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O fundamento ético da política em Gramsci

The ethical foundations of politics in Gramsci

Resumos

A história registra uma divisão constante entre governantes e governados. Como colocar a questão da superação disso sem abandonar o terreno sólido da história, e como manter a referência à história sem perder de vista imperativos éticos universais, incluindo a idéia-limite de uma direção política orientada para superar essa divisão? O autor examina o modo como Gramsci formula e enfrenta essas questões.


History shows a constant division between the governing and the governed. How to put the question of going beyond this without abandoning the solid soil of history, and how to maintain the reference to history without losing sight of universal ethical imperatives, including the idea of a political direction oriented towards the end of this division? The author examines the way Gramsci frames and meets these questions.


SUJEITO E OBJETO

O fundamento ético da política em Gramsci(* (* ) Publicado em Critica Marxista. Nuova Serie. Roma, nº 2/3, março-junho de 1997, págs. 62-71. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. )

The ethical foundations of politics in Gramsci

Aldo Tortorella

Diretor da revista italiana Critica Marxista e membro da direção do PDS (Partito Democrático delia Sinistra)

RESUMO

A história registra uma divisão constante entre governantes e governados. Como colocar a questão da superação disso sem abandonar o terreno sólido da história, e como manter a referência à história sem perder de vista imperativos éticos universais, incluindo a idéia-limite de uma direção política orientada para superar essa divisão? O autor examina o modo como Gramsci formula e enfrenta essas questões.

ABSTRACT

History shows a constant division between the governing and the governed. How to put the question of going beyond this without abandoning the solid soil of history, and how to maintain the reference to history without losing sight of universal ethical imperatives, including the idea of a political direction oriented towards the end of this division? The author examines the way Gramsci frames and meets these questions.

O tema das relações entre ética e política no pensamento de Gramsci não recebeu ainda hoje a devida atenção, numa bibliografia que já adquiriu grande vastidão. Em torno do tema da moral acabou por prevalecer, de modo fatal, o aspecto da moralidade individual de Gramsci, isto é, o exame dos valores éticos presentes na história da sua vida, testemunhados predominantemente por aquela extraordinária obra involuntária que são as Cartas do cárcere. Frente à voga de outros temas gramscianos, o tema da ética — e da relação entre ética e política — foi relegado a segundo plano, salvo algumas relevantes exceções. Trata-se de algo bem singular: afinal, o fato mesmo de a fortuna de Gramsci estar associada a uma íntima conexão entre as suas idéias e a exemplaridade da sua existência seria motivo suficiente para que se propusesse alguma interrogação a mais sobre a sua concepção de vida moral.

A escassez de tais interrogações representa, antes de mais nada, uma testemunha do significado que foi atribuído à palavra "política" no âmbito daquelas tendências que se sentiram mais próximas de Gramsci, acima de tudo a tendência comunista: a política como luta pelo poder em nome de valores considerados como conclamada e evidentemente válidos. Em tal acepção, o interesse pela questão da ética é marginal. Mas não se trata apenas disso.

Precisamente pela importância que aos poucos foi-se evidenciando de Gramsci como intérprete de um marxismo insólito e como teórico da política, passaram a ser investigados em seu pensamento os temas referidos à teoria marxiana e à concepção da política tal como tradicionalmente entendida. Essa orientação de pesquisa acabou por ser justificada pelo fato de que, entre aqueles que se proclamaram marxistas nos anos vinte e trinta, Gramsci inaugura urna estrada inteiramente original, tanto na análise da sociedade quanto na individuação das formas da política com a qual pudesse se dar a intervenção de um sujeito transformador.

Tudo isso explica porque as questões fundamentalmente investigadas foram sempre aquelas em que aparecia com maior clareza a peculiaridade de Gramsci com respeito a esses dois campos de interesse: a análise da sociedade e as formas da política. Donde o estudo atento em torno da sua concepção da interdependência entre "estrutura" econômica e "superestrutura" cultural, o relevo dado à atenção que ele dedicou à sociedade civil antes e além do Estado, a exegese do conceito de hegemonia como algo distinto e contraposto à idéia de domínio. Donde, também, a análise da sua específica concepção da contemporaneidade (o papel do fordismo, a hegemonia moderada na França, a visão da história da Itália: a questão meridional, a questão vaticana, etc.).

"HISTORICISMO ABSOLUTO"

No entanto, não foi apenas o destaque dado a todos esses temas que colocou na sombra a questão da relação entre ética e política em Gramsci. Um segundo motivo é que esse tema acabou por aparecer como substancialmente superado, dado que Gramsci se proclama "historicista absoluto" e, em conseqüência, engajado pela lógica interna do próprio historicismo na visão comumente atribuída a esta posição: a aversão a princípios considerados difíceis ou impossíveis de ser solidamente fundados, o repúdio às proclamações feitas por "belas almas" mas às quais não corresponde uma substância de análise histórica. Se a vida de Gramsci passou a ser considerada como eticamente exemplar, a sua idéia da relação entre ética e política acabou por se mostrar como algo já conhecido, já dado.

