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Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo na Nova Era

RESENHAS

Léa Freitas Perez

Universidade Federal de Minas Gerais - Brasil

AMARAL, Leila. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo na Nova Era. Petrópolis: Vozes, 2000. 230 p.* * Prêmio Jabuti 2001 - Categoria Religião.

Fazer uma resenha do belissímo Carnaval da Alma, de Leila Amaral, é uma tarefa enganadoramente fácil. Fácil pelo tanto que pode ser dito de um trabalho de grande envergadura intelectual, pleno de relevantes contribuições para a compreensão de nosso tempo, de suas questões organizantes. Como argutamente diz Otávio Velho, em sua apresentação do livro, "no que diz respeito às grandes questões de nossa época, agarra o touro pelos chifres". A antropologia de Leila nos mostra, através do caso Nova Era, a emergência, na contemporaneidade, de uma "cultura religiosa errante" - porosa, perfomática, festiva, efêmera, sem rígidos marcos doutrinários, carente de idioma teológico, que dessubstancializa e desterritorializa o sagrado. Composta por um universo de práticas de "dinâmica combinatória ad infinitum", preconiza uma "ontologia da relação" que é também et pour cause uma "ontologia da comunicação". Tal cultura é atravessada em sua constituição mesma por um "sincretismo em movimento", feito de "cruzamento heterodoxo" compondo, na feliz expressão de Marcus empregada pela autora, um "espírito sem lar". Carnaval da Alma nos faz viajar por esse fantástico "espírito sem lar" que se encarna nessa "religiosidade caleidoscópica", que combina, sem contudo fundir, lazer, cultura, crença e mercado na composição de um multiverso de relações que apontam para a possibilidade de gestação de "novos padrões de relacionamento", como muito bem observa Otávio Velho. O estilo Nova Era de sincretizar parece estar em perfeita sintonia com o seu tempo uma vez que, sendo caracterizado por uma "diversidade interna", "multimensional", mostra-se capaz "de entreter e responder à pluralidade", por isso é o carnaval da alma. Leila abre um vasto leque de questões e de direções de reflexão, o que dificulta o exercício de síntese - em perfeita sintonia, ela também com seu objeto, que é avesso às sínteses e aos dualismos - tal como usualmente se requer de uma resenha. Como selecionar entre tantas e variadas questões suscitadas e sugeridas sem, necessariamente, deixar outras de lado? Como bem diz Otávio Velho, Carnaval da Alma "presta-se a muitas leituras". Dessas muitas leituras, e tentando, modestamente, ser fiel ao espírito de Leila e de seu objeto mesmo, ouso não seguir a linha tradicionalmente estabelecida para uma resenha, limitando-me a enfatizar o que considero o mais relevante nesse empreedimento: sua fértil imaginação antropológica. Carnaval da Alma faz jus às observações de Paul Veyne, para quem "é mais importante ter idéias do que conhecer verdades", pois "ter idéias significa também dispor de uma tópica, tomar consciência do que existe, explicitá-lo, conceituá-lo, arrancá-lo à mesmice", mais ainda "é deixar de ser inocente, e perceber que o que é poderia não ser", uma vez que "o real está envolto numa zona indefinida de compossíveis não-realizados"1 1 Veyne, Paul. O inventário das diferenças: História e Sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 54-55. . De saída, já inova e mostra sua audácia ao subverter o tradicional e cansado método comparativo, colocando em diálogo, e não em simples contraste, eventos e encontros da Nova Era, que a autora acompanhou no Brasil e na Inglaterra, no período de junho de 1993 a fevereiro de 1997. Como ela mesma diz na introdução, a opção foi "acompanhar o trânsito, a circulação e o fluxo", em dois contextos culturais distintos, não para desvendar "as particularidades culturais e locais de sua atualização, mas para sensibilizar-se com "a dimensão transnacional e transcultural" das questões formativas da Nova Era. A fertilidade da perspectiva fica igualmente evidenciada na definição mesma do que seja ou venha ser Nova Era. Tal definição, enunciada no final do capítulo I, A Nova Era em perspectiva histórica, e depois retomada na conclusão, é mais sugerida do que efetivamente formalizada, dado que "não existe nada que seja em si