Acessibilidade / Reportar erro

Meditações sobre a terra: a geografia de Byung-Chul Han

Meditations on Earth: Byung-Chul Han’s geography

Meditaciones sobre la tierra: la geografía de Byung-Chul Han

Resumo

Há tempos a geografia busca contato com outras áreas do saber. Das artes e outras ciências até a filosofia, os contatos são intensos e promovem novas articulações teóricas. Partindo desse pressuposto, o artigo promove o contato entre a geografia e a obra de Byung-Chul Han, um filósofo germano-coreano contemporâneo. O trabalho, então, estabelece um esforço teórico de relacionar a noção de Terra do autor germano-coreano, presente no livro Louvor à terra, às mais diversas tradições geográficas, pontuando como a filosofia de Han dialoga vividamente com a geografia e outras ciências sociais. Conclui-se que a obra, ao propor uma postura de consciência planetária, remodela compreensões, criticando a visão de Terra como recurso e reivindicando uma postura afetiva, que reconhece seu mistério e sua poesia ao associar o fazer científico ao encantamento.

Palavras-chave:
geografia e filosofia; Byung-Chul Han; terra

Abstract

Geography has long sought contact with other areas of knowledge. From the arts and other sciences to philosophy, contacts are intense and promote new theoretical articulations. Based on this assumption, the article promotes contact between geography and the work of Byung-Chul Han, a contemporary German-Korean philosopher. The work, then, establishes a theoretical effort to relate the German-Korean author’s notion of Earth, present in the book Louvor à terra, to the most diverse geographical traditions, pointing out how Han’s philosophy vividly dialogues with geography and other social sciences. It is concluded that the work, by proposing a posture of planetary awareness, remodels understandings, criticizing the view of Earth as a resource and claiming an affective posture, which recognizes its mystery and its poetry by associating scientific work with wonder.

Keywords:
geography and philosophy; Byung-Chul Han; Earth

Resumen

La geografía ha buscado durante mucho tiempo el contacto con otras áreas del conocimiento. Desde las artes y otras ciencias hasta la filosofía, los contactos son intensos y promueven nuevas articulaciones teóricas. A partir de este supuesto, el artículo promueve el contacto entre la geografía y la obra de Byung-Chul Han, filósofo germano-coreano contemporáneo. El trabajo, entonces, establece un esfuerzo teórico por relacionar la noción de Tierra del autor germano-coreano, presente en el libro Louvor à Terra, con las más diversas tradiciones geográficas, señalando cómo la filosofía de Han dialoga vivamente con la geografía y otras Ciencias Sociales. Se concluye que la obra, al proponer una postura de conciencia planetaria, remodela comprensiones, criticando la visión de la Tierra como recurso y reivindicando una postura afectiva, que reconoce su misterio y su poesía al asociar el trabajo científico al encantamiento.

Palabras clave:
geografía y filosofía; Byung-Chul Han; Tierra

Introdução

A geografia como tarefa de filósofos é quase um adágio. Com efeito, de Estrabão, na Antiguidade, a Eric Dardel, Richard Hartshorne, Edward Relph, Massimo Quaini e/ou Milton Santos, num período mais próximo, muitos foram os geógrafos que chamaram a filosofia para, com e por meio dela, desenvolver noções, teorias e abordagens geográficas (Hartshorne, 1978HARTSHORNE, R. Propósitos e Natureza da Geografia. São Paulo: Hucitec, 1978.; Quaini, 1979QUAINI, M. Marxismo e Geografia. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979.; Santos, 1988SANTOS, M. O espaço geográfico como categoria filosófica. Terra Livre, São Paulo, n. 5. p. 9-20, 1988.; Relph, 1979RELPH, E. As Bases Fenomenológicas da Geografia. Geografia, v. 4, n. 7, p. 1-25, 1979. ; 1985RELPH, E. Geographical experiences and being-in-the-world: the phenomenological origins of geography. In: SEAMON, D.; MUGERAUER, R. (ed.). Dwelling, place & environment: towards a phenomenology of person and world. New York: Columbia University Press, 1985.; Dardel, 2015DARDEL, E. O Homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2015.). Mais do que isso, tais autores mostraram ser essenciais para os geógrafos no ato de filosofar, de pensar filosoficamente.

