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ORTEGA, Ariel; HUYER, Bruno. 2021. Nossos espíritos seguem chegando (Nhe’e kuery jogueru teri). Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à Covid-19 (PARI-c): 15 min. Acessado em 12 de março de 2023: https://www.youtube.com/watch?v=U6QUy09uiTE

ORTEGA, Ariel; HUYER, Bruno. . 2021. Nossos espíritos seguem chegando (Nhe’e kuery jogueru teri). Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à Covid-19 (PARI-c): 15 min. Acessado em 12 de março de 2023: <<https://www.youtube.com/watch?v=U6QUy09uiTE>>

Figura 1.
Fotografia de cartaz por Ariel Ortega/Kuaray Poty

Vencedor do Prêmio Pierre Verger da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e do Festival de Cinema e Cultura Indígena (FeCCI), o curta-metragem Nossos espíritos seguem chegandoORTEGA, Ariel; HUYER, Bruno. 2021. Nossos espíritos seguem chegando (Nhe’e kuery jogueru teri). Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à Covid-19 (PARI-c): 15 min. << Acessado em 12 de março de 2023: https://www.youtube.com/watch?v=U6QUy09uiTE >>
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retrata a gravidez de Pará Yxapy, indígena mbya, moradora da teko’a de Ko’eju, em meio à pandemia de Covid-19 (Figura 1). Os diretores da obra, o cineasta mbya Ariel Ortega e o antropólogo Bruno Huyer, acompanham os momentos que antecedem a chegada de uma criança mbya no plano terrestre da cosmologia guarani, dando destaque à experiência de gravidez da personagem que é interpelada pelos perigos de doenças advindas do mundo não indígena.

As cenas iniciais do filme mostram Pará Yxapy colhendo plantas nos arredores de casa, lavando suas raízes na torneira do pátio e conversando com outras mulheres e crianças na beira do fogo de chão. As mulheres e as plantas figuram como grande potência de força nessas imagens de abertura, pois Pará Yxapy está preparando as plantas para fazer remédio de banho como modo de fortalecimento do corpo.

Enquanto a cena de preparo da planta denota um sinal de força (mbaraeté), a cena do banho em si ganha outros contornos por ser atravessada por sons de notícias da pandemia. Toda a filmagem do banho acontece sob os anúncios do aumento do número de casos do coronavírus e da mudança da bandeira de risco nos municípios do Rio Grande do Sul, região onde está localizada a aldeia de Ko’eju. Nessa cena, Pará Yxapy está tomando banho e o áudio da notícia no telejornal invade o ambiente para informar a mudança de risco médio para alto. O alerta do agravo da situação epidemiológica na região chega pelas vozes jurua, não indígenas, e se faz presente na cena enquanto fator de atravessamento na experiência de gestar uma criança mbya.

O contraste da cena implica uma tensão de oposições entre a imagem (banho de planta) e o som (notícias da doença). As imagens mostram Pará Yxapy fortalecendo seu corpo com os “remédios do mato” (poã) e os sons anunciam os impactos crescentes da doença. Na sobreposição de imagem e som, fortalecer e enfraquecer são os pares que agem no corpo em situações de liminaridade de mundos, como em contextos de pandemia. Isto porque diferentes agenciamentos tensionam na direção de fortalecer ou enfraquecer a pessoa e, nessa tensão, as ações mbya investem num corpo bem preparado para evitar o perecimento promovido pelas doenças.

Em momento posterior ao banho, Pará Yxapy visita Kerechu Miri e Pará Reté, suas parentes, numa cena que inicia com as imagens do milho avaxi pendurado nos troncos que sustentam a casa. O foco da câmera no milho avaxi parece indicar o tom de importância da conversa. Pará Yxapy mexe a comida na panela em fogo de chão e reflete sobre a chegada de uma nova nhe’e (vitalidade divina), seu filho, num momento crítico como o da pandemia de Covid-19. Diz ela: “fico pensando por que justamente na pandemia veio essa criança”. Seu questionamento tenta compreender os motivos das divindades terem enviado a nhe’e ao casal Pará Yxapy e Kuaray Poty num momento marcado pelas doenças, e não anteriormente.

