Acessibilidade / Reportar erro

Avaliação propedêutica da dispnéia crônica de etiologia indefinida: desafios atuais

CARTAS AO EDITOR

Avaliação propedêutica da dispnéia crônica de etiologia indefinida: desafios atuais

Sra. Editora:

Bersácola et al. apresentaram recentemente, neste periódico, seus achados relativos a uma investigação prospectiva em 90 indivíduos com "dispnéia crônica de causa indeterminada", encaminhados estes a um serviço terciário de Pneumologia(1). Os autores concluíram que o protocolo utilizado "resultou no diagnóstico de 91% dos casos: espirometria, testes para HRB (hiper-responsividade brônquica) incluindo medidas de PFE (pico de fluxo expiratório), ecocardiograma e TCPex (teste cardiopulmonar de exercício) são essenciais para a investigação". A relevância clínica de tal tema, assim como os louváveis esforços dos autores em reunir tal casuística, devem ser, de imediato, reconhecidos.

Entretanto, sob a ótica de estimular o saudável debate científico em nosso meio, cremos ser de real importância tecer alguns comentários acerca da citada comunicação:

1.O elevado rendimento diagnóstico do protocolo foi, ao nosso ver, decisivamente influenciado pelos critérios de inclusão. Exemplificando, o conceito de dispnéia de origem indeterminada e os critérios 4 (doença presente, porém desproporcional ao grau de dispnéia) e 5 (múltiplas causas possíveis presentes simultaneamente) relacionam-se de forma controversa e subjetiva. Tal assertiva é particularmente verdadeira ao notarmos que os autores não forneceram uma análise comparativa entre os achados clínicos e os escores de dispnéia(2): "desproporcionalidade"ou "multicausalidade" foram então definidos subjetivamente (tanto numa base intra como interobservador). Adicionalmente, dispnéia superior a 30 dias sugere, em alguns pacientes, um quadro subagudo, o que seguramente aumentaria a prevalência de HRB. Ainda neste mesmo contexto, a significativa história mórbida pregressa de muitos indivíduos parece-nos suficiente para caracterizar um diagnóstico, ao menos, sindrômico. Logo, os critérios 4 e 5 podem realmente ter sido as principais indicações de inclusão e, ao nosso ver, a investigação teve um caráter essencialmente comprobatório da impressão diagnóstica inicial - o que influencia as conclusões práticas sobre o estudo.

2.Os autores afirmam que um protocolo "sistemático" foi utilizado, o que pressupõe uma hierarquia rígida na indicação dos testes (sugerida nos Métodos). Entretanto, "teste especial" como a mensuração da DLCO (fator de transferência) foi utilizado em 70 indivíduos. Isto contrasta com a prevalênciado uso do TCPx (n = 52), um teste com indicações muito mais liberais pelo protocolo. Considerável número de indivíduos também realizaram outros "testes especiais" como mensuração da Pimáx (n = 48) e tomografia computadorizada (n = 25). Estes dados sugerem duas alternativas: em muitos indivíduos uma investigação mais aprofundada foi necessária (o que merecia uma conclusão mais cautelosa quanto ao rendimento diagnóstico isolado dos "testes básicos") e/ou o seguimento do protocolo não foi rigidamente padronizado (o que é consistente com uma investigação direcionada).

3.A importância prática de um estudo com estas características depende crucialmente da relação custo-benefício e do nível de sofisticação propedêutica necessária para a obtenção da impressão diagnóstica (i.e. até que ponto, e a que custo, o clínico necessitou avançar para obter um diagnóstico etiológico que se mostrou finalmente útil ao paciente). Tais aspectos foram largamente ignorados na citada comunicação.

