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Os direitos das gestantes sob a ótica da “ideologia de gênero” na Câmara dos Deputados

The rights of pregnant women from the “gender ideology” perspective in the Chamber of Deputies

Resumo

Este artigo explora, a partir da tramitação do PL 853 de 2019 propondo uma “Semana Nacional de Conscientização dos Direitos das Gestantes” na Comissão de Seguridade Social e Família, como determinados direitos têm sido disputados na Câmara dos Deputados. Os debates durante a tramitação do projeto de lei na comissão, assim como as diversas versões de substitutivos apresentados, mostram que, apesar de a proposta ser considerada meritória pelos parlamentares, eles fomentavam disputas sobre direitos de “cunho ideológico”. Ou seja, ainda que o projeto não prescrevesse novos direitos às gestantes, alguns parlamentares acusavam-no de resgatar os direitos sexuais e reprodutivos e promover o aborto. Ao acompanhar sua tramitação, vemos como os direitos sexuais e reprodutivos têm sido descritos como ameaça a determinados valores defendidos no Legislativo e como o discurso sobre uma “ideologia de gênero” parte desse mesmo debate e, no caso da proposta acima, foi vencedor na Comissão de Seguridade Social e Família.

Palavras-chave:
gestantes; ideologia de gênero; direitos sexuais e reprodutivos; Câmara dos Deputados

Abstract

This article explores, from the processing of PL 853 of 2019 proposing a “National Week of Awareness of the Rights of Pregnant Women” in the Social Security and Family Commission, how certain rights have been disputed in the Chamber of Deputies. The debates during the running of the bill in the commission, as well as the various versions of substitutes presented, show that despite the proposal being considered meritorious by the parliamentarians, they disputed rights of an “ideological nature”. That is, even though the bill did not prescribe new rights for pregnant women, some parliamentarians accused it of bring back sexual and reproductive rights and promoting abortion. By accompanying its course, we see how sexual and reproductive rights have been described as a threat to certain values defended in the legislative, and a “gender ideology” discourse emerged from the same debate, and, in the case of the proposal above, this discourse was the one chosen in the Social Security and Family Commission.

Keywords:
pregnant women; gender ideology; sexual and reproductive rights; Chamber of Deputies

Introdução1 1 Este artigo é resultado da pesquisa de pós-doutorado financiada pelo Programa Institucional de Internacionalização da Capes, processo n. 88887.577045/2020-00.

As eleições de 2018 coroaram um movimento contrário a pautas progressistas e promoveram pautas conservadoras, se tornando por um lado parte das políticas públicas adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido)2 2 Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 pelo PSL; quando a pesquisa foi realizada em 2021 ele estava sem partido, e em 2022 se filiou ao PL para disputar a reeleição. Mantive no texto o partido ao qual cada parlamentar estava filiado no momento da realização da pesquisa. e por outro fomentando discursos governistas com essa temática no Congresso Nacional. Tal movimento acompanha um movimento mundial onde governos autoritários e muitas vezes associados a governos neoliberais têm ganhado espaço no cenário político internacional (Almeida, 2020ALMEIDA, R. de. The broken wave: Evangelicals and conservatism in the Brazilian crisis. HAU: journal of ethnographic theory, [s. l.], v. 10, n. 1, p. 32-40, 2020.; Brown, 2006BROWN, W. American nightmare: neoliberalism, neoconservatism, and de-democratization. Political Theory, [s. l.], v. 34, n. 6, p. 690-714, 2006.; Cesarino, 2019CESARINO, L. Identidade e representação no bolsonarismo. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 62, n. 3, p. 530-557, 2019.; Cooper, 2017COOPER, M. Family values: between neoliberalism and the new social conservatism. Cambridge: MIT Press, 2017.; Neiburg, Thomaz, 2020NEIBURG, F.; THOMAZ, O. R. Ethnographic views of Brazil’s (new) authoritarian turn. HAU: journal of ethnographic theory, [s. l.], v. 10, n. 1, p. 7-11, 2020.). No Brasil esse fenômeno está diretamente relacionado a um fortalecimento e presença de religiosos na política, que vêm já há alguns anos ganhando espaço no Legislativo, e que se pautam na tentativa de conter condutas e valores considerados muito liberais (Almeida, 2020ALMEIDA, R. de. The broken wave: Evangelicals and conservatism in the Brazilian crisis. HAU: journal of ethnographic theory, [s. l.], v. 10, n. 1, p. 32-40, 2020.). Ou seja, nos últimos anos discursos de tolerância à diversidade foram revertidos por propostas de legislação sobre a família e por uma agenda antidireitos e anti-igualdade de gênero (Avritzer, 2018AVRITZER, L. O pêndulo da democracia no Brasil: uma análise da crise 2013-2018. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v. 37, n. 2, p. 273-289, 2018., p. 275).

Este artigo explora dentro desse contexto político a tramitação de um projeto de lei (PL 853/2019) apresentado em 2019 propondo uma “Semana Nacional de Conscientização dos Direitos da Gestante” na Câmara dos Deputados e aprovado em sua primeira comissão, a Comissão de Seguridade Social e Família, em julho de 2021. Ainda que esse possa parecer um projeto de lei relativamente neutro, tanto pelo formato em que é apresentado quanto pela proposta de uma semana comemorativa sem modificação de legislação ou criação de novos direitos referentes à gestante, ele foi o projeto de lei mais discutido e polêmico na Comissão de Seguridade Social e Família entre os meses de abril e julho de 2021 e gerou intensas discussões, vários substitutivos,3 3 Substitutivo é o texto apresentado contendo modificações em uma versão anterior de projeto de lei em apreciação. Ele, se aprovado, substitui a versão anterior. alguns momentos de votação, votação revogada e a revogação posteriormente anulada.

O projeto só ganha de fato destaque na pesquisa que eu realizava na Câmara dos Deputados quando, contrariando seu aparente teor de neutralidade, ele se mostra central nos debates na Comissão de Seguridade Social e Família. Ele esteve na pauta durante os quatro meses em que acompanhei as reuniões da comissão que aconteciam naquele momento de forma híbrida, ou seja, alguns parlamentares estavam presentes nos plenários das comissões temáticas da Câmara dos Deputados e outros acompanhavam de forma remota e muitas vezes em trânsito: dentro de carros, em aeroportos, ou, o que era mais frequente, de suas residências nos estados de origem. Se antes da pandemia de Covid-19 era possível acompanhar as reuniões das comissões através de registros de vídeo, áudio ou transcrições de falas em notas taquigráficas, durante aqueles meses de 2021 as reuniões eram assistidas “ao vivo” ou pelos vídeos gerados que ficavam armazenados no portal eletrônico da Câmara dos Deputados. Estavam também armazenados nesse portal os demais documentos e registros da tramitação referentes ao PL 853/2019: o projeto de lei, substitutivos, pareceres e votos em separado. Para levantar os dados que foram aqui analisados foi realizada uma etnografia do processo legislativo constituída majoritariamente por documentos. Adoto uma abordagem que compreende que documentos são artefatos produzidos pelo campo que devem ser encarados não apenas pelo seu conteúdo, mas pela sua estética (Feldman, 2008FELDMAN, I. Governing Gaza: bureaucracy, authority, and the work of rule, 1917-1967. Durham: Duke University Press, 2008.; Gupta, 2012GUPTA, A. Red tape: bureaucracy, structural violence and poverty in India. Durham: Duke University Press, 2012.; Hull, 2012HULL, M. Documents and bureaucracy. Annual Review of Anthropology, [s. l.], v. 41, p. 251-26, 2012.; Lowenkron, Ferreira, 2014LOWENKRON, L.; FERREIRA, L. Anthropological perspectives on documents: ethnographic dialogues on the trail of police papers. Vibrant, Brasília, v. 11, n. 2, p. 76-112, 2014.; Riles, 2006RILES, A. Documents: artifacts of modern knowledge. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2006.). Essa abordagem permite (e privilegia) que discussões sobre termos, negociações e transformações em diferentes versões de documentos sejam contrastadas através do acompanhamento de seu processo de produção. Afinal, como bem destaca Viana,4 4 Em fala proferida no lançamento do livro Etnografia de documentos: pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias, organizado por Letícia Ferreira e Laura Lowenkron (cf. Lançamento…, 2020). ao etnografar documentos estamos na realidade olhando para seu processo de produção. No caso de uma etnografia voltada para as comissões temáticas da Câmara dos Deputados, ou do processo legislativo, a pesquisa debruça-se sobre como propostas legislativas são formuladas, apresentadas, negociadas, disputadas e votadas. Durante a tramitação do PL 853/2019 na Comissão de Seguridade Social e Família foram apresentadas sete versões de substitutivos (ainda que algumas tenham sido reapresentadas com idêntico teor) que permitem visualizarmos através dessas modificações e dos debates que aconteciam nas reuniões5 5 A comissão teve reuniões com a frequência de uma ou duas vezes na semana. as negociações e modificações no texto que seria aprovado naquela comissão.6 6 Em Potechi (2018) faço uma distinção entre os artefatos que podem ser compreendidos como “documentos” em etnografias do processo legislativo.

Conforme demonstro no artigo, o projeto de lei refletia discussões que foram se mostrando cruciais para como alguns direitos referentes a mulheres têm sido debatidos e formulados no Congresso Nacional na atual legislatura. Esses debates recolocavam no centro da discussão os direitos sexuais e reprodutivos, formulados e difundidos principalmente na década de 1990, o que impulsionava discursos contrários a uma suposta “ideologia de gênero”, expressão que, como veremos, tem sua origem na conquista desses mesmos direitos.

