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CRISE DE PALAVRA: NOTAS PARA UMA REVISÃO DO INTERTEXTO SARTRE & BARTHES

Word Crisis: Notes for a Revision of the Sartre & Barthes Intertext

Crisis de la palabra: notas para una revisión del intertexto Sartre & Barthes

Resumo

O ensaio trata de confluências intertextuais entre Sartre e Barthes, à luz dos estabelecimentos trazidos pelos aparatos críticos das obras barthesianas completas. Trabalhando com um corpus em que se destaca a réplica de O grau zero da escritura à pergunta sobre O que é a literatura?, conjectura afinidades fundamentais entre o homem inessencial sartriano lançado na gratuidade da existência e o sujeito discursivo barthesiano preso ao arbitrário do signo. Trata-se de mostrar que, nos dois casos, a “consciência infeliz”, ao desabrigo metafisico, recobra o sentido da experiência em um embate contra as palavras. É a mesma contingência que leva a admitir, de parte a parte, a possibilidade de um conhecimento imaginário, ligado à ação de uma consciência imaginante fora da órbita dos signos.

Palavras-chave:
Sartre; Barthes; Palavra e Imagem; Crítica; Consciência infeliz

Abstract

The essay addresses the intertextual confluences between Sartre and Barthes, in light of the insights provided by the critical apparatus of the complete works of Barthes. Working with a corpus that highlights the response of Writing Degree Zero to What is Literature?, it conjectures fundamental affinities between Sartre’s inessential man launched into the gratuitousness of existence and Barthes’ discursive subject bound to the arbitrariness of the sign. The aim is to show that, in both cases, the “unhappy consciousness”, deprived of metaphysical shelter, recovers the meaning of experience in a struggle against words. It is the same contingency that leads to the acknowledgment, on both sides, of the possibility of an imaginary knowledge, linked to the action of an imaginative consciousness outside the orbit of signs.

Keywords:
Sartre; Barthes; Word and Image; Criticism; Unhappy Consciousness

Resumen

El ensayo aborda las confluencias intertextuales entre Sartre y Barthes, a la luz de los fundamentos presentados por los aparatos críticos de las obras completas de Barthes. Trabajando con un corpus en el que destaca la réplica de “El grado cero de la escritura” a la pregunta sobre “¿Qué es la literatura?”, se especulan afinidades fundamentales entre el hombre inesencial sartreano, lanzado a la gratuidad de la existencia, y el sujeto discursivo barthesiano, atrapado en el arbitrariedad del signo. El objetivo es demostrar que, en ambos casos, la “conciencia desdichada”, desprovista de abrigo metafísico, recupera el sentido de la experiencia en una lucha contra las palabras. Es la misma contingencia que lleva a admitir, de ambas partes, la posibilidad de un conocimiento imaginario, vinculado a la acción de una conciencia imaginante fuera de la órbita de los signos.

Palabras clave:
Sartre; Barthes; Palabra e Imagen; Crítica; Conciencia desdichada

Por ter descoberto o mundo através da linguagem,

por muito tempo tomei a linguagem pelo mundo.

Jean-Paul Sartre, As palavras

1 INTRODUÇÃO

Como este ensaio trata de confluências intertextuais entre Sartre e Barthes, convém, de início, definir o conceito de “intertexto” aqui implementado. “Intertexto” refere-se à relação existente entre textos, a partir da qual um texto é influenciado por, faz referência a, ou se interconecta com outros: intertextos dão-se por citações diretas, alusões, paródias, referências culturais ou até mesmo similaridades temáticas e estilísticas (Hebel, 1989HEBEL, U. Intertextuality, Allusion, and Quotation: An International Bibliography of Critical Studies. Londres: Bloomsbury Academic, 1989.). Dos Estudos da Linguagem, a partir dos seminais textos de Julia Kristeva (1969KRISTEVA, J. Sèméiotikè: recherches pour une sémanalyse. Paris: Seuil, 1969.) e Gérard Genette (1982GENETTE, G. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982.), o conceito de intertexto destaca, o complexo relacionamento entre obras literárias, científicas, artísticas, e, em nosso caso, teórico-filosóficas.

Isto posto, no contexto da Filosofia e Teoria francesas do século XX, o olhar da intertextualidade viabiliza para nós um método de lida com os escritos estudados. Envolvendo a identificação de influências diretas, contrastes tratadísticos, ou até mesmo diálogos indiretos, o intertexto entre Roland Barthes e Jean-Paul Sartre objetiva anotar suas convergências e divergências, notadamente no que tange à relação entre Palavra e Vida Social. De maneira por ora esquemática, de um lado, temos Barthes, semiólogo e crítico literário, conhecido por suas reflexões sobre linguagem, signos e cultura, reticente quanto ao nexo entre palavras e coisas em função do Mundo e da Sociedade. Do outro, temos Sartre, filósofo existencialista, com suas ideias de liberdade, responsabilidade e agência humana, engajado na embreagem entre teoria e prática, discurso e ação. Neste quadro, como se dariam as relações intertextuais entre ambos?

