Acessibilidade / Reportar erro

A democracia e a dinâmica da esfera pública

Democracy and the dynamics of the public sphere

Resumos

Dois modelos de dinâmica da esfera pública são cotejados: o funcionalista e o da teoria do discurso. Especial atenção é dada ao modo como neles aparecem os movimentos de protesto e os atores da sociedade civil.


Two models of the dynamics of the public sphere are compared: the functionalist and the discourse-theoretical Special attention is given to the way the protest movements and the actors in the civil society appear in each model.


DEMOCRACIA

A democracia e a dinâmica da esfera pública

Democracy and the dynamics of the public sphere

Sérgio Costa

Mestre em Sociologia pela UFMG, doutorando da Universidade Livre de Berlim (bolsista do CNPq) e docente no Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Livre de Berlim

RESUMO

Dois modelos de dinâmica da esfera pública são cotejados: o funcionalista e o da teoria do discurso. Especial atenção é dada ao modo como neles aparecem os movimentos de protesto e os atores da sociedade civil.

ABSTRACT

Two models of the dynamics of the public sphere are compared: the functionalist and the discourse-theoretical Special attention is given to the way the protest movements and the actors in the civil society appear in each model.

Na ordem democrática, entendida como forma de exercício de uma dominação política consentida, as decisões têm que ser permanentemente "fundamentadas" e justificadas e dependem de anuência para que possam ser efetivadas (Sarcinelli, 1992). Neste processo, cabe à esfera pública uma posição central: ela se torna a arena onde se dá tanto a amálgama da "vontade coletiva" quanto a justificação de decisões políticas previamente acertadas.

Serão examinados, a seguir, dois modelos (um funcionalista e outro "teórico-discursivo") que descrevem a dinâmica da esfera pública nas democracias contemporâneas, conferindo-se destaque à forma como os "movimentos de protesto" ou os "atores da sociedade civil" são referidos em cada um deles. No final procede-se a uma comparação entre os dois enfoques teóricos.

O MODELO FUNCIONALISTA

No modelo funcionalista aqui considerado a esfera pública é definida como um "sistema intermediário, cuja função política consiste na absorção e no processamento de determinados temas e opiniões, bem como na transmissão das opiniões públicas que resultam deste processamento, tanto aos cidadãos quanto ao sistema político" (Gehrards & Neidhardt, 1990:6). Desta definição resulta a imagem da esfera pública como um mercado de opiniões no qual os diferentes atores sociais (partidos, grupos de interesse, movimentos sociais etc.) encontram-se em permanente concorrência por um recurso escasso, qual seja, a atenção pública. Tais atores procuram participar do processo de geração da opinião pública e influenciar, por esta via, as instâncias de decisão1 1 Embora este modelo de esfera pública se baseie claramente na teoria sistêmica, seus autores atribuem – diferentemente de Niklas Luhmann – um papel diferenciado ao sistema político, relativamente aos demais sistemas. Este teria "uma posição de supremacia, tanto como destinatário de problemas, quanto como sistema de solução de problemas" (Gehards, 1993:23). Ou seja, os autores reconhecem que o sistema político ainda preserva suas funções de direção e coordenação dos demais sistemas. A caracterização de tal modelo como funcionalista não é, por certo, livre de problemas. Trata-se, na verdade, de um marco conceitual misto, influenciado por correntes teóricas variadas. .

De acordo com essa concepção, a opinião pública, constituída pela ação dos diferentes atores sociais, não assume imediatamente a forma de decisões políticas. Tal "conversão" ocorre conforme um modelo de dois níveis, que descreve o policy process. No primeiro estágio verificam-se a formulação pública e a apresentação de posicionamentos acerca de determinado problema. Trata-se portanto da formação da opinião pública. Somente quando a questão tematizada é assimilada pelo sistema político – no segundo estágio – é que ela pode transformar-se numa decisão concreta (Gerhards, 1993:26).

Estes dois estágios representam fases diferenciadas da "carreira" ou trajetória que os temas percorrem, enquanto as atenções públicas encontram-se voltadas para eles. Conforme essa concepção as perspectivas de que certo problema se torne um tema público dependem menos de seu conteúdo e relevância do que de questões prático-estratégicas. Problemas que podem ser envolvidos num rótulo atrativo ou que são trazidos à tona por atores sociais poderosos – em termos de acesso a recursos comunicativos – possuem melhores chances de ser tematizados publicamente e, portanto, de ser incorporados à agenda política, que as questões do interesse dos grupos que não fazem parte do establishment (Pfetsch, 1994:14).