Ou seja, a partir da tramitação do PL 853/2019 na Comissão de Seguridade Social e Família, este artigo explora como os direitos sexuais e reprodutivos têm sido disputados no Congresso Nacional quando relacionados a direitos das mulheres. Nesse sentido, vemos que os direitos sexuais e reprodutivos podem ser lidos como ameaça à ideia tradicional de família e ao papel natural da mulher enquanto mãe, e são repreendidos através de discursos que condenam uma suposta “ideologia de gênero” e políticas públicas voltadas para a população feminina nas últimas décadas. Nesse contexto, a tramitação de um projeto de lei que não trata de direitos sexuais e reprodutivos, mas teve neles seu centro de disputa, revela como os direitos das mulheres têm sido disputados na Câmara dos Deputados e contribui para discussões que tentem perceber o que de fato está em jogo para mulheres e seus direitos com as pautas a favor da família e contra “ideologia de gênero” que fazem parte do projeto político do atual governo brasileiro. Espero com isso observar como argumentos contrários à “ideologia de gênero” têm se tornado o meio pelo qual parte dos parlamentares tem legislado e como isso tem reflexo nas propostas que têm sido aprovadas pela Câmara dos Deputados nos últimos anos.

Direitos de cunho ideológico

Contudo, em que pese a iniciativa ser meritória e necessária, preocupa-nos o uso de terminologias/expressões de cunho ideológico que caminham na contramão da proteção à gestante.

A uma, a expressão “planejamento reprodutivo”, haja vista que esta vem sendo utilizada, especialmente por organismos internacionais e pela ONU, para fomento e viabilização do aborto - que é previsto em nossa legislação penal como crime -, sob o argumento da suposta necessidade de “controle populacional”. (Brasil, 2021aBRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão de Seguridade Social e Família. Voto em separado (da Sra. Deputada Chris Tonietto). Voto em Separado ao PL nº 853, de 2019, de autoria da Deputada Sâmia Bomfim (PSOL/SP). Brasília: Câmara dos Deputados, 26 abr. 2021a. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1999710&filename=Tramitacao-PL%20853/2019 . Acesso em: 2 set. 2022.
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, p. 2).

O trecho acima foi apresentado em voto em separado7 7 Voto em separado apresentado por parlamentar é o voto divergente do conteúdo em votação apresentado por relator da matéria. ao parecer8 8 Parecer a um projeto de lei é elaborado pelo relator da matéria em uma comissão, ele pode ser favorável ou contrário à matéria e pode vir apensado a ele um substitutivo. e substitutivo do PL 853/2019 propondo uma “Semana Nacional de Conscientização dos Direitos das Gestantes” que estava em votação na Comissão de Seguridade Social e Família na Câmara dos Deputados entre os meses de abril e julho de 2021. Esse mesmo trecho, lido em sessão da comissão pela sua autora, a deputada Chris Tonietto9 9 Chris Tonietto foi eleita em 2018 pelo estado do Rio de Janeiro pelo PSL, mesmo partido que elegeu Bolsonaro. Ela é católica e defende os “valores cristãos” e em 2022 concorre à reeleição pelo PL, mesmo partido que Bolsonaro. (PSL), seria aprovado em relatório10 10 O relatório pode constituir um parecer, sendo uma das partes apresentadas e sujeitas à apreciação. É muitas vezes utilizado como sinônimo de parecer na fala dos parlamentares. pela comissão a fim de dar andamento na tramitação do PL 853/2019 na Câmara dos Deputados.11 11 Após aprovação na Comissão de Seguridade Social e Família, o PL seria encaminhado para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e depois remetido ao Senado Federal. Durante aqueles meses ele foi o projeto de lei que mais esteve na pauta da Comissão de Seguridade Social e Família. Ele foi por diversas vezes retirado de pauta para adiar votações, teve votação anulada e a anulação foi posteriormente revogada, teve mudança de voto de parlamentares12 12 Na votação do parecer de Vivi Reis (PSOL) o deputado Pastor Sargento Isidório (Avante) mudou de posição, primeiramente se posicionando contra o relatório de Vivi Reis (PSOL) por se declarar contrário ao aborto, e posteriormente mudando seu voto por entender que o projeto não se tratava disso, mas de garantir a promoção de direitos de gestantes e seus bebês. e teve alguns substitutivos apresentados e reapresentados pelas relatoras Carmen Zanotto (PPS e após Cidadania),13 13 O PPS, Partido Popular Socialista, teve seu nome alterado para Cidadania em 2019. Nas próximas citações que incluam integrantes do partido utilizarei “Cidadania”. Vivi Reis (PSOL)14 14 Vivi Reis foi eleita em 2018 pelo PSOL no Pará. Consta em página da sua campanha para as eleições de 2022 que é “amazônida, feminista, socialista, bissexual e trabalhadora da saúde” (Vivi Reis, 2022). e Chris Tonietto. No entanto, o PL apresentado pela deputada Sâmia Bomfim (PSOL) era considerado meritório por todos aqueles que se pronunciaram nas sessões, já que ele não alteraria legislação, mas criaria apenas uma semana de conscientização e promoção de direitos já previstos. Entretanto, o projeto é debatido e negociado nas reuniões da comissão porque parte dos parlamentares, encabeçados pela deputada Chris Tonietto, considerava que o projeto de lei possuía termos de “cunho ideológico”. Conforme vemos no trecho citado do voto em separado, “planejamento reprodutivo” seria um desses termos, e fora, portanto, retirado do substitutivo que a deputada apresentara para apreciação da comissão, assim como outros termos, como “direitos das gestantes”, que fora substituído por “cuidados das gestantes”; “parentalidade”; “saúde física e emocional das gestantes e mães de bebês”; “humanizado”; e “direito ao acesso à creche”.

O voto em separado inaugura uma sequência de reuniões que irão retomar para o debate alguns direitos das mulheres (e não exclusivamente delas), como planejamento reprodutivo, mas também de forma mais genérica a própria ideia de direitos. Segundo as falas da autora do voto em separado, seu voto em separado acompanhado de substitutivo visava conter termos de cunho ideológico que como vamos percebendo seriam aqueles que na sua visão caminhavam na linha dos direitos sexuais e reprodutivos a fim de, segundo sua justificativa, promover o aborto. De forma um pouco surpreendente esse discurso se inicia com o substitutivo em apreciação da deputada Carmen Zanotto (Cidadania), relatora do PL na Comissão de Seguridade Social e Família, que fora elaborado ampliando o texto resumido apresentado pela autora Sâmia Bomfim (PSOL),

O CONGRESSO NACIONAL DECRETA: Art. 1º - Fica instituída a Semana Nacional de Conscientização sobre os Direitos das Gestantes, a ser celebrada, anualmente, na semana do dia 15 de agosto.

Art. 2° - A Semana Nacional de que trata esta Lei será dedicada à divulgação dos direitos relacionados à saúde das gestantes, tais como assistência humanizada à mulher durante a gestação, pré-parto, parto e puerpério; além dos direitos trabalhistas e sociais.

Art. 3° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. (Brasil, 2019BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de lei nº______, de 2019 (da Sra. Deputada Sâmia Bonfim). Acrescenta ao calendário oficial a “Semana Nacional de Conscientização sobre Direitos das Gestantes”, a ser celebrada anualmente em 15 de agosto, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, fev. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1711813&filename=Tramitacao-PL%20853/2019 . Acesso em: 2 set. 2022.
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, p. 1).

Já a versão substitutiva apresentada pela relatora da comissão, Carmen Zanotto (Cidadania), ampliava o texto, dando visibilidade para o bebê até os mil dias de vida, o puerpério e expandindo direitos e mulheres a serem incluídas no texto original. O substitutivo não tratava diretamente de aborto, nem mesmo o relatório da deputada que acompanhava o mesmo.

Esse movimento executado pela deputada Chris Tonietto (PSL), no entanto, não era um movimento isolado, muito menos deslocado de acontecimentos e do contexto político em que aquelas reuniões estavam inseridas. Um movimento similar aconteceu na tramitação do PL 557/2020 que “Institui a realização, em caráter anual, da ‘Semana de Valorização de Mulheres que Fizeram História’ no âmbito das escolas de educação básica do País”, que tramitou também entre aqueles meses, mas na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher. O PL foi apresentado pela deputada Tabata Amaral (PDT) e teve a deputada Chris Tonietto contrária à sua aprovação, já que, segundo Tonietto, o PL adicionaria ao conteúdo das aulas personagens femininas como Simone de Beauvoir e Judith Butler, todas, como ressaltava a deputada, feministas. Segundo a deputada o PL serviria como motor de propagação da “ideologia feminista” nas escolas. Ou seja, a deputada Chris Tonietto, pertencente ao PSL, mesmo partido com o qual foi eleito o atual presidente da república, Jair Bolsonaro, vinha tentando conter iniciativas que pudessem de certa forma estar associadas ao que figuras, como membros do seu partido, têm chamado de “ideologia de gênero”.

O termo “ideologia de gênero”, como veremos neste artigo, é uma resposta do Vaticano a avanços em direitos sexuais e reprodutivos, após as conferências das Nações Unidas do Cairo e de Pequim em 1994 e 1995, onde se inicia a introdução desses termos em documentos oficiais (Paternotte; Kuhar, 2018PATERNOTTE, D.; KUHAR, R. “Ideologia de gênero” em movimento. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 18, n. 43, p. 503-523, dez. 2018.). Ou seja, a postura da deputada Chris Tonietto (PSL) contrária a “direitos de cunho ideológico” como planejamento reprodutivo retomava os direitos sexuais e reprodutivos.