Para responder à questão-chave deste ensaio, exploraremos mais detalhadamente o intertexto entre Sartre e Barthes. Ao examinar suas ideias convergindo ou divergindo em temas comuns, como Subjetividade, Linguagem e Comunicação, anotamos seus pontos de contato e distância, especialmente na terceira seção de nosso texto. Oferecemos, por instrumento da intertextualidade, uma compreensão mais rica das contribuições destes autores para o debate contemporâneo, que fazemos reverberar em Estudos Literários, Culturais e do Discurso francófilos brasileiros.

2 TEXTOS E CONTEXTOS DO INTERTEXTO SARTRE & BARTHES

Comecemos, por assim dizer, pelos textos e contextos do intertexto Sartre & Barthes.

Desde suas primeiras publicações na revista Combat, que viriam a figurar no livro de estreia, O grau zero da escritura, e mesmo que nem sempre o admita, mesmo Roland Barthes refere Jean-Paul Sartre, como atesta a resposta que este mesmo livro oferece a O que é a literatura?, como também se verá logo. Eis o que se tem imputado, até aqui, em consignação indireta, à força da influência de Marx, evidenciada pela atenção que Barthes, não obstante voltado às operações semiológicas internas e sincrônicas, presta na História. Vão, nesse sentido, os apontamentos do aparato crítico do primeiro dos cinco tomos das obras barthesianas completas, disponibilizadas, em 2002, por Éric Marty, onde o editor vem a campo afirmar que todo o primeiro período ativo do autor, aquele entre 1942 e 1960, tem Sartre, Marx e Brecht por intertexto, como espaço de ressonâncias entre textos de diferentes assinaturas, dentro de uma concepção do discurso como não-fechado, mas expansivo e transformacional, na linha das novas críticas, de que Barthes é o mentor. Marty acrescenta, alusivamente ao desarme ideológico da linguagem da cultura de massa que caracteriza essa produção textual inicial, que o gênero em que tudo se verte é a “[...] mitologia social” (Marty, 2002, p. 15).

Releva, assim, o valor político de um combate semiológico que é, de fato, sartriano, por reconhecer que radica, ao mesmo tempo, em gestos objetivos de denúncia e gestos subjetivos de leitura, de tal modo instáveis que dão lugar à questão de saber se os desarmes semiológicos em apreço não movimentariam significações do próprio operador, ou se não haveria uma mitologia do mitólogo. Como assente Barthes, a posteriori, no prefácio de 1970 a Mitologias, explicando que seu modo de operar vinha da resolução de “[...] não separar as esferas da objetividade do pesquisador e da subjetividade do escritor, de modo a não escamotear ou sublimar os limites reais de suas situações” (Barthes, 2002, I, p. 676). Fazê-lo significa evocar, literalmente, o homem sartriano em situação.

De fato, há um marxismo do primeiro Barthes, a depreender de sua fixação em Brecht, bem atestada na primeira leva dos Essais Critiques, assim como de suas remissões entre explícitas e dedutíveis a Sartre. É o que confirma este outro observador do campo, representante da segunda geração do giro linguístico francês, que é Jean-Claude Milner: “O Signo ainda não aparece, Marx reina como mestre do Saber” (Milner, 2003MILNER, J. Le pas philosophique de Roland Barthes. Paris: Verdier, 2003., p. 45). Não por acaso, existe um pequeno, mas politicamente ilustrativo capítulo, intitulado, na interrogativa, “Sou marxista?”. A propósito de seu método de trabalho, pelo qual lhe pergunta alguém, e ainda que esquivando o “macarthismo” da indagação, Barthes reivindica-se marxista no “procedimento”, pela “objetividade” de suas leituras e, como prova, se distancia do “reacionarismo” (Barthes, 2000, I, p. 596) da Nouvelle Revue Française.

Que esse marxismo dégagé é sartriano é o que autoriza pensar o próprio Sartre, com suas profissões de fé marxistas no negativo, recurso enviesado através do qual encontra jeito de nos dizer que Marx não está nas posições que toma, mas nas que não toma. Em Questão de método, volume gestado no final dos anos 1960, juntamente com a Crítica da razão dialética, ambos libelos da era da afirmação do homem estrutural, que não é o homo existencial, mas o semiótico, ele explica o porquê. Isso acontece, de um lado, porque a filosofia marxista é marca de seu tempo e tem aspectos insuperáveis que é forçoso considerar.

De fato, lemos aí: “O filósofo opera a unificação de todos os conhecimentos, orientando-se de acordo com certos esquemas diretores que traduzem as atitudes e técnicas da classe ascendente diante de seu tempo” (Sartre, 1987bSARTRE, J. Questão de método. In: SARTRE, J. Os Pensadores: Sartre. Seleção de textos de José Américo Pessanha. Trad. de Bento Prado Junior. São Paulo: Nova Cultural, 1987b., p. 113). Até este ponto, o filósofo assente com o materialismo histórico. Porém, isto acontece por causa de certa violência interpretativa, certo determinismo, que vem se somar a esta visão da historicidade. Daí, encontram-se outras considerações de Sartre, menos entusiastas, no sentido de que o marxismo toma o caminho de um “[...] movimento totalizador, autônomo e teleológico”, no trânsito do qual o homem passa a “[...] objeto de leis mecanicistas”. Neste sentido, o marxismo “[...] é uma filosofia que perde sua singularidade, despoja-se de seu conteúdo original, na medida em que impregna pouco a pouco as massas, para tornar-se nelas, e por elas, um instrumento coletivo de emancipação” (Sartre, 1987b, p. 114). Eis tudo com que Barthes só pode concordar, ele também incomodado, como se viu, com uma práxis que foge à esfera dos atores sensíveis nelas envolvidos e, mais que isso, decidido a não se furtar a contradições. Isto posto, tanto em Barthes quanto em Sartre, tensiona-se a relação com toda forma de militância de matriz marxista.