Com efeito, o objeto e a função da filosofia são frutos de discussões que possuem milhares de anos e, a depender da filiação epistemológica, os resultados desses debates podem ser os mais diversos possíveis. Contudo, promover reflexões acerca de conceitos e concepções que também podem dialogar com outras ciências é um caminho possível (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 2010.). Assim, a filosofia, sob essa perspectiva, auxilia na problematização e nas proposições da geografia pois cria e desenvolve “mecanismos” que ajudam a compreender a realidade do ponto de vista geográfico (Gomes, 2010GOMES, P. C. C. Geografia e Modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.).

A história do pensamento geográfico, aliás, está repleta de exemplos de “cooptação”, de readaptação e/ou ressignificação de conceitos de outras áreas do saber e, sobretudo, da filosofia por parte da geografia (Sauer, 2000SAUER, C. A Educação de um Geógrafo. GEOgraphia. Niterói, v. 2. n. 4, p. 137-150, 2000.; Capel, 2007CAPEL, H. Filosofia e ciência na Geografia contemporânea: uma introdução a Geografia. Maringá: Massoni, 2007.). A paisagem, por exemplo, teria vindo do campo da arte; o território, por sua vez, da biologia, entre outros exemplos (Cauquelin, 2007CAUQUELIN, A. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.; Saquet, 2007SAQUET, M. Abordagens e concepções de território. São Paulo: Expressão popular, 2007.). Não são raras as interpenetrações da geografia em outros campos do saber, bem como as consequentes ressignificações de conceitos. E tais interpenetrações se tornam mais complexas à medida que diferentes correntes do pensamento geográfico buscam outras matrizes filosóficas a fim de corresponder às questões que lhes são contemporâneas (Sposito, 2004SPOSITO, E. S. Geografia e filosofia: contribuição para o ensino do pensamento geográfico. São Paulo: Editora da UNESP, 2004.). Afinal, a construção de reflexões que levem em conta as dimensões espaciais da experiência humana são cada vez mais pertinentes, posto que as mudanças que ocorrem no mundo implicaram, necessariamente, em mudanças na compreensão do humano per si e do mundo (Santos, 2006SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica, Razão e Emoção. São Paulo: Edusp, 2006.).

Assim, mostra-se frutífero o movimento de promover interpenetrações com a filosofia e outras ciências no pensamento geográfico. Este artigo objetiva fazer o mesmo movimento ao estabelecer contato com o filósofo Byung-Chul Han. Com efeito, dentre o cabedal de filósofos contemporâneos que produzem reflexões, sobressai o nome Byung-Chul Han como uma das figuras de proa. Dessa maneira, se evidencia como pertinente buscar e estabelecer contatos entre a geografia e as reflexões de Han, enriquecendo os debates geográficos. Igualmente pertinente é propor discussões sobre a Terra, sobretudo neste período de globalização e de inúmeras crises - sanitárias, sociais, ambientais, entre outras -, que são de ordem planetária.

Visando contribuir para o movimento necessário de resgatar e instigar a influência da filosofia nas ciências sociais e, mais precisamente, na geografia, como apregoava Santos (2001SANTOS, M. Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Editora Record, 2001.), este artigo discute como as meditações de Byung-Chul Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) acerca da Terra dialoga vividamente com a ciência geográfica. Para tanto, além de elucidar a noção de Terra de Han, presente no livro Louvor à terra, o artigo traz uma breve contextualização da obra e da pessoa de Byung-Chul Han, indicando seus principais interlocutores e suas preocupações a respeito do tempo contemporâneo, incluindo a questão da espacialidade. Do mesmo modo, o trabalho estabelece um esforço teórico de relacionar a noção de Terra do autor germano-coreano às mais diversas tradições geográficas, pontuando como a filosofia de Han dialoga vividamente com a geografia.

Byung-Chul Han, pensador do contemporâneo

Byung-Chul Han é um filósofo asiático nascido na Coreia do Sul em 1959 e que estudou Metalurgia num curso profissionalizante após o equivalente ao ensino médio sul-coreano. Posteriormente, na década de 1980, foi morar na Alemanha, onde estudou filosofia. Concluiu a sua formação acadêmica inicial em filosofia na Universidade de Freiburg. Além disso, também estudou literatura alemã e teologia na Universidade de Munique. No ano de 1994, com uma tese sobre a obra de Heidegger, doutorou-se em filosofia.

