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O cometa Arraes

ESPECIAL

O cometa Arraes

Sérgio C. Buarque

Coordenador do Departamento de Planejamento em Ciência e Tecnologia da SUDENE

Embaralham-se os tradicionais currais eleitorais dos sertões pernambucanos na maior façanha eleitoral de uma liderança de esquerda marcadamente ideológica: sem mudar sua atitude nem mascarar seu passado e compromisso popular, Arraes conseguiu, através de alianças cuidadosamente construídas no interior do estado, arrematar amplos setores do antigo PDS, ao mesmo tempo em que empolgava a esquerda e as forças populares, numa síntese perfeita da vontade contida do povão. Como a magia de um cometa, desagregam-se antigas lealdades, quebram-se os currais eleitorais, e as massas interioranas, passivas e indiferentes durante séculos, somam votos com as forças populares e de esquerda dos centros urbanos. Ganha em quase todas as micro-regiões e, mesmo onde perde, no Sertão, a Frente Popular mais do que dobra a votação alcançada por Marcos Freire quatro anos antes. E, enquanto constrói uma nova hegemonia política em Pernambuco, Arraes consegue despontar como uma das mais importantes lideranças nacionais, a principal liderança de esquerda do país, ao mesmo tempo que soterra o mito eleitoral de Marco Maciel, o grande derrotado das eleições de 1986.

Numa campanha alegre e festiva, a Frente Popular conseguiu mobilizar e unificar os irreverentes e críticos artistas plásticos de Olinda, a mais marginalizada e esquecida "poeira" popular das periferias do Recife e atrair votos decisivos do eleitorado menos consciente do Agreste e do Sertão, movidos pelo deslocamento de alguns currais tradicionais de Antonio Farias, parte da família Coelho e velhos pe-dessistas, e por uma nova adesão das populações urbanizadas do interior do estado. A modernização e urbanização dos sertões, a chegada dos modernos meios de comunicação, resultante do próprio processo civilizatório desencadeado pela ditadura, mudou o cenário, desarrumou os laços de poder e de lealdade, desagregando, ainda que parcialmente, a força eleitoral das oligarquias rurais. Apenas isto e as alianças nada ortodoxas que Arraes teceu em dez meses de negociação, explorando as insatisfações e conflitos de lideranças dentro do antigo PDS e da nova agremiação liberal-conservadora, o PFL, permitiram a esmagadora vitória de Miguel Arraes no estado, com uma vantagem de quase 20% dos votos dos pernambucanos.

Não inovou na articulação política e eleitoral, mas explorou condições particularmente novas na estrutura sócio-política do estado, que permitiram subverter o eleitorado interiorano e promover rachaduras profundas e definitivas no edifício de currais eleitorais construído pela oligarquia para durar séculos. Mas a Frente Popular inovou, pelo menos, no conteúdo e forma da campanha eleitoral, transformada num grande carnaval que, durante dois meses, mobilizou os sentimentos, esperanças, insatisfações e desejos imprecisos das amplas massas populares "do sertão ao cais". Foi, antes de tudo, uma grande festa que antecipava, com frevo, alegria e bom humor, animado pela criatividade dos artistas e comunicólogos da Frente Popular, o sentimento de vitória que se concretizaria no dia 15 de novembro. O confronto ideológico, claro e inevitável numa eleição que tem Arraes como um dos pólos, ganhou uma beleza plástica e um conteúdo carnavalesco que desmontou a campanha anticomunista e sórdida dos últimos dias, quando a candidatura liberal-conservadora tentou intimidar o eleitorado com a imagem negra e cinza dos "tempos de Arraes". Este novo colorido da "luta de classes" e do embate político e ideológico, fazendo de Arraes não só o austero e convincente estadista, mas também o promotor desta grande alegria carnavalesca, desempenhou também um papel decisivo na vitória eleitoral, desmantelando a propaganda da direita que explorava, de um lado, o anticomunismo, e, de outro, a juventude e simpatia do moço rico e risonho que encabeçava a chapa pefelista.