Tirante as ressalvas, está-se na linha marxista das determinações históricas de todas as práticas superestruturais, com a particular ênfase de Barthes naquelas que dão ares de naturalidade a construções de linguagem que vêm encobrir fatos com retórica. Estas últimas são justamente as mitológicas, de tal sorte que, no ensaio teórico que faz papel de posfácio a Mitologias, este tempestivamente acrescentado quando da publicação do volume, em 1957, vai cuidar de afiançar que suas análises se pautam pelo exemplo da “crítica total” de Sartre, principalmente daquela que Sartre consagra à vida de Jean Genet. A justificação é que a démarche sartriana lhe soa, ao mesmo tempo, “[...] formal e histórica, ideológica e semiológica”, sendo assim, no seu entender, tão mais objetiva quanto formalista. Esta é portanto a razão pela qual Barthes afinal se pergunta: “Diria que um pouco de formalismo afasta da História, mas que muito formalismo leva de volta a ela. Haveria maior exemplo que a descrição da santidade no Saint Genet de Sartre?” (Barthes, 2002, I, p. 826).

Até porque as respectivas visões dos signos são de sua clivagem - o que faz da literatura um instrumento da liberdade de consciência, armada contra a falsa presença do Logos, nos termos de O que é a literatura? e O grau zero da escritura, como se verá -, toda e qualquer aproximação entre as duas figuras de pensador parece dever passar por esse senso inquieto e instável da objetividade. E até porque, como visto, ambos estão dispostos a tomar o marxismo como conquista, por ser ele o primeiro a descrever a condição temporal do homem, ou mais sartrianamente, o homem em sua condição, parece igualmente razoável referi-la a uma injunção geracional. Pareceria impossível não fazê-lo, dado que Les Mots é de 1964, um dos anni mirabiles do estruturalismo, a atestar, por si só, um horizonte de preocupações. É bem verdade que a homenagem a O imaginário de Sartre, cravada no frontispício de A câmara clara, livro publicado no final de 1979, à véspera da morte dos dois intelectuais públicos, assume a defesa das imagens, contra uma iconoclastia cada vez entranhada na cultura acadêmica, notadamente francesa.

Efetivamente, ainda que Sartre assuma, em Barthes, estatuto de predecessor, por força de sua entrada em cena tardia, está-se falando de dois contemporâneos quase exatos. Respectivamente nascidos em 1905 e 1915, o autor destes dois clássicos em diálogo que são O que é a literatura? e O grau zero da escritura têm apenas dez anos a separá-los, biograficamente. Além disso, ambos são órfãos de pais militares marinheiros que não chegaram a conhecer, criados na redoma de mães viúvas amorosas mas desamparadas, fadadas a serem percebidas como mães-meninas ou irmãs, à sombra de ancestrais burgueses provinciais e avôs impressionantes, longe de Paris.

Aqui e ali, estudos de caso mencionam coincidências nas confidências, expressas ou não. Por exemplo, Tiphaine Samoyault dedica algumas páginas do capítulo Barthes e Sartre de sua biografia de Barthes à verificação de pontos comuns entre o “neutro” e a “náusea”, pelo caráter vago e evanescente dos estados intermediários ou terceiros subentendidos nesses conceitos sui generis (Samoyault, 2015, p. 271). Outros evocam a ligação existente entre o viver-junto idiorrítmico com que sonha Barthes, desde suas primeiras incursões ao falanstério de Fourier, mas notadamente no tempo do Collège de France e da temporada de aulas em torno do Como viver junto, e os modos especiais de coabitação vislumbrados, mais que pelo Sartre político, pelo filósofo existencial que sustenta o primado do indivíduo na anomia da comunidade (Sawada, 2015SAWADA, N. Comment vivre ensemble? Barthes et Sartre, communauté et rythmes. Conferência realizada no Colloque Roland Barthes da Universidade Aoyama Gakuin, no Japão, em 9 novembro de 2015. Disponível em https://www.jstage.jst.go.jp/article/littera/1/0/1_20/_pdf/-char/ja. Acesso em: 12 jul. 2023.
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, p. 29). Somem-se a estas e outras tantas equiparações possíveis as ressonâncias da vocalização do narrador de Les Mots nas notas de desolação da abertura de Roland Barthes por Roland Barthes. “Filho único e sem amigos, eu não pensava que o meu isolamento pudesse acabar”, escreve Sartre (2010, p. 9). E Barthes: “Criança, eu me entediava frequentemente e muito” (Barthes, 2002, IV, s/p). E ademais, o fato de que, na vida adulta, nunca se casaram, não constituíram família, não tiveram filhos, recusaram todos os modos de convivialidade socialmente estabelecidos para sonhar, cada um à sua maneira, Sartre heterossexual, socialista, combatente político cioso de sua própria voz e pessoa, Barthes monacal, homossexual, retraído, com ritmos pessoais de vida a contratempo.