A obra de Byung-Chul Han é vasta e poli-temática. O autor de fato discute temas diversos, indo das tecnologias e mídias digitais, passando pela política até a estética e a espiritualidade. Leituras psicanalíticas do tempo presente também estão presentes na obra do filósofo e, com efeito, livros como Sociedade do cansaço e Sociedade paliativa (Han, 2017HAN, B-C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.; 2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.), com releituras e atualizações de Freud e Lacan, são utilizadas em vários ramos das ciências, sobretudo humanas e sociais, para explicar o tempo presente.

Em Sociedade do cansaço, por exemplo, Han (2017HAN, B-C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.) discorre sobre uma “violência neuronal”. No tempo hodierno, explica o autor, os sofrimentos psíquicos, como síndrome deburnout, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e/ou depressão, são uma resposta ao modo de vida do capitalismo contemporâneo. Não se trata mais, como outrora explicou Freud, de uma negatividade exterior - como eram os vírus e as bactérias. Agora num aspecto biológico e social, a violência neuronal está mais associada à negatividade interna ao sistema. Trata-se, então, de uma violência imanente ao próprio sistema. Por isso é uma sociedade do desempenho, na qual o próprio Ser se autoexplora. A esse sistema Han (2017HAN, B-C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.) chama de pós-disciplinar, já que não há regras exteriores que condicionam os seres, mas sim uma falsa liberdade que impõe aos indivíduos um imperativo da realização.

Esse raciocínio, que explica a transição de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do desempenho, também está presente em outros livros, como Sociedade paliativa e Sociedade da transparência (HAN, 2016HAN, B-C. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2016.; 2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.). Ele, aliás, é vital para compreender as relações de trabalho atuais, tema caro às ciências humanas em geral, e tantos fenômenos que geógrafos, historiadores e sociólogos se debruçam, como a mercantilização da vida, as relações sociais de modo geral, a democracia, o poder da informação, o uso dos espaços, entre outros.

O fato é que o estudo da obra de Byung-Chul Han se espraia pelos estudos das mídias, pela sociologia, pela filosofia, pela psicologia e outras tantas áreas. É indispensável, portanto, para a compressão da sociedade hodierna, posto que o autor germano-coreano consegue ter um olhar acurado sobre o contemporâneo. Isso tudo se deve também ao caráter ensaístico de sua obra, composta por livros curtos e por assuntos da atualidade. Isso de fato promove uma inclusão nos diversos campos do saber que pretendem compreender a realidade via especulação ou conceitualização, bem como, por consequência, uma maior circulação de seus escritos. Evidentemente, o perfil do livro - com baixo custo editorial e títulos marcantes - não pode ser negligenciado ao especular sobre a circulação de sua obra, mas isso fica em segundo plano diante da profundidade e reflexividade da obra (Chauvin, 2019CHAUVIN, J. P. Diálogo com Byung-Chul Han. Afluente, Revista de Letras e Linguística, v. 4, n. 12, p. 242-251, 2019.).

Aliás, segundo Machado (2021MACHADO, L N. Da Afabilidade ao Inferno do Igual: uma introdução crítica à Filosofia de Byung-Chul Han. Revista Sísifo, v. 14, p. 1-29, 2021.), toda a obra de Byung-Chul Han, não obstante a sua variedade, é centrada numa questão comum: a crítica ao modo de existência econômico. Esse seria a forma de vida organizada em torno da economia capitalista. Assim, a obra de Han orbita esse modo de existência econômico - seja sobretudo na crítica a ele, seja também na proposta de contraposição a essa forma de vida, isto é, uma forma de vida “anti-econômica”. Realmente, a obra do filósofo germano-coreano é marcada por esse viés crítico-propositor e, para isso, usa de ferramentas conceituais distintas (Machado, 2021MACHADO, L N. Da Afabilidade ao Inferno do Igual: uma introdução crítica à Filosofia de Byung-Chul Han. Revista Sísifo, v. 14, p. 1-29, 2021.). A relação com a Terra, como veremos, também está totalmente associada, entre outras coisas, a esta perspectiva crítica ao modelo econômico do capitalismo.

