA SEMELHANTE DE TERRITÓRIO USADO, MAS DUAS EXPERIÊNCIAS URBANAS DIFERENTES

Nesta seção, analisa-se a natureza do uso das águas fluviais nas políticas urbanísticas em duas realidades urbanas diferentes, Recife e Lyon. Isso para ressaltar as relações entre a cidade e os rios, mediante respostas a duas questões colocadas pelo pesquisador aos usadores das áreas ribeirinhas após as ações de requalificação urbanística. As questões intencionaram saber sobre o acesso ao espaço e o sentimento de aceitação social frente aos olhares dos outros no espaço.

A análise realizada, de caráter comparativo, demonstrou que, não obstante ambas as cidades terem sido construídas segundo os imperativos do capitalismo e que, portanto, seguiram uma lógica de produção espacial semelhante, as especificidades histórico-geográficas inerentes a cada uma engendraram diferenças em termos de território usado e política urbanística.

Foram realizadas 50 (cinquenta) entrevistas em Recife e 45 (quarenta e cinco) em Lyon, chegando a um número total de 95 (noventa e cinco), as quais tiveram como critério limite a saturação do conteúdo das respostas. As entrevistas foram realizadas em áreas ribeirinhas que passaram por ações de revitalização urbanística em ambas as cidades.

Buscando recuperar a simbiose sociedade-natureza, de acordo com as vicissitudes históricas do tempo presente, as principais ações urbanísticas com base na ideia de sustentabilidade territorial traduzem-se, sobretudo, na requalificação de área ribeirinhas e na arborização da cidade, ambas articuladas por projetos urbanísticos: o Projeto La Confluence, em Lyon, responsável pela revitalização de uma área que anteriormente era usada preferencialmente por atividades industriais e portuárias; e o Projeto Parque Capibaribe-Caminho das Capivaras (PPC-CC), em Recife, que tem executado ações em áreas antes utilizadas por populações de baixa renda, removendo palafitas e favelas.

SEMELHANÇAS

O retorno do interesse das classes dominantes por áreas ribeirinhas, no atual contexto histórico em que a natureza se revaloriza, acontece na perspectiva do uso das águas fluviais como mercadoria sob a máscara do discurso que as enuncia como patrimônio natural que deve servir a toda a coletividade urbana.

Assim como na França, também no Brasil, o processo de revalorização dos bens da natureza tem suscitado a implementação de um conjunto de ações visando à reocupação das áreas ribeirinhas. Os interesses hegemônicos representados pelo CFICF, reorganizam o espaço, pressionando o Estado para facilitar a construção dos luxuosos condomínios residenciais e empresariais, fixando a infraestrutura necessária à realização dos fluxos econômicos na cidade. Em Recife, geralmente, isso ocorre depois da remoção das classes subalternizadas que moram em palafitas e/ou favelas encontradas nas referidas áreas.

Lyon (Figura 1) e Recife (Figura 2) são cidades cujos respectivos sítios geográficos contêm significativa presença de águas fluviais, razão pela qual a problemática relativa às inter-relações entre sociedade e natureza constitui um aspecto marcante em termos de pensar e praticar políticas urbanísticas em cada um desses lugares.

Figura 1
Lyon. Presença dos corpos hídricos na paisagem urbana.

Figura 2
Recife. Presença dos corpos hídricos na paisagem urbana.

Enquanto na primeira figura destaca-se, de maneira patente, a presença dos rios Rhône e Saône; na segunda destaca-se a presença marcante do rio Capibaribe. Foi justamente em torno de áreas ribeirinhas situadas em trechos dos referidos cursos fluviais, em que se executaram projetos de requalificação urbanística, que se realizaram as entrevistas com os frequentadores das referidas áreas.

No processo do seu acontecer histórico permanente, acentua Harvey (2013)HARVEY, D. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. 592p., o capitalismo sempre realizou como seu escopo principal a transformação de tudo que encontra no seu caminho em mercadoria a fim de gerar valores, notadamente, econômicos dos quais se beneficiam, preponderantemente, as classes dominantes da sociedade.

Neste mesmo sentido, os bens da natureza também são transformados em mercadoria e privatizados, acelerando a valorização econômica do espaço em sua totalidade, esquadrinhando o espaço e engendrando conflitos territoriais. Essa valorização capitalista do espaço, tanto nas cidades francesas quanto nas brasileiras,