4.Especificamente em relação ao TCPx, o denominador correto para aferir a sua utilidade é o número de testes realizados (n = 52, incluindo os 2 testes submáximos), e não o total de indivíduos (já que o teste não foi empregado em 38 participantes por uma contingência do protocolo). A conclusão de que o mesmo foi válido sobretudo "para o diagnóstico de doença cardíaca e afastar outras causas" deve ser visto à luz das peculiaridades metodológicas do estudo: o TCPx foi realizado apenas após a avaliação espirométrica e investigação de HRB e PFE. Dessa forma, de acordo com a teoria Bayesiana, a baixa prevalência pré-teste de distúrbio potencialmente indutor de limitação ventilatória (LV), independente da razão de probabilidade do TCPx (sensibilidade/1-especificidade), reduziu a probabilidade pós-teste em detectar LV. Na realidade, 10/12 indivíduos com LV apresentavam distúrbio subjacente capaz de induzi-la e o teste apresentou elevado valor preditivo negativo para excluí-la. Outrossim, é altamente questionável o uso isolado da relação Vemáx/VVM estimada (VEF1 x 40) no diagnóstico de LV; entre outros aspectos, nós demonstramos recentemente que a relação VEF1-VVM não passa pela origem, possuindo significante intercepto em y(3). Novos índices submáximos(4), a análise da alça fluxo-volume durante o exercício(5) e o comportamento dinâmico durante a fase incremental(6) têm sido propostos para o diagnóstico dos distúrbios fisiopatológicos sublimitantes (constraints), i.e., os distúrbios básicos que impedem a progressão da atividade até os limites operantes máximos do sistema cardiorrespiratório. Caracterizar tal "contenção" ao invés da "limitação" parece-nos ser a tarefa mister do TCPx no âmbito clínico(6,7). Adicionalmente, dois pontos básicos devem ser ressaltados: a) o protocolo utilizado foi inadequado para a detecção de broncoespasmo-induzido-por-exercício (embora parecer ser lógica a utilização prévia de testes para HRB) e b) o critério empregado para caracterizar hiperventilação (pressão expiratória final de dióxido de carbono - PEFCO2 - < 34mmHg) carece de fundamentação fisiológica: tanto um limiar anaeróbio parece (ao impedir o alcance do valor assintótico da PEFCO2 ao nível do tamponamento isocápnico), como a redução do Te (amputação precoce da fase inclinada - ou "alveolar" - do capnograma) induzem a valores artificialmente baixos da PEFCO2(7). A complexa e dinâmica interação entre os valores arterial e expiratório final de CO2 durante o exercício incremental não pode absolutamente ser resumida pela fórmula utilizada (PaCO2, mmHg - PEFCO2 - 4)(7).

5.Nós demonstramos recentemente em um estudo prospectivo (60 homens e 60 mulheres entre 20 e 80 anos), obtidos randomicamente em nosso meio a partir de 8.000 indivíduos(8,9), que o uso de pontos-de-corte fixos para os limites da normalidade(10) e equações estrangeiras preditivas do consumo máximo de oxigênio (VO2máx)(11) - ambas empregadas no artigo em questão - induzem a imprecisões substanciais na interpretação clínica do TCPx. As figuras ilustram tais assertivas em relação aos dois principais parâmetros aeróbios (VO2máx e limiar anaeróbio).

Em suma, o emprego judicioso dos recursos propedêuticos na identificação da dispnéia (efetivamente) inexplicada pela rotina básica (exame clínico, radiograma de tórax, espirometria e ECG de repouso), deve ser visto localmente sob a luz da relação custo-benefício e da análise seqüencial de sensibilidade de cada teste, ambas sob rígido protocolo. O valor semiótico do TCPx está longe de ser totalmente exaurido e seu potencial como valioso teste de triagem e direcionamento diagnóstico está em plena fase de expansão. Embora os resultados de Bersácola et al.(1) não sejam totalmente inconsistentes com a perspectiva atual do tema, cremos que os mesmos devam ser vistos com a máxima cautela, em vista das importantes restrições acima delineadas.

