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Raça como retórica: a construção da diferença

RESENHAS

Cíntia Beatriz Müller

Doutoranda, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

MAGGIE, Yvonne; REZENDE, Claudia Barcellos (Org.). Raça como retórica: a construção da diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 460 p.

O livro Raça como Retórica: a Construção da Diferença, organizado por Yvonne Maggie e Claudia B. Rezende, é uma coletânea que reúne doze artigos de autoria de alguns visitantes que participaram do Programa Raça e Etnicidade em uma Perspectiva Comparada, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No primeiro artigo as organizadoras definem o lugar da obra dentro de um contexto maior da tradição acadêmica brasileira de estudos de identidade e racismo. O interesse pela dimensão retórica das classificações raciais surgiu justamente para buscar compreender como seu potencial de controle pode ser invertido e submetido. "As formas de manipular esse sistema de classificação não se dão, entretanto, por acaso. Há certas regras de classificação que deixam entrever um complexo jogo de relações de poder" (p. 15).

"Amostras Humanas": Índios, Negros e Relações Interétnicas no Brasil Colonial foi escrito pelo historiador Flávio dos Santos Gomes. Nesse artigo, em específico, o autor segue "pistas históricas dos contatos interétnicos entre índios e negros (especialmente grupos de fugitivos) na sociedade colonial brasileira" (p. 30). Além disso, o autor revela como tais grupos teciam suas próprias fronteiras, suas alianças, estabeleciam relações de interdependência e também de conflito, desconstruindo a noção do senso comum de uma ocupação exclusivamente indígena na Região Norte do país, discorrendo sobre a miscigenação entre populações indígenas locais e escravos fugidos. Por fim, ele afirma: "na Amazônia setecentista – com outras lógicas e especificidades –, a movimentação dos fugitivos, negros e índios, e as formações de mocambos acabaram expandindo-se e, pelo menos, demarcando as fronteiras coloniais internacionais" (p. 69).

O terceiro texto é Bonde do Mal: Notas sobre Território, Cor, Violência e Juventude numa Favela do Subúrbio Carioca, da antropóloga Olívia Maria Gomes da Cunha. Nele, a principal intenção da autora é "tentar compreender que outras visões, desenhos e representações da cidade e de seus moradores foram produzidos por um grupo de jovens moradores de uma favela localizada em uma região marginalizada da cidade [do Rio de Janeiro]: Vigário Geral" (p. 86). É um material muito bem elaborado, denso. Olívia parte do "Arrastão" de outubro de 1992 para dar início à sua análise, na qual desconstrói o estereótipo democrático da praia carioca, desvelando alguns dos sinais diacríticos que constituem seus "pedaços". Do território praia Olívia passa a analisar a territorialização tramada pelas "galeras", passa a descrever as sutilezas da justaposição de territorializações e o rearranjo das fronteiras para a constituição de "galeras" jovens que freqüentam os bailes funk. É um trabalho maravilhoso e que faz jus a um contexto mais amplo que não apenas um artigo.

No artigo de Lívio Sansone, Não Trabalho, Consumo e Identidade Negra: uma Comparação entre Rio e Salvador, o autor se propõe a entender "de que maneira aqueles que recebem os novos símbolos globais os reinterpretam e manipulam a partir da condição de subalternidade potencial" (p. 158). Para tanto, Lívio passou dois meses pesquisando na favela do Cantagalo, e tomou como "temas-chave: trabalho e consumo, lazer e música, namoro e identidade negra" (p. 158) e, por razões analíticas, criou tipos ideais. Os tipos concebidos pelo autor são: os conformistas, os alternativos, os carentes e os revoltados. Por fim, o autor estabelece um contraponto entre suas análise de campo realizadas em Salvador e no Rio de Janeiro. Um dos méritos de Lívio Sansone nesse texto é relativizar a dicotomia entre a "favela" e o "asfalto": "além disso, em muitos aspectos, prioridades e preocupações, a comunidade é parecida não apenas com outras favelas, mas também com o asfalto" (p. 163).

No artigo seguinte, de John Burdick, Pentecostalismo e Identidade no Brasil: Mistura Impossível?, é levado a cabo um estudo sobre as potencialidades da relação entre o pentecostalismo e a emergência de uma face da identidade negra politizada. "Identificamos um número surpreendente de iniciativas da parte de pentecostais negros para fazer da defesa da identidade étnica negra e da luta contra o racismo projetos permanentes de suas igrejas" (p. 204). É importante que justamente o fato de somar forças com a Igreja enseje ao fato de enfrentar de frente o racismo em seus múltiplos planos, "na Igreja, no cristianismo e na sociedade brasileira" (p. 205). O artigo traz contribuições significativas no que diz respeito ao enfoque da perspectiva analítica dada à questão, quebrando o preconceito de que a religião pentecostal iniba o posicionamento étnico-político, que enfoque positivamente identidade negra e que não passe, necessariamente, pelo universo religioso dos cultos afro-brasileiros.