Direitos sexuais e reprodutivos

Dentre os termos em discussão no projeto de lei estariam planejamento reprodutivo e, como vemos numa fala mais à frente da deputada Chris Tonietto (PSL), os direitos sexuais e reprodutivos, tratados como sinônimos na relação que a deputada produz ao justificar o seu posicionamento e a retirada de determinados termos que diz possuírem “cunho ideológico”. O termo “direitos reprodutivos” só aparece em documentos oficiais das Nações Unidas em 1994, resultante da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento realizada no Cairo, ainda que reivindicações no campo da reprodução e sexualidade já existissem desde o século XVII ( Corrêa; Ávila, 2003CORRÊA, S.; ÁVILA, M. B. Direitos sexuais reprodutivos: pauta global e percursos brasileiros. In: BERQUÓ, E. (org.). Sexo & vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 17-78.).

Antes disso o termo “saúde da mulher” era aquele utilizado para fazer referência aos cuidados da mulher que envolviam basicamente o ciclo gravídico, quando então o termo passa a ser substituído por “direitos reprodutivos”. Essa alteração de terminologia de “saúde da mulher” para “direitos reprodutivos” reflete uma mudança de postura no tratamento da mulher e da reprodução humana, que até a década de 1970 era pró-natalista, voltada ao ciclo gravídico e reforçava as diferenças entre os sexos e o papel da mulher como mãe (Heilborn et al., 2009HEILBORN, M. L. et al. Assistência em contracepção e planejamento reprodutivo na perspectiva de usuárias de três unidades do Sistema Único de Saúde no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, supl. 2, p. S269-S278, 2009.). No Brasil isso começa a acontecer a partir de 1984, quando um grupo de feministas brasileiras retornam do I Encontro Internacional de Saúde da Mulher realizado em Amsterdam, introduzindo no país o termo criado por feministas norte-americanas (Heilborn et al., 2009HEILBORN, M. L. et al. Assistência em contracepção e planejamento reprodutivo na perspectiva de usuárias de três unidades do Sistema Único de Saúde no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, supl. 2, p. S269-S278, 2009.). Nesse mesmo ano é promulgado no país o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), que rompe com uma visão anterior da saúde da mulher associada ao pré-natal, parto e puerpério (Gutmann et al., 2020GUTMANN, V. L. R. et al. Planejamento reprodutivo: um relato de experiência multidisciplinar. Revista Conexão UEPG, Ponta Grossa, v. 16, n. 1, e2013676, 2020.; Pulhez, 2022PULHEZ, M. M. Autonomia, consentimento e informação de qualidade: controvérsias e disputas na construção da violência obstétrica no Brasil. 2022. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2022.). Essa ampliação dos termos passa a englobar todos os problemas de saúde ligados à mulher e não só aqueles ligados ao ciclo gravídico, como contracepção, aborto, pré-natal, parto, câncer de mama e de colo de útero, doenças sexualmente transmissíveis e gravidez na adolescência (Scavone, 2004SCAVONE, L. Dar a vida e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo: Unesp, 2004., p. 47).

Em 1995 na IV Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim o termo é definido como:

[…] os direitos reprodutivos dependem dos direitos básicos de todos os casais e indivíduos a decidir livre e responsavelmente o número, a freqüência e o momento para terem seus filhos e de possuir as informações e os meios para isso, bem como do direito a alcançar o mais elevado nível de saúde sexual e reprodutiva. Isso também inclui o seu direito de adotar decisões relativas à reprodução livres de discriminação, coerção e violência, conforme expresso nos documentos de direitos humanos. (Organização das Nações Unidas, 1995ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e plataforma de ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher. Pequim: ONU, 1995. Disponível em: Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf . Acesso em: 21 jan. 2022.
https://www.onumulheres.org.br/wp-conten...
, p. 225).

Fundamental para o exercício dos direitos reprodutivos, o termo “planejamento reprodutivo” também emana desses mesmos movimentos no país e na demanda por mudanças e ampliação de políticas de saúde da mulher na década de 1980 (Gutmann et al., 2020GUTMANN, V. L. R. et al. Planejamento reprodutivo: um relato de experiência multidisciplinar. Revista Conexão UEPG, Ponta Grossa, v. 16, n. 1, e2013676, 2020.). O termo “planejamento reprodutivo” também começa a substituir e ser difundido no lugar de “planejamento familiar”, já que este último pressupõe a ideia de família, sendo seu substituto mais abrangente para homens, mulheres, adolescentes independentemente da união civil (Gutmann et al., 2020GUTMANN, V. L. R. et al. Planejamento reprodutivo: um relato de experiência multidisciplinar. Revista Conexão UEPG, Ponta Grossa, v. 16, n. 1, e2013676, 2020.).15 15 O planejamento reprodutivo está consolidado e previsto na Constituição Federal, promulgada em 1988, no artigo 226, garantindo ao “homem, mulher e/ou casal escolher o momento adequado de ter filhos e de quantos filhos deseja ou não ter” (Gutmann et al., 2020).

Já o conceito de direitos sexuais tem uma história distinta ainda que intrincada com a de direitos reprodutivos. Ele é formulado na década de 1990 por movimentos gay e lésbico europeus e norte-americanos e posteriormente tem adesão do movimento feminista. Nas negociações da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento realizada no Cairo em 1994, que teve o primeiro documento com o termo “direitos reprodutivos”, o termo “direitos sexuais” apareceu nas disputas e funcionou como estratégia de barganha para a consolidação de direitos reprodutivos no texto final ( Corrêa; Ávila, 2003CORRÊA, S.; ÁVILA, M. B. Direitos sexuais reprodutivos: pauta global e percursos brasileiros. In: BERQUÓ, E. (org.). Sexo & vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 17-78., p. 21). Segundo Corrêa e Ávila (2003)CORRÊA, S.; ÁVILA, M. B. Direitos sexuais reprodutivos: pauta global e percursos brasileiros. In: BERQUÓ, E. (org.). Sexo & vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 17-78., a legitimação dos direitos reprodutivos e sexuais foi também resultado de esforços institucionais, como da Organização Mundial de Saúde (OMS), que visava ampliar a perspectiva convencional do controle demográfico e do planejamento familiar. Segundo Maria Betânia Ávila (2003)ÁVILA, M. B. Direitos sexuais e reprodutivos: desafios para as políticas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, supl. 2, p. S465-S469, 2003., os direitos sexuais e reprodutivos são parte da promoção da cidadania e a sua violação reflete a quem de forma majoritária recai esses direitos: as mulheres (Ávila, 2003ÁVILA, M. B. Direitos sexuais e reprodutivos: desafios para as políticas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, supl. 2, p. S465-S469, 2003.). Ainda segundo a autora,

na perspectiva feminista aqui adotada, os direitos reprodutivos dizem respeito à igualdade e à liberdade na esfera da vida reprodutiva. Os direitos sexuais dizem respeito à igualdade e à liberdade no exercício da sexualidade. O que significa tratar sexualidade e reprodução como dimensões da cidadania e consequentemente da vida democrática. (Ávila, 2003ÁVILA, M. B. Direitos sexuais e reprodutivos: desafios para as políticas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, supl. 2, p. S465-S469, 2003., p. S466).

Ou seja, os direitos sexuais e reprodutivos têm uma trajetória ligada diretamente ao movimento feminista, mas também aos avanços institucionais relacionados ao que se chamava de saúde da mulher. Se por um lado o termo emana dos movimentos de mulheres, por outro ele é consolidado via instituições e formulações mais amplas de atenção à saúde que passam a lidar na prática com a realidade das mulheres afetadas por tais políticas. Se por um lado pautas como a contracepção, câncer de mama e colo de útero já ganharam reconhecimento no cenário atual de atenção à saúde da mulher, outras pautas continuam sendo levantadas e debatidas, como violência obstétrica,16 16 Sobre isso, ver Pulhez (2022). atendimento humanizado, cuidado com a saúde emocional, além da acessibilidade de mulheres a métodos contraceptivos.17 17 Em 2021 tornou-se pública a obrigatoriedade cobrada por planos de saúde do consentimento do cônjuge da mulher casada para a possibilidade de ter um DIU (Damasceno, 2021). Veremos que parte dessas pautas compõem termos que serão retirados da versão aprovada do PL 853/2019 na Comissão de Seguridade Social e Família.

Por trás da “ideologia de gênero”

A expressão “ideologia de gênero”, pauta utilizada pelo atual governo recorrentemente, teria sua origem nos debates do Vaticano como uma resposta à Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, em 1994, no Cairo, e a Conferência Mundial sobre as Mulheres, em 1995, em Pequim. O Vaticano via o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos como uma possível estratégia para o reconhecimento do aborto, ataques à maternidade tradicional e a possibilidade de legitimar a homossexualidade (Paternotte; Kuhar, 2018PATERNOTTE, D.; KUHAR, R. “Ideologia de gênero” em movimento. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 18, n. 43, p. 503-523, dez. 2018., p. 511). Nesse sentido, entendia-se que a família natural estaria em risco a partir da apropriação de categorias como gênero, que passariam então a ser utilizadas pela Igreja de forma ressignificada nas últimas décadas (Paternotte; Kuhar, 2018PATERNOTTE, D.; KUHAR, R. “Ideologia de gênero” em movimento. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 18, n. 43, p. 503-523, dez. 2018., p. 512). Maria das Dores Machado (2018MACHADO, M. das D. C. O discurso cristão sobre a “ideologia de gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 26, n. 2, p. 1-18, 2018. ) relata que, se nas disputas referentes aos documentos internacionais era o termo “gênero” que estava sendo negociado, essa disputa evolui e abarca o termo “ideologia” quando teólogos e sacerdotes fazem uma inversão do termo, que na Europa do século XIX era utilizada para apontar valores e ideais religiosos que deturpavam a realidade social. Ainda segundo a mesma autora, o termo “ideologia” era utilizado para “desqualificar não só a terminologia gênero, mas toda uma linha teórica que balizava as ações políticas das militantes no plano internacional” (Machado, M., 2018MACHADO, M. das D. C. O discurso cristão sobre a “ideologia de gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 26, n. 2, p. 1-18, 2018. , p. 4). Paternotte e Kuhar (2018)PATERNOTTE, D.; KUHAR, R. “Ideologia de gênero” em movimento. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 18, n. 43, p. 503-523, dez. 2018. apontam uma atual retomada de “ideologia de gênero”, que floresce num momento de ascensão de pautas e partidos de direita retomando discursos religiosos da década de 1990.

