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Apresentação

Contrariamente a outras subáreas que neste momento já se projetam na Antropologia Social como clássicas, a incorporação da música como objeto de interesse nas Ciências Sociais, pelo menos no Brasil, tem ocorrido de forma lenta. À exceção de alguns estudos pioneiros e esparsos, os estudos musicais na Antropologia começam um tanto tardiamente a se fazerem presentes nos programas de pós-graduação do país, através de seminários específicos, de dissertações e teses defendidas. Se pensarmos que o interesse pelos escrutínios antropológicos sobre as músicas do mundo surgem no final do século XIX, e de que nada menos que figuras como Max Weber e Lévi-Strauss (para citar alguns nomes en passant) dedicaram considerável tempo e esforço intelectual a refletirem sobre a natureza do fenômeno musical na cultura ocidental, perceberemos que este é um território fértil para abrigar projetos de forma mais sistemática na antropologia brasileira. Apesar deste retardo, há alguns anos que nos encontros nacionais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e mais recentemente da ABA Mercosul, GTs e mesas redondas vêm avivando a presença da reflexão antropológica sobre o fazer musical, testemunhando espetacularmente a cada edição um número ascensional de estudos etnográficos distribuídos entre comunidades indígenas, rurais e tribos urbanas.

Seja pelas suas tecnicalidades, seja pelo seu status de objeto de fruição a tensionar com qualquer projeto de ordem reflexiva, a verdade é que este código expressivo presente em qualquer cultura, histórica ou contemporânea, nos desafia a inquirir vastas áreas da sociabilidade humana sob o prisma de formas de comunicação pouco convencionais nas análises antropológicas. Como o jogo analítico do pesquisador reside no sonoro, na audição, na performance, no estético, na emocionalidade, e como somos pouco familiarizados com o exercício do distanciamento do próprio gosto musical, não é por acaso que driblamos com dificuldade as demandas de uma trama analítica que traduza o código musical segundo categorias do pensamento antropológico e mais dificuldades enfrentamos ainda quando esta trama deve isentar-se da projeção dos parâmetros estéticos do pesquisador sobre os dos pesquisados.

O presente volume tem como objetivo apresentar aos leitores exemplos concretos de algumas abordagens possíveis destes dilemas da interface músico-sócio-antropológica, dentro do amplo espectro de variações sobre o tema Música e Sociedade. Os textos aqui reunidos provêm de antropólogos-etnomusicólogos atuando em instituições do Brasil, Europa e Estados Unidos, trabalhando ativamente na docência, pesquisa e formação de novos pesquisadores dentro dos princípios éticos de respeito e defesa das alteridades manifestas através da prática musical. Do confronto das reflexões propiciadas por este grupo de ensaios, criados a partir da convivência prolongada de seus autores em seus respectivos campos etnográficos, esperamos que surjam novas e instigadoras linhas de pesquisa a respeito do fazer musical que acompanha a prolífica paisagem sonora contemporânea.

A organização de uma coletânea pressupõe escolhas, recortes que possam dar conta da diversidade epistemológica, empírica e metodológica do campo de estudos em pauta. Entrelaçamento de temas, problemas, métodos e bibliografias serão aqui encontrados ao longo da leitura, ainda que os textos focalizem situações diferenciadas e contemplem cenários tão diversos quanto os que etnografias empreendidas entre culturas musicais da África, Brasil, Espanha, Peru e da “nação” Tukano podem nos oferecer. Dessa mescla esperamos que o leitor possa tirar o melhor proveito, pois escassa é a bibliografia disponível no Brasil que agrupe trabalhos desta natureza. Lembramos que a associação Antropologia/Etnomusicologia institucionaliza-se com toda força nos Estado Unidos pós segunda guerra; graças ao acúmulo intensivo de monografias e artigos gerados nas últimas décadas nos departamentos e programas de Antropologia e Etnomusicologia disseminados naquele país é que se constituiu a base da hegemonia norte-americana na bibliografia internacional da área. Ademais, a bibliografia em língua inglesa conta também, desde a última década, com um considerável reforço da produção acadêmica advinda de países como a Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Índia. Ingressar neste circuito, implica anos de labor intenso em um arco que vai desde o mapeamento de autores, teses e paradigmas transmitidos por várias gerações até o diálogo e redimensionamento de questões de fundo para a área, tarefa que os estudantes brasileiros ainda precisam enfrentar.