O governo busca assumir o tratamento de problemas cujas soluções encontrem a "aceitação mais ampla possível", evitando questões polêmicas. Neste contexto, afirma-se que o Executivo atua tanto como destinatário como quanto co-formador da esfera pública. Ele pode, mediante seu trabalho de relações públicas, estimular a discussão daqueles problemas que revelem boas perspectivas de encontrar uma decisão consensual, ou, ao contrário, dificultar a "carreira" de temas que sejam potencialmente conflituosos ou cujo tratamento ameace os interesses estabelecidos.

Não obstante, no âmbito institucional da concorrência partidária o governo inevitavelmente vê-se forçado a levar em consideração o "estado dos ânimos" (a opinião pública) reinante. é que o partido governante faz parte, como os demais partidos, dos atores da agregação de interesses, aos quais cabe reunir as demandas sociais numa plataforma programática, com a qual estes se apresentam periodicamente ao público de eleitores (Gerhards, 1993:35). Por essa razão a desconsideração de determinados temas pelo governo pode custar para o partido governista, futuramente, a perda dos votos daquele grupo de eleitores que esteve interessado no tratamento de tais problemas.

Como contraponto conceitual aos atores partidários, que concorrem aos cargos executivos – e obviamente legislativos – aparecem os atores da articulação de interesses, que procuram, de forma indireta, exercer influência sobre o Executivo. Entre estes atores incluem-se tanto os sindicatos e os grupos de interesse como os movimentos sociais e grupos de protesto –abrigados, neste modelo, coletivamente, sob a rubrica "atores de protesto".

Admite-se, com efeito, que os "atores de protesto", comparativamente aos demais atores articuladores de interesses, apresentam um nível de organização mais reduzido e dispõem de uma base de recursos mais limitada: enquanto os grupos de interesse contam com meios variados de influenciar as instâncias de decisão (dinheiro, contatos pessoais, poder organizacional etc), a mobilização, no nível da esfera pública, constitui para os atores de protesto a forma mais importante – freqüentemente o único meio possível – de influir na formulação de decisões políticas (Gerhards & Neidhardt, 1994:7). Do ponto de vista normativo, contudo, não se atribui um caráter diferenciado aos "atores de protesto". Assim como os demais "atores da esfera pública", estes atuariam estrategicamente na defesa de seus próprios interesses, buscando, através da mídia, atingir um "público carente de orientação e entretenimento" (Neidhardt, 1994:7). Neste contexto, as formas típicas de expressão dos movimentos de protesto (manifestações, passeatas etc.) são equiparadas, analiticamente, aos instrumentos da chamada política simbólica. Esta busca produzir acontecimentos exclusivamente para a mídia (inaugurações de obras, aparições públicas de figuras proeminentes etc). Tanto os atos públicos dos movimentos de protesto quanto os eventos vinculados à política simbólica são qualificados, neste modelo, de "pseudo-acontecimentos", que se inserem em uma política de gerenciamento de notícias (news manegement). Os atores da esfera pública buscariam, com tais eventos (graças, entre outros fatores, ao apelo visual que eles encerram) produzir um fato de valor noticioso e, com isso, alcançar a mídia.

O MODELO TEÓRICO-DISCURSIVO

Na concepção denominada teórico-discursiva, desenvolvida por Jürgen Habermas, essa idéia de uma esfera pública inteiramente apoderada e manipulada pelos diversos grupos sociais é colocada em questão.2 2 O estudo clássico de J. Habermas Mudança estrutural da esfera pública, escrito há mais de 30 anos e que descreve a decadência da esfera pública burguesa, não é considerado no presente trabalho. Baseia-se aqui nas contribuições mais recentes do autor, nas quais, dentro do marco teórico da redescoberta da sociedade civil, vislumbra-se a existência de uma "esfera pública politicamente influente". Em trabalho anterior apresento uma introdução a esse debate, discorrendo sobre suas implicações para o contexto brasileiro (vide Costa, 1994). Conforme o autor, cruzam-se na esfera pública política pelo menos dois processos simultâneos: junto ao "uso manipulativo do poder da mídia para obtenção de lealdade das massas, geração de demanda e compliance frente a imperativos sistêmicos [verifica-se] (...) a geração comunicativa de poder legítimo". (Habermas, 1990:41). O autor vai além, portanto, da disputa pelas atenções públicas – empiricamente evidente – que equivale, no modelo funcionalista, à esfera pública mesma e investiga a origem dos inputs que atingem essa esfera. Nesse esforço heurístico o autor identifica, para além da disputa pela presença na mídia, um nível mais profundo, ao qual está relacionada a "geração de poder legítimo".