[...] é, antes de tudo, uma relação capital-espaço. [...] Sendo assim, sob a hegemonia das relações capitalistas, o espaço [...] aparece para a produção como parte do valor, expresso sob forma de capital constante. Tomando uma produção individual qualquer, pode-se observar que ela se desenvolve ocupando uma certa parcela do espaço. [...] A outra relação que se estabelece entre essa produção e o espaço se refere a este como capital social geral [...]. O espaço, portanto, sob o capitalismo, é capital como condição e como meio de produção. [...] Dessa forma, a história do capitalismo nada mais é, nesse sentido, que um processo histórico de privatização crescente de porções da superfície terrestre e de tudo que ela contém. (MORAES & COSTA, 1984MORAES, A. C. R.; COSTA, W. M. da. Geografia crítica. A valorização do espaço. São Paulo: Editora Hucitec, 1984. 200p., p. 159-160)

Esse processo de uso do território, privatizando e transformando em mercadoria tudo o que encontra no seu caminho como meio e condição à geração de valores puramente econômicos, acha-se, de maneira mais perversa, no modelo latino-americano de valorização capitalista do espaço, tendo isso implicado em

[...] gradativo empobrecimento relativo dos territórios onde se instalou, uma destruição da riqueza natural sem [...] agregação de valor ao solo compatível com a riqueza retirada. [...] O território colonial é visto como um 'espaço a se ganhar', a submissão 'civilizatória' de uma natureza bruta que engloba as populações autóctones. [...] Tal visão permanece forte ao longo da formação cultural das nações latino-americanas. Mesmo com os processos de emancipação política já realizados, as elites permanecem pensando seus países como espaço a se ganhar (o povo sendo visto como instrumento dessa ação). [...] Age-se como se o fundo territorial fosse inesgotável, apesar dos exemplos de degradação absoluta de recursos que a frente pioneira já deixou em retaguarda. (MORAES, 1997MORAES, A. C. R. Meio ambiente e ciências humanas. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997. 100p., p. 37)

A referida especificidade da formação territorial brasileira e latino-americana influi, sobremaneira, nas diferenças entre as duas experiências de políticas urbanísticas de território usado consideradas na presente discussão.

DIFERENÇAS

Em Lyon, a área conhecida como La Confluence - pelo fato de achar-se situada na confluência dos rios Rhône e Saône, no coração da cidade - deixou de ser um centro de atividades preponderantemente portuárias e industriais para tornar-se uma área do que se tem chamado de "cidade inteligente e durável".

Com isso, as políticas urbanísticas de requalificação pretenderam cumprir com as exigências ambientais comprometidas com o respeito à qualidade de vida para a coletividade urbana, concretizando a produção de um espaço, como divulgado no discurso governamental, "sóbrio, inteligente e criativo". (Figura 3)

Figura 3
Lyon. Projeto de Requalificação Urbana em La Confluence.

Confirmou-se a hipótese de que as áreas urbanas ribeirinhas, requalificadas, no curso dos dois rios lioneses são usadas por qualquer pessoa, independentemente da sua condição social, o que foi constatado através da interpretação das falas dos usadores das áreas, em pesquisa de campo realizada em janeiro de 2020. Pessoas de diferentes níveis de renda (até um salário mínimo (SM); entre um e dois SM e entre dois e três SM) atestaram que: "venho aqui quando quero e passo o tempo que quero, para espairecer"; "comprei essa comida em um restaurante ali em cima e vim comer aqui no cais..., também utilizo esse lugar para ler um livro e admirar a paisagem do entorno"; "sempre frequento esse lugar onde me sinto livre"; "sinto-me muito bem aqui, daí por que sempre volto na hora que quero".

Análises comparativas são interessantes para ressaltar as especificidades provenientes do Sul as quais são essenciais para o entendimento do mundo como uma totalidade complexa, liberando o pensamento local da tendência a adequar-se mecanicamente a imposições alheias ao território vivido. De acordo com Watson (2016, p. 36)WATSON, V. Shifting approaches to planning theory: global north and South. Urban Planning, 1 (4), 2016, DOI: https://doi.org/10.17645/up.v1i4.727
https://doi.org/10.17645/up.v1i4.727...
, considera-se o termo Sul numa perspectiva para além da localização geográfica, ou seja,

It references an entire history of colonialism, neo-imperialism, and differential economic and social change through which large inequalities in living standards, life expectancy and access to resources are maintained; and opens new possibilities in politics and social science.

A possibilidade, por exemplo, da busca do Bem Viver frente à do Bem Estar compreende um exemplo significativo da contribuição do Sul no âmbito de um diálogo frutífero com o Norte. Neste sentido, a articulação da questão da relevância do respeito à natureza como bem coletivo intrínseco à vida humana na Terra com a das lutas sociais voltadas para a conquista efetiva do direito à cidade para todos e todas parece ser um caminho interessante a seguir.