Entre a simpatia e o questionamento está o exame que o filósofo pronto a integrar o conhecimento de seu tempo faz da assim chamada virada estruturalista, de que Barthes participa, à sua maneira. Assim, ele é, ao mesmo tempo, entusiasta e reticente quanto à roda de novos pensadores que se reúne em torno da Antropologia Estrutural de Claude Lévi-Strauss, sênior da plataforma. Em passagem pelo Brasil, em 1960, na Conferência de Araraquara, ecoava esse novo debate, a movimentar, então, os círculos culturais europeus, como contextualiza o tradutor e apresentador brasileiro da histórica palestra (Sartre, 1987aSARTRE, J. A conferência de Araraquara. São Paulo: Paz e Terra; Ed. da UNESP, 1987a.). Ao fazê-lo, apontava o seu diferencial, vendo-o, justamente, em uma maneira mais compreensiva de tomar o homem em conta. Nesse sentido, apontava as mazelas da etnografia clássica, quando dá o silvícola por objeto e o etnógrafo, por sujeito, lançando sobre ele a visão absoluta do questionador por sobre o questionado. Da mesma feita, reverenciava Lévi-Strauss, sênior da escola Barthes, por imiscuir o pesquisador em sua pesquisa, ao distinguir a existência de um pensamento selvagem próprio, isto é, a própria dimensão do Outro. Ainda assim, demarcava-se dos novos rumos tomados pela Antropologia Estrutural e ciências adjacentes, reparando a impessoalidade do manejo de sistemas de significação e códigos linguísticos por lévi-straussianos e saussurianos, ao reafirmar que “[...] é o homem como sujeito que coloca a questão sobre o homem-objeto” e que “[...] não pode haver outro fundamento para a Antropologia além do próprio homem” (Sartre, 1987a, p. 61).

Em suma, haveria mais questionamento que simpatia de parte a parte. Efetivamente, está-se falando de filosofias que se contestam fortemente, no momento da filiação das Ciências Humanas ao Estruturalismo. Trata-se, para começar, de um movimento de ideias de que decorre uma verdadeira “rage anti-sartrienne”, como entre outros aponta Marty, na apresentação do tomo segundo das obras completas, ao lembrar que Michel Foucault declina incessantemente o tópico da morte do homem. Enquanto que Barthes, mais coerente com as divisas semióticas da virada, trata da morte do autor (Marty, II, 2002). São dissoluções do humano igualmente feitas para afrontar quem pense, desde 1947, data da saída de O que é a literatura?, que: “O pensamento esconde o homem e só o homem nos interessa” (Sartre, 1948SARTRE, J. Qu’est-ce que la littérature? Paris: Gallimard, 1948., p. 41).

A geração de Barthes é reputada por fazer recair toda a cultura, inclusive todo o campo marxista das Ciências Humanas, a uma razão sígnica. Nessa troca de guarda, por mais que atenta às interpelações da subjetividade, a leitura de Barthes será fortemente balizada pelo apontamento da violência formal dos signos, donde sua famosa caça aos mitos. Isso define diferenças, de fato, aparentemente incontornáveis. A Sartre, a fenomenalidade, tal como reapresentada em O ser e o nada, advém à consciência como “ser-para-si”, sem relação com o “ser-em-si”, intocável em sua ordem. E enquanto o segundo permanece fechado dentro de suas próprias fronteiras, o primeiro contém uma abertura e ultrapassa perpetuamente seus próprios limites e a si mesmo, passando do Nada a alguma coisa. Ora, nessa passagem, introduz-se a “liberdade”, já que nada obriga o homem a “fazer mais que apenas ser”. E é dessa liberdade que vem a “responsabilidade” por tudo aquilo que se faz, assim sumariza O ser e o nada o helenista José Américo Pessanha (Sartre, 1987b, p. XI). Entra aí não apenas a autodeterminação de cada indivíduo, mas o engajamento do intelectual, que pode mudar o que há para ser mudado, donde a eterna crítica do sartrismo à sociedade capitalista.

Diferentemente, em Barthes, o homem existe na e pela palavra, a arbitrariedade da linguagem demanda a vigilância dos signos, a não assertividade, o ceticismo ativo, em suma, o “grau zero” da linguagem. Sartre é revolucionário; Barthes, neutro. Daí, por exemplo, as diferentes respostas que um e outro trazem ao movimento de Maio de 1968 (Samoyault, 2015SAMOYAULT, T. Roland Barthes. Paris: Seuil, 2015.). Contrastam aí o ágon e a apatheia. Um discursando em cima de um tonel, na Sorbonne ocupada, o outro deixando a França rumo ao Marrocos, para fugir do rumor ambiente.

3 DESENVOLVIMENTO

3.1 O ETHOS NÃO COMUNICANTE DA LITERATURA

Sem dar a questão por exaurida, quer-se, aqui, assinalar um entendimento persistente entre as partes, quando não evidente, oblíquo.