A concepção habermasiana de esfera pública (política) oferece, implicitamente, elementos para se entender a forma original como o autor trata uma questão clássica da Sociologia, qual seja, como é possível a manutenção da ordem social num contexto secularizado, caracterizado pela ausência de "transcendência e tradição". Em sua resposta, o autor reconhece a força aglutinadora da coordenação sistêmica; concebe, entretanto, um segundo campo, o mundo da vida, caracterizado por ações orientadas para o entendimento3 3 Conforme Rodei et ai. (1989:158 e s.) Habermas, com o modelo dual sistema/mundo da vida, "desdiaboliza" a racionalidade formal. Sem que seja necessário recorrer a potencialidades contrafactuais – imaginariamente construídas –, pode-se conceber uma saída para a alienação que acompanha o avanço da racionalidade formal: existiria uma instância que ainda não foi "colonizada", a saber, o mundo da vida. Nos termos de uma "política emancipatória" não se trataria mais, portanto, como na teoria crítica clássica, da subordinação da racionalidade formal; bastaria construir, institucionalmente, um muro de segurança entre o sistema e o mundo da vida, impedindo-se que o primeiro avance sobre o segundo. Os autores entendem que tal visão representa um recuo conservador vis a vis a crítica radical da primeira geração da Escola de Frankfurt. . A imagem da esfera pública que resulta de tal constatação não é mais, portanto, a de um simples palco para encenação de atores estrategicamente voltados para a manipulação das opiniões; a esfera pública passa a ser concebida como resultado "das tentativas de coordenação sistêmicas, de um lado, e do processo de formação da vontade política de pessoas físicas emancipadas, por outro" (Rodei et ai, 1989: 161). Em outras palavras, o que se afirma é que a esfera pública não é constituída apenas por discursos que simplesmente ocultam o anseio de poder de grupos econômicos e políticos particulares. Para ela dirigem-se também fluxos comunicativos condensados na vida cotidiana, que encerram questões relevantes para o conjunto da sociedade.

Cabe, portanto, à esfera pública, conforme o modelo teórico-discursivo, atuar como instância intermediadora entre os impulsos comunicativos gerados no mundo da vida e os colegiados competentes que articulam institucionalmente o processo de formação da vontade política (parlamento, conselhos etc). Quando os fluxos comunicativos gerados nos "microdomínios da prática cotidiana" extrapolam as fronteiras das esferas públicas autônomas4 4 Habermas (1985:422) chama de autônomas "as esferas públicas que não são criadas e mantidas pelo sistema político com o objetivo de produção de legitimação". , eles podem ter acesso às instâncias deliberativas previstas na ordem democrática e, finalmente, influir nas decisões aí tomadas. O fluido poder comunicativo é exercido, portanto, conforme a lógica do assédio: "ele atua sobre as premissas dos processos de julgamento e decisão do sistema político, sem a intenção de conquista" (Habermas, 1992a: 208).

Os procedimentos democráticos institucionalizados devem assegurar que os processos espontâneos de formação de opinião sejam considerados nas instâncias decisórias. Dessa forma procura-se assegurar, de forma procedimental, que a força sócio-integrativa da solidariedade, imanente aos impulsos comunicativos do mundo da vida, contrabalance os outros dois recursos que suprem a "carência de integração e direção" das sociedades modernas, a saber, o dinheiro e o poder (Habermas, 1992b: 23).

Mesmo que os instrumentos do Estado constitucional assegurem que a esfera pública atue como instância transmissora, através da qual os fluxos comunicativos gerados no âmbito de processos interativos voltados para o entendimento (e não para a manipulação) atinjam as instâncias decisórias, uma questão fundamental permanece ainda sem resposta. Trata-se de discutir a sustentação, no nível da sociedade, para esta formação espontânea da opinião, ancorada no mundo da vida. Aqui insere-se como se poderia esperar, a idéia de sociedade civil. Neste contexto, a categoria abrange as diferentes associações voluntárias que "absorvem e condesam a ressonância que as situações-problema emergentes na sociedade encontram nos domínios da vida privada, canalizando tal resposta de forma amplificada para a vida privada, canalizando tal resposta de forma amplificada para esfera pública política" (Habermas, 1992c: 443, grifos meus - SC).

Aos atores da sociedade civil é atribuído, portanto, neste construto, um papel duplo, que reflete o caráter bidimensional destes sujeitos. A condensação de "situações-problema" percebida na vida cotidiana cor responde à dimensão defensiva de tais atores. Trata-se aqui da preservação e ampliação da "infra-estrutura comunicativa" do mundo da vida e da produção de esferas públicas alternativas.