Entretanto, conversando com usadores de diferentes níveis de renda (até um SM; entre um e dois SM; entre dois e três SM; e acima de três SM), em áreas ribeirinhas revitalizadas do rio Capibaribe, constatou-se seletividade no que tange ao uso do território requalificado. Em pesquisa realizada em dois períodos do dia (manhã e tarde), não se encontraram pessoas pertencentes ao primeiro nível de renda; encontrou-se uma pessoa incluída na faixa entre um e dois SM; o número de pessoas entre dois e três SM foi muito reduzido; a maioria entrevistada incluía-se na faixa "acima de três SM". Enquanto que as pessoas pertencentes a estas duas últimas faixas de renda revelaram-nos que utilizam os equipamentos de recreação e lazer fixados na área "quando querem e como querem", a pessoa entre as faixas de renda entre um e dois SM revelou que, "apesar de frequentar a área, não se sente à vontade" porque "os outros a olham com desconfiança". As pessoas de maior renda, ainda, revelaram: "utilizamos a área, mas temos medo [de serem agredidos, roubados, etc.]"; "sempre quando posso, frequento esse lugar apesar do receio de ser roubada"; "devido à violência, só venho acompanhado de outra pessoa"; "se a área fosse mais selecionada, haveria aqui mais pessoas do nosso nível".

O conteúdo de tais respostas atesta a significativa seletividade do território usado em Recife, quanto ao uso das áreas ribeirinhas após sua requalificação urbanística. O que se deve, sobretudo, às diferenças em termos das especificidades socioterritoriais inerentes à França e ao Brasil, ressaltadas pela análise comparativa. Enfim, em lugares onde questões relativas à cidadania ainda não foram resolvidas, há maior tendência ao uso seletivo do território, preterindo o respeito à diversidade social.

O PPC-CC é interessante na medida em que, encorajando a sensibilização social e práticas de reaproximação entre sociedade e natureza, revaloriza a relação da cidade com o rio, destacando a importância da sua preservação no âmbito de uma preocupação ambiental. Tal atitude mobilizou vários setores da sociedade. Todavia, o que está por detrás do projeto é a intenção das classes dominantes de reapropriarem-se das áreas a fim de gentrificá-las, após, é claro, a remoção das palafitas e favelas que se localizam em torno do rio (Figuras 4).

Figura 4
Recife. Maquete do PPC-CC.

Trata-se de uma imagem tridimensional que representa a cidade imaginada segundo parâmetros dos interesses do CFICF, superpondo-se, assim, sobre o conjunto de territórios historicamente usados pelas classes subalternizadas os quais foram, intencionalmente, "apagados" na representação.

A ideia de transformar Recife em uma cidade-parque, para ampliar a taxa de área verde pública revalorizando o rio Capibaribe como eixo estruturador da cidade, reitera-se, é interessante e pertinente para o momento atual. O problema reside no fato de quem terá direito a esse grande "espaço público". Isto é mascarado pelo discurso oficial segundo o qual, no raio de 500m calculado a partir de cada margem do rio, existem favelas e palafitas (Figura 5), as quais, pelo menos em outras experiências urbanísticas locais como a da avenida Beira Rio (bairro Torre), foram totalmente removidas, anunciando o futuro das demais.

Figura 5
Recife. Trecho de área do projeto de navegabilidade do Capibaribe.

Além do fato dos territórios das classes subalternizadas não aparecerem na maquete de divulgação do PPC-CC, tal como mostrado antes (vide Figura 4), eles também não foram mencionados, no começo da iniciativa, em apresentações realizadas pelos gestores do referido projeto. Os únicos atores claramente apresentados como apoiadores das ações em epígrafe são empresários, funcionários ligados a instituições governamentais e outros membros notáveis da sociedade civil.

Resultado de cooperação técnica entre a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SMAS) da Prefeitura do Recife (PR) e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que teve início em 2013, o PPC-CC objetiva, segundo propaganda de divulgação (FOLHA DE PERNAMBUCO, 2016FOLHA DE PERNAMBUCO. Parte do projeto parque Capibaribe será apresentado às margens do rio neste domingo. Recife. Disponível em: http://www.folhape.com.br/noticias/noticias/cotidiano/2016/11/19/NWS,6912,70,449,NOTICIAS,2190-PARTE-PROJETO-PARQUE-CAPIBARIBE-SERA-APRESENTADO-MARGENS-RIO-NESTE-DOMINGO.aspx Acesso em: acessado em março/2017.
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, p. 1),

[...] transformar 30km de margens do rio na cidade em uma via-parque, visando a elevar a taxa de área verde pública, que hoje é de 1,2m2 por habitante, para 20m2 por habitante em 2037 [...]. Do projeto apresentado há pouco mais de três anos, até agora só saiu do papel o Jardim do Baobá, localizado no bairro das Graças. A ideia prevê ações num raio de 500 metros a partir de cada margem, o que resulta em uma área de influência de 7.250 hectares. Assim, abrange 35 bairros, atingindo 400 mil habitantes do Recife.