Desse modo, Byung-Chul Han pode ser considerado um contemporâneo de seu tempo, para usar a expressão de Agamben (2013AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.), com quem o filósofo sul-coreano dialoga vividamente. Isto é, Han de fato consegue enxergar as obscuridades do nosso tempo ao engendrar uma espécie de relação de desconforto com o momento em que vive, bem como é capaz de perceber os confrontos e as inquietações de seu contexto.

Outro ponto digno de destaque na obra de Byung-Chul Han é que ele consegue promover diálogos com filósofos e autores diversos, não se enquadrando somente numa perspectiva única. Assim, estabelece contato com Heidegger, Freud, Foucault, Barthes, Arendt, Hegel e outros tantos, nem sempre validando o pensamento deles, mas quase sempre tecendo críticas - por vezes ácidas. Ao não se prender exclusivamente a uma linha ou abordagem teórica, o autor promove um olhar amplo e acurado sobre diversos temas atuais da sociedade. Não só isso: Han, não obstante a temática da obra, também insere em suas discussões elementos estéticos, como poesia, obras cinematográficas e literárias. Como veremos em Louvor à Terra, Byung-Chul Han (2022HAN, B-C. Louvor à terra: uma viagem ao jardim. Petrópolis: Vozes, 2022.) revela uma inquietação metafísica sobre a Terra e, além de filósofos, ele dialoga também com poetas. São frequentes, pois, citações de Holderin, Novallis e Goethe.

Ainda que Byung-Chul Han dialogue com múltiplas perspectivas e inúmeros autores dos mais variados campos do conhecimento, as suas primeiras obras versam sobre o filósofo alemão Martin Heidegger. Elas evidenciam quanto o pensamento de Han se constrói, em grande parte, a partir do fenomenólogo alemão. A noção de Terra de Han, portanto, está influenciada no pensamento de Heidegger. Na verdade, tal influência ocorre também em outras obras.

Feitos esses apontamentos a respeito de Byung-Chul Han e sua obra, partimos agora para o diálogo entre as reflexões de Byung-Chul Han, diversos geógrafos e autores de áreas afins preocupados com o espaço, com a experiência humana, as narrativas e compreensões sobre a Terra. Segue-se, então, o esforço teórico de revisitar a obra Louvor à Terra, de Han, e investigar suas conexões com a geografia.

A terra para Byung-Chul Han

A princípio, Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) inicia sua obra sobre a Terra relembrando Kant, para quem a Terra tem uma força ameaçadora, ressoando a ideia da imanente incerteza e “incalculabilidade” que ela teria. O autor germano-coreano, então, relembra a concepção kantiana da força da natureza, que teria perturbado o sentimento de autonomia e liberdade do sujeito kantiano. Essa ideia de liberdade humana frente ao mundo, aliás, está presente em autores da geografia clássica e, mais precisamente, na Escola Francesa, que foi influenciada por esquemas neokantianos (Capel, 2007CAPEL, H. Filosofia e ciência na Geografia contemporânea: uma introdução a Geografia. Maringá: Massoni, 2007.; Berdoulay, 2017BERDOULAY, V. A Escola Francesa de Geografia: uma abordagem contextual. São Paulo: Perspectiva, 2017.).

Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.), porém, se coloca noutra perspectiva diante da Terra. No lugar da concepção de uma força e um poder do ambiente que fere a autonomia do Homem, da compreensão de algo que limita a liberdade humana, isto é, um organismo que se impõe diante do ser humano, Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) propõe pensar outra relação: a de fidelidade. Para o filósofo, com efeito, há uma relação de confiança com a Terra, ou melhor, confiança à Terra. Pode-se, então, pensar numa fidelidade à Terra, refletir sobre importância da estética, das emoções e das paixões, como sugere a visão nietzscheana do mundo (Buttimer, 1990BUTTIMER, A. Geography, Humanism and Global Concern. Annals of the Association of American Geographers, n. 80, n. 1, p. 1-33, 1990.).

