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Trata-se de atrofia da mucosa gástrica do antro ou de atrofia da mucosa gástrica do corpo? uma pequena dúvida que pode ser benéfica para o paciente

Is it atrophy of the gastric antropyloric mucosa or atrophy of the gastric body mucosa? a small doubt that may be beneficial to the patient

EDITORIAL EDITORIAL

Trata-se de atrofia da mucosa gástrica do antro ou de atrofia da mucosa gástrica do corpo? uma pequena dúvida que pode ser benéfica para o paciente

Is it atrophy of the gastric antropyloric mucosa or atrophy of the gastric body mucosa? a small doubt that may be beneficial to the patient

Alfredo J. A. Barbosa

Doutor em Ciências; professor titular de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); editor associado do Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial (JBPML); pesquisador sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Não restam dúvidas de que, nas últimas décadas, o desenvolvimento dos instrumentos utilizados para exame endoscópico da mucosa gastrointestinal tem passado por verdadeira revolução tecnológica. Esse progresso continua célere de tal forma que, no presente momento, não se pode avaliar com margem de segurança confiável como administraremos profissionalmente as novas aquisições científicas e tecnológicas da endoscopia que certamente estarão à disposição da Medicina no final da presente década. No atual momento dessa evolução tecnológica, os patologistas constituem uma vertente de profissionais intimamente ligados à endoscopia digestiva, pois, na maioria dos casos, durante o procedimento endoscópico, são necessárias biópsias de áreas da mucosa aparentemente afetadas ou mesmo aparentemente normais para esclarecimento diagnóstico. Portanto, da análise histológica dessas biópsias depende o diagnóstico final. Analisando o conjunto dessas novas aquisições tecnológicas, pode-se presumir que a necessidade de interação entre os profissionais responsáveis por sua execução e os patologistas esteja cada vez mais afinada. Entretanto, a interação entre os profissionais da área de endoscopia gastrointestinal e de histopatologia diagnóstica parece estar caminhando a passos muito mais lentos do que o progresso dos novos conhecimentos exige.

Examinando essa questão pelos dados presentes na bibliografia pertinente, somos induzidos a acreditar que têm ficado para trás muitas lacunas mal preenchidas relativas à endoscopia e à histopatologia do aparelho digestivo. Muitas situações que geram dúvidas são resultantes da pobreza dos conceitos vigentes e da pouca interação entre os profissionais que utilizam esses dois diferentes métodos visando ao mesmo objetivo: o diagnóstico acurado da doença digestiva desenvolvida pelo paciente ou das lesões secundárias que podem transparecer por meio da mucosa gastrointestinal. Isso porque, na maioria das vezes, patologista e endoscopista trabalham a distância, com pouca ou nenhuma comunicação interativa, o que torna o diagnóstico final frequentemente impreciso. Até quando a evolução contínua dos conhecimentos de ambas as especialidades irá permitir a manutenção dessa situação inadequada, hoje rotineira? Nos próximos anos, a colheita de biópsias endoscópicas gastrointestinais, hoje imperativa, será ainda uma necessidade frequente? São perguntas que certamente não levarão muito tempo para serem respondidas.

Vamos tomar como exemplo duas doenças distintas do estômago que tendem a evoluir para a atrofia da mucosa gástrica: a gastrite multifocal associada à bactéria Helicobacter pylori e a gastrite atrófica do corpo, não dependente da presença da bactéria. Fundamental para o diagnóstico da primeira condição é a constatação do infiltrado inflamatório na mucosa antral e/ou na mucosa do corpo e a presença da bactéria, alterações estas acompanhadas ou não de lesões secundárias, como atrofia glandular e metaplasia intestinal. Essencial para o diagnóstico da segunda condição é a presença de atrofia das glândulas especializadas do corpo gástrico (frequentemente substituídas por glândulas mucosas e glândulas tipo intestinais), associada ao infiltrado inflamatório de intensidade variável e à mucosa antral preservada. Sabe-se que a evolução da atrofia gástrica nessas duas condições inflamatórias do estômago envolve diferentes consequências clínicas e fisiopatológicas. A gastrite atrófica multifocal não apresenta consequências fisiopatológicas relevantes, entretanto, uma parcela importante desses pacientes costuma evoluir para câncer gástrico. Já os pacientes com gastrite atrófica do corpo desenvolvem, nas fases mais tardias da doença, acloridria e anemia e tornam-se predisponentes ao desenvolvimento do carcinoide gástrico.

Não vamos discutir aqui as definições nem as dificuldades relacionadas com o reconhecimento endoscópico e histológico da atrofia da mucosa gástrica. São problemas muitas vezes de ordem conceitual ainda existentes na área da endoscopia, bem como na da patologia. Além disso, os achados endoscópicos e histológicos frequentemente não apresentam correlação confiável, fato amplamente constatado por vários autores(1, 3, 4). Quando acentuada, a atrofia glandular do estômago pode ser reconhecida pelo patologista com certa facilidade e pelo endoscopista com alguma dificuldade. Desnecessário dizer que o diagnóstico diferencial entre gastrite atrófica multifocal e gastrite atrófica do corpo esbarra sempre na constatação do reconhecimento da atrofia da mucosa gástrica associada ao processo inflamatório. Na existência de estreita correlação entre endoscopia e histopatologia, incluindo-se a acurada delimitação das regiões afetadas, o diagnóstico diferencial entre as duas doenças supracitadas torna-se relativamente fácil. Entretanto, na prática, essa correlação frequentemente não ocorre, trazendo dificuldades para se estabelecer o diagnóstico correto. Vários são os motivos que resultam na imprecisão do diagnóstico histopatológico. O principal deles pode ser a análise de cortes histológicos que exibem aspectos morfológicos diferenciais imprecisos entre mucosa atrófica do antro e mucosa atrófica do corpo. Com essas explicações, podemos voltar à pergunta inserida no título do presente editorial: trata-se de atrofia da mucosa gástrica do antro ou de atrofia da mucosa gástrica do corpo? Se essa dúvida ocorrer, isso pode ser bom para o paciente, pois o patologista é induzido a buscar solução para o problema, o que pode redundar no correto diagnóstico histopatológico. Quando não ocorre a dúvida, o erro diagnóstico pode emergir. Sem a dúvida, e com base apenas nas alterações morfológicas rotineiras, as evidências podem levar o patologista a liberar o diagnóstico de gastrite multifocal (pangastrite), em vez de gastrite atrófica do corpo ou vice-versa. A pergunta continua: o que fazer na falta de correlação com a endoscopia? Ou mesmo na presença de correlação duvidosa, uma vez que o próprio endoscopista costuma deixar a responsabilidade da resposta para o patologista?