Ocasionalmente, tem-se aventado a hipótese de uma convergência Sartre & Barthes a extrair das correspondentes visões do ethos não-comunicante das grandes literaturas, vistas dos dois lados, em todas as incursões críticas, como estando em perpétuo antagonismo contra as forças conservadoras da sociedade e os ritos mitificados dos homens de letras. Repassando gestos poéticos de revolta, com seu saldo de não significância, Julia Kristeva anotou que, para Sartre como para Barthes, a literatura cessa de concernir ao homem universal para se tornar uma forma de envolvimento particular do escritor e o lugar de uma lógica particular do sentido. A “lógica particular do sentido” (Kristeva, 1996, p. 415) alude às escrituras privativas, no limite da legibilidade, em que, para ambos, o estilo deve se encerrar, para escapar da pressão externa. Gérard Genette corrobora a verificação, notando, por seu turno, que Barthes prolonga a moral sartriana da forma (Genette, 1972).

Mas até onde chegamos, não se foi suficientemente longe nessa direção para se cogitar de certa coincidência das críticas forjadas de parte a parte quando a alcançar, mais que as implicações revoltosas dos literatos, a afirmação da potência cognitiva da literatura, neste caso negativa. Os cânones poéticos de cada qual são aliás cabais demonstrações dessa negatividade, quando incorporam o pensamento não verbal de um Alain-Robbe Grillet, como em Barthes, ou de um Francis Ponge, como em Sartre. Porquanto estes artífices são particularmente donos de formas de expressão mais para intratáveis, cuja resistência ao sentido explica-se pelo afã de dar a ver o mundo sendo visto de seu próprio ângulo, que seria o das coisas inertes, ou o da fenomenalidade anterior à nomeação, ou o do “ser-em-si”. É esse o projeto irônico que Sartre aprecia no antilírico Francis Ponge, em artigo pioneiro na revista Les Temps Modernes, depois inserido na primeira leva de em Situations, sob o título L´homme et les choses, onde lemos que “a noção da palavra-coisa parece essencial em Ponge” (Sartre, 2005, p. 17). E é esse o malentendido salutar que Barthes enaltece em um dos primeiros reconhecimentos do nouveau roman, em capítulos dos Essais Critiques como “Littérature objective”, cujo título denota a renúncia da modernidade literária às pretensões do dizer. Onde lemos que “[...] os objetos de Robbe-Grillet são feitos simplesmente para figurar enquanto tais. Toda a arte do autor é a de conceder ao objeto um ser/estar-aí [être-là]” (Barthes, 2002, II, p. 295). Atestados disso são também os itinerários nauseantes, entre o Ser e o Nada, das personagens de ficção de Sartre, como emblematicamente Roquentin, e a indecisão de Barthes tardio sobre ser ou não ser um romancista.

Nesse sentido, o ponto de inflexão aqui é: de O que é a literatura? até O grau zero da escritura, passando por todas as obras esparsas em que se trata de escritores e escritura e pelos conjuntos constituídos por Situations e Essais Critiques, são as razões críticas que confluem, marcadas que estão pelo mesmo sentimento de despersonalização do sujeito falante ou escrevente envolvido nas operações alienantes da comunicação. Donde as relações do escritor com o leitor serem tão tensas quanto as descritas no capítulo Para quem se escreve? de O que é a literatura?, e estarem tão arruinadas para o Barthes do capítulo Escrever, verbo intransitivo de O grau zero da escritura.

Diga-se de passagem que é essa uma crise que atinge, em Sartre como em Barthes, o domínio da comunicação visual. Posto que, nos dois casos, as imagens - notadamente as fotográficas, que entram no âmbito de uma comum paixão inusitada -, perdem ou ganham força na medida mesma de sua relação à linguagem. Ou dito de outro modo: estão menos ou mais perto do “ser-para-si”, que anima a fenomenalidade inerte, conforme estejam menos ou mais recobertas pela capa reativa da linguagem. Considerando-se que, do Sartre de O imaginário ao Barthes de A câmara clara, tudo o que a imagem não é, se for imagem, é precisamente isto: palavra. Assim, as razões sartrianas pelas quais Bresson é fotógrafo são rigorosamente as mesmas razões barthesianas pelas quais cada fotograma do álbum A câmara clara é pungente, e não inócuo, ou punctum, não studium.

O studium é o pitoresco, o turístico, toda essa moralidade típica do mito e da má literatura que, segundo Barthes, está na mira de todos esses fotógrafos que se agitam pelo mundo, em busca da atualidade. O punctum é a ferida, a flecha, os “[...] pontos sensíveis que vêm perturbar o studium” (Barthes, 2002, V, p. 809). Ora, é a exata mesma pegada que Sartre distingue em Bresson, ao debruçar-se sobre suas explorações fotográficas. Impressiona-o que não haja reportagem, falatório, pilhagem cultural no fotógrafo do “instante decisivo”. Mais que isto, agrada-lhe que não haja atitude etnográfica, para voltar a ela, da parte do observador relativamente ao observado. “Na origem do pitoresco está a guerra e a recusa de compreender o inimigo” (Sartre, 1964, p.7), lemos em sua célebre apresentação do álbum bressoniano D’une Chine à l`autre. Ressalta, aí, no negativo, o punctum bressoniano.