No Brasil a ascensão de políticos religiosos e/ou de partidos do que podemos chamar de ultradireita que tem acontecido nos últimos anos impulsiona de certa forma discursos sobre a “ideologia de gênero” ou contrários aos direitos sexuais e reprodutivos, levando a debates sobre possíveis ameaças em direitos já conquistados no país. Interessante frisar que “ideologia de gênero” e ataques a direitos sexuais e reprodutivos já vinham acontecendo nos anos que antecederam a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da república para os anos de 2019-2022, ainda que eles passem de certa a forma a ser diretrizes de governo, como vemos com o Decreto nº 10.570/2020 que “institui a Estratégia Nacional de Fortalecimento dos Vínculos Familiares e o seu Comitê Interministerial” (Brasil, 2020BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 10.570, de 9 de dezembro de 2020. Institui a Estratégia Nacional de Fortalecimento dos Vínculos Familiares e o seu Comitê Interministerial. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 158, n. 236, p. 11, 10 dez. 2020.), que torna a família tradicional uma diretriz de governo.

Porém isso também resulta do aumento e importância de pautas religiosas e da defesa da família tradicional para apoio do eleitorado que já vinha acontecendo, como vimos na disputa eleitoral de 2010 entre Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB) (Luna, 2018LUNA, N. A criminalização da “ideologia de gênero”: uma análise do debate na Câmara dos Deputados sobre diversidade sexual em 2015. Cadernos Pagu, Campinas, n. 50, 2018.; Machado, L., 2016MACHADO, L. Z. Feminismos brasileiros nas relações com o Estado. Cadernos Pagu, Campinas, n. 47, 2016.; Machado, M., 2012MACHADO, M. das D. C. Aborto e ativismo religioso nas eleições de 2010. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 7, p. 25-54, 2012.).18 18 Segundo Rosado-Nunes (2008), a Igreja Católica, ainda que tenha atuado em diversos temas em relação a promoção de direitos, como os contrários a ditadura e na defesa de uma cultura de direitos, não atuou da mesma forma no que cabe a direitos sexuais e reprodutivos, optando por uma abordagem em defesa da vida. Já o processo eleitoral seguinte, de 2014, cria uma correlação de forças favorável aos setores mais conservadores com a eleição de Eduardo Cunha (PMDB) para a presidência da Câmara dos Deputados, que desarquiva uma série de projetos que colidiam com demandas dos movimentos feministas e dos segmentos LGBT, criando várias comissões especiais para discutir temas de interesse cristão e de seus aliados, como o Estatuto da Família (Machado, M., 2017MACHADO, M. das D. C. Pentecostais, sexualidade e família no Congresso Nacional. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 23, n. 47, p. 351-380, 2017.). Nos anos seguintes esses mesmos discursos estariam também apoiados, como bem demonstra Silveira (2016)SILVEIRA, B. A. “Sob o céu azul de nuvens doidas da capital do meu país, nós legislamos!”: a ADI 4277 e o conceito de família na Câmara dos Deputados. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de Brasília, Brasília, 2016., num momento de disputas políticas em torno do processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT), que culminou dentro da Câmara dos Deputados numa motivação de defensores de uma moral conservadora. Essa nova conjuntura teria levado ao fortalecimento do “centrão”, bloco que traria à tona uma nova maioria no Congresso Nacional atrelada a interesses religiosos, ou seja, contrários às demandas LGBT, como o casamento (Silveira, 2016SILVEIRA, B. A. “Sob o céu azul de nuvens doidas da capital do meu país, nós legislamos!”: a ADI 4277 e o conceito de família na Câmara dos Deputados. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de Brasília, Brasília, 2016., p. 15-16).

No entanto, Jair Bolsonaro, antes mesmo de eleito presidente do país, enquanto deputado federal, já era figura ativa no discurso contrário à “ideologia de gênero” (Potechi; Ohlson, 2021POTECHI, B.; OHLSON, O. Bolsonarismo as gender ideology. Fieldsights, [s. l.], 15 Apr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://culanth.org/fieldsights/bolsonarismo-as-gender-ideology . Acesso em: 10 jan. 2022.
https://culanth.org/fieldsights/bolsonar...
). Ele já vinha se posicionando contrário à união civil de pessoas do mesmo sexo e fazendo campanha contra o que ficou conhecido como “kit gay”, se referindo a um material didático a ser distribuído pelo país sobre diversidade. O mesmo tema era frequentemente utilizado em sua campanha eleitoral para a presidência, atacando o seu rival, Fernando Haddad (PT), que seria o ministro da Educação que teria lançado o material que ele condenava.

Ou seja, o bolsonarismo, como tem sido chamado o “fenômeno político ultraconservador, que prega o retorno aos ‘valores tradicionais’ e se identifica como nacionalista e ‘patriota’, e que transcende a figura de Jair Bolsonaro” (Pinheiro-Machado; Freixo, 2019PINHEIRO-MACHADO, R.; FREIXO, A. (org.). Brasil em transe: bolsonarismo, novas direitas e desdemocratização. Rio de Janeiro: Cava, 2019.), surge a partir do casamento do conservadorismo de costumes e valores religiosos com o neoliberalismo. Segundo Letícia Cesarino (2019)CESARINO, L. Identidade e representação no bolsonarismo. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 62, n. 3, p. 530-557, 2019., essa aliança no contexto atual brasileiro espelha uma tendência global, resultado da crise financeira de 2008 que teria marcado o avanço de governos populistas conservadores e romperia com o neoliberalismo progressista (Cesarino, 2019CESARINO, L. Identidade e representação no bolsonarismo. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 62, n. 3, p. 530-557, 2019., p. 539). Como nos mostra Melinda Cooper (2017)COOPER, M. Family values: between neoliberalism and the new social conservatism. Cambridge: MIT Press, 2017. pensando o caso estado-unidense, a aliança de neoconservadores e neoliberais tem como ponto convergente a família. Assim, segundo a autora, a centralidade da família em tal modelo, ainda que possa a princípio parecer contraditória, é sensata, já que conservadores almejariam a defesa da instituição familiar tradicional, enquanto neoliberais a veriam como uma substituta do Estado em questões de manutenção de sujeitos vulneráveis, recolocando, portanto, a responsabilidade familiar como projeto político.

No Brasil, a agenda dessa aliança formada por católicos, evangélicos e outras bancadas conservadoras no Legislativo e sustentada por um governo neoliberal se opõe a direitos relacionados a gênero e sexualidade apoiada em argumentos desenvolvidos internacionalmente na década de 1990 em resposta às conferências do Cairo e de Pequim (Facchini; Sívori, 2017FACCHINI, R.; SÍVORI, H. Conservadorismo, direitos, moralidades e violência: situando um conjunto de reflexões a partir da Antropologia. Cadernos Pagu, Campinas, 2017.). É nesse contexto que a “ideologia de gênero” passa a ser utilizada a fim de barrar avanços legislativos relacionados à diversidade sexual e de gênero (Facchini; Sívori, 2017FACCHINI, R.; SÍVORI, H. Conservadorismo, direitos, moralidades e violência: situando um conjunto de reflexões a partir da Antropologia. Cadernos Pagu, Campinas, 2017.; Luna, 2018LUNA, N. A criminalização da “ideologia de gênero”: uma análise do debate na Câmara dos Deputados sobre diversidade sexual em 2015. Cadernos Pagu, Campinas, n. 50, 2018.). Como veremos a seguir com a tramitação do PL 853/2019 sobre uma “Semana Nacional de Conscientização dos Direitos da Gestante”, esses mesmos discursos têm atuado sobre possíveis direitos de gestantes e bebês no país.

A tramitação e as negociações dos termos

O PL 853/2019 foi apresentado em 19 de fevereiro de 2019 e fora designado à Comissão de Seguridade Social e Família e à Comissão de Constituição Justiça e Cidadania em regime de apreciação conclusiva, ou seja, não necessitando ir a plenário e ser aprovado por todos os deputados e deputadas após a aprovação nas comissões. Na Comissão de Seguridade Social e Família ele fora designado à deputada Carmen Zanotto (Cidadania) para relatoria. É com o seu parecer e proposta de substitutivo que o projeto inicial, de três artigos, sucinto, ganha corpo e maiores descrições. O substitutivo apresentado fora construído conjuntamente com a Frente Nacional da Primeira Infância e muda a ementa do projeto para “Semana Nacional de Conscientização sobre Direitos das Gestantes E DE mães com criança na Primeira Infância” (destaques no original). Das mudanças no substitutivo está a ampliação para mães e crianças da primeira infância até os mil dias de vida. Além disso, ampliação do artigo 2º de um parágrafo para 7 incisos, descrevendo direitos, a promoção da parentalidade, e inclusão de parágrafos sobre mulheres privadas de liberdade e deficientes.

