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A MELANCOLIA DE PÊCHEUX OU DAS VIRTUDES DA APOSTASIA

Pêcheux’s Melancholy, or On the Virtues of Apostasy

La melancolía de Pêcheux o de las virtudes de la apostasía

Resumo

Esse artigo propõe uma leitura histórica e crítica de um dos textos derradeiros de Michel Pêcheux, O discurso: Estrutura ou acontecimento?, escrito como base para uma conferência em julho de 1983. Como esse texto propõe severa revisão quanto a questões teóricas, metodológicas e políticas discutidas por Pêcheux ao longo de sua trajetória intelectual, há grande interesse em abordá-lo. A hipótese é que as mudanças históricas da política e da sociedade francesa desde 1968 estiveram na base dessa revisão a que se lança Pêcheux em 1983. A principal questão abordada neste artigo é o deslocamento crítico, operado por Pêcheux, quanto à inflexão estruturalista na análise do discurso, fazendo-a se distanciar da rigidez quanto ao “assujeitamento do sujeito” no processo de enunciação, e aproximar-se de uma abordagem mais aberta ao “processo de interpretação” como acontecimento.

Palavras-chave:
Michel Pêcheux; O discurso: Estrutura ou acontecimento? Teoria

Abstract

This paper proposes a historical and critical appreciation of one of the last Pêcheux’s writings, Discourse: Structure or Event?, intended as the basis of a conference in July 1983. Since this writing proposes a severe revision on theoretical, methodological, and political questions discussed by Pêcheux throughout his intellectual career, there is great interest in such an assessment, especially considering our main argument: that the historical changes in French society and politics since 1968 are in the core of Pêcheux’s 1983 revision. The main question approached in this paper is the critical displacement of the structuralist inflection, distancing it from the rigidity of the “subject’s subjetction” on the ennunciation process, and getting more open to the “interpretation process” as an event.

Keywords:
Michel Pêcheux; Discourse: Structure or Event? Theory

Resumen

Este artículo propone una lectura histórica y crítica de uno de los últimos textos de Michel Pêcheux, “El discurso: ¿Estructura o acontecimiento?”, escrito como base para una conferencia en julio de 1983. Dado que este texto propone una revisión severa en cuestiones teóricas, metodológicas y políticas discutidas por Pêcheux a lo largo de su trayectoria intelectual, hay un gran interés en abordarlo. Nuestra hipótesis es que los cambios históricos en la política y la sociedad francesa desde 1968 fueron la base de esta revisión a la que se lanzó Pêcheux en 1983. La cuestión principal abordada en este artículo es el desplazamiento crítico realizado por Pêcheux en relación con la inflexión estructuralista en el análisis del discurso, alejándose de la rigidez en cuanto al “sujetamiento del sujeto” en el proceso de enunciación, y acercándose a un enfoque más abierto al “proceso de interpretación” como acontecimiento.

Palabras clave:
Michel Pêcheux; El discurso: ¿Estructura o acontecimiento? Teoría

Então, dizeis, a própria ciência há de ensinar o homem [...] que, na realidade, ele não tem vontade nem caprichos, e que nunca os teve, e que ele próprio não passa de um pedal de órgão; e que [...] existem no mundo as leis da natureza, de modo que tudo o que ele faz não acontece por sua vontade, mas espontaneamente, de acordo com as leis da natureza. Consequentemente, basta descobrir essas leis e o homem não responderá mais pelas suas ações, e sua vida se tornará extremamente fácil [...] tudo estará calculado e especificado com tamanha exatidão que, no mundo, não existirão mais ações nem aventuras.

(Fiodor Dostoiévski, Memórias do subsolo [1864])

1 INTRODUÇÃO

Este ensaio analisa um dos últimos escritos de Pêcheux, o texto preparado para uma conferência na Universidade de Illinois entre os dias 8 e 12 de julho de 1983, cujo título é O discurso: Estrutura ou acontecimento? Como é sabido, em dezembro desse mesmo ano Pêcheux se suicidou, o que acaba por redimensionar o teor desse texto e torná-lo particularmente significativo quanto a sua obra.

Em virtude disto, nossa proposta de análise se divide em duas partes: a) discutir como e por que as proposições apontadas por Pêcheux nesse escrito derradeiro propunham substancial revisão de pressupostos teóricos e procedimentos metodológicos defendidos e praticados por ele; e b) propor uma historicização dessa revisão proposta por Pêcheux com vistas a pensá-la como resposta dialética às reviravoltas da política francesa de então, em especial à vitória eleitoral de François Mitterrand em 1981, diretamente escorçada pelo escritor no início desse mesmo livro.

2 NAS MALHAS TEÓRICAS

Pelo fato de ter sido pensado como base de uma conferência, o livro O discurso: Estrutura ou acontecimento? é bastante curto: pouco mais de 40 páginas na edição brasileira, afora as notas de rodapé, que ocupam mais 6 páginas. O texto propriamente dito se divide em três capítulos: o primeiro introduzindo a discussão com um breve excurso sobre o grito que ecoou pela França após a inesperada vitória de François Mitterrand em 1981, o “On a gagné!”; o segundo fazendo um rápido sobrevoo de síntese acerca das conclusões e da fortuna crítica do estruturalismo; e o terceiro procedendo a uma reavaliação crítica daquelas conclusões e fortuna crítica, indicando então encaminhamentos que permitissem desatar os nós identificados nessa reavaliação.

Apesar do intrincado característico da dicção de Pêcheux (e dos estruturalistas em geral), o raciocínio é bastante claro: enunciação de um problema, levantamento do estado da arte sobre ele, e encaminhamento de soluções possíveis. O que nos interessa por ora é entender como, nesse encaminhamento, ocorre uma robusta revisão quanto ao legado estruturalista. A última parte do texto enceta o crescendo analítico do qual desembocarão as propostas de revisão.