Tratar de tais confluências intertextuais pede que se passe a uma tarefa por ora não realizada: a da confrontação da índole das críticas literárias mesmas.

3.2 A CONSCIÊNCIA INFELIZ

Note-se, preliminarmente, que, no ponto forte dos embates da nouvelle critique com a Sorbonne, de que é o protagonista, Barthes é o primeiro a reivindicar o modelo da crítica sartriana. Então, em Critique et vérité, ele separa o que chama “as duas críticas” francesas que vê, em ação, no meio século XX, distinguindo, de um lado, uma crítica que reputa “[...] ideológica, universitária e positivista”, e que remete à figura protocolar de Gustave Lanson. De outro lado, uma crítica “[...] da interpretação” (Barthes, 2002, II, p. 496), quer dizer, da busca do sentido, que remete a figuras como as de Lucien Goldmann, Jean Starobinski, Georges Poulet e Jean-Paul Sartre. Nesse rol, Sartre é o único francês.

Isso posto, a observação desarmada mostra que é possível aproximar o novo crítico do velho mâitre à penser já pelas respectivas maneiras de assinalarem a “conscience malheureuse” da literatura moderna, para lançar mão dessa expressão, inicialmente, indicativa da ciência da não transcendência do “para si”. Nos discursos críticos de Sartre como no de Barthes, que a relança sem créditos para a ontologia sartriana, ela passa a indicar a literatura que se sabe linguagem, e a linguagem impossível de ser continuada modernamente, embora deva continuar, sem que se interrogue a si mesma a respeito de seus limites, suas operações de significância, sua instrumentalização pelo leitor burguês. É o que se pode ler de mais fundamental nas aberturas de O que é a literatura? (Sartre, 1948) e O grau zero da escritura (Barthes, 2002, I). De fato, nos dois casos, a “consciência infeliz” é instanciadora. Nos dois casos, escrever é confrontar-se à opacidade das “palavras-objeto”, na “utopia” de fazê-las dizer o que não pode ser dito. Sendo igualmente de Sartre (1948, p. 104) e sem ser tampouco creditada, a nomenclatura “palavras-objeto” e “utopia” está recuperada em Barthes (2002, I, p. 196). O que o mostra tão disposto quanto Sartre a entender a literatura como um escrever “contra” ou como forma suprema de contracomunicação, ainda que diferentes possam ser os engajamentos. “Para não ser um parasita da elite dirigente o escritor deve escrever para um público que tenha a liberdade de tudo mudar”, pondera Sartre (1948, p. 89). Ao que replica Barthes: “[...] o estilo é uma forma sem destinação... é como uma dimensão vertical e solitária do pensamento” (Barthes, 2002, I, p. 178).

Debruçando-se sobre a gravidade dessas verificações, Kristeva chama a isso “senso da revolta”. Para melhor mensurá-lo, o alinha à clamorosa recusa do Prêmio Nobel por Sartre, em 1964SARTRE, J. Préface à Henri Cartier Bresson D’une Chine à l`autre. In: SARTRE, J. Situations V. Paris: Gallimard, 1964.. Retranscreve o argumento da missiva que faz chegar a Estocolmo: “Todas as distinções que possa receber expõem um escritor e seus leitores a uma coação indesejável. Não é a mesma coisa se assino Jean-Paul Sartre ou Jean-Paul Sartre, prêmio Nobel” (Brochier, 1995 apud Kristeva, 1996, p. 315). Comenta-o nos termos de O que é a literatura?: “Sartre se revolta contra o bem-pensar burguês [...] teme que seu passado de rebelde, principalmente na guerra da Argélia, seja apagado pela honraria” (Ibid.). Sublinha que, no seu entender, o escritor deve permanecer infenso a todo aplauso institucional, a qualquer possibilidade de ser transformado em instituição.

Tal gesto, que Albert Camus não repetiria, em 1957, acatando o poder da láurea, ampara-se na rejeição do autor autorizado pela moral do heroísmo, na convicção de que o nome de um escritor já não será mais o mesmo se acrescido das sugestões significantes da homenagem que lhe é feita pela sociedade que o adere a si. Kristeva toma a providência de transcrever a missiva enviada a Estocolmo pelo filósofo, e de comentá-la: “Sartre se revolta contra o bem-pensar burguês [...] teme que seu passado de rebelde, principalmente na guerra da Argélia, seja apagado pela honraria” (Kristeva, 1996, p. 322). Sublinha que, no seu entender, o escritor deve permanecer infenso a todo aplauso institucional, a qualquer possibilidade de ser transformado em instituição.