Em dezembro de 2019 o parecer da relatora Carmen Zanotto (Cidadania) entra na pauta da Comissão de Seguridade Social e Família para discussão e votação e, segundo indica a página de tramitação da matéria, ele é “retirado de pauta por acordo”. No registro de vídeo vejo como e quando o acordo aconteceu. Naquela mesma reunião, a última do ano, estavam em votação relatórios das subcomissões criadas pela comissão, como a Subcomissão da Mulher. Durante a apresentação para votação do relatório (que discutia pautas sobre a reforma previdenciária para mulheres) a deputada Chris Tonietto (PSL) pede vista ao relatório. Um pedido de vista retiraria de pauta por determinado tempo a matéria e a permitiria retornar para votação. Porém, como se tratava de um relatório das atividades anuais, ele não seria votado, já que aquela era a última reunião do ano e o relatório deveria ser aprovado ainda naquele ano, ou seja, era a última oportunidade para sua aprovação. A deputada Benedita da Silva (PT) pede fala e em tom explicativo diz que o relatório é um material de estudo de um ano, portanto, importante de ser aprovado para ficar como um documento da comissão para o futuro. A deputada Fernanda Melchionna (PSOL) sugere que Chris Tonietto faça um voto em separado, pois isso permitiria a aprovação mas registraria nela o posicionamento contrário da deputada ao relatório. Chris Tonietto fala que faz o voto em separado se for retirado de pauta o item referente ao PL 853/2019. A presidência da comissão explica que o item retirado de pauta pode retornar para apreciação no próximo ano, o que não aconteceria com o relatório, e rapidamente o acordo é feito.

Após essa reunião o parecer só retornará para a pauta da comissão em 2021. Em 8 de abril de 2021 a página de tramitação registra “designado relatora substituta, deputada Vivi Reis (PSOL-PA) proferido o parecer pela relatora substituta, dep. Vivi Reis nos termos do parecer apresentado pela dep. Carmen Zanotto. Vista à deputada dra. Soraya Manato.” A deputada Vivi Reis (PSOL) teria assumido a relatoria substituta, pois a deputada Carmen Zanotto (Cidadania) estava de licença, e a deputada Soraya Manato (PSL) teria pedido vista, pois segundo relata na reunião da comissão a deputada de seu partido Chris Tonietto (PSL), que não estava presente naquela reunião, queria estudar melhor o relatório. Após o pedido de vista o relatório é retirado da pauta.

Em 27 de abril, quando o parecer volta para a pauta, é apresentado pela deputada Chris Tonietto (PSL) voto em separado acompanhado de substitutivo ao parecer da relatora, cujo trecho foi citado anteriormente. Ele entra na pauta da reunião do dia 28 de abril. Na reunião o parecer é lido pela deputada Vivi Reis (PSOL) e na sequência é lido o voto em separado pela deputada Chris Tonietto. Após as leituras abre-se a discussão da matéria. O deputado Alexandre Padilha (PT) comenta então o voto em separado da deputada Chris Tonietto; a seguir transcrevo trechos em que ele pontua algumas mudanças do substitutivo, texto que substituiria aquele em votação para virar lei, que acompanha o voto em separado da deputada, onde ela justifica seu posicionamento contrário ao parecer e substitutivo em votação, aquele elaborado por Carmen Zanotto (Cidadania) e reapresentado por Vivi Reis.

Alexandra Padilha: […] queria ressaltar alguns pontos do seu voto em separado porque não posso concordar com eles […] Pela fala da senhora parecia que estava tentando evitar que a semana possa ser certa promoção da cultura do aborto, mas [não] para o voto em separado que a senhora apresentou. Respeitando o voto, mas não posso concordar com vários pontos do seu voto em separado. Por exemplo, ele propõe que se tire “divulgação dos direitos relacionados à saúde física e emocional das gestantes e mães de bebês” para que tire, né, para transformar em “divulgação dos cuidados relacionados à saúde das gestantes e mães de bebês”. Ou seja, ele tira a importância que é fundamental, e eu quero reforçar isso para a senhora, é fundamental em primeiro lugar esse ponto ressaltado pela relatora e pela autora do projeto de não só [ressaltar] questões físicas, mas emocionais […] A senhora propõe retirar do direito da mulher relacionado ao bebê o trecho “a frequência à creche”. […] Não entendo como a retirada desse trecho tem qualquer relação com o debate sobre aborto. […] Mais ainda, queria reforçar mais um item, na parte do desenvolvimento da primeira infância a senhora propõe suprimir o trecho que diz o seguinte “com ênfase nos primeiros mil dias incluindo o brincar nos espaços domésticos e comunitários e na creche”. […] (Comissão…, 2021aCOMISSÃO de Seguridade Social e Família - Discussão e votação de propostas - 28/04/2021. [S. l.: s. n.], 28 abr. 2021a. 1 vídeo (189min). Publicado pelo canal Câmara dos Deputados. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lkJ5IX4B9Yk&list=TLGG2PZdAsVJlG8wOTEyMjAyMg . Acesso em: 5 set. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=lkJ5IX4B...
).19 19 Fala transcrita do vídeo da reunião.

Na sequência a deputada Jandira Feghali (PCdoB) debate o conteúdo do voto em separado contrário ao termo “planejamento familiar”.

Jandira Feghali: […] eu considero que o relatório da deputada Vivi Reis é um relatório bem cuidado, muito cuidado, e que reconhece as diversas necessidades e situações do país. Quando ela utiliza aqui os termos “planejamento reprodutivo”, ela está usando o termo que é utilizado na vida atual, na vida moderna, nos conceitos modernos da medicina. […] e a gente quando fala planejamento reprodutivo, e nas leis que aqui fizemos, nós estamos falando de planejamento familiar. Nós não estamos falando de interrupção da gravidez, nós estamos falando do conjunto da assistência integral à saúde da mulher e o planejamento de quantos filhos você quer ter, e da possibilidade de acessar todos os métodos. […] Nós não estamos falando de aborto, pelo amor de Deus, isso é muita neurose […].

Já as falas favoráveis ao voto em separado se pautam na defesa pela vida e contrários ao aborto, como a fala das deputadas Soraya Manato (PSL) e Liziane Bayer (PSB), que transcrevo a seguir.

Soraya Manato: […] em relação a esse projeto de lei o que nos preocupa realmente é o que está por trás de determinados termos, né. Eu, sendo conservadora e evangélica, também sou totalmente contra o aborto. E sou médica. Então eu sou defensora da vida, então tem termos que às vezes se usam, e às vezes estão embutidos alguns subterfúgios, “violência obstétrica”, “direitos sexuais e reprodutivos”. Não concordamos [sobre] a melhor forma de exercerem sua vida reprodutiva e controle de natalidade. Decidir ter ou não ter filhos. Direito ao aborto legal e seguro. […] E muito nos preocupa esses projetos que usam essas frases que dão margem para interpretação dupla.

Liziane Bayer: Eu fui mãe há 18 anos atrás. […] E sofri sim pra ter o meu bebê. […] Com o passar do tempo, conversando com alguns médicos, ficou evidenciado que lá atrás, que o que eu vivi foi uma violência obstétrica. […] A gente sabe de todas essas coisas hoje. Então é necessário sim levar a informação. Por isso eu parabenizo a intenção original do projeto de falar sobre essa informação que empodera a mulher. Mas eu também vejo que nós todos aqui precisamos trabalhar esse respeito ao que a mulher pensa quando se é apresentado um pensamento diferente. […] E mulher precisa ser respeitada pelas outras mulheres. […] Eu também tenho as minhas preocupações em relação à legislação que trata da mulher, das gestantes, exatamente por questões ideológicas que são trazidas de forma até mesmo subliminares dentro dos projetos que nós temos direito de criticar, de apontar, que nós temos o direito de apresentar relatórios substitutivos, projeto de lei substitutivo […].

Após as falas, o relatório da deputada Vivi Reis (PSOL) é votado, sendo rejeitado por 22 votos a 19.20 20 Resultado da primeira votação. Votaram contra o parecer e substitutivo: Chris Tonietto (PSL-RJ), Dr. Luiz Ovando (PSL-MS), Dra. Soraya Manato (PSL-ES), Márcio Labre (PSL-RJ), Bibo Nunes (PSL-RS), Pedro Westphalen (PP-RS), Ricardo Barros (PP-PR), Alan Rick (DEM-AC), Dr. Zacharias Calil (DEM-GO), David Soares (DEM-SP), Dulce Miranda (MDB-TO), Miguel Lombardi (PL-SP), Dr. Jaziel (PL-CE), Francisco Jr. (PSD-GO), Liziane Bayer (PSB-RS), Aline Gurgel (Republicanos-AP), Ossesio Silva (Republicanos-PE), Josivaldo JP (Podemos-MA), Diego Garcia (Podemos-PR), Paula Belmonte (Cidadania-DF), Carla Dickson (PROS-RN), Adriana Ventura (Novo-SP). Votaram a favor do parecer e substitutivo: Eduardo da Fonte (PP-PE), Hiran Gonçalves (PP-RR), Marx Beltrão (PSD-AL), Marco Bertaiolli (PSD-SP), Eduardo Barbosa (PSDB-MG), Tereza Nelma (PSDB-AL), Flávio Nogueira (PDT-PI), Leandre (PV-PR), Flávia Morais (PDT-GO), Pastor Isidório (Avante-BA), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Alexandre Padilha (PT-SP), Benedita da Silva (PT-RJ), Jorge Solla (PT-BA), Padre João (PT-MG), Arlindo Chinaglia (PT-SP), Luciano Ducci (PSB-PR), Odorico Monteiro (PSB-CE), Vivi Reis (PSOL-PA) (Brasil, 2021b). Começa então um debate sobre irregularidade na votação, e após a decisão de anulação da votação do parecer essa mesma decisão acaba sendo revogada na próxima reunião da comissão. Na reunião do dia 5 de maio de 2021, o presidente da comissão, deputado Luizinho (PP), diz que, após questão de ordem apresentada pela deputada Chris Tonietto (PSL), decide revogar a anulação da votação do dia 28 de abril e pede para que Chris Tonietto apresente um relatório substitutivo, já que, segundo ele, é de praxe que quem apresentou voto em separado seja designada como relatora substituta. O relatório de Chris Tonietto entraria na pauta no dia seguinte.