Kerechu Miri e Pará Reté reagem às falas de Pará Yxapy e relembram momentos que consideram ter sido similares aos da pandemia de Covid-19, como quando dos adoecimentos coletivos causados pelo sarampo. Elas constatam que as divindades seguem a mandar as nhe’e como um ato que contém propósitos, visto que esta não seria uma ação tomada em vão por Nhanderu e Nhandecy Kuery. Nesse sentido, apesar dos adoecimentos do contexto da pandemia, os sinais das divindades contidos no envio de crianças mbya são entendidos pelas mulheres como uma continuidade no fluxo de relação e vínculo com as divindades, pois, apesar de tudo, os “espíritos seguem chegando”.

O envio de uma nhe’e para o plano terrestre ocorre por atos intencionais das divindades, que a depender de seus agenciamentos em relação aos humanos podem enviar ou não espíritos de suas moradas celestes (Macedo & Sztutman 2014MACEDO, Valéria & SZTUTMAN, Renato. 2014. “A parte de que se é parte. Notas sobre individuação e divinização (a partir dos Guarani)”. Cadernos de campo, São Paulo, 23 (23) 287-302.). O plano de vida terrestre é, por excelência, marcado pela perecibilidade e imperfeição, lugar também onde habitam outras intencionalidades para além do mundo mbya. Por se tratar de relações intencionais, os momentos de adoecimento colocam em questão quais os propósitos das divindades para com a vida mbya na terra, se dizem respeito às continuidades ou rupturas, já que compreender a intenção seria uma via de conhecer os agenciamentos que produzem a doença. Desse jeito, a intencionalidade no envio das crianças é um ato celeste e sinaliza o desejo de vínculo das divindades para com os Mbya.

Em consonância com as intenções, a persistência é outro aspecto importante nas relações de intencionalidades, já que as nhe’e enviadas precisam durar na terra apesar dos riscos advindos de agenciamentos enfraquecedores. As crianças recém-chegadas são recebidas e cuidadas pelos parentes terrestres, que investem muita atenção nos primeiros anos de vida para assentar bem a nhe’e na realidade de uma morada que é árdua e penosa, cheia de riscos e perigos. As provações do mundo terrestre demandam persistência, cuidado e alianças bem intencionadas. Por isso, a camiseta de Pará Yxapy nas cenas de abertura estampa as palavras “Guarani Resistente”, o que marca a ação de resistir num mundo repleto de vulnerabilidades. Persistência terrestre coloca a pessoa mbya na condução de perdurar nesse mundo e atravessar suas provações.

As cenas finais dão destaque para as conversas de Pará Yxapy com a nhe’e em seu ventre ao acordar de manhã. Pará Yxapy entoa palavras direcionadas ao seu filho: “bom dia, temos que acordar, para isso que Nhamandu nos levantou, ele vem sem preguiça para nos despertar, olhando toda a nossa terra”. As falas da manhã chamam por disposição, afastam a preguiça e traçam o vínculo de parentesco com a nhe’e, coisas imprescindíveis para estabelecer uma relação que assenta bem a vitalidade divina.

Do ponto de vista das opções de filmagem dos diretores, vale ressaltar que tanto a cena do banho quanto a cena do acordar de manhã são filmadas num enquadramento superior, de cima para baixo, chamado ângulo plongée. Essa escolha de filmagem ocorre ao longo do filme em momentos de privacidade de Pará Yxapy, quando ela está na companhia apenas da nhe’e em seu ventre. A relevância do enquadramento ocorre ao sugerir, a meu ver, uma perspectiva dos olhares de proteção das divindades, como se a própria posição da câmera cumprisse o efeito da presença desse olhar. As divindades olham de um plano superior para baixo e a permanência desse olhar implica um direcionamento do cuidado de quem olha para quem é olhado (Huyer 2017HUYER, Bruno Nascimento. 2017. Do efeito dos outros: crônicas sobre a mistura entre os Guarani-Mbya. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.:37).

Isto significa dizer que ser olhado pelas divindades protege e afasta de outros olhares perigosos, que possuem potenciais de enfraquecimento. Assim, apesar da vida num lugar em que “tudo falece”, a confiança mbya nas intencionalidades das divindades, que seguem enviando seus espíritos, sinaliza que a proteção reside na persistência forte e alegre dentro das possibilidades de viver nesta terra.