O fato é que Byung-Chul Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) cita diretamente o filósofo Max Scheler e se apropria da sua compreensão de que o conhecimento sobre a Terra não significa dominação ou aquisição. Ela seria, na verdade, uma relação afetiva: “Conhecimento é amor” (Han, 2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021., p. 28). Realmente, para o fenomenólogo alemão, o amor daria acesso ao outro: amor e conhecimento precisariam coexistir. O amor, realmente, seria uma abertura ao outro, para as coisas que nos rodeiam (Scheler, 2010SCHELER, M. Amor y conocimiento y otros escritos. Madrid: Palabra, 2010.). De tal modo, para Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.), pensar ou refletir sobre a Terra, construir conhecimentos de ordem geográfica, na compreensão de Han, significa afetividade pela Terra. Assim, o saber geográfico - científico ou não - seria necessariamente topofílico ou geofílico, usando e readaptando a noção de Yi-fu Tuan (2012TUAN, Y.-F. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 2012.).

Assim, Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) vai de encontro ao estatuto ocidental que relaciona saber e dominação, conhecimento sobre a Terra e submissão da Terra. De fato, na aurora da modernidade, conhecimento significa domínio intelectual sobre a natureza (Harvey, 2006HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2006.; Gomes, 2010GOMES, P. C. C. Geografia e Modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.). Haveria, então, um saber que é poder. O conhecimento, necessariamente, estaria ligado ao domínio da Terra. Trata-se, efetivamente, de uma subordinação do domínio humano, que aconteceria via técnica.

Com efeito, a “razão instrumental” fundamentaria esse domínio e estaria organizada a partir de princípios da ciência e da tecnologia em prol do controle do mundo (Giddens, 2002GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.). Trata-se, pois, de uma compreensão que se prolonga pelo decorrer do tempo e proclama que a Terra pertence ao homem e não que eles se pertencem amistosa e mutuamente (Noguera; Arias, 2014NOGUERA, A. P.; ARIAS, D. A. B. Geografias del habitar: un habitar geopoético en la era planetária. Geograficidade, v. 4, n. 2, p. 19-31, 2014.). É essa compreensão que Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) deseja ultrapassar e inserir a relação Homem-Terra noutra perspectiva: a relação afetiva, amorosa - numa palavra, geofílica.

Além disso, dialogando mais com outros trabalhos (Han, 2018HAN, B-C. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.), o autor germano-coreano discute como o tempo atual interfere na relação com a Terra. Na sua compreensão, estamos no período da digitalização do mundo. Este tempo “[...] equivale a uma completa antropomorfização e subjetivação” (Han, 2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021., p. 31). Tais características levariam ao desaparecimento da Terra pois, quando o ser humano se reveste completamente da rede, fica cego diante do outro, inclusive da Terra. Com efeito, na perspectiva da Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.), o digital desmistifica, despoetiza e desromantiza o mundo, priva de todo mistério.

Assim sendo, as características do contemporâneo exigem um imperativo, conclui o filósofo: “Em vista da digitalização do mundo, torna-se necessário reromantizá-lo, redescobrir a Terra, sua poética, restituí-lo a dignidade do misterioso, do belo, do sublime” (p. 32). O ser humano precisa, então, resgatar o encantamento com o mundo, reconhecer a beleza da Terra, perceber a maravilha que ela é. Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) advoga, portanto, por um reencantamento do mundo. Trata-se do movimento de desemboca numa espécie de sacralização da Terra, que passa a ser vista como casa (oikos), terra-mãe, na contramão da ideia de razão absoluta que, transforma tudo em objeto e/ou em mercadoria (Noguera; Arias, 2014NOGUERA, A. P.; ARIAS, D. A. B. Geografias del habitar: un habitar geopoético en la era planetária. Geograficidade, v. 4, n. 2, p. 19-31, 2014.). Assim como Kenneth White (Gratão, 2013GRATÃO, L. H. B. Caminhando com Kenneth White pelo campo da geografia em vista de uma poética do mundo. Anais. IV Seminário de Trabalho do Grupo de Pesquisa Geografia Humanista Cultural. Niterói, 2013), de fato, Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) sugere uma relação sensível e inteligente com a Terra. Defende, pois, uma “romantização do mundo”. Justamente por isso, são recorrentes as citações de Goethe, Schiller e outros expoentes do Romantismo alemão. Ao fazer isso refletindo sobre a Terra (geo), não seria exagero dizer que parece propor, então, uma geografia romântica, para usar a expressão Tuan (2015TUAN, Y.-F. Geografía romântica: em busca del paisaje sublime. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015.).