O tom de síntese preparatória se faz sentir logo nos primeiros parágrafos:

O movimento intelectual que recebeu o nome de ‘estruturalismo’ (tal como se desenvolveu particularmente na França dos anos 60, em torno da linguística, da antropologia, da filosofia, da política e da psicanálise) pode ser considerado [...] como uma tentativa anti-positivista visando a levar em conta este tipo de real, sobre o qual o pensamento vem dar, no entrecruzamento da linguagem e da história. (Pêcheux, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento? 5. ed. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2008., p. 43-44)

A referência “anti-positivista” é aqui importante, pois indica que os estruturalistas estavam menos imediatamente preocupados com a positividade empírica dos fatos, no confronto com o real, e mais com a maneira pela qual esse real é, por assim dizer, teoricamente digerido e organizado - no caso de Pêcheux, especialmente através do discurso. Posto noutros termos: a inflexão analítica do estruturalismo encontrava-se antes na forma com que “se falava” sobre o real do que no contato específico desse falante com esse real, ou mesmo sobre “o real em si”. Grosso modo, é por essa razão que tanta atenção é concedida por Lacan ao inconsciente, por Althusser à ideologia, e por Barthes ao sentido, por exemplo. Inconsciente, ideologia e sentido constituem o que Lévi-Strauss chamou de “fenômenos estruturais” (Lévi-Strauss, 1980, p. 1-43), sistemas de referência e percepção gnosiológica que subjazem ao “real” e que, portanto, como que se antecipam a ele. Donde a positividade empírica ser, nesse enfoque, secundária.

A partir dessa observação inicial, Pêcheux descreve a tarefa crítica engendrada pelo estruturalismo a partir de uma tal premissa:

Colocando que ‘todo fato já é uma interpretação’ [...], as abordagens estruturalistas tomavam o partido de descrever os arranjos textuais discursivos na sua intrincação material e, paradoxalmente, colocavam assim em suspenso a produção de interpretação (de representações de conteúdos [...] em proveito de uma pura descrição [...] desses arranjos. As abordagens estruturalistas manifestavam assim sua recursa de se constituir em ‘ciência régia’ da estrutura do real (2008, p. 44).

É instrutivo o modo como se propõe no trecho acima uma diferenciação de duas operações intelectuais distintas: a “descrição dos arranjos textuais discursivos”, de um lado, a “colocação em suspenso” dessa mesma descrição quanto à “produção de interpretação”. Quanto à tarefa dos estruturalistas, Pêcheux diz que a relação entre essas duas operações se dava por meio de um “paradoxo”, pois se por um lado se gastou muito papel e tinta para “descrever os arranjos textuais discursivos”, isto relegou a segundo plano o próprio processo de “produção da interpretação”. Dito doutro modo: muito maior atenção foi concedida à descrição da mecânica estrutural dos “arranjos textuais discursivos” do que ao processo pelo qual esses mesmos “arranjos” eram (ou não) postos em exercício. Interessava mais a capacidade prescritiva dessas estruturas quanto à ação dos sujeitos diante do real, do que a própria ação dos sujeitos diante desse mesmo real.

Pêcheux reconhece residir nisto o que chamou de “revolução cultural” do estruturalismo, qual seja, “o reconhecimento de um fato estrutural próprio à ordem humana: o da castração simbólica” (2008, p. 46). Mas admite também que foi sobre esse des-centramento do sujeito e de sua ação que acabou por arvorar-se o “ódio à humanidade que, frequentemente, se emprestou ao estruturalismo” (2008, p. 45-46). Segundo Pêcheux, a relação entre as duas coisas não é necessária, e certamente há interesse numa perspectiva de análise que desafia a pressuposição simplista de um homem absolutamente liberto de todas as peias.

O detalhe, nos parece, é que ela não só provoca uma dúvida salutar como também abre precedentes perigosos. Pêcheux parece ter-se apercebido de parte importante deles, tanto num nível teórico, quanto num nível político. Ora, se a “tentativa anti-positivista” do estruturalismo fazia concentrar a ação do analista sobre o subjacente ao empírico, e se nesse processo a ação do sujeito (o “processo de interpretação”) era como que tolhida de antemão pela estrutura (por seus “arranjos textuais discursivos”), que papel resta aos sujeitos que agem ante o real? (e qual aos próprios analistas, sujeitos também eles...?)

É por isto que Pêcheux insiste no “oxímoro”, essa figura de linguagem que Dosse notou ser tão típica dos estruturalistas (Dosse, 2001DOSSE, F. A história à prova do tempo - da história em migalhas ao resgate do sentido. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Ed. da Unesp, 2001., p. 195-236). Confrontado com as implicações desse proceder teórico, Pêcheux aponta as falhas da campanha estruturalista: “esse movimento anti-narcísico [...] balançava em uma nova forma de narcisismo teórico. Digamos: em um narcisismo de estrutura” (Pêcheux, 2008, p. 46). Retirado o sujeito do centro da equação estruturalista, rapidamente toma-lhe o lugar a estrutura (os “fenômenos estruturais”), que no establishment acadêmico francês da década de 1960 se tornaram princípio explicativo poderoso. É neles que esteve o fiel da balança estruturalista, antes do que a profusão dos dados empíricos, aparentemente pouco adequados às “relações matematizáveis” (Dosse, 1993, p. 26).

Com sua costumeira acidez, Thompson denunciou essa postura na obra de Althusser, grande mestre de Pêcheux, quando afirmou que nela “os sentidos empíricos são obstruídos, os órgãos morais e estéticos são reprimidos, a curiosidade é sedada, todas as evidências ‘manifestas’ da vida ou da arte são desacreditadas como ‘ideologia’; o ego teórico cresce (pois tudo o mais é mistificado pelas ‘aparências’)” (1981, p. 183).

No texto derradeiro, Pêcheux parece ter-se dado conta disto. Se o rastro empírico da ação humana não constituir evidência fundamental, dada a “tentativa anti-positivista”, e se ele não for, no plano teórico, muito mais que um indício cujo fito é servir de plataforma para se chegar ao estrutural, o que passa a ser a luta política, as convicções morais, a solidariedade, a vida, enfim? Diante disto é que Pêcheux volta à carga contra a postura do estruturalismo:

Esse narcisismo teórico se marca, na inclinação estruturalista, pela reinscrição de suas “leituras” no espaço unificado de uma lógica conceptual. A suspensão da interpretação (associada aos gestos descritivos da leitura das montagens textuais) oscila assim em uma espécie de sobre-interpretação estrutural da montagem como efeito de conjunto: esta sobre-interpretação estruturalista faz valer o “teórico” como uma espécie de metalíngua, organizada ao modo de uma rede de paradigmas. A sobre-interpretação estruturalista funciona a partir de então como um dispositivo de tradução, transpondo “enunciados empíricos vulgares” em “enunciados estruturais conceptuais” [...] (Pêcheux, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento? 5. ed. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2008., p. 46).