***

O curta-metragem integra o Selo PARI-cine do projeto de pesquisa da Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à Covid-19 (PARI-c), coordenado pelo grupo de antropólogas e antropólogos Christine McCourt, Maria Paula Prates, Amanda Horta, Bruno Marques, José Miguel Olivar e Spensy Pimentel. A plataforma foi uma ferramenta de acompanhamento e divulgação das respostas indígenas à Covid-19 durante todo o período de 2021. E para isso articulou uma extensa rede de pesquisadores indígenas e não indígenas, que trabalharam em equipes regionais e produziram estudos de caso, artigos e filmes acerca das experiências, as dificuldades e as cooperações durante a pandemia.

Dentro dessa proposta, Ortega e Huyer realizaram o curta-metragem de forma on-line em encontros mediados pelos “quadradinhos” das plataformas digitais (Prates et al. 2022PRATES, Maria Paula; MACEDO, Valéria; VHERÁ MIRIM Ataíde & YVA MIRIM, Araci. 2022. “Modos imaginativos e colaborativos de fazer pesquisa: dispositivos e disposições com cuidado”. Saúde Soc., São Paulo, 31 (4):1-11.), fortalecendo uma comunicação interpessoal de longa data entre o cineasta mbya e o antropólogo jurua. Antes da pandemia, Bruno Huyer havia realizado trabalho etnográfico na aldeia de Ko’eju junto de Ariel Ortega e Patrícia Ferreira (Para Yxapy), quando construíram uma relação de amizade. Importante dizer que Patrícia também é cineasta e participou da direção dos filmes Mbya Mirim (2013), Teko Haxy (2018) e Nhemongueta Kunhã Mbaraete (2020), para citar alguns.

Ademais, o autor desta resenha celebra a indicação do curta na seleção do festival do Royal Anthoropological Institute (RAI/UK) no ano de 2023. Essa indicação, assim como as que esperamos ainda por vir, realçam a potência das perspectivas mbya no que concerne aos acontecimentos da pandemia e seus impactos locais, que foram situadas no interior do filme a partir da fina reflexão das mbya mulheres acerca da gravidez.

Referências

  • HUYER, Bruno Nascimento. 2017. Do efeito dos outros: crônicas sobre a mistura entre os Guarani-Mbya Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
  • MACEDO, Valéria & SZTUTMAN, Renato. 2014. “A parte de que se é parte. Notas sobre individuação e divinização (a partir dos Guarani)”. Cadernos de campo, São Paulo, 23 (23) 287-302.
  • PRATES, Maria Paula; MACEDO, Valéria; VHERÁ MIRIM Ataíde & YVA MIRIM, Araci. 2022. “Modos imaginativos e colaborativos de fazer pesquisa: dispositivos e disposições com cuidado”. Saúde Soc, São Paulo, 31 (4):1-11.
  • ORTEGA, Ariel; HUYER, Bruno. 2021. Nossos espíritos seguem chegando (Nhe’e kuery jogueru teri). Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à Covid-19 (PARI-c): 15 min. << Acessado em 12 de março de 2023: https://www.youtube.com/watch?v=U6QUy09uiTE >>
    » https://www.youtube.com/watch?v=U6QUy09uiTE
  • Notas sobre as premiações do filme

    Vencedor do Prêmio Pierre Verger de melhor filme etnográfico, edição 2022, na modalidade curta-metragem, cuja premiação ocorreu no dia 28 de agosto de 2022 durante a programação da 33ª Reunião Brasileira de Antropologia. Vencedor do Prêmio de melhor filme pelo júri especializado do 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena (FeCCI), que ocorreu entre os dias 17 e 18 de setembro de 2022 no Território Indígena do Xingu e 02 a 11 de dezembro de 2022 no Cine Brasília. A cerimônia de premiação ocorreu em 12 de dezembro de 2022.
  • Financiamento

    Rede Covid-19 Humanidades MCTI (Finep-UFRGS 1212/21)

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Fechas de Publicación

  • Publicación en esta colección
    28 Ago 2023
  • Fecha del número
    2023

Histórico

  • Recibido
    12 Mar 2023
  • Acepto
    12 Mayo 2023
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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