Os dilemas da criação científica contemporânea, desencadeados pela crise dos paradigmas nas Humanidades e na Antropologia em particular, repercutiram fundo na Etnomusicologia estadunidense e, consequentemente, na disciplina como um todo. Temas como reflexividade, dialogismo, autoridade, representação das alteridades no relato etnográfico passaram a integrar o universo da teoria e da prática das etnografias musicais e são objeto de discussão no artigo de abertura, de autoria do professor Thomas Turino, da University of Illinois. A fina percepção dos significados da e na prática etnográfica musical, bem como o potencial didático do texto, por nós testemunhado em várias seminários em que o trabalhamos com estudantes de ambas áreas – Música e Antropologia -, pesaram significativamente para sua tradução em português.

Seguindo o feixe de questões teórico-metodológicas suscitadas pelo ensaio de abertura do volume, os textos seguintes focalizam seus desdobramentos em várias combinações das coordenadas gente/tempo/espaço/música. Assim, o artigo de Josep Martí (CSIC-Barcelona) vale-se de uma pesquisa tipo survey para esquadrinhar entre jovens de uma metrópole européia o uso de suas preferências musicais como estratégia de identidade de gênero, como expressão e ao mesmo tempo recurso de manutenção de relações de gênero.

“Na tentativa de construir uma sensibilidade musical deveras pluralista”, Jorge Carvalho (Universidade de Brasília) dialoga incansavelmente com teorias da música e da cultura contemporânea iluminando a sua reflexão sobre as mudanças na sensibilidade musical no mundo ocidental neste fim de século, através do exame de uma gama de experiências que abarcam desde as tecnologias de gravação/reprodução, a performance, a recepção musical até as subculturas musicais.

Os estudos de etnologia indígena na área da música incluem-se entre os clássicos da literatura etnomusicológica e aparecem aqui representados pela etnografia musical realizada por Acácio Tadeu de C. Piedade (Universidade do Estado de Santa Catarina) entre os Ye’pâ-masa, grupo de fala Tukano do noroeste amazônico. O autor revisita o complexo das “flautas sagradas” e da música do ritual masculino conhecido como Jurupari, analisando o plano simbólico/expressivo desta música e os seus nexos com as relações de gênero naquela cultura.

Elizabeth Travassos (Universidade do Rio de Janeiro) toma como campo etnográfico a difícil situação da pesquisa “dentro de casa”; ao escolher o corpo de alunos de uma instituição herdeira do tradicional sistema de “conservatório de música”, para investigar as fronteiras culturais do gosto musical, a autora nos mostra a densa rede de significados que emerge das representações sobre o fazer musical em um setting aparentemente homogêneo.

Por último, a pesquisa de João Soeiro (Universidade Nova de Lisboa) enfoca outro tema candente na literatura etnomusicológica, qual seja o da construção do estado-nação e de uma identidade nacional através da cooptação política de gêneros e formas expressivas de performance musical, neste caso um gênero coral masculino, a Makwayela, de presença maciça e massiva na Moçambique pós-colonial.

Na secção Espaço Aberto, Guilherme Werlang presta uma justa homenagem ao antropólogo Rafael José de Menezes Bastos pelos vinte anos d’A Musicológica Kamaiurá, obra única em seu gênero na língua portuguesa, que vem de aparecer em uma segunda edição lançada no corrente ano. Livro pioneiro em sua abordagem etnológica de uma musicologia nativa, o ensaio de Werlang trata de situá-lo no escopo das preocupações intelectuais e estéticas que marcam a trajetória do seu autor pela Antropologia da Música.

Como parte do Noticiário desse número, decidimos incluir também os resumos das teses e dissertações defendidas nos programas de Antropologia Social do país desde 1997 até o presente que tenham escolhido a música como objeto de estudo, reverberando urna vez mais os intentos didáticos que alimentaram este volume. Agradecemos às pessoas e às instituições que gentilmente atenderam ao nosso pedido, enviando prontamente as informações que solicitamos.

Sob uma rubrica alargada – Música e Sociedade – esperamos que a Horizontes Antropológicos 11 seja de utilidade sobretudo para os pesquisadores iniciantes ou interessados em iniciar-se nas artes de uma antropologia sônica, do sonoro, do musical. Somos imensamente gratos pelo incentivo que recebemos em várias ocasiões dos colegas do PPGAS/UFRGS para que este coletivo se concretizasse.

Em nossa capa, pensamos assinalar pelas mãos de um Rembrandt pouco conhecido, a aproximação entre oriente e ocidente, entre homem e mulher, propiciada pela performance musical em um cenário doméstico. Com as lentes da cultura barroca flamenga do seiscentos, buscamos invocar a historicidade antropológica das práticas musicais e das indagações que elas nos permitem avançar pelas fronteiras ilimitadas do entrecruzamento do social e do musical.

Maria Elizabeth Lucas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 1999
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