Mui, cordialmente,

J. Alberto Neder

Honorary Fellow (Postdoctoral Visiting Scientist)

Department of Physiology

St. George's Hospital Medical School

University of London, UK

RESPOSTA

Nosso estudo é clínico, foi feito no mundo real e deve ser visto nesta perspectiva. Obviamente não é perfeito, não esgota o assunto, mas é um avanço em relação aos três grandes estudos feitos a respeito(1-3).

Um protocolo foi aplicado, contendo um questionário e roteiro de exame físico. Com base na literatura e na experiência prévia, é consenso que o teste de broncoprovocação deve ser o primeiro exame a ser aplicado, se a espirometria for inconclusiva. Pacientes com HRB serão imediatamente tratados e não vemos porque um teste de exercício deva ser feito, embora possa revelar limitação ventilatória em alguns casos.

A investigação será portanto considerada direcionada em qualquer estudo desta natureza.

Os critérios de inclusão não foram subjetivamente aplicados, como infere o autor da carta. A dispnéia foi avaliada por uma escala categórica e o critério 4 é claro: foram incluídos casos com anormalidades radiológicas focais ou com distúrbios espirométricos discretos e dispnéia acentuada (pelo escore).

Múltiplas causas possíveis são relativamente comuns, como associação de obesidade e hipertensão ou de dados clínicos que sugerem hiperventilação ou HRB. A presença destes achados entretanto não é conclusiva para o diagnóstico. Antecedentes de cardiopatia não foram mais freqüentes naqueles com ou sem diagnóstico final de doença cardíaca. Asma no passado não foi mais freqüente naqueles com diagnóstico final de asma. Sintomas de HRB foram mais comuns naqueles com diagnóstico final de asma/HRB, mas também estavam presentes numa proporção significativa naqueles sem asma/HRB; o valor preditivo portanto é insuficiente para que o questionário ou "achados sindrômicos" façam o diagnóstico.

O que o autor da carta parece sugerir como seleção para estudo seriam pacientes sem nenhum dado de história, exame físico, etc. que sugira alguma etiologia.

A difusão foi aplicada freqüentemente porque se correlaciona com a dessaturação de exercício e como gasometria ao final do exercício não foi programada de rotina, o achado de difusão normal poderia sugerir ausência de distúrbio de troca gasosa importante, embora correlação entre os testes não seja perfeita.

O "protocolo de exercício foi inadequado para detecção de broncoespasmo" - Como relatado na literatura e referido na discussão, o teste de broncoprovocação é mais sensível para detecção de HRB e não vemos sentido em fazer teste de exercício com esta finalidade.

"O critério empregado para caracterizar hiperventilação (PEFCO2 < 34mmHg) carece de fundamentação fisiológica"...

Os valores de repouso para PEFCO2 variam entre 36 a 42mmHg; aumenta de 3 a 8 durante exercício leve a moderado; a diferença arterial - expiratório final no LA = -3 ± 3mmHg. Subtraindo-se 2 DP desta diferença resulta em que um valor arterial de 30mmHg (utilizado para definir hiperventilação) corresponderia a 33mmHg no PEFCO2(4). Em nosso estudo, de fato o PEFCO2 no LA se correlacionou de maneira significativa com o VE/VCO2 no LA (r = -0,73, p < 0,001); ventilação excessiva é caracterizada na literatura por relação VE/VCO2 acima de 35 no LA. Este valor corresponde a 33mmHg pela regressão linear observada em nossos dados. Consideramos que VE/VCO2 > 35 e PEFCO2 £ 33mmHg como indicadores de hiperventilação a partir destes dados. Finalmente o autor da carta faz considerações a respeito de seus dados obtidos como valores de referência para o teste de exercício como os mais apropriados ao invés dos utilizados em nosso estudo. Concordamos inteiramente. O estudo do Dr. Neder é provavelmente o melhor referencial na literatura a este respeito, porém na época de nosso trabalho estes valores não eram disponíveis, bem como a aplicação dos achados na fase incremental do início do exercício. Nossa casuística ampliada está sendo recalculada com base nestes dados para posterior publicação.