Com a canalização dos problemas tematizados na vida cotidiana à esfera pública ativa-se a dimensão ofensiva dos atores da sociedade civil. Trata-se, nesse nível, da tentativa de "apresentar novas contribuições para a solução de problemas, de oferecer novas informações e de corroborar os bons motivos, denunciando os maus, de forma a introduzir um impulso nos ânimos capaz de alterar os parâmetros constitucionais da formação da vontade política e de pressionar os parlamentos, os judiciários e os governos em favor de determinadas políticas"(Habermas, 1992c:448).

Em consonância com Cohen & Arato, Habermas assinala, em diferentes oportunidades, a necessidade de auto-limitação da influência dos atores da sociedade civil, tentando delimitar as contingências (cf. Cohen & Arato, 1988:55; vide também Cohen & Arato, 1989) que dificultam e condicionam o que chama de "práxis democrática radical"5 5 Muitos autores, dentro do marco analítico da sociedade civil, têm procurado ampliar o conceito de democracia próprio ao modelo teórico-discursivo, desenvolvido por Habermas. Conforme tais autores, a práxis democrata radical não pode se limitar aos canais previamente estabelecidos de amalgamação da vontade política. Schmalz-Bruns (1994) enfatiza o momento republicano da democracia, sugerindo a horizontalização dos processos decisórios. Epple-Glas (1993:120 seg.) considera que a ação política dos atores da sociedade civil é, atualmente, inócua e que estes tornaram-se ineptos considerados os termos da esferas públicas contemporâneas. Por isso, a reconstrução de uma esfera pública politicamente influente requer a introdução de "mecanismos de democracia de base" e uma "alfabetização política", que possibilite, no nível local, a vivência da noção de poder. . Tais problemas são tratadas aqui em três níveis temáticos, quais sejam:

1. a questão da complexidade: para que possam funcionar como catalisadoras de processos espontâneos de formação da opinião, as organizações da sociedade civil não podem se transformar em estruturas formalizadas, dominadas pelos rituais burocráticos. De outra forma, o ganho de complexidade poderia significar a rendição aos imperativos organizacionais e o conseqüente distanciamento da base (Habermas, 1985: 423).

2. a questão do poder: os atores da sociedade civil não possuem poder político ou administrativo, dispõem apenas de uma forma mediatizada de geração de poder. Isto é, a influência destes sobre a política consubstacializa-se nas mensagens que, percorrendo os mecanismos institucionalizados do Estado constitucional, alcançam os núcleos decisórios. Desta forma, procura-se afastar a idéia de que a sociedade civil possa assumir as funções que cabem ao Estado.

3. a questão dos requisitos sócio-estruturais: uma sociedade civil, à qual caiba o duplo papel referido anteriormente, só é imaginável num contexto social caracterizado pela existência de uma cultura política fundada na liberdade e por um mínimo de garantia de intocabilidade da esfera privada. Caso contrário, "surgem movimentos populistas que defendem cegamente os cristalizados acervos de tradições do mundo da vida ameaçados pela modernização capitalista" (Habermas, 1992c: 449).

ALCANCE E LIMITES

Cotejando-se os dois modelos de esfera pública brevemente apresentados e o lugar ocupado pela sociedade civil (ou atores de protesto) em cada um deles, algumas diferenças fundamentais tornam-se evidentes.

Para o modelo funcionalista, que projeta a imagem de uma esfera pública inteiramente "apoderada" pelos diversos grupos de interesses, a questão relativa à atribuição de um status política e analiticamente diferenciado para os atores da sociedade civil certamente não se coloca. Trata-se de uma definição puramente empírica de esfera pública, que considera unicamente a aparente feição mercadológica desta esfera em detrimento da investigação da origem dos vários inputs que a alcançam. Se se pretende afirmar, nos termos de tal modelo, que a esfera pública ainda preserva alguma função enquanto base de legitimação da ordem política, há que se entender legitimação, neste contexto, como simples resultado de um trabalho eficiente de relações públicas. Ou seja, aqueles que dispuserem de maiores recursos materiais passíveis de conversão em instrumentos comunicativos eficazes terão assegurado a "legitimação" de seus interesses, independentemente da natureza destes.

Conforme assinalado, os "atores de protesto", dentro do marco conceitual funcionalista, servem-se da esfera pública da mesma forma que os demais atores sociais, qual seja, como palco de encenação na luta pela conquista de influência político-publicitária. Dessa forma, iguala-se (como faz Pfetsch, 1994:19), conceitualmente, por exemplo, a visita de Bill Clinton ao Portal de Brandeburgo em Berlim às passeatas de repúdio ao racismo e à xenofobia. Ambas manifestações são analisadas exclusivamente sob a ótica da produção de fatos noticiáveis. Recusa-se, explicitamente, a reconhecer que os "atores de protesto" (como os manifestantes contra o racismo), com suas ações, não buscam apenas a cobertura pela mídia (objetivo único de Clinton com a referida visita).Procuram também o convencimento e a aprovação pública de suas propostas, interferindo, desta forma, nos próprios consensos éticos que orientam a convivência social.