Na reunião do dia seguinte, 6 de maio, a deputada Chris Tonietto (PSL) faz a leitura do seu (agora) parecer. O deputado Alexandre Padilha (PT) pede fala e diz que tem dúvida se mudou algo do que foi apresentado na semana passada como voto em separado. A deputada Chris Tonietto alega que é o mesmo texto do voto em separado transformado em parecer. Ou seja, o texto do voto em separado foi apenas transformado em relatório que seria debatido pela comissão.

Sâmia Bomfim (PSOL), Jandira Feghali (PCdoB) e Benedita da Silva (PT) fazem falas pedindo por um terceiro relatório, um que busque um diálogo com todas as deputadas envolvidas. Sâmia Bomfim e Vivi Reis (PSOL) retomam o percurso do parecer, que teria sido elaborado por Carmem Zanotto (Cidadania), a quem elas alegam que não tinha interesse em incluir termos que poderiam se encaixar na expressão “ideológicos”, utilizada por Tonietto (PSL). A deputada Chris Tonietto faz uma fala explicando o motivo de defender que o partido PSOL usa termos de expressão ideológica, no caso “planejamento reprodutivo”, como forma de promoção do aborto.

[…] sobre o termo “planejamento reprodutivo” não sou eu que estou dizendo que isso pode de algum modo abrir um precedente para aborto. Quem diz isso é exatamente o PSOL. Eu faço questão de ler rapidamente o que está contido na página 12 da ADPF 44221 21 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442, ajuizada pelo partido PSOL no Supremo Tribunal Federal, que propõe a interrupção voluntária da gravidez até o terceiro mês de gestação. que foi ajuizada por esse partido perante a Suprema Corte. E diz o seguinte: “A criminalização do aborto viola a previsão de direitos sexuais e reprodutivos em compromissos internacionais ao não permitir às mulheres viver a sexualidade livre de coerção, discriminação ou violência, decidir livre e responsavelmente sobre os números e espaçamento dos seus filhos e gozar do mais alto padrão da saúde sexual e reprodutiva”. Então aqui o próprio PSOL, ele deixa claro o que significa direitos sexuais e reprodutivos quando do ajuizamento da ADPF 442. Como disse que foi ali ajuizada perante o STF no ano de 2017, salvo engano. Enfim […] fiz questão de mostrar da onde vem o termo. Embora muitos digam [que] é uma questão científica, se fosse realmente uma questão científica, o próprio aborto, por assim dizer, ele não poderia estar sendo discutido. Porque o aborto, a promoção do aborto, já é anticiência porque existe a concepção, né, a vida desde a concepção. E isso é uma evidência científica. Então não se pode permitir, não se poderia permitir, o assassinato intrauterino. Então, nesse sentido […] (Comissão…, 2021bCOMISSÃO de Seguridade Social e Família - Discussão e votação de proposições - 06/05/2021. [S. l.: s. n.], 6 maio. 2021b. 1 vídeo (129min). Publicado pelo canal Câmara dos Deputados. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qEhv9Ez74eo&list=TLGGURlkoas3vo4wOTEyMjAyMg . Acesso em: 5 set. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=qEhv9Ez7...
).22 22 Fala transcrita do vídeo da reunião.

Nessa fala a deputada concorda em retirar da pauta o projeto de lei e retomar a apreciação do parecer para que ele seja elaborado levando em consideração pontos de outros parlamentares, ou seja, reelaborar o substitutivo que fora apresentado com seu voto em separado na última reunião e reapresentado como substitutivo da relatoria.

Dessa data até o dia 7 de julho a matéria esteve na pauta e foi repetidamente retirada de pauta, ou pela própria relatora, para reescrever o substitutivo levando em consideração contribuição de outras deputadas, ou por outros parlamentares, que discordavam da forma como o substitutivo fora apresentado e vinha para a discussão.

Na reunião do dia 7, antes de ser iniciada a discussão da matéria, o parecer fora lido pela deputada Chris Tonietto (PSL), parecer que continuava com praticamente a mesma redação do voto em separado, que justificava a supressão de termos de cunho ideológico e de certa forma atacava a relatoria e autoria do projeto por tentar promover o aborto, ainda que o texto a ser votado como substitutivo já não contivesse a expressão “planejamento reprodutivo”, única expressão de “cunho ideológico” citada no parecer.

No debate que antecede a votação, os deputados Jandira Feghali (PCdoB) e Alexandre Padilha (PT), que vinham acompanhando as discussões sobre o projeto de lei semanalmente e tentando contribuir com o substitutivo apresentado por Chris Tonietto (PSL), apresentam novamente suas preocupações, como vemos abaixo.

Jandira Feghali: […] penso que nós não vamos mudar a cabeça e o pensamento e a concepção da deputada Chris Tonietto, que não consegue absorver o conceito dos direitos sexuais e reprodutivos. E não era esse o debate deste projeto. Em nenhum momento esteve em debate a questão dos direitos sexuais e reprodutivos. E acho que o conceito dos direitos sexuais e reprodutivos é um conceito correto, moderno, abrangente e democrático para as mulheres. Mas eu quero dizer que não era este o debate do projeto. Esse projeto era uma campanha de divulgar os direitos das mulheres gestantes e dos bebês para o Brasil. […] Mas nesse projeto nós estamos debatendo apenas as orientações dos direitos das mulheres gestantes e seus filhos, e penso que o relatório da deputada Chris Tonietto, apesar de ter absorvido algumas questões, ela não mudou, é, a concepção em relação a determinados conceitos do cuidado físico e emocional das mulheres, a questão de conceber que o pai ou parceiro, ou companheiro […]. Continua sendo um relatório preconceituoso em relação a termos que deveria incorporar na legislação. Então eu penso que apesar de ser um relatório que teve contribuições incorporadas como a que fiz sobre aleitamento materno, ainda é um relatório que embute muito preconceito em relação a termos muito importantes e em relação a determinados acolhimentos e acatamentos em relação ao desenvolvimento físico e emocional da mulher.

Alexandre Padilha: […] a deputada traz um conjunto de informações e eu queria reforçar aquilo que disse a deputada Jandira Feghali, parece querer mais afirmar a sua posição e atacar de forma preconceituosa ou tentar desqualificar como são construídas as recomendações da Organização Mundial da Saúde, da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, das conferências nacionais de saúde do nosso país, de todo um histórico […] mais uma vez o conteúdo do relatório tenta atacar essa tradição […] é um relatório que busca confrontar […]. Terceiro, o relatório apresentado continua retirando, é…, palavras, afirmações de direitos, que são na minha opinião […] inegociáveis porque são direitos construídos pela Constituição brasileira. São inegociáveis porque são questões que afetam o dia a dia das mulheres […] O que as mães e as mulheres e nós homens temos que garantir para essas mulheres é direito, não é um ato de caridade […] por que esconder que as mulheres têm direitos? […] Por que retirar a expressão “companheiro”? […] Nós queremos dar visibilidade […]. (Seguridade…, 2021SEGURIDADE Social e Família - Discussão e votação de propostas - 07/07/2021. [S. l.: s. n.], 7 jul. 2021. 1 vídeo (193min). Publicado pelo canal Câmara dos Deputados. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jXpKis2-tKk&list=TLGG6E79NvNV7zAwOTEyMjAyMg . Acesso em: 5 set. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=jXpKis2-...
).23 23 Falas transcritas do vídeo da reunião.

Com o resultado de 25 votos favoráveis a 21 votos contrários o parecer com substitutivo da deputada Chris Tonietto (PSL) foi aprovado.24 24 Votaram “sim” pela aprovação do substitutivo os seguintes deputados: Chris Tonietto (PSL-RJ), Dr. Luiz Ovando (PSL-MS), Dra. Soraya Manato (PSL-ES), Márcio Labre (PSL-RJ), Felício Laterça (PSL-RJ), Ricardo Barros (PP-PR), Hiran Gonçalves (PP-RR), Alan Rick (DEM-AC), Dr. Zacharias Calil (DEM-GO), Osmar Terra (MDB-RS), Geovania de Sá (PSDB-SC), José Rocha (PL-BA), Francisco Jr. (PSD-GO), Marx Beltrão (PSD-AL), Marco Bertaiolli (PSD-SP), Liziane Bayer (PSB-RS), Aline Gurgel (Republicanos - AP), Ossesio Silva (Republicanos-PE), Pr. Marco Feliciano (Republicanos-SP), Roberto de Lucena (Podemos-SP), Diego Garcia (Podemos-PR), Pastor Isidório (Avante-BA), Alcides Rodrigues (Patriota-GO), Carla Dickson (PROS-RN), Marina Santos (Solidariedade-PI). Votaram “não”, contrários a aprovação do substitutivo os seguintes deputados: Ricardo Silva (PSB-SP), Profa. Dorinha (DEM-TO), Chico D’Angelo (PDT-RJ), Eduardo Barbosa (PSDB-MG), Tereza Nelma (PSDB-AL), Flávio Nogueira (PDT-PI), Leandre (PV-PR), Eduardo Costa (PTB-PA), Totonho Lopes (PDT-CE), Carmen Zanotto (Cidadania-SC), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Alexandre Padilha (PT-SP), Benedita da Silva (PT-RJ), Jorge Solla (PT-BA), Rejane Dias (PT-PI), Padre João (PT-MG), Valmir Assunção (PT-BA), Luciano Ducci (PSB-PR), Odorico Monteiro (PSB-CE), Vivi Reis (PSOL-PA), Adriana Ventura (Novo-SP) (Brasil, 2021c). O projeto de lei foi remetido à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, onde seguiu sua tramitação. Atualmente o projeto de lei aguarda votação do parecer do relator Diego Garcia (Podemos) pela sua aprovação na Comissão de Constituição Justiça e Cidadania.25 25 Última consulta realizada em janeiro de 2022.