Em outras palavras, a análise dos acontecimentos humanos, de sua ação e inação, se restringe a demonstrar sua pretensa captura pela força aparentemente inescapável das estruturas (a tal “tradução do empírico ao conceptual”). O sujeito aí não tem lugar, pelo menos não como categoria analítica, pois é sempre caudatário da ação dessa força que a ele se antecipa, tenha ela o nome de inconsciente, de ideologia, de discurso etc. Como afirmou certeiramente François Dosse:

A noção de sujeito daí resultante é então totalmente coerente com a noção que prevalece nos diversos outros campos das ciências humanas na época do estruturalismo. Esse sujeito clivado, descentrado, é de alguma maneira uma ficção que só tem existência graças à sua dimensão simbólica; diz respeito a um significante sob o qual se esgueira inexoravelmente o significado (2001, p. 244).

Ao se deslocar a inflexão analítica para o plano dos “fenômenos estruturais”, antes do plano da história, o sujeito parece só agir mediante a estrutura, como reza a categórica afirmação de Althusser: “só há prática através de e sob uma ideologia” (Althusser, 1985ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos do Estado. Trad. de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985., p. 93). Essa formulação, retirada do famoso texto Aparelhos Ideológicos do Estado, era conhecidíssima de Pêcheux, e esse artigo, aliás, é fartamente citado no clássico Semântica e discurso, de 1975, a ponto de Denise Maldidier afirmar que “[...] em Semântica e discurso, tudo parte de Althusser” (Maldidier, 2003, p. 49).

Neste livro, Pêcheux extraiu até a última grama de tutano filosófico de outra formulação famosa de Althusser, também de Aparelhos Ideológicos do Estado: aquela que diz que “a ideologia interpela os indivíduos, tornando-os sujeitos” (Althusser, 1985, p. 93). Mesmo uma análise discursiva simplória dá conta de notar que a sintaxe é fatal: o sujeito ativo da frase não é “indivíduos” e tampouco “sujeitos”, mas sim “ideologia”. E como esta, diz Althusser, se materializa nos Aparelhos Ideológicos de Estado, é nesse domínio que se deve procurar o busílis de explicação do devir histórico, bem como a formulação de um programa de ação política, o qual Althusser regia intelectualmente à frente do Partido Comunista Francês.

Diferentemente do que ocorre no livro de 1975, no texto de 1983 Pêcheux hesita diante dessas premissas althusserianas. Desconfia da onipotência da estrutura e da centralidade do Estado como campo de disputa decisivo. No primeiro caso, ele parece preferir uma formulação menos rígida e mais aberta à processualidade, por isto fala em “gestos descritivos de leitura das montagens textuais” ou, então, “os gestos de descrição das materialidades discursivas” (aos quais sugere, aliás, “dar o primado”) (Pêcheux, 2008, p. 46, p. 50). Quanto ao segundo caso, Pêcheux é ainda mais incisivo e insta a uma “revisão crítica”, detalhada no seguinte trecho:

A grande força dessa revisão crítica, é colocar impiedosamente em causa as alturas teóricas no nível das quais o estruturalismo político tinha pretendido construir sua relação com o Estado [...]. Este choque em retorno obriga os olhares a se voltarem para o que se passa realmente “em baixo”, nos espaços infraestatais que constituem o ordinário das massas, especialmente em período de crise (2008, p. 48, grifo nosso).

Essa “revisão crítica”, diz ele, é necessária diante do “ressentimento maciço face às teorias” que se deu na França dos anos 1980, pois essas “teorias [...] são suspeitas de terem pretendido falar em nome das massas, produzindo uma longa série de gestos simbólicos ineficazes e performativos políticos infelizes” (Pêcheux, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento? 5. ed. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2008., p. 47-48). Pêcheux ainda arremata com louvável esforço de autocrítica:

Esse ressentimento é um efeito de massa, vindo “de baixo”: uma espécie de contra-golpe ideológico que força a refletir, e que não poderia ser confundido com o covarde alívio de numerosos intelectuais franceses que reagem descobrindo, afinal, que a “Teoria” os havia “intimidado”! (2008, p. 48).

É muito difícil dizer onde começa a política e onde termina a teoria em cada uma dessas afirmações, e isto está longe de se constituir um problema, como veremos adiante. Mas há razoável convergência quanto a um ponto: a revisão crítica de uma e de outra precisa se desprender das “alturas teóricas com que o estruturalismo tinha pretendido construir sua relação com o Estado” e ir além desse mesmo “Estado” - donde a necessidade de olhar para o que se passa “nos espaços infraestatais”.

Ao analista do discurso, aliás, não deve passar despercebido o uso de um sintomático advérbio no enunciado de Pêcheux: ele diz que é preciso que “[...] os olhares se volt[em] para o que se passa realmente ‘em baixo’” (2008, p. 48, grifo nosso). Diante do “anti-positivismo” anteriormente ressaltado como traço definidor do estruturalismo, a utilização dessa derivação do lexema “real” é indício de uma revisão de posições.

Antes do “narcisismo de estrutura” e antes da “sobre-interpretação estrutural”, Pêcheux fala do “gesto”, isto é, da ação, da prática, do que ele chama noutro ponto de “processo de interpretação”. Se há o componente “anti-narcísico” ensinado pelo estruturalismo, o qual exige o reconhecimento de pressuposições quanto à agência do sujeito, há também a necessidade de que essas pressuposições se materializem de modo efetivo, isto é, que ocorram, que se tornem história, que se tornem acontecimento pelas mãos do(s) sujeito(s).