No modelo teórico-discursivo, em contrapartida, atribui-se aos atores da sociedade civil um caráter diferenciado. Talvez se possa formular, de forma esquemática, que os sujeitos da sociedade civil, conforme o modelo discursivo, distinguem-se dos demais atores da esfera pública nos seguintes aspectos:

1. quanto ao conteúdo: enquanto os sindicatos, grupos de interesse, etc representam, no âmbito da esfera pública, as reivindicações de grupos políticos e econômicos específicos, os atores da sociedade civil tematizam situações-problemas emergentes na vida cotidiana – portanto, questões de relevância para toda a sociedade.

2. quanto às formas de comunicação: enquanto os demais atores procuram, exclusivamente, ocupar espaços públicos, os atores da sociedade civil buscam transformar a esfera pública numa arena da argumentação discursiva e de convencimento do conjunto da sociedade sobre a justeza de seus propósitos6 6 Neidhardt (1994:20) apresenta uma distinção entre formas teoricamente concebíveis de comunicação dentro da esfera pública que parece bastante oportuna para evidenciar algumas diferenciações entre os dois modelos apresentados. São consideradas nesta distinção três formas de comunicação pública, a saber: - Tipo informativa: não há, nesse caso, propriamente, uma interação comunicativa. Aquele que fala refere-se recorrentemente às suas próprias categorias e linhas argumentativas. Mesmo eventuais questões são respondidas conforme esse modelo monológico. - Tipo agitação: tenta-se desqualificar os argumentos do interlocutor sem levar em conta, efetivamente, seus méritos. - Tipo discursiva: os interlocutores esforçam-se, nesse caso, por empreender uma comunicação voltada para o entendimento que pode levar a revisões nas posições e opiniões originais. No modelo funcionalista a comunicaçõo na esfera pública restringe-se, efetivamente, aos dois primeiros tipos referidos, enquanto que no modelo teórico-discursivo a comunicação pública pode desenvolver-se nos termos do terceiro tipo. Esta representaria exatamente a forma de comunicação própria aos atores da sociedade civil. . O poder resultante de tais esforços comunicativos baseia-se, pois, na concordância, encontrada no nível da sociedade, relativamente às mensagens transmitidas. Ou, conforme Rodei (1994:35): "Argumentos e opiniões compartilhadas no espaço público, com base no convencimento, constituem o poder do qual os atores da sociedade civil querem e podem dispor."

3. quanto ao tratamento da esfera pública: como os sujeitos da sociedade civil não dispõem de outros meios de exercer sua influência sobre o processo político (como, a propósito, depreende-se também do modelo funcionalista) que não seja a atuação na esfera pública, eles mostram-se particularmente sensíveis às ameaças de obliteração das possibilidades públicas de comunicação. Por isso, tais atores procuram, ao contrário dos demais, empenhar-se na reprodução e revitalização da esfera pública, buscando explorar intensivamente as possibilidades comunicativas existentes e ampliar as fronteiras dessa esfera, mediante a incorporação de novas minorias e grupos marginais e da invenção de novos meios comunicativos.

4. quanto aos traços identificadores: enquanto os demais atores da esfera pública podem ser classificados, previamente, a partir de sua origem vinculada a determinados campos funcionais como partidos políticos, grupos de interesse, representações funcionais etc"(Habermas, 1992c: 453), a identidade dos atores da sociedade civil é constituida ad hoc, no âmbito da ação coletiva.

Se é verdadeiro que as naturezas distintas e os diferenciados graus de enraizamento social dos diversos "atores da esfera pública" não são adequadamente contemplados pelo modelo funcionalista, há também que se admitir que o modelo teórico-discursivo apresenta problemas para ser utilizado como instrumental para se entender a dinâmica da esfera pública da maior parte das democracias contemporâneas. Se se leva, por exemplo, às últimas conseqüências o pressuposto de que a relevância pública dos atores da sociedade civil é devida exclusivamente ao conteúdo e ao apelo argumentativo de suas intervenções, muito poucos seriam os sujeitos coletivos, empiricamente observáveis, a merecer o enquadramento na categoria de representante da sociedade civil. Além do esforço de convencimento argumentativo, tais atores realizam um trabalho de relações públicas com o objetivo exclusivo de obter espaço na mídia. Procuram, dessa forma, adaptar-se aos requisitos estruturais dos veículos, "oferecendo informações de valor noticioso, orientadas, no nível de conteúdo e quanto aos prazos, pelas formas de produção jornalísticas e pelas características institucionais dos meios de comunicação de massa." (Rossman, 1993:85). Esta concessão à Realpolitik não impe, certamente, a capitulação daqueles que conferem aos atores da sociedade civil a função de canalizar os problemas emergentes nos domínios da vida cotidiana para a esfera pública, participando, dessa maneira do processo de constituição da base de legitimação de um poder fundado comunicativamente. A faculdade de cumprir tal papel parece depender mais propriamente da organização interna dos atores coletivos. Isto é, caso o ator permaneça permeável aos impulsos provindos da base e aos processos espontâneos de formação da opinião, ele certamente se manterá, estruturalmente, em condições de condensar as situações-problema emergentes no mundo da vida e de transportá-las para a esfera pública.