mesmo absolutamente Nova Era". Nova Era seria, assim, "mais do que um substantivo que possa definir identidades religiosas bem demarcadas", um "adjetivo para práticas espirituais e religiosas diferenciadas e em combinações variadas, independente das definições ou inserções religiosas de seus participantes", portanto, não é "uma língua franca capaz de unir diferentes tendências contemporâneas". Por isso, Leila diz, com toda razão, ficar "inclinada a enxergar 'o que é Nova Era' mais no domínio do parcial, do ambíguo, do provisório e da indefinição, portanto, mais no domínio da adjetivação parcial do que no da substantivação determinante". Mas, sobretudo, seu vigor é testado e comprovado pelo modo como é tecido o argumento central do livro e cuja magnífica condensação já aparece no próprio título. Leila nos aponta para novas matrizes de formação do vínculo social. Nesta "espiritualidade desencarnada" que é a da Nova Era, o acento forte é dado pela experiência, por um estilo próprio de "lidar com o sagrado". Uma experiência de natureza singular: a da errância, marcada pelo provisório e pela transitividade. Numa feliz expressão, a autora caracteriza os encontros e eventos da Nova Era como "arquitetura da errância". Na experiência errante, o cruzamento heterodoxo - "entre as diferentes tradições religiosas e não-religiosas" - importa "mais do que os conteúdos substantivos das crenças e postulados em trânsito", o que aponta para a possibilidade de falar-se "de novas condições de 'espiritualidade', no mundo contemporâneo", todavia, sem a presença de um fundamento. Por isso apresenta-se como uma espiritualidade desencarnada, dessubstancializadora do sagrado, relativizadora, que descanoniza a relação entre lugar e essência, apesar de acentuar uma nova modalidade de se estar junto. Em suma: trata-se de uma experiência religiosa que com seu "esforço para cruzar e juntar domínios inusitados e, assim, suspender dualidades, traz à tona e coloca em debate um sincretismo de novo tipo", que não é mais "necessária ou exclusivamente um lugar fixo de hibridação", mas passa "a se constituir, também, no deslocamento na circulação e no fluxo de identidades", pois que se faz na movimentação, na errância. Vale dizer que o caso da Nova Era aponta para "o deslocamento de diferenças híbridas" como "uma das novas condições da experiência espiritual" na contemporaneidade. Experiência religiosa que busca a transformação individual pela via do encontro, da vivência, em uma palavra, pela experimentação. Não é à toa, portanto, que os participantes sejam chamados de buscadores e que as atividades de busca se realizem em encontros, festivais e congressos holísticos, que são analisados ao longo, e em diferentes dimensões, dos capítulos II a VII. Carnaval da Alma enfatiza a experiência mesma do encontro como constitutiva da Nova Era: a experimentação é "a idéia-matriz da cultura Nova Era face aos modelos morais e religiosos contemporâneos". A experiência errante do encontro é experimentada (leia-se vivenciada) "na sua efemeridade, temporalidade e transmigração", mas ao mesmo tempo, e talvez por isso mesmo, produtora de uma "topografia própria do mundo: um mundo constituído de realidades múltiplas e transformáveis umas nas outras". Vale dizer que a cultura da experimentação sugere "a existência de uma espécie de 'porosidade do mundo'", que traz em seu bojo uma "absolutização da 'passagem' - através da vivência da realidade como um mundo de ordens múltiplas e intercambiáveis - concebida como a verdadeira realidade, experimentada e celebrada ritualmente, mas jamais totalmente realizada ou transposta". Eis novamente a encarnação do pluralismo à la Nova Era. Mais uma vez fica evidenciada a fertilidade da imaginação de Leila. Muitos insistem em ver nessa forma de experimentar o mundo uma das expressões mais acabadas do individualismo. Leila desmonta essa argumentação, diga-se de passagem corrente tanto em uma certa doxa comum quanto em uma certa doxa acadêmica, mostrando como esse "crescente voluntarismo" tem um "sentido positivo", pois se de um lado enfraquece os "laços daí decorrentes", de outro, e talvez por isso mesmo, "leva à libertação de laços e lealdades compulsórias" e se encaminha na direção da constituição de um "ideal