Com intensidade distinta da que prevalece em seus trabalhos anteriores, voltados a encontrar o elo perdido do “sujeito assujeitado” (Pêcheux, 2019PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi e Greciely Costa. Campinas: Pontes, 2019.) e a denunciar a “ilusão subjetiva” (Pêcheux, 1995), aqui Pêcheux efetivamente insere a discursividade na história, pondo-a na mão do sujeito e tirando-o do domínio em que prevalecem as estruturas e seu receituário. Todo o colossal poder da estrutura, toda a sua capacidade prescritiva e programadora, passa a ter que se equilibrar sobre essa cabeça de alfinete que é a ação do sujeito. A força estruturante da estrutura, a larga potência dela, que o estruturalismo se encarregou de escavar e demonstrar, fica então sujeita ao buraco de agulha da história. Isto porque a estrutura (essa parece ter sido a pequena-grande epifania de Pêcheux no texto de 1983) tem força não em si própria, mas em seus efeitos; não no seu próprio domínio subterrâneo, mas no reino da história. Para usar os termos sugeridos pelo próprio Pêcheux: a estrutura tem força quando consegue se transformar em acontecimento.

Até então, a ênfase tinha estado na primeira parte, na estrutura, e Pêcheux sugere (exige!) colocá-la na segunda, no acontecimento. Por isto é que a ênfase no “real ‘de baixo’”, no “ordinário”, nos “espaços infra-estatais”, no “cotidiano” (Pêcheux, 2008, p. 48), enfim, é de tantas formas recomendada por Pêcheux:

De meu lado [...] eu sublinharia o extremo interesse de uma aproximação, teórica e de procedimentos, entre as práticas de “análise da linguagem ordinária [...] e as práticas de “leitura” de arranjos discursivo-textuais (oriundas de abordagens estruturais). [...] Encarada seriamente [...] essa aproximação engaja concretamente maneiras de trabalhar sobre as materialidades discursivas, implicadas em rituais ideológicos, nos discursos filosóficos, em enunciados políticos, nas formas culturais e estéticas, através de suas relações com o cotidiano, com o ordinário do sentido (2008, p. 49, grifo nosso).

Das “alturas teóricas” do Estado e do paradigma estruturalista, Pêcheux insta os analistas do discurso a se voltarem ao “cotidiano”. Diz, mesmo, que “trata-se, para além da leitura dos Grandes Textos [...], de se pôr na escuta das circulações cotidianas, tomadas no ordinário do sentido” (Pêcheux, 2008, p. 48). É preciso não se fechar nas casamatas institucionais, na ortodoxia da teoria, na rigidez sectária de uma luta exclusivamente partidária: há que ganhar o chão mundano da vida “ordinária”, ponderar sobre a existência prática e concreta dos “de baixo” e “se pôr na escuta” deles mesmos, para poder verificar como eles próprios lidam com a maneira como as estruturas, diz-se, lidam com eles.

Trata-se de um movimento de descida, e o analista de discurso deve notar como as escolhas semânticas de Pêcheux traem uma certa noção hierárquica da qual ele, parece, quer se afastar: afinal, ele fala que se deve deixar “as alturas teóricas” e se voltar para o que “se passa realmente ‘em baixo’”. Há nisto, nos parece, uma crítica à postura condescendente do marxismo impregnado de formulações estruturalistas, pois, crente de seu vanguardismo, deixou de lado o que “se passa realmente ‘em baixo’”, com as classes populares.

A observação crítica quanto a essa espécie de prescritivismo programático, tanto teórica quanto politicamente, fez Pêcheux se erguer criticamente contra o estruturalismo e sua forte imbricação com o marxismo. Tal crítica deve ter-lhe sido muito difícil de fazer, uma vez que grande parte dessa imbricação fora encabeçada por Althusser, um de seus grandes mestres e amigos, recolhido há anos no Saint-Anne.1 1 Em 16 de novembro de 1980, Althusser estrangulou sua esposa, Hélène Rytmann, nos aposentos do casal na École Normale Superieure, em Paris. Ele próprio reportou o crime e entrou em contato com as instituições psiquiátricas. Em fevereiro de 1981, a corte decidiu não responsabilizá-lo criminalmente pelo ato, declarando-o mentalmente irresponsável quando de seu cometimento, e portanto inimputável. O filósofo perdeu seus direitos civis, foi posto sob a tutela do Estado e ficou por três anos no Saint-Anne, vindo a falecer em 1990. O episódio é relatado e analisado na autobiografia de Althusser, O futuro dura muito tempo, escrita em 1985.

A exortação quanto ao “cotidiano” e ao “ordinário” faz com que a atenção do analista se desloque para o “processo de interpretação”. Nesse ponto, Pêcheux já está longe das presunções quanto à onipotência das estruturas, ao passo que, antes do aspecto castrador (“anti-narcísico”) das formações discursivas sobre o pensamento e a ação do falante, ele sublinha as capacidades do falante em negociar esses sentidos no nível do acontecimento:

O objeto da linguística (o próprio da língua) aparece assim atravessado por uma divisão discursiva entre dois espaços: o da manipulação de significações estabilizadas, normatizadas pela higiene pedagógica do pensamento, e o de transformações de sentido, escapando a qualquer norma estabelecida a priori, de um trabalho do sentido sobre o sentido, tomados no relançar indefinido das interpretações (2008, p. 51, grifo nosso).

A relação dialética entre o estruturalmente receitado e o interpretado pelos sujeitos (os “de baixo”) é que prevalece, sobre qualquer uma das partes. Fazendo aquele exercício tão caro aos analistas do discurso, a “derivação parafrástica”, poderíamos dizer que se aproximam semanticamente nessas colocações de Pêcheux os enunciados “Os sujeitos agem dentro de condições estruturais” e “As estruturas dependem da agência dos sujeitos para ganhar corpo”. Em suma: os sujeitos não dependem mais das estruturas para sua agência do que estas dependem deles para completar seu efeito mesmo.