De fato, não raras vezes na obra, Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) afirma que a Terra é magia e mistério, repleta de beleza. O filósofo germano-coreano realmente enfatiza o caráter estético da Terra. A beleza da Terra seria tamanha que ela poderia ser apenas um ser divino. Há efetivamente um quê de divino na Terra, para Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.). Contudo, não só a beleza é enfatizada como também o seu tom mágico, misterioso. Aqui, Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) une as duas compreensões que a Terra teve na Antiguidade, extinta na Modernidade, como evidenciou-se acima. Na sua compreensão, mistério e beleza andam juntas. Assim, a Terra é tanto “gea” - aquela que ri, que é bela, que brilha - como também “cton” - aquela misteriosa, que exige sempre um desnudar (Farinelli, 2012FARINELLI, Franco. A invenção da terra. São Paulo: Editora Phoebus, 2012.).

Aliás, contribui para essa compreensão a visão - ao menos atestada no discurso - religiosa de Han em relação à Terra. Diversas vezes o filósofo evoca adjetivos divinos para atribuir à Terra. Realmente, o autor chega a dizer que a Terra é obra de Deus, criação divina. Provavelmente, a formação católica de Byung-Chul Han também lhe permitisse a mesma perspectiva de Teilhard de Chardin: uma visão apaixonada da Terra, afetos devotados às energias e aos mistérios da Terra (Lima Vaz, 1967LIMA VAZ, H. C. Universo científico e visão cristã em Teilhard de Chardin. Petrópolis: Vozes, 1967.). Assim, a compreensão da Terra tingida de tons, cores, sentidos e significados, de certa forma, alude a uma certa materialidade que a Terra, criação divina, possui (Dardel, 2015DARDEL, E. O Homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2015.). Tal materialidade, aponta o próprio Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.), se perde na digitalização do mundo. Nesta última, sem dúvidas, se perde o tátil, o material, os aromas, o peso da Terra.

Ademais, num dos pontos em que Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) alude a Terra compreendida como mistério e magia, o autor cita nominalmente Martin Heidegger, para quem a Terra é efetivamente um mistério. É comum, na obra de Byung-Chul Han, sempre indo de encontro com a sociedade da transparência, uma crítica à sociedade pornográfica (aquela que tudo quer revelar, que se expõe demasiadamente) e à sociedade narcisista. Combatendo essas posturas, sempre valorizou o mistério em suas reflexões. Com Louvor à terra não seria diferente. De fato, na obra podemos constatar uma crítica feroz ao que o autor chama de terror da imanência, a postura que transforma tudo em objeto de consumo (Han, 2016HAN, B-C. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.). Desse modo, pode-se mergulhar um pouco mais a respeito da compreensão da Terra. Na perspectiva heideggeriana, a abertura para a Terra é necessariamente uma abertura para o mistério.

O contrário disso seria a atitude atual da maioria da humanidade: pensar a Terra como recurso, como algo a ser consumido. Afinal, um mundo desencantado é um mundo manipulável, passível de ser agenciado, explorado; como a natureza foi “dessacralizada”, a capacidade humana de dominá-la foi legitimada (Gonçalves, 2006GONÇALVES, C. W. P. Os Descaminhos do Meio Ambiente. São Paulo: Editora Contexto, 2006.; Stengers, 2015STENGERS, I. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015.). Nesse ponto, Byung-Chul Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) volta a dialogar com Heidegger. Este último é evocado nas meditações de Han sobre a Terra ao elucidar que ela é perspectivada como uma “coisa” a ser exigida, cobrada a dar algo, a oferecer (Heidegger, 2007HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Revista Scientia Studia, v. 5, n. 3. São Paulo. 2007). O humano, então, se relaciona com a Terra numa mentalidade de utensilidade, posto que é apenas uma oportunidade do “extrair” - tanto no sentido de explorar como no de destacar. Afinal, nessa perspectiva, o ser humano não só objetiva extrair recursos da Terra como também não a enxerga como companheira da existência ou um organismo que se relacione afetivamente, pois se sente apartado dela (Heidegger, 2007HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Revista Scientia Studia, v. 5, n. 3. São Paulo. 2007).