de comunidade" não essencialista, "em que o 'estar junto' não implica necessariamente, em 'estar com', porque o 'estar junto' o precederia, inclusive, como a sua condição". A experimentação à la Nova Era evidencia um "desejo de exceder os limites de significação" para além tanto do paradigma moderno quanto das tradições das quais lança mão. Por isso, a ênfase, tal como é mostrado no capítulo II, Ocultismo para não-iniciados, é colocada na "liberdade da diferença", que tanto pode ter uma "versão hard magia-poder", aquela que tende a recriar "o mito do indivíduo todo-poderoso", quanto uma "versão soft espiritualidade-harmonia", aquela que "performaticamente" focaliza a possibilidade de "entrar em sintonia com a essência de todas as coisas e de todos os seres". O ponto é que ambas as versões cruzam-se heterodoxamente de modo que, se a versão hard enfatiza "uma tendência em direção ao fortalecimento das identidades pessoais e exclusivas", sua articulação com a versão soft "permite algumas interrupções na atualização de uma idéia de 'indivíduo' como totalidade consistente e auto-suficiente". O resultado? É para os buscadores a possibilidade de experimentar, através das vivências, a consciência do movimento do espírito, de modo que o "sujeito afirma-se como espírito em movimento, alcançando uma realidade para além dos limites da civilização, do âmbito social e dos sistemas culturais e religiosos, mas com a certeza e com a segurança de se estar em comunicação com o espírito do mundo". Essa "ontologia da relação", traz implícita uma noção de totalidade sem fusão e uma noção de essência que é relativa e não mais fundacionada. Neste sentido, rompe com a faceta ensimesmadora e auto-suficiente do individualismo moderno clássico, ao mesmo tempo que opera uma vigorosa "mediação (ou comunicação)" com a lógica do capitalismo de modo que a mercadoria possa ser usada "para produzir significados espirituais e mesmo morais. Significa dizer que "eliminar a mercadoria seria o mesmo que eliminar o espírito", tal como fica evidenciado no capítulo V, Espiritualidade, diversão e consumo. Assim, de novo insisto que aqui aparece a fertilidade heurística de Carnaval da Alma, o mercado não é descartado como meio de promoção do vínculo, nem tampouco associado a atitudes puramente instrumentais, egóticas e personalistas, mas como revelador de outras razões contidas nas escolhas dos errantes, sobretudo aquelas que dizem respeito à troca. Assim, "o consumo Nova Era não pode ser tomado "como um epifenômeno da mercantilização universal, promovida pela lógica capitalista e sua capacidade de transformar tudo em mercadoria, mas como um meio de expansão da própria cultura moral e espiritual Nova Era, porque o consumo corresponderia a uma exigência lógica mesma dessa cultura espiritual". Os buscadores que almejam "a liberação do espírito dos códigos sociais que supostamente inibiriam a sua realização plena e sempre renovada" dirijem-se "à liberdade do mercado consumidor para a criação de um 'espaço de vida' que simbolica e ritualmente se contraporia ao 'espaço social' - a vida regular, ocupada com os trabalhos cotidianos e sujeita a um sistema de interditos e cheia de preocupações". O consumo assim experienciado coloca em comunicação "a realidade imediata do ego e a realidade mais vasta da 'vida'". Ou seja: busca espiritual e consumo não são "pólos excludentes", mas "em correspondência". Em correspondência com o "desejo" - mais enquanto fonte de "prazer" e de "busca" do que de efetiva realização - que apela para a comunicação, para a troca intensiva de bens transportadores do "espírito do mundo", para a relação, para a comunhão fática com o divino, enfim, para a comunidade sem fusão. Por isso sua conexão com a realidade mais vasta da vida iluminadoramente mostrada no capítulo VI, Uma semana no Vale Dourado: a experiência liminar do encontro. A comunidade que é questão na Nova Era é uma "comunidade de errância", pois é aquela que realiza a "comunhão fática" com o divino. Ao possibilitar o "encontro", o estar junto - tanto na forma de "comunidade dentro do mundo" quanto na de "comunidade fora do mundo" - "existiria independente da necessidade de algo a comunicar", pois levaria os buscadores "a experimentar um sentido transformado