Dos termos e versões do projeto de lei

Para fins de análise das disputas que aconteciam em torno da definição de termos que deveriam entrar ou ser suprimidos no texto final aprovado enquanto substitutivo, comparo a seguir três versões de substitutivos apresentados ao projeto de lei original da deputada Sâmia Bomfim (PSOL), ainda que existam versões intermediárias reapresentadas pelas mesmas deputadas durante os debates e reuniões da comissão. A fim de nos fazer visualizar as mudanças nas versões em debate e votação, as versões escolhidas foram a versão apresentada pela deputada Carmen Zanotto (Cidadania) em 29 de outubro de 2019, o voto em separado apresentado com substitutivo da deputada Chris Tonietto (PSL), que posteriormente foi transformado em parecer e substitutivo, e o parecer e substitutivo final aprovado pela comissão e apresentados pela deputada Chris Tonietto.

Como vemos no Quadro 1 a expressão “cuidados” substitui o termo “direitos” em diversas passagens. Alguns desses termos retornam na versão aprovada pela comissão, mas não todas as citações de “direitos”. A condição “física e mental” da assistência oferecida, assim como o termo “planejamento reprodutivo” ou apenas “planejamento”, são retirados do texto. Direitos “sociais” são removidos do substitutivo, assim como a “promoção da parentalidade”, a figura do “companheiro” e “parceiro”, e também a “divisão” das tarefas domésticas. A expressão, também discutida em debates pelos parlamentares, “incluindo o brincar nos espaços doméstico e comunitário e na creche” é removida das versões apresentadas por Chris Tonietto (PSL). No entanto, a “frequência à creche” é retirada do voto em separado, mas retorna na versão aprovada como “direito ao acesso à creche”.

Quadro 1
Comparação das versões substitutivas apresentadas ao PL 853/2019 com destaque para os termos modificados

Algumas considerações

Se por um lado os direitos sexuais e reprodutivos, ao serem admitidos em políticas públicas no país, ampliaram o acesso de mulheres à saúde, além de ampliarem formas possíveis de exercício da sexualidade, vemos hoje como o debate em torno desses direitos está associado a casos de possível defesa e enfrentamento de um modelo conservador e religioso de família, de sexualidade, onde o aborto aparece como talvez o ápice dos desvios das condutas e práticas aceitáveis.

Pensar que, se para o Vaticano a ampliação da “saúde da mulher” para “direitos reprodutivos” incluindo outros tópicos além do ciclo gravídico parecia desestabilizar noções de família e promover a homossexualidade, assim como o aborto, vemos no debate sobre o PL 853/2019 que é o planejamento reprodutivo, o cuidado humanizado da gestante, a divisão sexual do trabalho doméstico, a figura do parceiro ou companheiro da gestante na gestação que não necessariamente o pai que parecem ameaçar valores conservadores defendidos por atores como a deputada Chris Tonietto (PSL).

Ainda que o projeto seja considerado meritório, ele parece dividir opiniões ao se colocar de certa forma no ponto de encontro entre aqueles que defendem os direitos sexuais e reprodutivos como meio de acesso à cidadania e aqueles que condenam tais direitos como práticas hábeis para confrontar uma ideia tradicional de família e possibilitar práticas de aborto. Ou seja, a reprodução humana centrada na figura da gestante é importante nesses dois discursos; de um lado está a continuidade da família e de outro a consagração de direitos para tais mulheres. Porém, os papéis designados aos sujeitos envolvidos (mãe, pai, parceiro) ou mesmo ao Estado são claramente distintos nessas abordagens. Para os defensores dos direitos sexuais e reprodutivos o Estado deve garantir direitos à mulher e ao bebê, enquanto os contrários suprimem direitos e consequentemente a obrigação do Estado, como resposta. Cuidados (sem especificar de quem) substituem direitos, o que parece retornar a uma ótica de direcionamento da responsabilidade estatal para a família, além de reforçar a naturalidade materna.

Seguindo a reflexão de Melinda Cooper (2017)COOPER, M. Family values: between neoliberalism and the new social conservatism. Cambridge: MIT Press, 2017., se de um lado existe um fortalecimento da instituição familiar pensada pelos modelos conservadores, de outro lado seu fortalecimento representa uma diminuição da responsabilidade estatal para com indivíduos que possam vir a ser tutelados por eles - desde mães solteiras, pessoas com deficiência, crianças, idosos. Nesse sentido, família aparece como um projeto político principalmente quando pensamos em governos que emanam dessa convergência entre neoliberalismo e conservadorismo, que também é o caso do atual governo brasileiro, do qual a deputada Chris Tonietto (PSL) faz parte. Dessa forma, ao reforçar a instituição familiar o Estado é exonerado de obrigações para com os sujeitos; a criança vira responsabilidade da família, assim como idosos, deficientes. Ao mesmo tempo, ao se diminuir as responsabilidades estatais, lidas aqui como direitos, reforça-se a instituição que deve responder por tais obrigações e se encarregar dela, ou seja, a família.

Já olhando para o caso brasileiro, Flávia Biroli (2018)BIROLI, F. Reação conservadora, democracia e conhecimento. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 61, n. 1, p. 83-94, 2018. vê que o recente avanço de políticas neoliberais tem fomentado uma maior responsabilização privada das famílias, principalmente referente ao cuidado para com os seus membros, o que recai majoritariamente sobre as mulheres na figura da mãe e desresponsabiliza o Estado de funções assumidas por tais mulheres. Estamos talvez diante de uma disputa política do sujeito “mãe” e “gestante” e consequentemente da forma como o Estado deve olhar para essa mulher durante o ciclo gravídico e para seu filho (até os mil dias de vida).26 26 Roberto Efrem Filho e Breno Marques de Mello (2021) demonstram uma disputa do sujeito político “mãe” no governo de Jair Bolsonaro. Aqui vemos que existe também uma disputa política sobre como devem determinadas mães ser geridas pelo Estado. De um lado, temos uma tentativa de ampliação e promoção de direitos. De outro, um reducionismo, associado à condição materna inata, do ciclo gravídico como condição da mulher e não como momento que deveria ser tutelado pelo Estado.

Portanto, se os direitos sexuais e reprodutivos surgem num momento de florescimento de direitos para determinados sujeitos, principalmente mulheres, num processo de conquista e ampliação de reconhecimento enquanto cidadãs, vemos, num movimento contrário, que ir contra tais direitos, sob a justificativa de proteção da família, reforçando elementos como o “cuidado” no lugar de “direitos”, é diminuir tais sujeitos enquanto cidadãs frente ao Estado. Ou, ainda, ao suprimir diversos direitos e avanços em relação à gestação, ao parto e puerpério (como tratamento humanizado, considerações sobre saúde emocional, o brincar da criança), retoma-se o ciclo gravídico como elemento a substituir a concepção de direitos sexuais e reprodutivos, ou seja, uma tentativa de resumir a saúde da mulher à visão do Estado de antes do PAISM.

O que eu me pergunto com as discussões sobre a tramitação desse projeto de lei é quais ameaças a transformação da gestante em paciente humanizada pode ter para aqueles que repudiam os direitos sexuais e reprodutivos. Como a divulgação de direitos e não apenas de cuidado pode ameaçar a ótica conservadora ou promover o aborto? Como a saúde física e emocional da gestante ou a existência de um parceiro podem corromper essa lógica? A resposta parece apontar para uma desconstrução do lugar da mulher enquanto cidadã, numa tentativa de reforçar aspectos maternos como naturais à mulher e diminuir seu espaço enquanto sujeito detentor de direitos, mas cheio de obrigações inatas para com a família.