O gesto, que Albert Camus não repetiria, em 1957, radica na liberdade responsável de rejeitar as sugestões significantes de uma homenagem que vem da sociedade que adere o escritor a si. Nesse sentido, é barthesiano. O acréscimo indesejável ao nome a que a carta de Sartre faz menção nada mais é que a ultrassignifição que Barthes também vê atuar nas retóricas míticas. Na esquiva sartriana, está toda a discrepância barthesiana quanto à mistificação do autor pela cultura pequeno-burguesa. Por exemplo, a denúncia que ele faz, a certa altura de Mitologias, de tautologias críticas do tipo “Racine é Racine” (Barthes, 2002, I, p. 745). É essa mesma extensão do significado que, em Roland Barthes por Roland Barthes, reaparece sob o aspecto do clichê de linguagem, sendo redesignada “Doxa”, “Opinião Pública”, “Espírito Majoritário”, “Consenso Pequeno-Burguês”, “Voz do Natural”, “Violência do Preconceito” (Barthes, 2002, IV, p. 627). O Sartre (1948, p. 89) de O que é a literatura? a chamou de “má fé”, falseamento da responsabilidade, no caso, quanto à palavra mesma. O escritor moderno que mais se revoltou contra o rumor da palavra foi Flaubert. Certamente, nos dois casos, é pela indisposição de ambos em relação à idée recue que Flaubert interessará.

Transversalmente, outras peças de convicção que se poderia trazer a campo são estas duas belas exegeses poéticas, em princípio incomparáveis, que são Saint Genet, comédien et martyr (Sartre, 1951) e a tríptico Sade, Fourier et Loyola (Barthes, 1971BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Paris: Seuil, 1971.). Distantes no tempo de 20 anos e versando, uma delas sobre um maldito da modernidade avançada, a outra, sobre um trio heterogêneo de antigos, todos criadores de sistemas e línguas próprias, desponta aí, à releitura, um interessante paralelismo. Em sua controvérsia heroica com o mundo externo - filho de prostituta, pai desconhecido, homossexual, ladrão, militante, escritor -, o Genet de Sartre encerra em si, de uma só feita, o perverso, o utopista e o santo de Barthes.

De seus autores, Barthes dirá que são “irrespiráveis”, pensando com isso que nenhum deles pratica uma “língua da comunicação”. Já que, por mais que possam ser diferentes em suas obsessões, sádicas, místicas ou jesuíticas, igualam-se por suas “ordens inflexíveis de classificação”, todas feitas para “ofender”, de algum modo, o discurso articulado. Assim, Fourier narra um homem dividido em 1620 paixões combináveis, Sade distribui o gozo como palavras na frase, Loyola fragmenta o corpo do homem como decupa o relato crístico (Barthes, 2002, III, p. 701, 702). Ora, Sartre não pensa outra coisa do potencial estilisticamente subversivo da abjeção de seu Sade novecentista. “Quis aqui provar que o gênio não é um dom mas a saída que se inventa nos casos desesperados” (Sartre, 1952, p. 47), assim começa a preparar o espírito do leitor de Saint Genet, comédien et martyr para a sua defesa do indefensável. Na seção A literatura e o mal dedicada a Genet, em que repassa todo o tratado sartriano, Georges Bataille reconhece e aplaude o senso da “nulidade” e da “negatividade” (Bataille, 1957BATAILLE, G. La littérature et le mal. Paris: Gallimard, 1957., p. 127) que faz um filósofo poder dar direito de cidade a livros “monstruosos”, como quem prefacia Pascal ou Voltaire para uma coleção de Grandes Escritores Franceses.

3.3 REVOLTAS E REVOLTAS

Outra prova indireta dos nexos, aqui em consideração, é aquela oferecida pelos textos de Sartre e Barthes em que se verte seu comum desentendimento com um Albert Camus posterior a L´Étranger, que passa a colocar a comunidade e logo a comunicabilidade acima do indivíduo, crime de lesa-idiorritmo. São conhecidas dos estudiosos as simpatias iniciais e as rupturas finais do sartrismo e do barthesianismo em relação ao nobelizado escritor. A primeira é particularmente ruidosa no âmbito da vida intelectual francesa dos meados do século XX. Amigos e correligionários, Sartre e Camus desentendem-se em 1951, data da publicação de O homem revoltado, de Camus, a propósito do que seja o verdadeiro espírito revolucionário. Ao Sartre de Situations impressionava “[...] a pluralidade dos instantes incomunicáveis” de O Estrangeiro (Sartre, 1947, p. 117). Mas já não impressionam os juízos universais de valor que fazem Camus diferenciar a revolta positiva, que se efetua em nome de alguma causa em que todo homem pode se reconhecer, e a revolta negativa, que se desvirtua pela ausência desse sufrágio maior. Exemplos desta segunda são para Camus as revoluções e derramamentos de sangue que as esquerdas defendem, inclusive as revoluções comunistas, que seriam outras tantas violências, feitas para terminar na tirania. Como sujeito engajado, que se situa de um dos lados da Guerra da Argélia, Sartre (1964) verá aí, e o fará dizer em Les Temps Modernes, o tipo mesmo de reflexão que trai o intelectual tradicional desencarnado, a contemplar à distância e de cima uma História que não frequenta, mas justamente sobrevoa.