Nas etapas fundamentais das reflexões sobre Gramsci, isto é, nos grandes seminários que, sobretudo na Itália (mas também em outros países), foram realizados a cada decênio comemorativo de sua morte será possível notar que são bem poucos os estudos fundamentais em torno desta questão, ainda que entre eles se destaque o trabalho de Bodei sobre o tema da vontade1 1 Remo Bodei, "Gramsci: volontà, egemonia, razionalizzazione", in Política e storia in Gramsci (Atti del Convegno internazionale di studi gramsciani), Roma: Editori Riuniti, 1977. . Apenas no 50º aniversário da morte (1987) conseguir-se-á chegar a um seminário sobre "Política e moral em Gramsci" (cujos anais ainda não foram publicados), no qual podemos encontrar o estudo de Zanardo sobre o tema da vida moral na obra gramsciana2 2 Aldo Zanardo, "La concezione delia vita morale", in Critica Marxista, 1988, nº 5. .

Não por acaso, tratava-se de um seminário que ocorria logo após o impulso que Enrico Berlinguer, então recém-falecido, havia dado à "questão moral" entendida essencialmente como problema político, mas com evidentes implicações teóricas. Não por acaso, enfatizo, porque na tradição do grupo dirigente da parte majoritária do movimento operário italiano (e em Togliatti, obviamente, acima de tudo), o tema da relação entre ética e política sempre fora considerado segundo a ótica dos que haviam optado por aquela versão do marxismo que se caracterizava pela oposição ao "socialismo dos valores", isto é, à idéia de um pensamento e de uma ação socialista fortemente guiada pelo conteúdo ético implícito nas aspirações socialistas. Tal tendência, cuja referência era bem mais Kant do que a dialética hegeliana, mostrava-se como inteiramente separada da versão que, assumindo-se como assentada sobre a análise científica da realidade, havia, com Lênin, realizado uma revolução que parecia destinada a fundar uma sociedade inteiramente nova. Os motivos daquela escassa atenção para com a relação entre ética e política em Gramsci deitam raízes, portanto, na trajetória histórica do marxismo e do movimento comunista e socialista do século XX. O motivo essencial está, porém, também e sobretudo numa tendência bem mais visível: a do próprio pensamento de Gramsci. Quer dizer, no texto mesmo dos Quaderni, especialmente se deles isolamos algumas passagens.

Devemos nos recordar (embora isso seja algo a esta altura quase supérfluo) que Gramsci se havia formado no clima cultural que negava a hegemonia do pensamento positivista, pensamento que se transformara em uma espécie de dogmática evolucionista-determinista, à qual as novas levas socialistas da época associavam o empobrecimento da análise social e do curso da reflexão e da prática socialista.

Precisamente porque havia crescido nesse clima cultural, o jovem Gramsci, em oposição ao determinismo histórico, tende a valorizar a função da vontade e, portanto, a função do sujeito singular e coletivo no fazer-se da história. A polêmica daquele jovem estudante e, mais tarde, daquele jovem dirigente socialista, volta-se toda contra a idéia de uma "inevitável derrocada" do capitalismo, contra as frases feitas das teorias socialistas predominantes, contra a suposição resumida na frase: "o tempo trabalha por nós, quem é persistente acabará por vencer". Gramsci sublinha, todavia, que nesse fatalismo existe uma espécie de máscara ou de instrumento involuntário da parte do sujeito subalterno, do proletariado, que começa a adquirir vagamente consciência de si e a conceber uma vontade de resgate. Acreditar de modo quase fatalista na derrocada inevitável do capitalismo já pressupõe um pensar no fato de que esse sistema econômico-social não é definitivo; acaba por prenunciar, portanto, a vontade de colocar em movimento uma tomada de consciência e uma ação coletiva. Precisamente Gramsci, dentro do partido socialista, atravessa uma fase em que é acusado de voluntarismo e subjetivismo. Tese que será retomada em tempos mais recentes, com a ênfase dada ao "gentilianismo" de Gramsci por parte das análises feitas por Augusto Del Noce, e, ainda mais recentemente, pelas interpretações dos teóricos da direita política.

Mas os próprios teóricos do PSI e em particular Treves também acusam Gramsci, não tanto de "gentilianismo", mas de "bergsonismo", pois esta era a crítica que se fazia, na época, aos que acentuavam a função do sujeito e a função da vontade, e portanto figuradamente a função do partido. Bergsonismo, porque o Bergson do "impulso vital", da "evolução criadora" e da destruição da dogmática positivista, transferido para um terreno político-ideológico, é o filósofo que revaloriza a liberdade de atuação dos homens.

Gramsci protesta, chama de ignorantes os que o atacam como bergsoniano: vocês não sabem nada, replica, sequer chegaram a ler esse tal de Bergson 3 3 Cfr. Antonio Gramsci, "Bergsoniano!", agora em idem, Socialismo e fascismo. Torino: Einaudi, 1966, pp. 12-13. . Na realidade, ele havia ficado muito sensibilizado pelos textos de Bergson a que tivera acesso. Ficara impressionado, sobretudo, com a ruptura antipositivista e antidogmática empreendida por Bergson, coisa que acabará por ser registrada até mesmo nos Quaderni. Mas Gramsci, apesar de reter essa lição de Bergson, também considera que, na realidade, tal posição estaria destinada a desembocar em Sorel e na exaltação do espontaneísmo das massas. Há como que uma correspondência — ele acredita — entre essa exaltação da "vontade criadora" e do "impulso vital" na análise da realidade humana e a idéia de um fazer-se espontâneo da revolução. Sorel havia teorizado o "mito" como força criadora e o "mito-greve geral" como instrumento da transformação revolucionária da sociedade: com a greve geral as massas seriam chamadas à tarefa da transformação socialista como que por um ímpeto 4 4 Para a relação Gramsci-Bergson e Gramsci-Sorel, cfr. Nicola Badaloni, Il marxismo di Gramsci. Torino: Einaudi, 1975, e Leonardo Paggi, Antonio Gramsci e il moderno príncipe. Roma: Editori Riuniti, 1970. .

