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De qual crise falamos?

BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. 191.

Zygmunt Bauman, sociólogo polonês e avaliador crítico da pós-modernidade, dialoga com o sociólogo italiano Carlo Bordoni, no livro Estado de crise, sobre a conjuntura do sistema social e econômico, marcada pela atual crise do Estado, governos e legitimidade das ações políticas democráticas no âmbito da economia capitalista. Para isso, os autores apontam as características, críticas e possibilidades de futuro entre o casamento e divórcio da economia neoliberal, Estado, política e fluxos.

Bauman e Bordoni refletem a respeito dos condicionantes em que a sociedade vivencia, identificando o contexto da crise e, inclusive, evidenciando a construção histórica persuasiva do discurso econômico do que chamamos de crise. Os autores passeiam desde a crise do Estado moderno à crise que está em curso, a da sociedade de massa, da emergência de novos políticos, das efemeridades dos protestos e do papel central da economia capitalista.

O livro é estruturado em três capítulos, escritos com clareza, e com o formato de pontos de vista entre os dois autores. A obra inicia indagando sobre a origem popular da crise, como algo transitório. Bordoni esclarece que crise está ligada ao entendimento de “à arte de julgar”, “habilidade em discernir”. Essa recuperação significante problematiza a crise como permanente, sinônimo de doença degenerativa, que não deixaria de existir.

Contextualizando a questão da crise, os autores recuperam o período econômico europeu e estadunidense, a partir do momento da Depressão de 1929, e a conceituam como a mais significativa recessão econômica que o século 20 passou. Como consequência, apontam que vários países enfrentaram elevadas taxas de desemprego e diminuição da produção industrial. Atualmente, a crise instaurada é legado das histórias recentes e do próprio processo da globalização, e suas mazelas são observadas na impotência dos governos no gerenciamento administrativo e nos cidadãos insatisfeitos.

No entanto, a noção de crise, utilizada de forma indiscriminada atualmente, está vinculada ao setor econômico, para indicar condição complexa para além da inflação e estagnação. De acordo com Bordoni, suas raízes podem ser encontradas nos anos 2000, a partir das ondas de terrorismo, como o atentado às Torres Gêmeas, em 2001.

Outra questão evidente na obra é que a crise em curso é de origem financeira, já que as empresas privadas não têm interesse em investir capital em países com sérias dificuldades. E o papel do Estado? O mesmo Estado que entregou nas mãos do mercado o poder, hoje foi rebaixado de posição. Se antes era o promotor do bem-estar universal, na atualidade opera como obstáculo. Conforme explora Bauman, o poder do Estado foi capturado por forças supraestatais, do ponto de vista da globalização, e operam num “espaço de fluxos”, terminologia utilizada por Manuel Castells e apropriadamente trazida em “Estado de Crise”.

Para Bordoni (p.15), a posição do Estado e dos governos neste tempo de crises econômicas é de estagnar ao invés de reduzir as fricções. Segundo o sociólogo italiano, no que rege o mercado financeiro, as leis e organicidade do Estado e dos governos não se incluem nesse desenvolvimento extrafronteiras do estatismo. E vai além, pois afirma que os mercados voltados para o lucro levam a catástrofes econômicas e sociais. Avançando, Bordoni sugere o divórcio entre política e poder, pois há uma fragilidade do poder do Estado e dos governos, de forma geral, para empoderar a política no seu fazer cotidiano.

Em decorrência do Estado cada vez mais fraco e sem poder de intervir funcionalmente, cria-se um clima social de “antipolítica”, ou seja, afastando o crédito de poder das ações e atividades no âmbito político. Contudo, nesse mesmo contexto, justifica-se a exaltação de líderes populistas, com manual de salvaguarda do governo e da sociedade.

Nas partes finais do livro, Bordoni (p.27) descreve que depois do otimismo irresponsável do consumismo, o indivíduo é deixado à sua própria iniciativa, dificultando os laços de cidadania necessários para a construção do coletivo, o que ele chama de “vínculos sociais que a massa de algum modo assegurava”, enquanto pertencente a um estado de cidadão global.

Ainda sobre a relação política e Estado, Bauman (p.35) recupera as expressões “crise de agência” para Estado e governos líquidos, reafirmando que atualmente há “crise de soberania territorial”, visto que as soluções necessárias não são tangíveis às “soberanias territoriais”, pois estão além, envolvendo complexidades de ação pós-global economicamente.

Nesse sentido, Bauman (p.37) salienta a tomada das ruas pela população como um caminho de descarregar temporariamente suas indignações em relação à forma como os setores da política têm comandado a área econômica. Com isso aponta o perigo: emergir a desconfiança popular nas virtudes da democracia e em seu poder de atração. Bordoni complementa Bauman explicando que as esferas políticas locais não dão conta dos problemas estruturados no âmbito global, já que a tragédia do Estado moderno habita em sua incapacidade de implementar na esfera global decisões tomadas localmente.

Outro ponto que merece destaque na obra é a ênfase sobre o papel que a globalização desempenha no cenário das comunicações. Bordoni esclarece (p.43-44) que a informação, o conhecimento e a comparação com e entre outras realidades têm mais importância no desenvolvimento de processos libertários do que propriamente as novas tecnologias (telefonia móvel, internet, redes sociais digitais). Declara que o poder está intimamente atrelado à imaginação, cuja força é potencializada quando alimentada pelo conhecimento e pela comunicação.

Os autores propõem um debate perspicaz e contundente, do qual Bauman – com sua sensibilidade teórica e prática – conduz a discussão. Bordoni, a sua vez, revigora o caminho conceitual e histórico de Bauman. Estado de crise problematiza, recupera e promove no debate entre os autores um significativo embate atual e futuro, desmistificando a “crise” e realçando o poder econômico extrafronteiras, sem regulação e leis intervenientes, e posiciona a figura do Estado e dos governos como porta-vozes de políticas frágeis e efêmeras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2017
  • Aceito
    06 Fev 2017
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