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ZONZON, Christine. 2017. Nas rodas da capoeira e da vida: corpo, experiência e tradição. Salvador: EDUFBA. 333 pp.

ZONZON, Christine. . 2017. Nas rodas da capoeira e da vida: corpo, experiência e tradição . Salvador: EDUFBA. 333 pp.

O livro de Christine Zonzon reflete a densidade de uma longa trajetória intelectual e prática da autora no mundo da capoeira. Fruto da tese de doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, o livro Nas rodas da capoeira e da vida: corpo, experiência e tradição, já nas suas páginas introdutórias, expõe um desafio inovador como objetivo: analisar a capoeira nas suas duas dimensões, tanto como uma tradição - que remete à sua origem histórica afro-brasileira - como uma prática corporal - que envolve processos de aprendizagem e desenvolvimento de habilidades do capoeirista. A proposta da autora busca integrar o domínio histórico/tradicional/discursivo da capoeira com a prática da experiência corporal do jogo, visto que, para o praticante, estas duas dimensões da capoeira se sobrepõem e se confundem: “iniciar-se na capoeira é tanto uma experiência corporal e artística quanto um percurso de conhecimento da história do jogo e da cultura afro-brasileira” (:13ZONZON, Christine. 2017. Nas rodas da capoeira e da vida: corpo, experiência e tradição. Salvador: EDUFBA. 333 pp.).

Seguindo os passos de um iniciante no ambiente da capoeira, o livro tem como eixo norteador uma saída para a aporia entre os grandes divisores das Ciências Sociais - discurso e corpo, forma e conteúdo, natureza e cultura - presentes na maioria dos estudos sobre capoeira. Através de um referencial teórico fenomenológico, o corpo do capoeirista não é visto como “um lugar de simples expressão de significados que lhes são exteriores”. Para a autora, o que se aprende na capoeira “não tem outra forma de ser compreendido senão no corpo e pelo corpo” (:14), versando o trabalho, portanto, sobre a experiência corporal dos capoeiristas na Bahia, tanto no seu estilo regional quanto no estilo angola.

Dividido em seis capítulos, além de introdução e considerações finais, a etnografia de Christine Zonzon se inicia com a apresentação do campo da capoeira e da pesquisa. No primeiro capítulo é feita uma breve contextualização histórica da capoeira no Brasil e a apresentação das duas modalidades mais legítimas: a capoeira angola e a capoeira regional. Neste capítulo também são apresentados os caminhos metodológicos percorridos pela autora, praticante de capoeira angola há décadas e que teve como desafio “estranhar o familiar”. Uma das soluções encontradas pela pesquisadora foi a imersão na capoeira regional, modalidade “totalmente desconhecida” (:30) por ela, conforme suas próprias palavras. Assim, durante mais de dois anos, Christine Zonzon fez trabalho de campo junto à academia do mestre Nenel, filho do mestre Bimba, criador da modalidade da capoeira regional, localizada no Pelourinho, em Salvador, Bahia.

No segundo capítulo, Zonzon aborda a malícia: um tema nuclear na capoeira, com significados polissêmicos e de difícil definição, que conecta o universo do jogo - chamado de “pequena roda” - com o cotidiano e o universo social mais amplo - chamado de “grande roda”. A malícia, excelência que se almeja no jogo de capoeira, é a arte do disfarce marcada pela ambiguidade, uma qualidade cultivada que tem como modelo a sabedoria dos mestres e dos exímios capoeiristas. Zonzon ressalta que a malícia “trata-se de uma compreensão prática” (:55).

Nos dois capítulos seguintes, intitulados de “Uma visão de mundo” e “Ouvir, sintonizar, (re)criar o ritmo musical”, a discussão direciona-se para os modos de incorporação da malícia pela aquisição de habilidades corporais, voltando-se para os sentidos da visão e da audição. No capítulo “Uma visão de mundo”, Zonzon cita as reiteradas orientações dos mestres angoleiros aos iniciantes para que atentem quanto |à focalização do olhar no momento de praticar os golpes, quer seja no treinamento individual - quando um objeto é colocado no centro da roda, servindo como ponto focal à visão - quer seja no jogo de capoeira - cuja máxima é olhar para o adversário. O desenvolvimento do sentido visual na capoeira angola, atingido pelos mestres, culmina em uma habilidade de expansão do olhar, com uma “visão quase onisciente” (:114), de alcance “de 360 graus em torno do corpo” (:115).

Da mesma forma que a visão é abordada como uma experiência prática em um contexto cultural específico - a capoeira -, o sentido auditivo partilha igualmente da mesma perspectiva. No capítulo “Ouvir, sintonizar, (re)criar o ritmo musical”, a autora também segue os passos de um capoeirista iniciante até chegar ao praticante sensibilizado pela música, cuja excelência auditiva consiste na habilidade motora de fusão com o ritmo musical. Nesse nível de excelência, corpo e música se fundem e são inseparáveis no jogo. Dessa forma, aprender a ouvir na capoeira consiste na sensibilização de um corpo em responder à música, ou seja, um corpo que é afetado pelos ritmos e pelas melodias da capoeira. Inspirada nas ideias de Bruno Latour (2007LATOUR, Bruno. 2007. “Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência”. Em: NUNES, J. A. & ROQUE, R. (orgs). Objetos impuros. Experiências em estudos sociais da ciência. Porto: Edições Afrontamento, pp. 40-61., 2012LATOUR, Bruno. 2012. Reagregando o social: uma introdução a teoria do ator rede. Salvador: Edufba.), a ênfase é dada aos mediadores - em especial aos não humanos cuja ação produz um efeito sobre o corpo e o jogo - como as cantigas, os ritmos e os instrumentos.