O jovem Gramsci, que era na ocasião, na seção socialista de Turim, defensor de uma posição teórica própria, retruca aos dirigentes socialistas que o acusam de bergsonismo de cederem à idéia do espontaneísmo das massas, seja porque mostravam-se incapazes de organizar a presença ativa e transformadora da classe operária, seja porque não se mostravam em condições de conceber as exigências de um sujeito intérprete da vontade social. Gramsci revelava-se assim, portanto, não apenas crítico da dogmática positivista da evolução social deterministicamente pensada, mas crítico também da idéia de que na sociedade capitalista, a um certo momento, possa-se gerar uma ruptura como por uma espécie de fatalidade diruptiva. Seria possível dizer, em linguagem política, que ele funde a crítica à direita e a crítica à esquerda: à direita evolucionista do movimento socialista de então e à idéia da espontaneidade criadora das massas que influenciava fortemente a esquerda. Surge aqui a questão da vontade, entendida como instrumento essencial da organização do sujeito transformador. Não se chegará a esse socialismo por uma via fatal, nem por uma explosão inesperada ou por um gesto liberador. Só se poderá chegar a ele através de uma obra de construção, sistemática, constante, científica.

Tal posição de Gramsci atravessa toda a sua atividade. E é o motivo pelo qual ele verá a revolução russa de outubro não como a efetivação da posição soreliana, mas como a conclusão de uma obra construtiva: a revolução de outubro, entendida como obra-prima de tática e estratégia de uma força que, apesar de pequena (como era a fração bolchevique do partido social-democrata russo), era organizada, consciente e capaz, para falar com uma imagem, de usar a história e não de ser usada pela história. O entusiasmo juvenil pela "revolução contra o Capital" (de Marx) tem precisamente este significado: não a espera passiva de um suposto amadurecimento da revolução e nem a crença abstrata em uma subversão espontânea, mas a obra de quem sabe inserir seu próprio projeto organizado numa realidade em movimento.

A POLÊMICA ANTIKANTIANA

Precisamente esta função atribuída à decisão de uma vontade historicamente consciente e que se constitui historicamente, contrapõe-se radicalmente à idéia de que possa existir algum princípio moral absoluto ao qual se referir. Daí toda a polêmica antikantiana de Gramsci. A idéia a que ele sempre retorna nos Quaderni, às vezes com as mesmas palavras, às vezes com algumas modificações, é a de que o princípio kantiano (faça o que você pensa poder ter um valor universal) não leva a nenhum lugar a não ser a uma generalização, a uma absolutização das crenças historicamente dadas. O exemplo, bastante conhecido, é dado pela idéia de que aquele que mata sua mulher por ciúme acreditará que este é um princípio universal e que todos os maridos traídos deveriam matar as mulheres infiéis 5 5 Cfr. Antonio Gramsci, Quaderni del carcere. Edição crítica de Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 1975, pp. 1484-1485. A partir de agora, as referências aos Quaderni serão indicadas com a letra Q., seguida do número da página. . O imperativo categórico é apenas uma especulação iluminista, que agrada aos intelectuais, que se vêem como sujeitos absolutos e portanto pensam que através de alguma norma por eles elaborada seja possível solucionar o problema do fundamento absoluto da moral 6 6 Ibidem. .

Gramsci permanecerá sempre fiel à idéia de que se deve partir da "natureza humana". Mas a natureza humana não é pensada em termos abstratos: "A natureza humana — ele diz— é o conjunto das relações sociais historicamente determinadas, isto é, um fato histórico comprovável, dentro de certos limites, com os métodos da filologia e da crítica" 7 7 Q., 1599. . A própria expressão "natureza humana" faz com que sejamos obrigados a refletir: pois ela, ainda que especificada, abre o campo para uma discussão que não pode ser referida unicamente ao devenir da espécie, mas ao seu ser, ao ser de uma realidade dada que se chama "natureza humana" e que está antes das modificações que podemos pensar e constatar. A introdução da referência constante à "natureza humana" — na qual "espontâneo" e "artificial" se confundem 8 8 Q., 1875. — leva a pensar que, se é necessário na história a intervenção da vontade, e não a expectativa da derrocada ou a expectativa de não se sabe qual explosão das massas, então uma intervenção da vontade deve apoiar-se em algo muito concreto, não só pelo que diz respeito à análise das condições históricas (relações de força internas à sociedade entre proletariado e capital, etc.), mas também pelo que diz respeito ao que vem antes, ou seja, à "natureza humana", tema tradicionalmente bem pouco interessante para os pensadores marxianos.