Seguindo nessa direção é que Pêcheux lista as três “exigências” para a revisão crítica ao final do capítulo III. A primeira delas “[...] consiste em dar o primado aos gestos de descrição das materialidades discursivas”; a segunda, daí derivada, diz que “Todo enunciado [...] é linguisticamente descritível como uma série [...] de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação”; enquanto a terceira, por fim, trata da “discursividade como estrutura ou como acontecimento”, instando os analistas do discurso a “[...] detectar os momentos de interpretação enquanto atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não negados” (Pêcheux, p. 50, p. 53, p. 55-57, respectivamente).

Da primeira à última exigência delineia-se o que Pêcheux chama de “zona intermediária de processos discursivos” ou “região discursiva intermediária” (Pêcheux, 2008, p. 52): o espaço que existe entre as “significações estabilizadas e normatizadas” e a “interpretação”, ou, em outros termos, entre as necessárias pressões da estrutura e a autonomia possível da agência. Nesse espaço as leis que imperam são as da dialética, dos arranjos móveis, das soluções de continuidade, das adaptações e dos usos, deliberados e involuntários, dos recursos emprestados e refuncionalizados dentro das circunstâncias. Interessa o momento do contato, a relação estabelecida, o movimento, o “gesto”. Como diz Pêcheux, “É nesse espaço que pretende trabalhar a análise de discurso” (2008, p. 53).

Estamos aqui ainda diante daquele Pêcheux que se propunha, em suas primeiras obras, a construir a análise automática que demonstrava, na hora decisiva do discurso, o “assujeitamento do sujeito”. Trata-se ainda daquele Pêcheux que impiedosamente brandia o “Efeito Münchhausen” para dizer que todos os que se diziam desenterrar continuavam enterrados no atoleiro epistemológico das pretensas certezas, puxando-se ridiculamente pelos próprios cabelos.2 2 A respeito de Semântica e discurso, de 1975, Maldidier chega a dizer que o livro “[...] devia se chamar O Efeito Münchhausen” (Maldidier, 2003, p. 49)

É o mesmo Pêcheux, não há dúvida, mas, puxa, que diferença!

É Pêcheux abrindo-se a uma ampla e corajosa autocrítica. Diante do altamente dramático de uma tal atitude, resta a pergunta acerca das razões que participaram de sua produção, sobre o que teria motivado esse profundo repensar do texto de 1983.

É sobre isto que nos debruçamos a seguir.

3 NAS MALHAS HISTÓRICAS

Algumas das melhores pistas para entender essa “revisão crítica” são as pegadas deixadas por Pêcheux nesse mesmo livro, de modo que, refazendo no sentido contrário seus passos, somos levados ao capítulo I, em que ele fala sobre a vitória de François Mitterrand nas eleições de 1981 e do grito que tomou várias cidades da França na noite mesma em que foi anunciada a vitória: “On a gagné!”, isto é, “Ganhamos!”.3 3 A tradução “A gente ganhou!” é, talvez, preferível, considerando que “Ganhamos!” em francês poderia ser “Nous gagnons!” ou “Nous avons gagné!”.

A escolha do episódio, e do enunciado, é significativa.

Pêcheux assim os descreve:

[...] todos os parisienses para quem esse acontecimento é uma vitória se reúnem em massa na Praça da Bastilha, para gritar sua alegria (os outros não seriam vistos nessa noite). E acontecerá o mesmo na maior parte das outras cidades. Ora, entre esses gritos de vitória, há um que vai ‘pegar’ com uma intensidade particular: é o enunciado “On a gagné” [“Ganhamos”] repetido sem fim como um eco inesgotável, apegado ao acontecimento (2008, p. 21).

Numa analogia que lembra muito as Mitologias de Barthes, Pêcheux encontra no enunciado algo do grito das torcidas frente a uma partida de futebol: “‘On a gagné’, cantado com um ritmo e uma melodia determinados (on-a-gagné/dó-dó-sol-dó)4 4 No perfil do Institut National de l’Audiovisuel (Ina) no YouTube há um vídeo em que é possível ver e ouvir os franceses entoando o “On a gagné!” em 1981. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eZ5OrXcc58g&t=128s&ab_channel=INAPolitique. Acesso em 8 set 2021. constitui a retomada direta, no espaço do acontecimento político, do grito coletivo dos torcedores de uma partida esportiva cuja equipe acaba de ganhar” (2008, p. 21).

A homologia segue também na transmissão televisiva, pois o evento é tratado como o “resultado de uma super-copa de futebol político ou de um jogo de repercussão mundial (F. Mitterrand ganha o campeonato de Presidenciáveis da França)”, resultado este que se torna “objeto de comentários e de reflexões estratégias posteriores (da parte dos capitães de equipe, de comentários esportivos, de porta-vozes de interesses comerciais” etc. (Pêcheux, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento? 5. ed. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2008., p. 19-20, p. 22).

Mas essa torcida, que num jogo se comportaria antes como espectadora do que participante, subverteu essa lógica na comemoração da improvável vitória de Mitterrand. A materialidade discursiva, que a lição estruturalista ensinara que deveria enformar e como que empanar a enunciação dos falantes, foi de repente extravasada. Balançaram-se seus caixilhos semânticos, rangeram seus gonzos parafrásticos, e Pêcheux percebe de relance algo que o surpreendeu, desafiando a homologia desportiva que ele inicialmente diagnosticara no episódio. Eis seu relato: “Este grito marca o momento em que a participação passiva do espectador-torcedor se converte em atividade coletiva gestual e vocal, materializando a festa da vitória da equipe, tanto mais intensamente quanto ela era mais improvável” (Pêcheux, 2008, p. 21).

A transição fundamental é esta: da “participação passiva do espectador-torcedor” para a “atividade coletiva gestual e vocal”. Dito doutro modo: trata-se da passagem da condição de objetos da “coerção lógica” dos discursos “logicamente estabilizados” (Pêcheux, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento? 5. ed. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2008., p. 30, p. 53) para a condição de construtores, coletivos, do “gestual e do vocal”, isto é, daqueles “gestos” aos quais Pêcheux quer dar o primado, aqueles gestos que nascem como “momento de interpretação”, como “atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais” (Pêcheux, 2008, p. 53-57). O protagonista dessa ação, não é exagero relembrar, é a multidão que entoa “On a gagné!” França afora.