Robin E. Sheriff é o autor do texto intitulado Como os Senhores Chamavam os Escravos: Discursos sobre Cor, Raça e Racismo num Morro Carioca. Nesse artigo o autor critica a metodologia que Marvin Harris e Roger Sanjek utilizaram em seus estudos sobre termos raciais e identidade no Brasil, explicando que o resultado de suas pesquisas "não é decorrente da observação participante em comunidades brasileiras" (p. 219). Assim, sua pesquisa "sugere que as pessoas do Morro do Sangue Bom recorrem a vários discursos sobre raça e cor, os quais encarnam estilos e visões retóricas bastante distintas quanto à identidade de raça e de cor" (p. 219). Robin distingue três tipos de discurso: o descritivo o estilo pragmático ou indicial e o estilo racial. O que o autor enfatiza em sua análise dos dados etnográficos é a dimensão performática do discurso que complementa a composição do significado do ato de fala, ou seja, as mesmas palavras podem ser acionadas de forma diferente, com diferentes significados em diferentes contextos. Ao mesmo tempo em que as próprias palavras recriam esses contextos.

O artigo seguinte A Brancura Desconfortável das Camadas Médias Brasileiras, escrito por John M. Norvell, tem como ponto de partida um discurso de Jorge Amado, realizado em 1984, o qual enfatiza que "a cultura brasileira é propriamente mestiça" (p. 247). O autor afirma que o discurso que enfatiza a mescla de raças "funciona como pivô no discurso a respeito da sociedade e que esta noção de mistura de raças aponta para uma origem situada impossível e assintoticamente no passado, porém eternamente presente na condição brasileira" (p. 249). Assim, analisa as obras de Paulo Prado, Retrato do Brasil, Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, e Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, três autores que em algum momento abordam a mistura das raças cujo "papel retórico básico" (p. 249) permanece até hoje. Após essa exposição o autor busca demonstrar "a maneira como a classe média, os cariocas da Zona Sul, fala sobre si mesma e sobre raça para mostrar os paralelos com esses textos acadêmicos" (p. 257). Essa classe média viveria na ilusão da democracia racial, acreditando que quaisquer tensões raciais existiriam em outros contextos que não o brasileiro, porém a mestiçagem, marca brasileira, quando invocada pela classe média seria uma mestiçagem do "outro", nunca envolvendo a si. Tal discurso se acentuaria quanto maiores as possibilidades de ascensão social do indivíduo entrevistado. Por outro lado, também a "brancura" não foi valorizada. A brancura, "quando é inevitável, devido ao tom da pele ou à descendência de imigrantes recentes, [os entrevistados] costumam aceitar o rótulo com incômodo ou constrangimento" (p. 260).

Guy de Massart escreve Viajantes Profissionais e Estrangeiros Cabo-Verdianos no Rio de Janeiro: Experiências do "Outro". Nesse artigo a intenção do autor "é convidar o leitor a um movimento contínuo entre a maneira dos antropólogos de falar do ‘outro’ e a de estudantes cabo-verdianos moradores do Rio de Janeiro" (p. 271). O autor se vale de seu conhecimento sobre Cabo Verde, onde viveu e trabalhou durante quatro anos e meio, para analisar a interação entre brasileiros e cabo-verdianos no Rio de Janeiro. Nesse texto, o autor descreve uma situação onde os cabo-verdianos, categorizados como estrangeiros africanos, se vêem frente a uma condição de isolamento ante a sociedade carioca englobante. Por fim, o autor propõe que se faça "uma reflexão crítica sobre nossas próprias maneiras de pensar antropologicamente. A questão é mesmo saber qual é o objeto epistemologicamente relevante e, portanto, como o antropólogo deve construí-lo" (p. 302). Guy de Massart afirma a partir em suas conclusões que a tarefa principal do antropólogo, ao invés "de abrir novos horizontes, tal um herói voando de mundo em mundo" (p. 304), é a de buscar a humanidade de cada um por trás das diferenças.

Do Trabalho de Campo à Exposição do Império: a Viagem da Bosquímana /Khanako pela África do Sul, 1936/1937 é o artigo seguinte, de autoria de Ciraj Passool e Patrícia Hayes. Ele busca enfocar a visualização como objeto analítico, ou seja, "o texto procura entender os códigos e convenções visuais da atenção escópica que surgiu em 1936-1937, concentrada na presença anatômica de uma mulher chamada /Khanako, do Sul do Kalahari, nas principais áreas urbanas da África do Sul (Johannesburgo e Cidade do Cabo)" (p. 313). O artigo gira em torno da investigação do contexto de produção de um cartão encontrado com a figura de /Khanako com uma suástica sobreposta em seu corpo em uma imagem já existente. Com isso os autores chamam atenção para a fragilidade das representações imagéticas produzidas no meio acadêmico: "tanto os cientistas quanto /Khanako foram afetados por esse grafite antiintelectual: mas só foi preciso uma reprodução da imagem e uma inscrição no processo técnico de reimpressão da fotografia para que isso acontecesse" (p. 340). Os autores também chamam atenção para o risco ao qual está submetida a fotografia etnográfica "apesar de sua particularização da diferença física, ela também tem um imenso poder de generalizar seus efeitos" (p. 318). O que também impressiona no trabalho dos autores é o resgate de fragmentos do momento histórico em que as imagens de /Khanako foram produzidas: justamente quando exemplares da "raça bosquímana" estavam sendo selecionados para uma exposição "viva" da Exibição Imperial, mas apenas exemplares "autênticos" da espécie foram escolhidos. Esse artigo traz à cena o debate em torno da reificação do "outro", "nativo", a partir do discurso científico.