O tema mantém-se, em Gramsci, mais como um sinal do que como um esboço (não desenvolvido). Certa é a sua idéia do processo: pode-se construir partindo do dado de fato da realidade material e do conhecimento daquilo que é efetivamente esta famosa natureza humana, sendo impossível, ao contrário, mover-se no terreno das especulações abstratas, dos ideais vazios de conteúdo. (Recordemos a Internacional, o canto dos socialistas de todo o mundo: "Lutamos — diz a tradução italiana —por um ideal/nossa meta será..."). Segundo Gramsci, "o conceito de ideal que se formou entre as massas de esquerda serve bem, na sua vacuidade formal, para caracterizar a situação a situação em que se encontrava o movimento socialista naquele tempo, não fins e programas concretos e definidos, mas uma fórmula vazia capaz de conter coisas as mais disparatadas"9 9 Q., 813. . Estamos nos Quaderni, ou seja, no tempo da reflexão sobre a derrota diante do fascismo, mas citações desse tipo podem ser extraídas dos textos políticos elaborados durante a sua batalha política anterior a 1926, anterior à prisão.

Gramsci dirá mais adiante: "as idéias são grandes na medida em que são realizáveis" 10 10 Q., 1050. . Gramsci, portanto, é um "pensador realista"11 11 Cfr. Aldo Zanardo, ob. cit. , constantemente posicionado contra a confusão entre princípios sustentáveis que derivam da análise da realidade e princípios vazios que se mostram como puramente declamatórios. Isso todavia pede a resolução da questão da "realizabilidade" diante da análise da realidade. Gramsci adere à idéia de que a liberdade é consciência das necessidades, segundo os passos do pensamento racionalista. Mas em que sentido se define a "necessidade" da qual a liberdade é consciência? Em substância, ele considera que esta "necessidade" identifica-se com uma análise histórica que indique qual é o mundo que pode surgir, e portanto como se luta para fazer com que este mundo venha a surgir. A idéia é a de que a consciência ética coincide definitivamente com o conhecimento da realidade a ser transformada e com a individuação do ponto para onde se deve levar esta sociedade. Gramsci afirma que, se é válida a crítica que se faz a Kant (e que ele mesmo faz a Kant) — qual seja, a de que não se pode aceitar a tentativa de uma fundação absoluta da moral —, a outra estrada para estabelecer uma ética da liberdade é a de inseri-la na análise histórica, e de ver a partir da análise histórica o que é que aponta para a frente e o que é que, ao contrário, está morto.

O elemento central — a "base científica"— dessa posição está na frase de Marx que Gramsci cita de memória repetidamente nos Quaderni:12 12 Cfr. o aparato crítico da citada edição dos Quaderni (IV volume), para o que se afirma a propósito de Q. 4, § 5, nota 38. "A sociedade não se põe tarefas para cuja solução já não existam as condições necessárias". Existindo as condições, dirá Gramsci, "a solução das tarefas torna-se 'dever', a 'vontade' torna-se livre. A moral tornar-se-ia uma pesquisa das condições necessárias para a liberdade do querer em um certo sentido, na direção de um certo fim, bem como a demonstração de que tais condições existem. Deveria se tratar, também, não de uma hierarquia dos fins, mas de uma graduação dos fins a serem atingidos, já que se deseja 'moralizar' não apenas cada indivíduo singularmente considerado, mas também toda uma sociedade de indivíduos" 13 13 Q., 855. .

Segundo tal posição, a compreensão daquilo que a sociedade fez amadurecer como "necessário" faz com que esta mesma compreensão se torne um dever. E a vontade torna-se uma vontade livre, na medida em que se funda sobre a compreensão deste dever.

Tenta-se assim superar toda forma de dogmaticidade do pensamento: seja a dogmaticidade do evolucionismo social (existirá uma evolução fatal da sociedade) de um certo tipo de marxismo que se julgava ortodoxo, seja a dogmaticidade que pode derivar da exaltação mítica da espontaneidade das massas. No entanto, seguindo esta linha de reflexão não se escapa das dificuldades (já presentes na antiga crítica ao racionalismo absoluto) de uma posição teórica obrigada a fundar-se sobre a certeza de possuir a interpretação autêntica da necessidade histórica: a determinação desta "necessidade" pode ser não menos arbitrária do que a abstração privada de conteúdo atribuída ao imperativo categórico kantiano.

Por esta estrada a moral tornar-se-á uma coisa "objetiva", baseada na consciência "científica" da realidade social, com o risco existente em toda forma de "objetividade" presumida como um dado verdadeiro e certo. Na posição teórica escolhida por Gramsci a conseqüência é inevitável: "É preciso convencer-se de que não só é 'objetivo' e necessário um certo equipamento, mas também um certo modo de comportar-se, uma certa educação, um certo modo de convivência. Nesta objetividade e necessidade histórica ... pode-se basear a 'universalidade' do princípio moral ou melhor, jamais existiu outra universalidade senão esta objetiva necessidade de uma técnica civil, ainda que interpretada com ideologias transcendentes, ou transcendentais e apresentada em cada caso do modo mais eficaz historicamente para que se alcançasse o objetivo desejado" 14 14 Q., 1876. . Na verdade, ele diz, a idéia de uma moral universal esconde o fato de que cada sociedade afirma uma dada lei moral porque tal lei corresponde às necessidades daquela sociedade determinada. Mas Gramsci sabe, por cultura e por experiência, que esta é uma passagem perigosa. Se a análise histórica pode demonstrar, ainda que de um modo não definitivo, aquilo que já passou (e portanto aquilo que foi a ética, o costume, etc.), aquilo que deve existir amanhã é objeto de hipóteses, por mais historicamente fundadas se presuma sejam elas. Está em uma emboscada, em uma concepção historicista, o perigo de um absoluto relativismo ético.