Apesar do prognóstico improvável dos politicólogos e da baixa expectativa da esquerda quanto ao pleito, Mitterrand, o candidato socialista, venceu as eleições. O Partido Comunista, antigo reduto de Althusser e do marxismo estruturalista, foi um dos que mais friamente tomou parte na campanha, mantendo-se reticente quanto ao jogo político, sobretudo depois de ter sido batido na primeira rodada das eleições duas semanas antes do pleito de 10 de maio.

A grande celebração coletiva que tomou a França naquela noite rapidamente fez evocar outros momentos históricos da esquerda socialista francesa, dentre os quais alguns lembrados pelo próprio Pêcheux: o governo de Léon Blum em 1936, para proteger a República, e a Liberação em 1945, para restaurá-la. Interessa menos, aqui, se há ou não simetria entre esses diferentes momentos; interessa antes como Pêcheux leu a festa da vitória e como ela o impactou, e nosso argumento é de que aquela vitória dizia respeito antes aos “de baixo” do que à organização institucional e partidária da esquerda, sobretudo ao Partido Comunista que fora capitaneado por Althusser, e apoiado por Pêcheux.

Tomando certa liberdade poética, digamos que o marxismo estruturalista por tanto tempo praticado por Althusser e por Pêcheux não foi convidado para aquela festa política que tomou a França. As palavras de Pêcheux parecem indicar que aquela vitória ocorrera não por causa do prognóstico e da ação política das forças intelectuais e partidárias das quais ele fazia parte, mas à revelia delas. Não que aquele movimento as negasse, ou que a elas se opusesse, mas passava ao largo delas, e este é, precisamente, o ponto. Quanto mais efusiva a festa do dia 10 de maio, mais flagrante se tornava a distância que separava o significado político do “On a gagné!” do significado político da prática estruturalista.

É isto, suspeitamos, que engendrou o esforço de autocrítica a que Pêcheux se lançou. Embora a vitória de Mitterrand tenha sido celebrada como uma quebra do predomínio da centro-direita no poder, que durava mais de 20 anos, e que o episódio tenha ficado marcado como o início do primeiro governo de esquerda depois da Liberação, as observações de Pêcheux no texto de 1983 estão marcadas com um tom pesaroso. Se poderia dizer que foram escritas com a tinta da melancolia.

As razões que permitem entender isto tem a ver com as mudanças históricas e políticas da França desde a Liberação em 1945 e, especificamente, desde o Maio de 68. O Partido Comunista permaneceu sendo a força política predominante na esquerda francesa nos anos que se seguiram a 1968, mas a década de 1970 trouxe mudanças que desafiaram essa primazia. Dentre elas, a principal parece ter sido a crise econômica que tomou conta do capitalismo mundial por volta de 1972, assim como, evidentemente, o gradativo processo de dissolução da União Soviética ao longo desses mesmos anos - que acabou por desembocar na “apatia da esquerda na França depois de maio de 1981” (Dosse, 2018DOSSE, F. La saga des intellectuels français. V II - L’avenir en miettes (1944-1968). Paris: Gallimard, 2018., pos. 8302).

Os anos que se estendem de 1968 a 1981 foram marcadas pela gradativa ascensão do Partido Socialista à proa da esquerda francesa. Apesar da construção de um programa comum para as eleições de 1981, o Partido Socialista, encabeçado por Mitterrand, ganhou proeminência diante da necessidade de pragmatismo causado pela crise econômica que se aprofundava por meio do aumento do desemprego e da inflação, levando à “emergência dos setores inferiores e intermediários de funcionários públicos e privados, que estavam se voltando em massa para o novo Partido Socialista” (Fisera, 1983, p. 157).

O sociólogo Jonah Birch sintetiza o estado de coisas de então:

Enquanto Mitterrand tinha sempre sido bastante claro quanto ao seu objetivo de substituir o PCF como a força de liderança na esquerda francesa, os comunistas estavam incertos em relação a como responder às suas aberturas [em nome de um programa comum]. As tensões entre os partidos chegaram ao limite em 1977, seguindo a ampla vitória da esquerda nas eleições municipais. Com as eleições parlamentares de 1978 no horizonte, e diante das grandes esperanças de que a Esquerda emergiria com uma maioria legislativa, o PCF usou, na ocasião, desavenças quanto a uma variedade de assuntos para quebrar a aliança [com o PS]. Isto o tornou alvo da reprovação de muitos eleitores de esquerda, e cimentou o status do PS como o partido da unidade da esquerda (Birch, 2015BIRCH, J. The Many Lives of François Mitterrand [2015]. Disponível em: https://www.jacobinmag.com/2015/08/francois-mitterrand-socialist-party-common-program-communist-pcf-1981-elections-austerity/. Acesso em 2 set. 2021.
https://www.jacobinmag.com/2015/08/franc...
).

O que estava em jogo nas eleições de 1981 era, também, o lugar e o papel que o PCF teria na vida política francesa, institucional e extra-institucionalmente. A perda de popularidade dos comunistas se expressou também na preferência pelo PS na primeira rodada das eleições, em abril de 1981, e na delicada situação em que se deram as eleições parlamentares e a construção do gabinete e dos ministérios do governo de Mitterrand ao longo de 1981. Os comunistas eram necessários à maioria legislativa, mas uma presença desproporcional deles nos gabinetes colocava Mitterrand em situação delicada quanto à opinião pública e quanto à governabilidade frente às principais forças da direita francesa, os gaullistas e os giscardistas (The New York Times, 11 de maio, 1981).

Contudo, havia mais em jogo em 1981, porque as tensões políticas não se resumiam às aproximações e aos distanciamentos parlamentares entre socialistas e comunistas. A emergência dos chamados “movimentos sociais” nos anos 1970 desafiava a capacidade dos partidos comunistas de diferentes países de manter seu papel histórico de vanguarda política e força revolucionária. Trata-se dos

novos movimentos dos anos 1970, como o movimento das mulheres, das minorias étnicas, dos sindicalistas radicais [...], trabalhadores imigrantes e descendentes de imigrantes, das minorias sexuais, das associações radicais de cultura [...], das comunas, dos sem-teto e dos sem-terra [squatters], dos recrutas e, depois de 1974, dos ecologistas [...] (Fisera, 1983, p. 156).