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  • VIVI REIS. Brasília: Vivi Reis, 2022. Disponível em: Disponível em: https://vivireis.com.br/ Acesso em: 9 set. 2022.
    » https://vivireis.com.br/
  • 1
    Este artigo é resultado da pesquisa de pós-doutorado financiada pelo Programa Institucional de Internacionalização da Capes, processo n. 88887.577045/2020-00.
  • 2
    Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 pelo PSL; quando a pesquisa foi realizada em 2021 ele estava sem partido, e em 2022 se filiou ao PL para disputar a reeleição. Mantive no texto o partido ao qual cada parlamentar estava filiado no momento da realização da pesquisa.
  • 3
    Substitutivo é o texto apresentado contendo modificações em uma versão anterior de projeto de lei em apreciação. Ele, se aprovado, substitui a versão anterior.
  • 4
    Em fala proferida no lançamento do livro Etnografia de documentos: pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias, organizado por Letícia Ferreira e Laura Lowenkron (cf. Lançamento…, 2020LANÇAMENTO do livro e debate Etnografia de Documentos. [S. l.: s. n.], 4 jun. 2020. 1 vídeo (114min). Publicado pelo canal PPGSC IMS-UERJ. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p9X5MhxX-lU . Acesso em: 5 set. 2022.
    https://www.youtube.com/watch?v=p9X5MhxX...
    ).
  • 5
    A comissão teve reuniões com a frequência de uma ou duas vezes na semana.
  • 6
    Em Potechi (2018)POTECHI, B. Fazer mulher, fazer lei: uma etnografia da produção de leis no Congresso Nacional Brasileiro. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2018. faço uma distinção entre os artefatos que podem ser compreendidos como “documentos” em etnografias do processo legislativo.
  • 7
    Voto em separado apresentado por parlamentar é o voto divergente do conteúdo em votação apresentado por relator da matéria.
  • 8
    Parecer a um projeto de lei é elaborado pelo relator da matéria em uma comissão, ele pode ser favorável ou contrário à matéria e pode vir apensado a ele um substitutivo.
  • 9
    Chris Tonietto foi eleita em 2018 pelo estado do Rio de Janeiro pelo PSL, mesmo partido que elegeu Bolsonaro. Ela é católica e defende os “valores cristãos” e em 2022 concorre à reeleição pelo PL, mesmo partido que Bolsonaro.
  • 10
    O relatório pode constituir um parecer, sendo uma das partes apresentadas e sujeitas à apreciação. É muitas vezes utilizado como sinônimo de parecer na fala dos parlamentares.
  • 11
    Após aprovação na Comissão de Seguridade Social e Família, o PL seria encaminhado para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e depois remetido ao Senado Federal.
  • 12
    Na votação do parecer de Vivi Reis (PSOL) o deputado Pastor Sargento Isidório (Avante) mudou de posição, primeiramente se posicionando contra o relatório de Vivi Reis (PSOL) por se declarar contrário ao aborto, e posteriormente mudando seu voto por entender que o projeto não se tratava disso, mas de garantir a promoção de direitos de gestantes e seus bebês.
  • 13
    O PPS, Partido Popular Socialista, teve seu nome alterado para Cidadania em 2019. Nas próximas citações que incluam integrantes do partido utilizarei “Cidadania”.
  • 14
    Vivi Reis foi eleita em 2018 pelo PSOL no Pará. Consta em página da sua campanha para as eleições de 2022 que é “amazônida, feminista, socialista, bissexual e trabalhadora da saúde” (Vivi Reis, 2022VIVI REIS. Brasília: Vivi Reis, 2022. Disponível em: Disponível em: https://vivireis.com.br/ . Acesso em: 9 set. 2022.
    https://vivireis.com.br/...
    ).
  • 15
    O planejamento reprodutivo está consolidado e previsto na Constituição Federal, promulgada em 1988, no artigo 226, garantindo ao “homem, mulher e/ou casal escolher o momento adequado de ter filhos e de quantos filhos deseja ou não ter” (Gutmann et al., 2020GUTMANN, V. L. R. et al. Planejamento reprodutivo: um relato de experiência multidisciplinar. Revista Conexão UEPG, Ponta Grossa, v. 16, n. 1, e2013676, 2020.).
  • 16
    Sobre isso, ver Pulhez (2022)PULHEZ, M. M. Autonomia, consentimento e informação de qualidade: controvérsias e disputas na construção da violência obstétrica no Brasil. 2022. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2022..
  • 17
    Em 2021 tornou-se pública a obrigatoriedade cobrada por planos de saúde do consentimento do cônjuge da mulher casada para a possibilidade de ter um DIU (Damasceno, 2021DAMASCENO, V. Seguros de saúde exigem consentimento do marido para inserção do DIU em mulheres casadas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 3 ago. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/08/seguros-de-saude-exigem-consentimento-do-marido-para-insercao-do-diu-em-mulheres-casadas.shtml . Acesso em: 2 dez. 2021.
    https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio...
    ).
  • 18
    Segundo Rosado-Nunes (2008)ROSADO-NUNES, M. J. Direitos, cidadania das mulheres e religião. Tempo Social, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 67-81, 2008., a Igreja Católica, ainda que tenha atuado em diversos temas em relação a promoção de direitos, como os contrários a ditadura e na defesa de uma cultura de direitos, não atuou da mesma forma no que cabe a direitos sexuais e reprodutivos, optando por uma abordagem em defesa da vida.
  • 19
    Fala transcrita do vídeo da reunião.
  • 20
    Resultado da primeira votação. Votaram contra o parecer e substitutivo: Chris Tonietto (PSL-RJ), Dr. Luiz Ovando (PSL-MS), Dra. Soraya Manato (PSL-ES), Márcio Labre (PSL-RJ), Bibo Nunes (PSL-RS), Pedro Westphalen (PP-RS), Ricardo Barros (PP-PR), Alan Rick (DEM-AC), Dr. Zacharias Calil (DEM-GO), David Soares (DEM-SP), Dulce Miranda (MDB-TO), Miguel Lombardi (PL-SP), Dr. Jaziel (PL-CE), Francisco Jr. (PSD-GO), Liziane Bayer (PSB-RS), Aline Gurgel (Republicanos-AP), Ossesio Silva (Republicanos-PE), Josivaldo JP (Podemos-MA), Diego Garcia (Podemos-PR), Paula Belmonte (Cidadania-DF), Carla Dickson (PROS-RN), Adriana Ventura (Novo-SP). Votaram a favor do parecer e substitutivo: Eduardo da Fonte (PP-PE), Hiran Gonçalves (PP-RR), Marx Beltrão (PSD-AL), Marco Bertaiolli (PSD-SP), Eduardo Barbosa (PSDB-MG), Tereza Nelma (PSDB-AL), Flávio Nogueira (PDT-PI), Leandre (PV-PR), Flávia Morais (PDT-GO), Pastor Isidório (Avante-BA), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Alexandre Padilha (PT-SP), Benedita da Silva (PT-RJ), Jorge Solla (PT-BA), Padre João (PT-MG), Arlindo Chinaglia (PT-SP), Luciano Ducci (PSB-PR), Odorico Monteiro (PSB-CE), Vivi Reis (PSOL-PA) (Brasil, 2021bBRASIL. Câmara dos Deputados. Votação do parecer da relatora ao PL 853/2019 (nominal). Brasília: Câmara dos Deputados, 28 abr. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/presenca-comissoes/votacao-portal?reuniao=61130 . Acesso em: 2 set. 2022.
    https://www.camara.leg.br/presenca-comis...
    ).
  • 21
    Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442, ajuizada pelo partido PSOL no Supremo Tribunal Federal, que propõe a interrupção voluntária da gravidez até o terceiro mês de gestação.
  • 22
    Fala transcrita do vídeo da reunião.
  • 23
    Falas transcritas do vídeo da reunião.
  • 24
    Votaram “sim” pela aprovação do substitutivo os seguintes deputados: Chris Tonietto (PSL-RJ), Dr. Luiz Ovando (PSL-MS), Dra. Soraya Manato (PSL-ES), Márcio Labre (PSL-RJ), Felício Laterça (PSL-RJ), Ricardo Barros (PP-PR), Hiran Gonçalves (PP-RR), Alan Rick (DEM-AC), Dr. Zacharias Calil (DEM-GO), Osmar Terra (MDB-RS), Geovania de Sá (PSDB-SC), José Rocha (PL-BA), Francisco Jr. (PSD-GO), Marx Beltrão (PSD-AL), Marco Bertaiolli (PSD-SP), Liziane Bayer (PSB-RS), Aline Gurgel (Republicanos - AP), Ossesio Silva (Republicanos-PE), Pr. Marco Feliciano (Republicanos-SP), Roberto de Lucena (Podemos-SP), Diego Garcia (Podemos-PR), Pastor Isidório (Avante-BA), Alcides Rodrigues (Patriota-GO), Carla Dickson (PROS-RN), Marina Santos (Solidariedade-PI). Votaram “não”, contrários a aprovação do substitutivo os seguintes deputados: Ricardo Silva (PSB-SP), Profa. Dorinha (DEM-TO), Chico D’Angelo (PDT-RJ), Eduardo Barbosa (PSDB-MG), Tereza Nelma (PSDB-AL), Flávio Nogueira (PDT-PI), Leandre (PV-PR), Eduardo Costa (PTB-PA), Totonho Lopes (PDT-CE), Carmen Zanotto (Cidadania-SC), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Alexandre Padilha (PT-SP), Benedita da Silva (PT-RJ), Jorge Solla (PT-BA), Rejane Dias (PT-PI), Padre João (PT-MG), Valmir Assunção (PT-BA), Luciano Ducci (PSB-PR), Odorico Monteiro (PSB-CE), Vivi Reis (PSOL-PA), Adriana Ventura (Novo-SP) (Brasil, 2021cBRASIL. Câmara dos Deputados. Votação do parecer do relator a(o) PL 853/2019 (nominal). Brasília: Câmara dos Deputados, 7 jul. 2021c. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/presenca-comissoes/votacao-portal?reuniao=62197&itemVotacao=46957 . Acesso em: 2 set. 2022.
    https://www.camara.leg.br/presenca-comis...
    ).
  • 25
    Última consulta realizada em janeiro de 2022.
  • 26
    Roberto Efrem Filho e Breno Marques de Mello (2021)EFREM FILHO, R.; MELLO, B. M. de. A renúncia da mãe: sobre gênero, violência e práticas de Estado. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 27, n. 61, p. 323-349, 2021. demonstram uma disputa do sujeito político “mãe” no governo de Jair Bolsonaro. Aqui vemos que existe também uma disputa política sobre como devem determinadas mães ser geridas pelo Estado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2022
  • Aceito
    18 Ago 2022
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