BIBLIOGRAFIA7 7 Os trechos citados de publicações alemãs foram traduzidas pelo autor para o português. A tradução aproximada dos títulos dos trabalhos em alemão citados aparecem nos colchetes após os originais.

Arato, A. & J.Cohen. 1988. "Civil society and social theory". Thesis Eleven, 21.

Arato, A. & Cohen, Jean. 1989. "Politics and the reconstrution of the concept of civil society". In Honneth, Axel et al. Zwischenbetrachtungen. Im Prozess der Aufklärung. Frankfurt, Suhrkamp.

Benhabib, S. (1992) "Models of public space: Hannah Arendt, the liberal tradition, and Jürgen Habermas". In Calhoun, C. (org) Habermas and the Public Sphere. MIT Press.

Costa, Sérgio. 1994. "Esfera pública, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no Brasil". Novos Estudos, 38.

Epple-Gass, Ruedi "Volkssouveraninät statt Systemlegitimierung" [Soberania popular ao invés de legitimação do sistema]. Wiederspruch, 24,1992.

Gehrards, Jürgen. 1991. "Die Macht der Massenmedien und die Demokratie: Empirische Befunde". [O poder da mídia e a democracia: constatações empíricas] Discussion Paper FS III 91-108. Wissenschaftszentrum Berlin, 1991

Gerhards, Jürgen. 1993. Neue Konfliktlinien in der Mobilisierung öffentlicher Meinung [Novas linhas de conflito na mobilização da opinião pública]. Opladen, Westdeutscher Verlag, 1993.

Gerhards, J. & F. Neidhardt. 1990. "Strukturen und Funktionen moderner öffentlichkeit - Fragestellungen und Ansätze". [Estruturas e funções da esfera pública moderna: questões e aportes teóricos]. Berlin, WZB, Paper FS III90-101.

Habermas, J. 1992a. "Volkssouverinität als Verfahren. Ein normativer Begriff der öffentlichkeit" [Soberania popular como procedimento: um conceito normativo de esfera pública] (Primeira publicação: 1989. Tradução brasileira em Novos Estudos, 26,1990)

Habermas, J. 1992b. "Drei normative Modelle der Demokratie: Zum Begriff deliberativer Politik" [Três modelos normativos de democracia: sobre o conceito de política deliberativa]. In Münkler, H. Die Chancen der Freiheit - Grundprobleme der Demokratie. Munique, Piper. (Publicado neste número de Lua Nova).

Habermas, J. 1992c. Fakzität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. [Facticidade e validade: contribuições a uma teoria do discurso do direito e do Estado constitucional democrático]. Frankfurt/M, Suhrkamp.

Habermas, J. 1990. "Neues Vorwort". Strukturwandel der Öffentlichkeit. [Mudança estrutural da esfera pública. Novo prefácio]. Frankfurt/M, Suhrkamp.

Habermas, J. 1985. "Der Normative Gehalt der Moderne". [O conteúdo normativo da modernidade]. In Habermas, J. Der Philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt/ M, Suhrkamp.

Neidhardt, F. 1994. "Öffentlichkeit, öffentliche Meinung, soziale Bewegungen". [Esfera pública, opinião pública e movimentos sociais]. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, Edição Especial nº 34, S. 7-41.

Pfetsch, Barbara. 1994. "Themenkarrieren und Politische Kommunikation". [Carreiras de temas e comunicação política]. Aus Politik und Zeitgeschichte, B39/94.

Rödel, Ulrich. 1994. "Zivilgesellschaft und selbsorganisierte Öffentlichkeit". [Sociedade civil e esfera pública auto-organizada]. Forschungsjournal NSB, Nr. 1,1994.

Rödel, U., G. Frankenberg und H. Dubiel. 1989. Die demokratische Frage. [A questão democrática]. Frankfurt/M, Suhrkamp.

Rossmann, T. 1993. "Öffentlichkeit und ihr Einflub auf die Medien" [Esfera pública e sua influência sobre a mídia]. Media Perspektiven, 2, p. 85-94.