Em face desse grande e fragmentado contingente de pautas, de grupos e de extrações políticas, a capacidade vanguardista dos comunistas, e dos partidos comunistas, foi severamente desafiada. É difícil determinar até que ponto eles continuaram encabeçando a luta política radical, inclusive pelo fato de que alguns desses movimentos, como as mobilizações antinucleares e o Solidariedade polonês, por exemplo, demonstravam grande capacidade de mobilização social e política, e ofereciam uma plataforma abrangente, por vezes de modo mais urgente do que as formas clássicas de luta dos comunistas.

Depois da “querela do humanismo” denunciada por Althusser em nome do intransigente compromisso comunista, a pauta política da esquerda francesa e europeia reivindicava novamente o humanismo, então com forte pendor socialista. Diante da capacidade de atuação política desses movimentos sociais, e diante também da forte crítica (direta e indireta) que eles encarnavam em relação ao velho programa comunista, Pêcheux foi confrontado com difíceis questões políticas e teóricas. Parece-nos que a atenção que ele exige que seja dada aos “espaços infraestatais” tem a ver precisamente com isto: a luta política dos “de baixo” não estava necessariamente nas instituições, nos aparelhos ideológicos do Estado, no Estado, enfim. Estava também, e nesse caso sobretudo, no “ordinário”, no “cotidiano”, ganhando forma em episódios estrondosos tal como os gritos de “On a gagné!” da noite do 10 de maio de 1981.

Os intempestivos acontecimentos desses anos decisivos impeliram Pêcheux rumo à “revisão crítica” a que se lançou no texto de 1983. Nisto, a prática teórica deveria ser revista, mas também a prática e os pressupostos políticos, ao passo que à sombra do dramático desenrolar histórico dos anos 1970 foi que ele dirigiu suas duras críticas ao marxismo estruturalista:

os estruturalistas acreditavam [...] na ideia de que o processo de transformação interior aos espaços do simbólico e do ideológico é um processo EXCEPCIONAL: o momento heroico solitário do teórico e do poético (Marx/Mallarmé), como trabalho extraordinário do significante. Esta concepção aristocrática, se atribuindo de facto o monopólio do segundo espaço (o das discursividades não-estabilizadas logicamente) permanecia presa, mesmo através de sua inversão “proletária”, à velha certeza elitista que pretende que as classes dominadas não inventam jamais nada, porque elas estão muito absorvidas pelas lógicas do cotidiano: no limite, os proletários, as massas, o povo... teriam tal necessidade vital de universos logicamente estabilizados que os jogos de ordem simbólica não os concerniriam! Neste ponto preciso, a posição teórico poética do movimento estruturalista é insuportável. (Pêcheux, 2008PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento? 5. ed. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2008., p. 52-53, grifos no original).

O que a festa do 10 de maio parece ter demonstrado a Pêcheux foi a não-necessidade de uma tutela partidária, institucional ou estatal para a ação dos “de baixo”. Eles eram perfeitamente capazes de realizar proezas políticas sem o concurso do partido, sem a tutoria dos intelectuais, sem a epifania “excepcional” de algum teórico que lhes iluminasse o caminho como espécie de timoneiro. Pressupor essa necessidade seria incorrer, como acusa Pêcheux, numa “concepção aristocrática ou na “velha certeza elitista” de que o povo precisava ser conduzido. Pêcheux nota, em suma, que os estruturalistas partiam de um “argumento populista [...], já que partilhava com ele implicitamente o pressuposto essencial: os proletários não têm (o tempo de se pagar um luxo de) um inconsciente!” (2008, p. 53).

O “narcisismo teórico”, o “narcisismo de estrutura”, se materializa, portanto, numa postura condescendente em relação às classes populares, ao proletariado, aos “de baixo”, enfim. E Pêcheux não parece disposto a aceitá-lo, ainda que isto implique pôr sob suspeição antigos pressupostos e velhas verdades. Ainda que isto demande colocar-se na frente do espelho da consciência ou sobre um improvisado divã.

A história parecia haver, pelo menos momentaneamente, ultrapassado as antigas esperanças da geração dos soixante-huitards.

Mas havia mesmo? Ou era essa nova onda de mobilização política uma revivescência daquele antigo espírito autonomista do Maio de 68 que, com explosão grandemente “espontânea”, havia abalado o establishment burguês liberal no centro mesmo dos “trinta anos gloriosos”? O “On a gagné!” de 1981 não era ainda um eco tardio, metamorfoseado, do “Soyez realistes, demandez l’impossible”?

Essa dúvida, argumentamos, participou do estado de espírito com que Pêcheux escreveu o texto de 1983, pois se por um lado ela alimenta a esperança de que a centelha radical não se apagou, e que 68 estava vivo; por outro sublinha com amarga ironia que essa centelha se mantivera viva por meios outros que aqueles em que apostaram tantos intelectuais.

Essa é a complicada digestão histórica do Maio de 68, marcada pelo que Dosse chamou de “as artimanhas da razão”: ora ela é lida como a vitória de “um capitalismo à 68”, ora como a “eclosão do individualismo narcisista”, ora como o radicalismo popular cujo fantasma segue rondando a Europa, não como “revolução fracassada, mas uma reforma bem-sucedida” (Dosse, 2001, p. 134-136). Pêcheux provavelmente estava interiormente repuxado por esse cabo-de-guerra da memória, reatualizado sem parar e com a voracidade de esfinge da lenda.

As palavras melancólicas de Jean-Michel Brabant, outro soixante-huitard que optou pelo suicídio, talvez traduzam o estado de espírito e as incertezas de Michel Pêcheux:

O que sobrou? Que memória e que saudade? O curso das coisas nos empurrou para a lateral do comentário e do gozo individual. Mas será mesmo preciso afundar na lama dos clichês e na cloaca dos desiludidos? Claro que não. Façamos de Maio uma barricada do verbo! (apudDosse, 2001DOSSE, F. A história à prova do tempo - da história em migalhas ao resgate do sentido. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Ed. da Unesp, 2001., p. 137).