de comunhão daquele comumente aceito - isto é, de significado comum partilhado - para transparecer a idéia de uma comunicação ampliada'', capaz de "congregar e unir pessoas, tradições culturais, religiosas e lingüísticas diferentes, desde que existam palavras para trocar". E sabemos nós que quem diz troca diz reciprocidade, diz produção da vida mesma. E é sobre os desafios contemporâneos que a produção da vida enfrenta que se debruça admiravelmente o capítulo VII, Encontro para a nova consciência ou o carnaval da alma. A questão ou o desafio que Leila se põe diz respeito a compatibilidade entre a "cultura religiosa errante" e a emergência de um "padrão de civilidade". Mais uma vez a perspectiva norteadora do trabalho revela-se em plena potência criativa. No mundo globalizado, a religião extrapola sua esfera mais estrita e mais propriamente social, para figurar "como um recurso simbólico" que coloca "problemas que não são inteiramente religiosos", uma vez que dizem respeito a possibilidade outra de "pensar a ordem social em termos de contexto global". A religião torna-se, assim, uma "patrimônico cultural global", ou seja, universaliza-se como "a convivência do múltiplo". Dito de outro modo: o argumento central é o de que "quanto mais as religiões exprimem o exceder dos limites sociais de relações, mais elas ampliam a noção de relação e mais sociais elas se tornam". O paradoxo, constitutivo do espírito de nosso tempo - a tensão entre o estar junto e o estar com - é, no caso da Nova Era, não resolvido, pois não se trata de uma síntese, mas experimentado na busca de uma "ideal de 'fusão' tão radical" (leia-se a identificação do sagrado como o humano e com a vida), "que só se consegue realizar em um nível não essencialista", aquele de "uma unidade sem essência", isto é, "de busca de uma essência que não se substancializa nunca de forma definitiva" e que permite "a experimentação da diversidade". É para esse padrão de civilidade que o universo novaerizado aponta: "o sentimento de uma relação problemática entre indivíduo e sociedade, tentando visualizar os aspectos extra-societais do self, propiciando "o aparecimento de categorias outras para pensar o significado que a humanidade pode então adquirir". Dito de outro modo: a civilidade novaeirista, com seu multiperspectivismo religioso representa uma abertura do campo da significação não em direção ao ego, à identidade, ao intersocietal, mas na direção de um "domínio de comunicação não-societal" vivido enquanto espiritualidade e experimentado "como o exato momento da passagem, no qual o indivíduo transformado em self 'desrespeita fronteiras e reencontra a humanidade'". Eis a carnavalização em ato, pois aponta para "a possibilidade de estabelecer vínculos e captar sentidos que ainda não estão dados, mas que podem ser imaginados". A moralidade Nova Era é uma "moralidade da semelhança e do eterno 'tornar-se'", na qual o outro não é o antagonista, mas "presença". Bingo! Carnaval da Alma inspira, instiga o pensamento a ir mais longe, a ver no "multiperspectivismo religioso" contemporâneo e na "cultura religiosa errante" o que Mauss chamou de "a vontade de ligar"2 2 Comentando a noção de participação em Lévy-Bruhl, Mauss diz: "A participação não é somente uma confusão. Ela supõe um esforço para confundir e um esforço para juntar; existe desde a origem a vontade de ligar." (apud Backes-Clément, Catherine. "Le mauvais sujet", L'Arc Marcel Mauss, Paris: Librarie Duponchelle, 1990, p. 63). .

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    Prêmio Jabuti 2001 - Categoria Religião.
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    Veyne, Paul.
    O inventário das diferenças: História e Sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 54-55.
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    Comentando a noção de participação em Lévy-Bruhl, Mauss diz: "A participação não é somente uma confusão. Ela supõe um esforço para confundir e um esforço para juntar; existe desde a origem a vontade de ligar." (apud Backes-Clément, Catherine. "Le mauvais sujet",
    L'Arc Marcel Mauss, Paris: Librarie Duponchelle, 1990, p. 63).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 2001
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