O artigo seguinte chama-se Políticas de Identidade no Moçambique Colonial, e foi escrito por José Luís Cabaço, sociólogo e presidente da empresa Ébano Multimídia. Nesse texto o autor oferece um panorama sobre os conflitos acerca dos projetos de identidade que foram postos em prática em Moçambique, tecendo uma crítica às tentativas de "invenção de uma tradição" nacional moçambicana homogênea. Para tanto, o autor descreve as estratégias das políticas de assimilação à identidade portuguesa intentado pelo governo colonial e sua frustração, levando ao moçambicanismo, à valorização da "cultura ‘crioula’" (p. 396). Com as lutas da independência emerge "o embrião de uma identidade nacional, a moçambicidade" (p. 397). O que José Luís Cabaço escreve é um apanhado sobre as múltiplas tentativas de se implementar uma "tradição nacional" que englobasse, se não a totalidade da comunidade de sentimentos, a maior parte do Estado moçambicano. Em suma, ele narra vários cenários da luta pelo estabelecimento de uma "tradição inventada" hegemônica.

Em A "Natureza" da Nacionalidade, Verena Stolcke busca compreender de que forma as leis de nacionalidade que condicionam a aquisição do direito de cidadania (p. 411) "tende[m] a disfarçar o papel constitutivo da nacionalidade para a cidadania e a identidade nacional" (p. 413). Em sua análise da construção nacional da Alemanha, França e Grã-Bretanha do século XIX, a autora desvenda os processos sociais e as influências ideológicas em cada um dos casos exemplares (apenas analisados entre Estados europeus) que levaram a uma "naturalização" da nacionalidade. Com a análise das diferentes construções de estados nacionais a autora demonstra as mudanças que ocorrem ao longo dos anos nas políticas de nacionalidade, alternando critérios de pertencimento nacional estabelecendo um jogo de tensões entre o jus sanguinis e o jus soli, em suas várias alternâncias e combinações.

A partir dessas múltiplas combinações a autora analisa qual a situação da "raça como retórica", cuja eficácia pragmática é pautada por leis de nacionalidade e cidadania que não deixam de refletir "concepções ideológico-políticas de pertença que essas leis espelham e aplicam" (p. 424). Além disso, a autora enriquece o debate trazendo ao texto uma análise sucinta da condição feminina de uma cidadã de segunda classe, à qual foi negada "a capacidade de tomar decisões independentes a respeito de sua própria pertença e da de sua prole" (p. 427-428). Nesse momento do texto a autora estabelece comparações entre a América e a Europa, demonstrando como os direitos de nacionalidade das mulheres se desenvolveram de forma diferente nesses dois continentes.

O encerramento do livro se faz com um artigo de Vicent Crapanzano intitulado Estilos de Interpretação e a Retórica de Categorias Sociais. Partindo da premissa de que "a classificação é um pré-requisito para toda a interpretação e – o que é da maior importância – suas categorias são usadas retoricamente, e não apenas semanticamente, em qualquer interpretação" (p. 443). Assim, o autor passa a analisar como a categoria "raça", enfocada nesse texto como uma classificação social, é acionada em duas dimensões do sistema de classificação: no âmbito semântico referencial e na dimensão pragmática. E "é no plano pragmático – do jogo retórico – que o poder se introduz na classificação" (p. 446). Por fim, após elaboração argumentativa o autor conclui que "racismos de orientação retórica – esses que têm consciência de seu jogo pragmático –, como os que encontramos no Marrocos, na Europa mediterrânea e, creio, no Brasil, não são semanticamente comparáveis, mesmo quando participam das ‘mesmas’ categorias semânticas, com os racismos mais literais existentes na África do Sul, nos Estados Unidos e na Europa do Norte" (p. 455). Tendo em vista que a ênfase em uma orientação, retórica ou literal, não visa, necessariamente, uma a exclusão da outra, acredito que atribuir ao Brasil ou aos Estados Unidos emblemas representativos opostos seja muito tentador, mas, talvez, perigoso e, de certa forma, homogeneizante.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2004
  • Data do Fascículo
    Jul 2003
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