ÉTICA E POLÍTICA

Gramsci é bem consciente deste perigo e dos mal-entendidos que podem surgir da separação entre política e moral. Em suas notas sobre Maquiavel, insistirá muitas vezes no seguinte conceito: Maquiavel distingue e separa a política da moral, mas isso "não significa que destrua a moral". Gramsci é radicalmente polêmico contra as degenerações que podem ser induzidas pelo historicismo e pela própria criticidade do pensamento. "O materialismo histórico destrói toda uma série de preconceitos e de convenções, de falsos deveres, de hipócritas obrigações, mas nem por isso justifica que se caia no ceticismo e no cinismo esnobe" 15 15 Q., 749. . Há uma tendência do materialismo histórico, diz Gramsci, que "excita e favorece todas as más tradições da cultura média italiana e parece aderir a alguns traços do caráter italiano: a improvisação, o 'talentismo', a preguiça fatalista, o diletantismo desmiolado, a ausência de disciplina intelectual, a irresponsabilidade e a deslealdade moral e intelectual" 16 16 Ibidem. . No interior desse pensamento que rejeita a idéia de uma possível fundação ética absoluta, portanto, continuamente aparece a pesquisa de uma outra fundação do princípio moral.

Com efeito, quando Gramsci procura os próprios princípios a partir do conhecimento da realidade, e a partir da análise daquilo que nessa realidade se supõe estar nascendo de modo a facilitar o nascimento de uma outra realidade, uma pergunta implícita permanece. Se há esse perigo de se cair em uma forma de "ceticismo" e de "cinismo esnobe", isso significa que não basta pensar a moral como um fato objetivo, inerente a cada sociedade singular, para cancelar a responsabilidade das escolhas eticamente conscientes e portanto do princípio que as inspira. Como fazer para escapar desse relativismo, dessa ausência de qualquer princípio, dessa decadência em direção à "deslealdade moral e intelectual"?

Seria inteiramente absurdo e inócuo solicitar de Gramsci aquilo que ele não fez e não podia fazer: qual seja, uma obra sistemática. Essencial é o indício de um estímulo permanente em torno do tema do fundamento, algo que não se pode circunscrever à crítica do kantismo e que indica a pesquisa de princípios sustentáveis. Gramsci volta várias vezes e a partir de ângulos diversos a se interrogar sobre os fundamentos de uma ética que justifique a ação política. Antes de tudo para dizer que os princípios são desejáveis: "Não pode existir associação permanente e com capacidade de desenvolvimento — escreve ele — que não esteja sustentada por determinados princípios éticos que a própria associação fixa para seus componentes singulares tendo em vista a compactação interna e a homogeneidade necessária para o alcance dos fins propostos". Mas ele acrescenta logo em seguida: "Nem por isso tais princípios estão desprovidos de caráter universal", com o objetivo evidente de evitar que a associação derive para qualquer idéia de inspiração puramente de grupo, de seita, de bando. Os princípios são desejáveis, portanto, e devem ter caráter universal. A associação (o partido) que tem em mente Gramsci não se põe como algo rígido e definitivo, mas "como tendente a alargar-se para todo um agrupamento social que, por sua vez, também é concebido como tendente a unificar toda a humanidade. Todas essas relações dão caráter (tendencialmente) universal à ética de grupo que deve ser concebida como capaz de se tornar norma de conduta de toda a humanidade" 17 17 Q., 750. .

Nessas e em outras análogas e bem conhecidas proposições dos Quaderni 18 18 Q., 1561: "O moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que o seu desenvolvimento significa precisamente que cada ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, mas só na medida em que tem como ponto de referência o próprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder ou contrastá-lo. O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma laicização completa de toda a vida e de todas as relações de costume". Há sobre esta passagem gramsciana uma ampla literatura. Refiro-me em particular ao esforço de superação efetuado pelo velho PCI. , há uma idéia do partido como centro de vida moral que se torna, como já foi várias vezes observado criticamente, uma posição organicista e, mais ainda, integralista. Se os princípios da "associação" propõem-se como universalmente válidos, a associação (o partido) tende a resumir em si mesma, senão os critérios de verdade (e nesse ponto a polêmica de Gramsci é explícita)19 19 Q., 1393: "Parece necessário que o trabalho de pesquisa de novas verdades e de melhores, mais coerentes e claras formulações das próprias verdades seja deixado à livre iniciativa dos cientistas singulares". Mas esta posição é retomada e desenvolvida em muitas outras passagens. , ao menos os critérios eticamente reguladores de uma construção social. Tudo isso deve nos tornar bastante atentos à retomada a crítica (ou pior, à reinvenção) da idéia gramsciana do partido, idéia que está estreitamente vinculada à condição histórica dada. Mas a pesquisa de princípios universalmente válidos (também ela, obviamente, feita com os instrumentos culturais da época) indica um tormento intelectual que tem um sentido em si mesmo — ainda que prescindindo de seus resultados — e é bem diferente da idéia de um partido que deseje conformar a sociedade a si mesmo.

Posto que um pensamento crítico tende a destruir — como diz Gramsci — todo um sistema de valores falsos, de convenções hipócritas, etc., é possível ou não redescobrir ou reencontrar um sistema de valores com o qual inspirar a própria ação? A hipótese de transformação ou mesmo só de melhoramento da sociedade pode ou deve ser posta em movimento a partir de qual motivação? Mesmo a genérica idéia da correspondência com a "necessidade" histórica, Gramsci sabe muito bem, não elimina o fato de que essa necessidade pode mudar conforme o sistema de valores que se escolhe.