Já Barthes, que tinha começado por acusar o impacto de L’Étranger, em 1942, e escrito sobre o livro, em seus anos de sanatório, antes de inscrevê-lo no capítulo A escritura e o silêncio de O grau zero da escritura, vai associar O homem revoltado ao mesmo clima geral de harmonia política que vê prosperar em A peste (Calvet, 1993CALVET, J. Roland Barthes: uma biografia. Trad. de Maria Angela Vilela da Costa. São Paulo: Siciliano, 1993., p. 67). Antes disposto a ver no primeiro Camus a utopia de uma “[...] linguagem neutra, erguida no meio dos gritos e julgamentos, sem deles participar”, e realizando “[...] um estilo da ausência que é quase uma ausência ideal do estilo” (Barthes, 2002, I, p. 217, 218), como temos em O grau zero da escritura, agora o vê deslizar do huis clos trágico de O estrangeiro para o arranjo político, tal como alegorizado pela cidade sitiada que resiste ao mal. Nesse caminho, vai bater na mesma tecla de Sartre, acusando a reconversão do absurdo em álibi filosófico. Quanto mais os médicos e enfermeiros se movimentam, na ação do romance, sem saber exatamente contra o que lutam, mas certos de si - lemos nos Essais Critiques -, mais isso pede a caução de uma finalidade, e mais a solidão, antes intratável, passa a afirmar os valores humanistas da bondade e da socialidade (Barthes, 2002, I). Dos dois lados, a crítica incide sobre a isenção olímpica do filósofo, a impessoalidade da voz, a dor sem sujeito.

Termine-se com a confluência desvelada pelo tratos de Flaubert. Sem que tenha dedicado todo um livro a este estilista obsessivo, diferentemente de Sartre, que lhe terá devotado as cerca de três mil páginas do assim mesmo inacabado O idiota da família, Barthes está, desde sempre, fixado no autor de Bouvard e Pécuchet. Testemunhos eloquentes disso são, não apenas a menção que lhe faz, antes mesmo de tocar em Mallarmé, na abertura de O grau zero da escritura, a propósito do escritor da “consciência infeliz” que escolhe “engajar sua forma” - “[...] a Literatura inteira, de Flaubert a nossos dias, tornou-se uma problemática da linguagem” (Barthes, 2002, I, p. 172) -, mas a presumível convergência entre as intenções do neutro e as das muitas aspas com que o Dictionnaire des idées reçues circunda o lugar-comum.

Nos dois casos, é da palavra que se trata. Assim, em sua perseguição ao homem Flaubert, o livro de Sartre desencadeia-se a partir de um incipit em torno das dificuldades dramáticas do escritor com a alfabetização. Menino, o futuro célebre autor de Madame Bovary é um estudante-problema, com dificuldades de alfabetização, que faz figura de retardado na escola e em casa. Evidencia-se, desde sempre, para Sartre, na experiência deste idiota de gênio, a decalagem “da existência e do Verbo”. Essa má relação com as palavras decidirá sobre o escritor, como lemos no capítulo A constituição do tomo primeiro desta obra monumental. É a partir dessa pré-história da criança, em que as palavras são sentidas por ela como lhe sendo “outras”, que o filósofo avançará para a história inconclusiva das relações do adulto com a verbalidade, começando por notar que são simplesmente suscetíveis de estabelecer “o sentido do estilo em Flaubert” (Sartre, 1971, p. 50). Esse estilo torturado e torturante que ruma para o desfecho do Dicionário das ideias feitas, verdadeira antologia da altercação do mundo e da língua.

Termine-se com duas últimas coincidências, aqui forçosamente apenas afloradas. Primeira: as críticas de Sartre e Barthes incidem principalmente sobre literaturas de grandes prosadores. O próprio Ponge, que tanto está na mira de Sartre, chama a seus poemas “proêmes” (Ponge, 1948PONGE, F. Le parti pris des choses, suivi de Proêmes. Paris: Gallimard, 1948.), com isso visando, mais que a preliminaridade do proêmio latino, à confusão moderna dos gêneros. Não é que deixem escapar a poesia; é que não lhes interessa poesia que não esteja, como a de Mallarmé vista do prisma de O grau zero da escritura, ou a de Ponge vista do ângulo das primeiras Situations, nas mesmas condições dramáticas da prosa. O resto é literatura. Disso tratam preliminar e terminantemente a seção O que é escrever? de O que é a literatura? e a seção Existe uma linguagem poética? de O grau zero da escritura.

Segunda: estamos diante de filosofias da significação que têm a comum virtude de envolverem arguições à suficiência da palavra em plena era das iconoclastias novecentistas autossatisfeitas, que não cessam de apontar o engano das imagens, enquanto deixam o verbo a salvo. Se A câmara clara volta a Sartre, é para sustentar corajosamente que as imagens, inclusive as mecânicas, podem ser, e são, conscientes do mundo, sem o suporte dos signos.

4 CONCLUSÃO

Quis-se aqui ir além das habituais associações entre Barthes e Sartre que têm vigorado desde as sugestões lançadas pelo editor das obras barthesianas completas, Éric Marty, que as limita no tempo e as reduz a frequentações e intertextualizações. Até pela importância de que se revestem ambas as figuras de intelectuais públicos de que se trata, guiou-nos o propósito de uma abordagem intertextual mais ampla e metódica dos respectivos corpora crítico-literários e acercamentos à palavra. O que evidenciou que, para ambas, a existência contingente e o arbitrário do signo são faces da mesma moeda. A consciência infeliz é autopoética.

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Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2023
  • Aceito
    26 Nov 2023
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