Sarcinelli, Ulrich. 1992."Massenmedien und Politikvermittlung - Eine Problem - und Forschungsskizze". [Mídia e inermediação política - um esboço de problema e de pesquisa]. In Wittkämper, G. W. (org.). Medien und Politik. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft.

Schmalz-Bruns, Rainer. 1994. "Zivile Gesellschaft und reflexive Demokratie" [Sociedade civil e democracia reflexiva]. Forschungsjournal NSB, 1/94, 18-34.

  • Arato, A. & J.Cohen. 1988. "Civil society and social theory". Thesis Eleven, 21.
  • Arato, A. & Cohen, Jean. 1989. "Politics and the reconstrution of the concept of civil society". In Honneth, Axel et al. Zwischenbetrachtungen. Im Prozess der Aufklärung. Frankfurt, Suhrkamp.
  • Benhabib, S. (1992) "Models of public space: Hannah Arendt, the liberal tradition, and Jürgen Habermas". In Calhoun, C. (org) Habermas and the Public Sphere. MIT Press.
  • Costa, Sérgio. 1994. "Esfera pública, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no Brasil". Novos Estudos, 38.
  • Epple-Gass, Ruedi "Volkssouveraninät statt Systemlegitimierung" [Soberania popular ao invés de legitimação do sistema]. Wiederspruch, 24,1992.
  • Gehrards, Jürgen. 1991. "Die Macht der Massenmedien und die Demokratie: Empirische Befunde". [O poder da mídia e a democracia: constatações empíricas] Discussion Paper FS III 91-108. Wissenschaftszentrum Berlin, 1991
  • Gerhards, Jürgen. 1993. Neue Konfliktlinien in der Mobilisierung öffentlicher Meinung [Novas linhas de conflito na mobilização da opinião pública]. Opladen, Westdeutscher Verlag, 1993.
  • Gerhards, J. & F. Neidhardt. 1990. "Strukturen und Funktionen moderner öffentlichkeit - Fragestellungen und Ansätze". [Estruturas e funções da esfera pública moderna: questões e aportes teóricos]. Berlin, WZB, Paper FS III90-101.
  • Habermas, J. 1992a. "Volkssouverinität als Verfahren. Ein normativer Begriff der öffentlichkeit" [Soberania popular como procedimento: um conceito normativo de esfera pública] (Primeira publicação: 1989. Tradução brasileira em Novos Estudos, 26,1990)
  • Habermas, J. 1992b. "Drei normative Modelle der Demokratie: Zum Begriff deliberativer Politik" [Três modelos normativos de democracia: sobre o conceito de política deliberativa]. In Münkler, H. Die Chancen der Freiheit - Grundprobleme der Demokratie. Munique, Piper. (Publicado neste número de Lua Nova).
  • Habermas, J. 1992c. Fakzität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. [Facticidade e validade: contribuições a uma teoria do discurso do direito e do Estado constitucional democrático]. Frankfurt/M, Suhrkamp.
  • Habermas, J. 1990. "Neues Vorwort". Strukturwandel der Öffentlichkeit. [Mudança estrutural da esfera pública. Novo prefácio]. Frankfurt/M, Suhrkamp.
  • Habermas, J. 1985. "Der Normative Gehalt der Moderne". [O conteúdo normativo da modernidade]. In Habermas, J. Der Philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt/ M, Suhrkamp.
  • Neidhardt, F. 1994. "Öffentlichkeit, öffentliche Meinung, soziale Bewegungen". [Esfera pública, opinião pública e movimentos sociais]. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, Edição Especial nş 34, S. 7-41.
  • Pfetsch, Barbara. 1994. "Themenkarrieren und Politische Kommunikation". [Carreiras de temas e comunicação política]. Aus Politik und Zeitgeschichte, B39/94.
  • Rödel, Ulrich. 1994. "Zivilgesellschaft und selbsorganisierte Öffentlichkeit". [Sociedade civil e esfera pública auto-organizada]. Forschungsjournal NSB, Nr. 1,1994.
  • Rödel, U., G. Frankenberg und H. Dubiel. 1989. Die demokratische Frage. [A questão democrática]. Frankfurt/M, Suhrkamp.
  • Rossmann, T. 1993. "Öffentlichkeit und ihr Einflub auf die Medien" [Esfera pública e sua influência sobre a mídia]. Media Perspektiven, 2, p. 85-94.
  • Sarcinelli, Ulrich. 1992."Massenmedien und Politikvermittlung - Eine Problem - und Forschungsskizze". [Mídia e inermediação política - um esboço de problema e de pesquisa]. In Wittkämper, G. W. (org.). Medien und Politik. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft.
  • Schmalz-Bruns, Rainer. 1994. "Zivile Gesellschaft und reflexive Demokratie" [Sociedade civil e democracia reflexiva]. Forschungsjournal NSB, 1/94, 18-34.
  • 1