O problema, portanto, é o de individuar algum parâmetro de referência. E Gramsci, precisamente onde procura demonstrar que a refutação do kantismo não implica o ceticismo, indica três critérios de método para que se possa estabelecer que determinados princípios éticos possuem um "caráter universal". Tais critérios correspondem a três perguntas. "Esta dada concepção da moral quer dizer, a concepção de quem identifica na necessidade histórica os princípios de uma nova moral, e está em polêmica contra as hipocrisias da antiga tem em si as características de uma certa duração?" (Eis portanto o primeiro critério: o tempo, a duração no tempo). "Ou é mutável a cada dia ou dá lugar no próprio grupo aqui não se fala formalmente do partido, mas é a isso que se alude à formulação da teoria da dupla verdade?" (Eis o segundo critério: não pode existir uma verdade para o interior e outra para o exterior, uma verdade para as massas e uma verdade para os grupos dirigentes, etc). Por fim, eis o terceiro critério: "Sobre sua base, sobre a base desta eticidade nova que é quase uma premissa do agir político, pode-se constituir uma elite que guie as multidões, as eduque e seja capaz de ser 'exemplar'"? Resolvidos afirmativamente esses pontos diz Gramsci, "a concepção é justificada e válida"20 20 Q., 1877. . Isto é, não há uma moral absoluta a ser extraída de algum princípio abstrato; tal eticidade fundadora de uma ação política deve ser extraída de uma análise histórica dos processos históricos, a partir da qual torna-se possível observar para qual direção desejamos nos movimentar. Porém, para não cair no ceticismo e no relativismo, devemos fixar alguns critérios de método. Na mencionada posição de Gramsci, tais princípios são a) a permanência no tempo; b) a coerência interna; c) a capacidade de constituir elites dirigentes, grupos dirigentes capazes de ser exemplares.

É evidente que, desses três critérios, um (o primeiro) apenas pode se referir ao passado, enquanto o segundo e o terceiro pressupõem critérios de validade que não são demonstrados. A duração no tempo somente pode ser comprovada depois que uma "determinada concepção" ética é avaliada na história dos homens. Em termos rigorosos, um critério de duração premia ou confirma unicamente as éticas de derivação religiosa (ou que determinam as religiões) e, portanto, as concepções éticas tradicionais em cada lugar; pois apenas elas podem exibir o critério da mais longa "duração".

O segundo critério — qual seja, a prova da não-contraditoriedade, — também necessita ser posto em relação ao passado ou ser submetido a verificações que não dizem respeito à sua aderência a uma suposta historicidade. Se a ausência de contradição é considerada um requisito essencial, faz-se necessário alguma coisa que torne a contraditoriedade impossível ou justificável: nas éticas religiosas, este algo mais é dado pela indiscutibilidade da revelação divina, pela absoluta autoridade do dogma. Em uma ótica laicamente concebida, este "algo mais" deveria remeter-se à sua constituição interna e não à sua historicidade, pois são certamente encontráveis formas de vida moral correspondentes a sociedades historicamente dadas e absolutamente contraditórias no que se refere a questões essenciais.

E, enfim — eis o terceiro critério —, a capacidade de criar elites exemplares, além do fato de que, como a primeira prova, somente pode ser julgada ex post, contém noções (a "exemplaridade", a "capacidade educativa") que devem ser, por sua vez, explicadas: o que é "exemplar"? Qual o princípio ou quais os princípios, e como são fundados, para empreender uma obra de educação que se tome como necessária para demonstrar a consistência de uma concepção moral?

Precisamente por isso, esses três critérios de método não bastam. É preciso portanto fixar um princípio mais seguro. No mesmo trecho em que Gramsci pretende definir o "caráter universal" da ética que ele pensa adequada para um grupo político, para uma "associação permanente", ele afirma: "A política é concebida como um processo que desembocará na moral, isto é, como tendente a desembocar em uma forma de convivência na qual política e moral serão ambas superadas" 21 21 Q., 750. .

A UTOPIA COMO IDÉIA-LIMITE

Pode-se certamente dizer que nessa e em outras formulações semelhantes existe a pura e simples retomada de uma idéia radicada no pensamento socialista (desde suas remotas origens) e própria também de Marx: a idéia da passagem do "reino da necessidade" para o "reino da liberdade", para uma liberdade pura e absoluta que cancela qualquer forma de constrição. Ainda que fosse apenas assim, já se definiria um princípio moral inspirador com seus limites e suas contradições internas, limites e contradições muito semelhantes aos dos ideais genéricos que o próprio Gramsci criticou. Mas há em Gramsci alguma coisa a mais: não apenas a pesquisa realista, imposta pelo historicismo, que tende a afastar a utopia da sua possível assimilação a um vago sonho (animador de fanatismos), mas uma passagem ulterior. Desenvolvendo sua reflexão em torno do tema que constantemente o estimula, qual seja, o tema da política e da "associação" política, Gramsci se defronta — repensando Maquiavel — com o tema da "formação dos dirigentes" (dos dirigentes, entenda-se, também e sobretudo do partido político), e aqui não lhe basta mais indicar um processo histórico ou um ideal, posto ser preciso indicar um princípio definido para formar consciências.