Moradores/as de favelas e palafitas, que faziam parte de trechos do Capibaribe, foram removidos/as, partindo seu tecido territorial historicamente construído no curso da ocupação do espaço. Outros/as foram colocados/as em conjuntos habitacionais cujo projeto arquitetônico não contemplava suas especificidades de morar e viver. Transferidos/as para áreas distantes e sem acesso ao mercado de trabalho urbano formal, eles/elas tiveram problemas com relação a novas despesas: pagamento de taxas condominiais, boletos de energia, transportes públicos, etc.

Nota-se, assim, que, mais uma vez, têm-se repetido os desencontros entre os interesses de preservação da natureza e inclusão social, ressaltados por Freitas (2017)FREITAS, Clarissa F. Sampaio. Regulações territoriais e expansão urbana informal: é possível preservar e incluir? Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Paranoá, 19, 2017, DOI: http://dx.doi.org/10.18830/issn.1679-0944.n19.2017.02
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quando estudara o processo de urbanização de uma Área de Proteção Ambiental no Distrito Federal e verificou que o discurso ambiental às vezes acaba sendo utilizado para a manutenção dos propósitos especulativos.

A atual gestão urbana, de tendência conservadora, busca conquistar a sociedade recifense para aceitar o PPC-CC, o que ocorre junto às classes dominantes e "médias" locais, escondendo seu propósito higienista de "limpar" as áreas ribeirinhas das territorialidades não desejadas pelo CFICF. O discurso oficial é construído em torno das águas do Capibaribe, associado à arborização da cidade através da construção de alamedas, praças, parques, etc., negando, portanto, a aproximação das classes sociais que também deveriam ter garantido o seu direito à natureza.

Revaloriza-se economicamente o espaço para as classes dominantes, privatizando a natureza e negando-a como bem comum da coletividade. Reitera-se que, apesar dos gestores públicos dizerem que estão "dialogando com as famílias de palafitas e favelas", não se menciona sequer nomes de representantes de entidades dos territórios ribeirinhos no âmbito da elaboração e discussão do Projeto, fazendo-se, todavia, menção às empresas promotoras da referida ação urbanística. O verdadeiro significado do PPC-CC é a realização de um projeto higienista-gentrificador de espaços da cidade, revalorizados hoje pela presença de água e vegetação natural, funcionando, enfim, como um "puxador" da expansão de uma lógica puramente economicista de cidade.

CONCLUSÃO

Não é somente o território per se que nos interessa, mas, concomitantemente e sobretudo, o território usado, referindo-se à ideia de que a sociedade, no seu acontecer histórico permanente, sempre usa o espaço que lhe serve ao mesmo tempo de meio e condição à sua própria dinâmica existencial.

A despeito do fato de que, sob o sistema socioespacial capitalista, o território é usado de acordo com o seu parâmetro fundamental - ordenado como recurso para a geração de riquezas - suscitando desigualdades e injustiças em todas as dimensões da vida humana, isso não acontece da mesma forma em todos os lugares do mundo capitalista. Há, portanto, especificidades socioterritoriais inerentes ao acontecer histórico-espacial que implicam em diferenças significativas próprias do capitalismo no Norte e no Sul.

Nesta perspectiva, a natureza vem-se tornando fator cada vez mais importante para satisfazer os interesses do CFICF por meio dos quais o capital continua acumulando-se de maneira cada vez mais intensa e difusa. Destarte, o território e o seu conteúdo é geralmente usado para satisfazer os interesses das classes dominantes, negando e alienando o que não lhes interessa de imediato.

Formula-se e divulga-se, concomitantemente, um discurso que, apresentando-se através da necessidade de reaproximação entre sociedade e natureza, funciona como instrumento escamoteador dos verdadeiros interesses dominantes envolvidos. Processo que, em seu conjunto, torna-se muito mais perverso em realidades de um país como o Brasil, razão pela qual, em Lyon, constatou-se que o território apresentou tendência de ser usado pela coletividade urbana.

Nota-se ainda uma percepção reduzida do rio Capibaribe, isto é, uma tentativa de "resolver" o problema de um rio que, antes de chegar à cidade, passa por vários outros municípios das zonas fisiográficas do Agreste e Mata de Pernambuco, recebendo dejetos residenciais, bem como das atividades industriais e agrícolas.

Outro problema digno de nota refere-se à ausência de diálogo, também, entre SMAS e as demais secretarias municipais que também poderiam contribuir, interdisciplinarmente, para a concretização de uma ideia tão interessante - a exemplo da Secretaria de Educação e de Ação Social - reativando a participação da sociedade civil como um todo na busca de um espaço menos desigual e mais justo.

AGRADECIMENTO

Somos gratos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio financeiro que nos tem dado através da concessão de bolsa de produtividade em pesquisa; bem como à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pela infraestrutura técnica e logística disponibilizada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Set 2020
  • Aceito
    31 Out 2020
  • Publicado
    15 Fev 2021
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