Reiteramos que concordamos que o assunto não está encerrado e contribuições levando em conta as dificuldades que nós clínicos encontramos na prática diária sempre serão de interesse.

Carlos Alberto de Castro Pereira

  • 1. Bersácola SH, Pereira CAC, Silva RCC, Ladeira R. Dispnéia crônica de causa indeterminada: avaliação de um protocolo de investigação em 90 pacientes. J Pneumol 1998;24:283-297.
  • 2. Brooks SM. Task group on surveillance for respiratory hazards in the occupational setting. Surveillance for respiratory hazards. ATS News 1982;8:12-16.
  • 3. Neder JA, Andreoni S, Nery LE. References values for lung function tests (with a note on physical fitness: II. Maximal respiratory pressures and voluntary ventilation. Braz J Med Biol Res 1999, in press.
  • 4. Medoff BD, Oelberg DA, Kandrek DJ, Systrom DM. Breathing reserve at the lactate threshold to differentiate a pulmonary mechanical from cardiovascular limitation to exercise. Chest 1998;113:913-918.
  • 5. Johnson BD, Saupe KW, Dempsey JA. Mechanical constraints on exercise hyperpnea in endurance athletes. J Appl Physiol 1992;73:874-886.
  • 6. Neder JA, Nery LE, Andreoni S, Whipp BJ. Establishing reference values for the dynamic responses to ramp incremental cycle ergometry. Eur Respir J 1998;12:S426.
  • 7. Whipp BJ. The bioenergetic and gas exchange basis of exercise testing. Clin Chest Med 1994;15:173-192.
  • 8. Neder JA, Nery LE, Castelo A, Sachs A, Silva AC, Whipp BJ. Normal values for clinical exercise testing: a prospective and randomized study. Am J Respir Crit Care Med 1998;157:A89.
  • 9. Neder JA, Nery LE, Castelo A, Andreoni S, Peres CA, Sachs A, Lerario MC, Silva AC, Whipp BJ. Prediction of metabolic and cardio-pulmonary responses to maximum cycle ergometry: a randomized study. Submitted to Eur Respir J 1998.
  • 10. Weisman IM, Zeballos J. An integrated approach to the interpretation of cardiopulmonary exercise testing. Clin Chest Med 1994;15:421-445.
  • 11. Hansen JE, Sue DY, Wasserman K. Predicted values for clinical exercise testing. Am Rev Respir Dis 1984;129(Suppl):S49-S55.
  • 12. Reinhard V, Muller PH, Schmulling R-M. Determination of anaerobic threshold by the ventilation equivalent in normal individuals. Respiration 1979;38:36-42.
  • 13. Beaver WL, Wasserman K, Whipp BJ. A new method for detecting the anaerobic threshold by gas exchange. J Appl Physiol 1986;60: 2020-2027.
  • 1. Pratter MR, Curley FJ, Dubois J, et al. Cause and evaluation of chronic dyspnea in pulmonary disease clinic. Arch Intern Med 1989;149:2277-2282.
  • 2. De Paso WJ, Winterbauer RH, Lusk JA, et al. Chronic dyspnea unexplained by history, physical examination, chest roentgenogram, and spirometry. Analysis of a seven-year experience. Chest 1991;100:1293-1299.
  • 3. Martinez FJ, Stanopoulos I, Acero R, et al. Graded comprehensive cardiopulmonary exercise testing in the evaluation of dyspnea unexplained by routine evaluation. Chest 1994;105:168-174.
  • 4. Wasserman K, Hansen JE, Sue DY, et al. Normal values. In: _________ Principles of exercise testing and interpretation. 2nd ed. Philadelphia: Williams & Wilkins, 1994;126.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 1999
Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Departamento de Patologia, Laboratório de Poluição Atmosférica, Av. Dr. Arnaldo, 455, 01246-903 São Paulo SP Brazil, Tel: +55 11 3060-9281 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: jpneumo@terra.com.br