Se toda "a ciência e a arte da política" baseia-se no "fato primordial" da existência de dirigentes e dirigidos, governantes e governados, será necessário também providenciar à formação dos "dirigentes" no interior de um partido. Mas desde que o próprio Gramsci conhece e denuncia o "cinismo vulgar", o abandono de qualquer princípio, a decadência grosseira de tantos políticos de partido, há que se fixar algum critério que se oponha a tudo isso.

Gramsci procura então um ponto de referência essencial. Aquela que ele chama de "premissa" para "formar" os próprios dirigentes tem a forma de uma pergunta: "Pretende-se que existam sempre governados e governantes ou pretende-se criar as condições em que a necessidade dessa divisão desapareça? Isto é, parte-se da premissa da divisão perpétua do gênero humano ou se crê que ela é apenas um fato histórico, correspondente a certas condições?"22 22 Q., 1752. . A separação entre dirigentes e dirigidos em uma dada realidade constitui um dado de fato, mesmo no interior de uma "associação" que deseje superar aquela separação. Mas o elemento "essencial" para que esses dirigentes não sejam iguais aos outros, a "coisa elementar" que com freqüência "se esquece"23 23 Ibidem. , é precisamente a finalidade pela qual se sai a campo: a finalidade da superação da distinção entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos.

Tal finalidade, considerada "coisa elementar", coisa "essencial", não pode ser assimilada à mera pregação de uma utopia. Gramsci propõe, se assim podemos dizer, um uso diverso da utopia ou, mais exatamente, propõe o que me parece ser uma transformação de sentido. Desde que a referência não é a um processo inelutável, estabelecido por algum mecanismo presente na sociedade e na história, mas, bem mais, a um processo que diz respeito à vontade e à consciência (à ciência da sociedade), a finalidade ideal não se converte em um objetivo a ser sobreposto ou imposto à sociedade, mas em uma intenção, ou melhor, uma idéia-limite e portanto um instrumento para um processo eticamente consciente. (Com a expressão "idéia-limite", segundo uma linguagem "antiga", definem-se as idéias construídas para descrever e regular conceitualmente um campo da experiência humana: o bem e o mal para a ética, o belo e o feio para a estética, o justo e o injusto para o direito, etc.). Se assumo a idéia da historicidade da divisão entre dirigentes e dirigidos (e a contraponho à idéia de que esta divisão é e será eterna), defino uma idéia-limite para o campo da ação política que me consente de pensá-lo como algo diverso de uma pura luta pelo poder. É óbvio que o choque entre grupos diversos de indivíduos pelo exercício do poder se manterá, mas a distinção (a dialética) constitutiva do campo da ação política estará entre duas diferentes idéias de poder, ou seja, entre os dois pólos da idéia do poder como fim em si mesmo e da idéia do poder como um instrumento de uma sua possível superabilidade. É neste último sentido que se abre uma visão da política como processo eticamente consciente. Eis porque a idéia da historicidade (ou seja, da não-eternidade) da distinção entre dirigentes e dirigidos pode estar dentro de uma teorização da formação dos "dirigentes", como exigência historicamente concreta.

O tema, aqui, não é mais: devemos construir ou impor uma sociedade sem governantes e governados, mas sim: devemos nos construir a nós mesmos (enquanto governantes) sabendo que o nosso objetivo não é o de eternizar a divisão. A intencionalidade ética (a aceitação de uma idéia-limite como valor) não é algo desprovido de conseqüências práticas. Reconhecer que a distinção entre dirigentes e dirigidos é um fato quase tecnicamente necessário 24 24 Ibidem. (e portanto inevitável) pode levar a conseqüências aberrantes sem aquela premissa: pode levar, por exemplo, a que se considere justa uma decisão apenas porque foi aceita por um dirigente.

A distinção entre domínio e "hegemonia" já havia esclarecido, em outra parte dos Quaderni, que é a ausência de "democracia real"25 25 Q., 751. que determina a degeneração burocrática e o despotismo. O critério da "obediência" não pode ser considerado como automático por nenhum protagonista, seja ele um grupo, uma associação ou um partido, mesmo que se apresente como sujeito inovador. Onde quer que seja — em qualquer forma de associação —, é portanto necessária a "democracia real": esta, porém, por sua vez, exige a idéia de relações sociais e políticas nas quais a distinção entre governantes e governados não é concebida como eterna, mas como um dado historicamente concreto e por isso mesmo não definível como um absoluto. O critério para que se possa dirigir da maneira que Gramsci considerava correta parte, portanto, de uma firme conexão com o princípio da liberdade e com o princípio da libertação. Mas o que é isso, se não desejamos defini-lo como um imperativo categórico, senão a aceitação de uma norma de referência ética, um critério de valor, uma idéia inspiradora do pensamento e da ação?

Há uma tensão no pensamento de Gramsci. A luta contra o moralismo das belas almas se faz acompanhar da luta contra o ceticismo e o cinismo vulgares. A afirmação da historicidade da norma moral se faz acompanhar da pesquisa de um princípio sem o qual não há horizonte de sentido para o agir político. É segundo esse percurso que o credo utópico se transforma em intencionalidade moral, impele à idéia de hegemonia, condena o domínio, impede o maquiavelismo barato que faz passar por bom qualquer meio referente a um fim pressuposto como bom. A discussão de Gramsci em torno de Maquiavel e do maquiavelismo deteriorado é assim tão insistente porque há aqui um nó que ele percebe como essencial. Podemos formulá-lo assim: é mesmo verdade que a ética pública é a dos resultados e a moralidade privada a das intenções?