Buscar resposta para essa dúvida deve levar o patologista a métodos especiais de coloração dos tecidos, embora nem todos estejam dispostos a tanto porque exige tempo e gastos adicionais. Alguns utilizam a coloração imuno-histoquímica para células G, produtoras de gastrina, presentes normalmente na mucosa antral e ausentes nas glândulas mucosas metaplásicas do corpo gástrico(8). O inconveniente desse critério reside na possibilidade de as células G não serem detectadas em cortes histológicos mal orientados. A descoberta recente de que células imunorreativas à grelina são frequentemente numerosas na metaplasia pseudoantral e raramente encontradas nas glândulas mucosas da região do antro gástrico pode dirimir a dúvida e facilitar a conclusão diagnóstica correta(7). Outra possibilidade é a presença de hiperplasia endócrina na mucosa gástrica, que indica se tratar de mucosa do corpo, utilizando-se para isso técnicas de coloração pela prata ou imuno-histoquímicas com marcadores neuroendócrinos. Vê-se, assim, que resolver a dúvida não é tão difícil, o que é muito bom para o paciente.

Em resumo, a endoscopia convencional do aparelho digestivo, hoje amplamente utilizada, embora possa empregar técnicas especiais para avaliar a espessura da mucosa gástrica, continua apresentando baixo índice de acurácia. Como o método histológico nos casos de atrofia moderada também não é confiável, o uso combinado dessas duas metodologias permanece frequentemente repousando em verdadeira areia movediça. Mesmo para os casos de atrofia intensa da mucosa, o método endoscópico rotineiro apresenta falhas, enquanto o método histológico é mais confiável, como foi observado por Barbosa e Miranda(1) em um centro nacional de referência em endoscopia digestiva.

Para concluir, e deixar os colegas patologistas apenas um pouco apreensivos, vamos repetir outra pergunta, não tão importante, e levantada no início deste artigo: nos próximos anos, a colheita de biópsias endoscópicas gastrointestinais, hoje imperativa, será ainda uma necessidade frequente? A motivação da pergunta deriva do significativo avanço tecnológico dos equipamentos endoscópicos observado nos últimos anos. A continuar nesse ritmo, abrem-se grandes perspectivas para a especialidade em futuro próximo. O método endoscópico tem se aperfeiçoado rapidamente, introduzindo na prática diária novas técnicas que amplificam a visualização e a definição de pequenos detalhes da mucosa. Esse progresso, somado à futura disponibilidade, hoje embrionária, da endomicroscopia confocal de alta resolução, certamente colocará a endoscopia gastrointestinal em terra firme, no sentido de proporcionar o reconhecimento pormenorizado de lesões diminutas, dificilmente identificáveis pela endoscopia convencional, entre elas as áreas de atrofia da mucosa gástrica(2, 5, 6).

  • 1. BARBOSA, A. J. A.; MIRANDA G. C. Atrophic body gastritis: a challenge for the presumptive endoscopic and histologic diagnosis of autoimmune gastritis. In: PASCu, Oliviu (Ed.). Gastrointestinal endoscopy InTech, 2011. ISBN: 978953-307-385-9. Disponível em: <http://www.intechopen.com/articles/show/title/atrophic-body-gastritis-a-challengefor-the-presumptive-endoscopic-and-histologic-diagnosis-of-autoi>
  • 2. CANTO, M. I. Endomicroscopy of Barrett's esophagus. Gastroenterol Clin North Am, v. 39, n. 4, p. 759-69, 2010.
  • 3. ESHMURATOV, A. et al. The correlation of endoscopic and histologial diagnosis of gastric atrophy. Dig Dis Sci, v. 55, n. 1364-75, 2010.
  • 4. GENTA, R. M. Recognizing atrophy: another step toward a classification of gastritis. Am J Surg Pathol, v. 20, n. 1, p. 23-30, 1996.
  • 5. GOETZ, M.; KIESSLICH, R. Advances of endomicroscopy for gastrointestinal physiology and diseases. Am J Physiol Gastrointest Liver Physiol, v. 298, n. 6, p. G797-806, 2010.
  • 6. LI, C. Q.; LI, Y. Q. Endomicroscopy of intestinal metaplasia and gastric cancer. Gastroenterol Clin North Am, v. 39, n. 4, p. 785-96, 2010.
  • 7. MOREIRA, L. F.; BARBOSA, A. J. A. Ghrelin and preproghrelin immunoreactive cells in atrophic body gastritis. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, v. 47, n. 5, p. 549-54, 2011.
  • 8. PARK, J. Y. et al. Gastric lesions in patients with autoimmune metaplasic atrophic gastritis (AMAG) in a tertiary care setting. Am J Surg Pathol, v. 34, n. 11, p. 1591-8, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Fev 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2011
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