É destacado pela autora a bateria musical e o enfoque maior é dado ao berimbau, instrumento cuja participação na capoeira é tida, tanto para os angoleiros como para os regionais, como vital (:178): sua agência é que fornece a energia do jogo. Tocado pelos mestres ou pelos capoeiristas mais experientes, o berimbau é peça-chave na capoeira. Para os angoleiros, é o berimbau que transmite o axé; para os regionais, que utilizam apenas um berimbau nas suas rodas, há um dito de que “é o berimbau que ensina a capoeira” (:178). Zonzon nos mostra, assim, que no mundo da capoeira, diversos mediadores sonoros, tanto humanos quanto não humanos - incluindo aí as palmas do público, os variados ritmos tocados pelo berimbau, a vasta coletânea de cantigas etc. - afetam um corpo que passou pela sensibilização auditiva que anteriormente não poderia registrar.

Vale ressaltar que, no processo de desenvolvimento das habilidades visuais e auditivas na capoeira, o olhar e o ouvir não se resumem a uma posição de observação inerte; pelo contrário, olhar e escutar implicam engajamento e estão intimamente vinculados com a motricidade. Ver e ouvir, para um praticante sensibilizado e habilidoso, são convites ao movimento. Aqui, o referencial teórico da fenomenologia se explicita, sobretudo através das ideias de Merleau-Ponty (1999MERLEAU-PONTY, Maurice. 1999. Fenomenologia da percepção. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes.), para quem as atividades perceptivas estão imbricadas com as atividades motoras, havendo, portanto, complementaridade dessas habilidades. Muito além de um sujeito pré-reflexivo que primeiramente percebe para agir, é o corpo do exímio capoeirista, com suas habilidades perceptivas, que age, reage, pensa, avalia e decide “sem depender de uma consciência reflexiva ou da mente” (:263). Seguindo as ideias de Tim Ingold (2010INGOLD, Tim. 2010. “Da transmissão de representações à educação da atenção”. Educação, 33(1): 6-25. Programa de pós-graduação em Educação-Escola de Humanidades. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.), Zonzon argumenta que, ao tratar da capoeira, não faz sentido recorrer à mediação de representações como via de transmissão das habilidades do capoeirista; elas são desenvolvidas através de uma educação da atenção em função da sintonia perceptiva com o ambiente.

No capítulo “Os estilos da capoeira em movimento”, Zonzon busca sintetizar os sentidos perceptivos durante o jogo, analisados separadamente nos dois capítulos anteriores, dando mais um passo para compor a complexidade da experiência da capoeira. Conforme escreve a autora, “é sobre essa orquestração dos sentidos na dinâmica cinestésica que versa o capítulo” (:194). Com a difícil tarefa de escrever sobre o movimento, Zonzon, também inspirada em Merleau-Ponty (1999), trabalha com o conceito de síntese corporal ou sinergia, ressaltando tanto a simultaneidade das atividades perceptivas de modo individual quanto a intercorporeidade presentes no jogo da capoeira, o qual extrapola o corpo individual e tem o outro, quer seja numa relação mimética ou de alteridade, como referência no jogo.

Por fim, o capítulo “Articulações e fronteiras nas rodas da capoeira e da vida” aborda os vínculos entre discursos ideológicos e as práticas corporais, residindo aí uma das inovações de sua etnografia e um dos objetivos do livro. Mostrando novamente sua inspiração latouriana, Zonzon iguala em sua análise tanto discursos e crenças como pessoas e objetos materiais, tratando-os enquanto coisas ou entidades que “fazem fazer”, afetando o corpo dos capoeiristas. Consciente de seu papel ambíguo de pesquisadora - e produtora de discurso científico, e capoeirista, “nativa” -, o livro de Christine Zonzon é um convite a uma nova abordagem ao complexo mundo da capoeira. Contrariando as dificuldades da falta de quadros conceituais e linguagem para expressar o potencial da experiência do corpo na capoeira, o livro Nas rodas da capoeira e da vida: corpo, experiência e tradição carrega consigo todo o axé presente nas boas etnografias.

Referências bibliográficas

  • INGOLD, Tim. 2010. “Da transmissão de representações à educação da atenção”. Educação, 33(1): 6-25. Programa de pós-graduação em Educação-Escola de Humanidades. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
  • LATOUR, Bruno. 2007. “Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência”. Em: NUNES, J. A. & ROQUE, R. (orgs). Objetos impuros. Experiências em estudos sociais da ciência Porto: Edições Afrontamento, pp. 40-61.
  • LATOUR, Bruno. 2012. Reagregando o social: uma introdução a teoria do ator rede Salvador: Edufba.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. 1999. Fenomenologia da percepção 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes.
  • ZONZON, Christine. 2017. Nas rodas da capoeira e da vida: corpo, experiência e tradição Salvador: EDUFBA. 333 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019
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