Gramsci explica que a moralidade (a honestidade) do político deve ser julgada como respeito à manutenção dos compromissos assumidos 26 26 Q., 1710. , mas isso não significa que se possa justificar o emprego de qualquer meio para o alcance dos próprios objetivos. Gramsci também é aquele que abertamente admira e elogia Quintino Sella, ministro da direita histórica, conservador. A quem lhe perguntasse "mas com qual idéia universal você irá a Roma?", Sella sempre respondia: "com a idéia da ciência". Esse conservador cientificista, industrial têxtil, ao assumir o Ministério do Tesouro desfez todos os negócios que mantinha com o Estado. Uma intencionalidade, uma prática: não a idéia de que a busca de uma intencionalidade, por mais nobre que seja, pode comportar uma prática qualquer.

A concepção da eticidade pública como rigor e dever que serve de inspiração para o texto e a conduta de Gramsci não se explica sem a transformação da utopia vista como "coisa", como "objeto", em utopia vista como intencionalidade ética, ou melhor, como idéia-limite da razão. Se o dever está privado de consciência do real pode acabar por se converter em fanatismo, mas se a consciência do real não é alimentada por um princípio ético capaz de ser pensado como universal não existe mais o dever, mas também não existe mais a ação política.

  • (*) Publicado em Critica Marxista. Nuova Serie. Roma, nş 2/3, março-junho de 1997, págs. 62-71.
  • 1 Remo Bodei, "Gramsci: volontà, egemonia, razionalizzazione", in Política e storia in Gramsci (Atti del Convegno internazionale di studi gramsciani), Roma: Editori Riuniti, 1977.
  • 2 Aldo Zanardo, "La concezione delia vita morale", in Critica Marxista, 1988, nş 5.
  • 3 Cfr. Antonio Gramsci, "Bergsoniano!", agora em idem, Socialismo e fascismo. Torino: Einaudi, 1966, pp. 12-13.
  • 4 Para a relação Gramsci-Bergson e Gramsci-Sorel, cfr. Nicola Badaloni, Il marxismo di Gramsci. Torino: Einaudi, 1975,
  • e Leonardo Paggi, Antonio Gramsci e il moderno príncipe Roma: Editori Riuniti, 1970.
  • 5 Cfr. Antonio Gramsci, Quaderni del carcere. Edição crítica de Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 1975, pp. 1484-1485.
  • (*
    ) Publicado em
    Critica Marxista. Nuova Serie. Roma, nº 2/3, março-junho de 1997, págs. 62-71. Tradução de Marco Aurélio Nogueira.
  • 1
    Remo Bodei, "Gramsci: volontà, egemonia, razionalizzazione", in
    Política e storia in Gramsci (Atti del Convegno internazionale di studi gramsciani), Roma: Editori Riuniti, 1977.
  • 2
    Aldo Zanardo, "La concezione delia vita morale", in
    Critica Marxista, 1988, nº 5.
  • 3
    Cfr. Antonio Gramsci, "Bergsoniano!", agora em idem,
    Socialismo e fascismo. Torino: Einaudi, 1966, pp. 12-13.
  • 4
    Para a relação Gramsci-Bergson e Gramsci-Sorel, cfr. Nicola Badaloni,
    Il marxismo di Gramsci. Torino: Einaudi, 1975, e Leonardo Paggi,
    Antonio Gramsci e il moderno príncipe. Roma: Editori Riuniti, 1970.
  • 5
    Cfr. Antonio Gramsci,
    Quaderni del carcere. Edição crítica de Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 1975, pp. 1484-1485. A partir de agora, as referências aos
    Quaderni serão indicadas com a letra
    Q., seguida do número da página.
  • 6
    Ibidem.
  • 7
    Q., 1599.
  • 8
    Q., 1875.
  • 9
    Q., 813.
  • 10
    Q., 1050.
  • 11
    Cfr. Aldo Zanardo,
    ob. cit.
  • 12
    Cfr. o aparato crítico da citada edição dos
    Quaderni (IV volume), para o que se afirma a propósito de Q. 4, § 5, nota 38.
  • 13
    Q., 855.
  • 14
    Q., 1876.
  • 15
    Q., 749.
  • 16
    Ibidem.
  • 17
    Q., 750.
  • 18
    Q., 1561: "O moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que o seu desenvolvimento significa precisamente que cada ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, mas só na medida em que tem como ponto de referência o próprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder ou contrastá-lo. O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma laicização completa de toda a vida e de todas as relações de costume". Há sobre esta passagem gramsciana uma ampla literatura. Refiro-me em particular ao esforço de superação efetuado pelo velho PCI.
  • 19
    Q., 1393: "Parece necessário que o trabalho de pesquisa de novas verdades e de melhores, mais coerentes e claras formulações das próprias verdades seja deixado à livre iniciativa dos cientistas singulares". Mas esta posição é retomada e desenvolvida em muitas outras passagens.
  • 20
    Q., 1877.
  • 21
    Q., 750.
  • 22
    Q., 1752.
  • 23
    Ibidem.
  • 24
    Ibidem.
  • 25
    Q., 751.
  • 26
    Q., 1710.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2010
    • Data do Fascículo
      1998
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