    Embora este modelo de esfera pública se baseie claramente na teoria sistêmica, seus autores atribuem – diferentemente de Niklas Luhmann – um papel diferenciado ao sistema político, relativamente aos demais sistemas. Este teria "uma posição de supremacia, tanto como destinatário de problemas, quanto como sistema de solução de problemas" (Gehards, 1993:23). Ou seja, os autores reconhecem que o sistema político ainda preserva suas funções de direção e coordenação dos demais sistemas. A caracterização de tal modelo como funcionalista não é, por certo, livre de problemas. Trata-se, na verdade, de um marco conceitual misto, influenciado por correntes teóricas variadas.
  • 2
    O estudo clássico de J. Habermas
    Mudança estrutural da esfera pública, escrito há mais de 30 anos e que descreve a decadência da esfera pública burguesa, não é considerado no presente trabalho. Baseia-se aqui nas contribuições mais recentes do autor, nas quais, dentro do marco teórico da redescoberta da sociedade civil, vislumbra-se a existência de uma "esfera pública politicamente influente". Em trabalho anterior apresento uma introdução a esse debate, discorrendo sobre suas implicações para o contexto brasileiro (vide Costa, 1994).
  • 3
    Conforme Rodei et ai. (1989:158 e s.) Habermas, com o modelo dual sistema/mundo da vida, "desdiaboliza" a racionalidade formal. Sem que seja necessário recorrer a potencialidades contrafactuais – imaginariamente construídas –, pode-se conceber uma saída para a alienação que acompanha o avanço da racionalidade formal: existiria uma instância que ainda não foi "colonizada", a saber, o mundo da vida. Nos termos de uma "política emancipatória" não se trataria mais, portanto, como na teoria crítica clássica, da subordinação da racionalidade formal; bastaria construir, institucionalmente, um muro de segurança entre o sistema e o mundo da vida, impedindo-se que o primeiro avance sobre o segundo. Os autores entendem que tal visão representa um recuo conservador vis a vis a crítica radical da primeira geração da Escola de Frankfurt.
  • 4
    Habermas (1985:422) chama de autônomas "as esferas públicas que não são criadas e mantidas pelo sistema político com o objetivo de produção de legitimação".
  • 5
    Muitos autores, dentro do marco analítico da sociedade civil, têm procurado ampliar o conceito de democracia próprio ao modelo teórico-discursivo, desenvolvido por Habermas. Conforme tais autores, a práxis democrata radical não pode se limitar aos canais previamente estabelecidos de amalgamação da vontade política. Schmalz-Bruns (1994) enfatiza o momento republicano da democracia, sugerindo a horizontalização dos processos decisórios. Epple-Glas (1993:120 seg.) considera que a ação política dos atores da sociedade civil é, atualmente, inócua e que estes tornaram-se ineptos considerados os termos da esferas públicas contemporâneas. Por isso, a reconstrução de uma esfera pública politicamente influente requer a introdução de "mecanismos de democracia de base" e uma "alfabetização política", que possibilite, no nível local, a vivência da noção de poder.
  • 6
    Neidhardt (1994:20) apresenta uma distinção entre formas teoricamente concebíveis de comunicação dentro da esfera pública que parece bastante oportuna para evidenciar algumas diferenciações entre os dois modelos apresentados. São consideradas nesta distinção três formas de comunicação pública, a saber:
    - Tipo informativa: não há, nesse caso, propriamente, uma interação comunicativa. Aquele que fala refere-se recorrentemente às suas próprias categorias e linhas argumentativas. Mesmo eventuais questões são respondidas conforme esse modelo monológico.
    - Tipo agitação: tenta-se desqualificar os argumentos do interlocutor sem levar em conta, efetivamente, seus méritos.
    - Tipo discursiva: os interlocutores esforçam-se, nesse caso, por empreender uma comunicação voltada para o entendimento que pode levar a revisões nas posições e opiniões originais.
    No modelo funcionalista a comunicaçõo na esfera pública restringe-se, efetivamente, aos dois primeiros tipos referidos, enquanto que no modelo teórico-discursivo a comunicação pública pode desenvolver-se nos termos do terceiro tipo. Esta representaria exatamente a forma de comunicação própria aos atores da sociedade civil.
  • 7
    Os trechos citados de publicações alemãs foram traduzidas pelo autor para o português. A tradução aproximada dos títulos dos trabalhos em alemão citados aparecem nos colchetes após os originais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      1995
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br