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Percepção ou apercepção delirante?

Delusional perception or apperception?

COMENTÁRIO

Percepção ou apercepção delirante?

Delusional perception or apperception?

Márcio Amaral

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psiquiatria (Ipub/UFRJ)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Márcio Amaral Instituto de Psiquiatria da UFRJ Avenida Venceslau Brás, 71, Fds Campus da Praia Vermelha 22295-140 Telefone: (21) 2295-2549 E-mail: marcioamaral_ipub@hotmail.com

O que mais se espera de qualquer denominação científica é que guarde uma relação muito próxima com o conceito que a gerou e também com o fenômeno que foi conceituado. Além disso, espera-se que esse tipo de denominação ofereça indicações quanto às principais características de um fenômeno, de maneira a permitir boas associações e inferências.

Esse não nos parece ser o caso das percepções delirantes, descritas por K. Jaspers1 e revistas por K. Schneider2, uma vez que sempre que apresentamos seu conceito a iniciantes somos obrigados a fazer a ressalva de que: apesar do que é sugerido pela denominação, sua caracterização não é associada a qualquer anormalidade no funcionamento da capacidade sensoperceptiva daquele que a apresenta.

Aquilo que vamos tentar demonstrar é que a manifestação assinalada refere-se à apercepção e não à percepção e também que a nova denominação aqui proposta é amplamente reforçada por achados recentes da neuropsicologia.

OS TRÊS MOMENTOS DA TOMADA DE CONSCIÊNCIA DO MUNDO EXTERIOR

A distinção bem clara entre os três momentos que implicam a tomada de consciência do mundo exterior foi realizada por W. Wundt, em 18743:

1. Sensação: associada à captação de estímulos ainda não diferenciados (comprimento de onda e intensidade do estímulo, no caso da luz).

2. Percepção: implicando a organização dos estímulos em formas mais ou menos definidas.

3. Apercepção: atribuição de significado ao percebido e compreensão da cena ou situação.

Quando cotejamos o conceito da assim chamada percepção delirante com o de apercepção, conforme se pode ver abaixo, chegamos a nos surpreender que a relação entre os dois tenha sido, até hoje, ignorada uma vez que ambas se referem à atribuição de significado:

"Fala-se de uma percepção delirante, quando a uma percepção real se atribui, sem motivo emocional ou racionalmente compreensível, um significado anormal... no sentido da auto-referência" 2.

"Apperception: awareness of the meaning and significance of a particular sensory stimulus as modified by one's own experiences, knowledge, thoughts and emotions" 4.

Jaspers conhecia bem a obra de Wundt e não tinha dela uma impressão muito favorável, considerando-a "antiquada em muitos aspectos"1. Apesar de não discutir o tema em sua obra, é muito provável que ele simplesmente não aceitasse aquela divisão proposta pelo fundador da psicologia fisiológica e até mesmo a própria existência da apercepção, conceito inicialmente formulado por Leibniz.

Os transtornos ocorridos em uma função qualquer costumam oferecer enormes subsídios ao estudo dessa mesma função. No caso da apercepção, a investigação neuropsicológica das agnosias fez muito mais, pois serviu até mesmo para validar a existência da própria função. Foram bem caracterizadas as agnosias associativas, nas quais é observada a incapacidade de assinalar o significado de objetos, animais ou prédios, apesar da preservação da capacidade de descrever e copiar suas imagens5. Foram descritas também as agnosias aperceptivas (ou visuoespaciais) nas quais, além da impossibilidade da atribuição de significados, observa-se uma incapacidade de reproduzir imagens.

Sem desmerecer esse reforço advindo das pesquisas neuropsicológicas, diríamos que o próprio fenômeno para o qual propomos a denominação apercepção delirante seria suficiente para essa demonstração, uma vez que implica uma dissociação profunda entre a percepção e a apercepção. Estamos convencidos, além disso, de que é hora de toda a fenomenologia ser submetida a uma crítica à luz das mais recentes descobertas da neuropsicologia.

O FENÔMENO E SUA IMPORTÂNCIA SEMIOLÓGICA

As duas questões que devemos tentar responder em relação às até hoje denominadas percepções delirantes são se o fenômeno existe e, em caso afirmativo, se tem alguma importância semiológica. Vejamos um exemplo:

"Ao entrar hoje em minha casa, encontrei uma garrafa de vinho tinto espatifada em uma grande poça de vinho. Toda minha angústia e depressão dos últimos tempos foram esclarecidas naquele mesmo instante... Aquilo que acabava de ver me revelou tudo. Vão me aniquilar. Vão acabar com a minha vida, rompendo-a, como fizeram com a garrafa, até me dessangrar" 6.

As duas principais características mais especificamente relacionadas ao fenômeno (e que o distinguem da atividade delirante em geral) estão aqui muito bem representadas: significado sem qualquer relação lógica com a percepção e revelação autorreferente imediata e sem qualquer encadeamento de ideias como condição para a certeza decorrente.

Dessas duas características, a primeira é aquela que mais costuma chamar a atenção e à qual mais se tem dado importância, mas nela nos parece haver alguma fragilidade. No caso citado, basta um pouco mais de imaginação para que associemos simbolicamente o vinho ao sangue, como já foi sobejamente feito, para que o critério sofra um abalo. Um esforço nesse sentido foi levado a efeito por Conrad7, o qual criticou seus mestres por haverem "capitulado ante a incompreensibilidade da percepção delirante".

Já o segundo critério: revelação imediata e sem qualquer encadeamento de ideias, haverá de sempre garantir a grande importância do conceito, uma vez que, por seu caráter impositivo e pela passividade com que é aceita, sugere uma desestruturação da personalidade e da capacidade de julgamento não muito frequentes em delírios de outra natureza que não esquizofrênica.

"Na percepção delirante, a significação falsa está sempre adstrita ao ato perceptivo, é coetânea e simultânea a ele. Essa simultaneidade... não permite a elaboração necessária e a atividade mental requeridas para a enunciação de juízos possíveis" 8.

Recebido em 18/8/2008

Aprovado em 26/1/2009

  • 1. Jaspers K. Psicopatologia general. Buenos Aires: Editorial Beta; 1963.
  • 2. Schneider K. Psicopatologia clínica. S. Paulo: Mestre Jou; 1978.
  • 3. Mello N. Psiquiatria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1979.
  • 4. Sadock BJ. Signs and symptoms in psychiatry in Kaplan and Sadock comprehensive textbook of psychiatry oitava edição. Philadelphia: Lippincott Williams and Wilkins; 2005.
  • 5. Ghadiali E. Agnosia. Cognitive primer ACNR. 2004;4(5).
  • 6. Goás MC. Temas de psiquiatria. Madrid: Editora Paz Montalvo; 1966.
  • 7. Conrad K. La esquizofrenia incipiente. Madrid: Editora Alhambra; 1963.
  • 8. Chalub M. Temas de psicopatologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1977.
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    Márcio Amaral
    Instituto de Psiquiatria da UFRJ
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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