Do verbo, do discurso, do “primado do gesto”.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na abertura de O discurso - Estrutura ou acontecimento?, Pêcheux conta uma anedota: diz ele que “naqueles longínquos tempos em que os marxistas pensavam poder construir tudo por si mesmos [...] reinava uma estranha confusão”: “o velho marxista tinha absoluta convicção de estar equipado de parafusos celibatários [...], quando na verdade não dispunha senão de roscas... sem porcas”. Continua Pêcheux dizendo que

[...] toda vez que se punha a trabalhar, era a mesma coisa: ele juntava duas peças de madeira, cada uma com um buraco, em perfeita coincidência. Colocava a rosca no buraco e girava, girava... no vazio, sem nenhum resultado, de forma que sua construção estava sempre se desfazendo (2008, p. 15-16).

Embora houvesse gente que oferecesse “[...] toda uma série de porcas: porcas fenomenológicas, estruturalistas, hermenêuticas, existenciais, discursivas, linguísticas, psicanalíticas” etc., custou muito tempo para que o velho marxista da anedota se desse por vencido.

Há por debaixo dessas notas jocosas, no entanto, um pesar. A imagem da desconstrução evocada pela anedota parece, à luz do que se segue a ela no texto de 1983, o possível escopo de uma metáfora incomodamente verossímil. É possível que houvesse nela um aceno pesaroso à ironia da história, às “artimanhas da razão”.

A mordacidade inicial, que parece se estancar na iracunda crítica que dá corpo ao livro (e que cortava na carne!), finalmente dá lugar ao tom solene com que Pêcheux conclui o texto de 1983: “[...] trata-se aí, para mim, de uma questão de ética e de política: uma questão de responsabilidade” (2008, p. 57).

Finda a carga e consumada a crítica, restou a melancolia. Claudine Normand, linguista que conheceu e admirou Pêcheux, toca no ponto doloroso do suicídio dizendo que “[...] houve certamente, entre outras razões, a consciência de um impasse teórico, e uma enorme decepção política. São pessoas que acreditaram tanto da onipotência da teoria que não puderam superar isto” (apud Dosse, 1994DOSSE, F. História do estruturalismo. V. II - O canto do cisne, de 1967 a nossos dias. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Ensaio; Campinas: Ed. da Unicamp, 1994., p. 431). Para não cair no opróbrio lançado por Max Gallo em 1983, quando denunciou o “silêncio dos intelectuais franceses de esquerda”, Pêcheux não se furtou à sacrificial revisão que ia na direção oposta do que tinha dito até aquele ponto, interditando grande parte de seu edifício teórico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos do Estado. Trad. de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
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    » https://www.jacobinmag.com/2015/08/francois-mitterrand-socialist-party-common-program-communist-pcf-1981-elections-austerity
  • DOSSE, F. A história à prova do tempo - da história em migalhas ao resgate do sentido. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Ed. da Unesp, 2001.
  • DOSSE, F. História do estruturalismo. V. I - O campo do signo, 1945-1966. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Ensaio; Campinas: Ed. da Unicamp, 1993.
  • DOSSE, F. História do estruturalismo. V. II - O canto do cisne, de 1967 a nossos dias. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Ensaio; Campinas: Ed. da Unicamp, 1994.
  • DOSSE, F. La saga des intellectuels français. V II - L’avenir en miettes (1944-1968). Paris: Gallimard, 2018.
  • DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Trad. de Boris Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34, 2000.
  • LÉVI-STRAUSS, C. A noção de estrutura em etnologia. In: LÉVI-STRAUSS, C. Os Pensadores. 2. ed. Trad. de Eduardo Graeff. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 1-43.
  • MALDIDIER, D. A inquietação do discurso - (re)ler Michel Pêcheux hoje. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2003.
  • PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi e Greciely Costa. Campinas: Pontes, 2019.
  • PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento? 5. ed. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2008.
  • PÊCHEUX, M. Semântica e discurso - uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni Pulcinelli Orlandi, Lourenço Chacon Jurado Filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa e Silvana Mabel Serrani. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995.
  • THE New York Times, 11 de maio de 1981. Disponível em: https://www.nytimes.com/1981/05/11/world/mitterrand-beats-giscard-socialist-victory-reverses-trend-of-23-years-in-france.html Acesso em: 10 set. 2021.
    » https://www.nytimes.com/1981/05/11/world/mitterrand-beats-giscard-socialist-victory-reverses-trend-of-23-years-in-france.html
  • THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981.
  • WILLIAMS, S. (ed.). Socialism in France - From Jaurès to Mitterand. New York: St. Martin’s Press, 1983.
  • 1
    Em 16 de novembro de 1980, Althusser estrangulou sua esposa, Hélène Rytmann, nos aposentos do casal na École Normale Superieure, em Paris. Ele próprio reportou o crime e entrou em contato com as instituições psiquiátricas. Em fevereiro de 1981, a corte decidiu não responsabilizá-lo criminalmente pelo ato, declarando-o mentalmente irresponsável quando de seu cometimento, e portanto inimputável. O filósofo perdeu seus direitos civis, foi posto sob a tutela do Estado e ficou por três anos no Saint-Anne, vindo a falecer em 1990. O episódio é relatado e analisado na autobiografia de Althusser, O futuro dura muito tempo, escrita em 1985.
  • 2
    A respeito de Semântica e discurso, de 1975, Maldidier chega a dizer que o livro “[...] devia se chamar O Efeito Münchhausen” (Maldidier, 2003, p. 49)
  • 3
    A tradução “A gente ganhou!” é, talvez, preferível, considerando que “Ganhamos!” em francês poderia ser “Nous gagnons!” ou “Nous avons gagné!”.
  • 4
    No perfil do Institut National de l’Audiovisuel (Ina) no YouTube há um vídeo em que é possível ver e ouvir os franceses entoando o “On a gagné!” em 1981. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eZ5OrXcc58g&t=128s&ab_channel=INAPolitique. Acesso em 8 set 2021.

Editado por

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2023
  • Aceito
    13 Dez 2023
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