Uma das mais polarizadas eleições do país, mesmo assim, o pleito em Pernambuco apresentou um confronto bastante diferente da campanha de 1982, quando o PMDB perdeu as eleições com Marcos Freire. A polarização deslocou-se agora acentuadamente para a esquerda e levou a uma nova identidade do eleitorado pernambucano, aparentemente em prejuízo da Frente Popular, empurrada para a esquerda pelo perfil do candidato, pelas novas condições políticas do estado e pela própria identidade de classe que se processou em torno das chapas em confronto. Em 1982, o PMDB representava a luta contra a ditadura, que ninguém mais queria, e a possibilidade de um novo processo de desenvolvimento tendo como adversário um PDS desgastado, identificado com o que havia de pior no país, a ditadura, a recessão delfíniana, a incompetência e corrupção dos governos militares, que despertavam a grande frustração das classes médias, precisamente o sustentáculo político dos governos autoritários e modernizadores dos anos 70. Mesmo assim, Marcos Freire perdeu; como poderia agora, em 1986, Arraes, um símbolo das esquerdas, derrotar as forças conservadoras do estado, agora redimidas e purificadas do passado autoritario e corrupto da Arena e PDS, identificadas com a Nova República e com o mito de Tancredo Neves, falando em reformas e defendendo o Plano Cruzado?

As forças conservadoras do estado já não são apenas a oligarquia rígida e incompetente, que trata os problemas sociais como caso de polícia e eleição como uma rotina de fraude e cabresto; mas não conseguem mascarar sua intolerância e ignorância política, transparecendo com nitidez quando as tendências indicavam a provável vitória de Arraes, através de uma virada perigosa na campanha, radicalizando e tentando ressuscitar o pânico da classe média com o comunismo e as mobilizações da plebe. No final da campanha, a aliança liberal-conservadora de Marco Maciel e Roberto Magalhães mostrou claramente sua origem e compromisso oligárquico, pe-dessista e torpe conservadorismo, despojando-se da linguagem e feição política moderna e liberal para radicalizar o confronto ideológico, tentando apresentar o pleito como a luta final entre o comunismo ateu e a democracia. O resultado pode ter sido até mais negativo para a candidatura de direita, embora tenha conseguido reforçar a adesão de setores das classes médias: Arraes conseguiu uma vitória esmagadora e mesmo inesperada, e Pernambuco provavelmente será o único estado que elege um comunista para a Constituinte, na figura de Roberto Freire, um dos deputados mais votados em 1986.

Independente desta orientação da campanha, as eleições para o governo do Estado de Pernambuco apresentaram uma nítida conotação classista, e menos ideológica, numa aglutinação dos pobres contra os ricos. O povão, a massa da população pobre e marginalizada é Arraes na sua esmagadora maioria, sem muita clareza ideológica, mas reavivando a memória que a transmissão oral da população conservou nessas décadas de obscurantismo em que o ex-governador esteve exilado e proibido de falar no país. O PFL é o partido dos ricos, das classes dominantes e da maioria da classe média privilegiada, parte da qual votou em Marcos Freire em 1982. Os próprios personagens centrais contribuíram para esta identificação de classe: Arraes, não só pela sua origem de classe média, mas pelo conteúdo do seu governo popular em 1962-63, é o "pai dos pobres"; enquanto José Múcio Monteiro, filho de quatro séculos de latifúndio e oligarquia açucareira, garotão jovem e simpático, egresso da juventude dourada de Recife do milagre econômico, não pode despertar a confiança das massas populares, mas forma a imagem perfeita para atrair a classe média e os privilegiados, identificando suas aspirações e interesses de classe com o PFL liberal e conservador. Em décadas de história política de Pernambuco, poucas vezes houve uma tão clara identidade de classe dos candidatos, com perfis tão fortemente diferenciados, capazes, portanto, de favorecer a rearrumação dos segmentos sociais e a identificação com seus líderes.

Com essa polarização classista, apesar do deslocamento do confronto para a esquerda, Arraes se beneficia com a concentração de votos da esmagadora maioria da população pobre, marginalizada e esquecida do progresso econômico do país. Restaura a cidadania e a identidade política do povão e desorganiza o jogo de poder na preparação de uma nova hegemonia. E a esquerda brasileira ganha em Pernambuco uma eleição histórica e decisiva, e altera substancialmente o mapa político do Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1987
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