De fato, para Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.), a Terra é brutalmente explorada, quase sangra até a morte. Ele lamenta que, no tempo hodierno, a sociedade humana só compreenda a Terra apenas como recurso e, quando muito, resolve lidar com ela sustentavelmente. E tal relação já ameaçadora não envolve o cuidado ou convivência harmônica, como sugere o próprio Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.). Aliás, como pontua Boff (2012BOFF, L. Sustentabilidade: o que é - o que não é. Petrópolis: Vozes, 2012.), a ideia de sustentabilidade é coaptada pelos discursos governamental e empresarial e está ligada à lógica do mercado, sendo uma espécie de “falsidade ecológica” pois oculta problemas ambientais sob um discursivo verde (greenwash). Na compreensão de Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.), então, outra postura será necessária para escapar dessa ideia de Terra como recurso.

Pode-se, ainda, fazer um paralelo com Eric Dardel (2015DARDEL, E. O Homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2015.), que também criticou a visão da Terra como recurso, como algo subsistente e meramente utilitário: “[...] o homem dispõe da Terra como mestre absoluto” (Dardel, 2015DARDEL, E. O Homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2015., p. 93). Com efeito, na compreensão do geógrafo francês, a terra é um mero espaço para viabilização de um projeto humano, pronto para ser utilizado para um determinado fim. Tudo isso justificaria a degradação da terra (Dardel, 2015DARDEL, E. O Homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2015.).. Assim, a devastação da Terra, motivada pela impetuosa busca de recursos, é uma preocupação de Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) em relação ao tempo atual e à própria concepção da Terra. Isso porque tal estado de ruína que o ser humano tem transformado a Terra revela uma irrazoabilidade humana, a negação da vida, da preciosidade que a própria Terra é (Han, 2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.).

Para fugir dessa compreensão de terra como recurso e mera sustentabilidade, Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) sugere salvar a Terra. Para ele, é um dever humano “[...] aprender novamente o espanto com a Terra, com a sua beleza e estranheza [...]” (Han, 2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021., p. 33). Interessante notar que filósofo usa o termo “novamente” justamente por compreender que, um dia, o espanto com a Terra foi já foi comum, fez parte da atividade humana. Relph (1985RELPH, E. Geographical experiences and being-in-the-world: the phenomenological origins of geography. In: SEAMON, D.; MUGERAUER, R. (ed.). Dwelling, place & environment: towards a phenomenology of person and world. New York: Columbia University Press, 1985.) relembra, aliás, que o maravilhamento, o espanto diante da Terra é próprio do fazer geográfico. O ser humano, realmente, enquanto ser da razão e da imaginação, é indubitavelmente ser do espanto, capaz de enxergar na Terra maravilhamentos (Relph, 1985). Ainda que o espanto seja vital para o fazer geográfico, Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) sugere algo a mais. Na sua compreensão, mais do que pensar melhor sobre a Terra, o espanto nos ajudaria a viver melhor com a Terra.

Assim, para salvar a Terra, isto é, não se assenhorar dela, não a submeter, promovendo uma exploração sem limite, Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) sugere uma nova romantização do mundo. Com efeito, “Preservar a Terra significa devolvê-la a sua essência” (Han, 2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021., p. 35). Assim, o processo de reflexão se torna fulcral aqui. E, de fato, só se compreende o mundo estando envolvido com ele; é o enlear-se com o mundo que nos franqueia a sua compreensão.

Outro “dever humano” em relação a Terra seria uma espécie de consciência terrestre que Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) chama de consciência planetária. Na sua perspectiva, “

devemos sempre estar conscientes de que existimos em um planeta pequeno, mas florescente, em um mundo de resto sem vida, que somos um ser planetário. É necessário [sic] uma consciência planetária” (Han, 2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021., p. 34).

Assim, é preciso saber-se ligado a Terra. Ou, para usar uma expressão dardeliana, trilhar o caminho para despertar uma consciência geográfica, terrestre (Dardel, 2015DARDEL, E. O Homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2015.). A propósito, a forma como ele tece seu argumento que pode transcender a consciência do caráter espacial da existência humana. Efetivamente, termo “somos um ser planetário” pode propiciar a interpretação, tão comum na abordagem fenomenológica-existencial da geografia (Holzer, 2016HOLZER, W. Geografia Humanista: sua trajetória 1950-1990. Londrina: Eduel, 2016.), que Terra e homem sejam apenas um só, como se existisse um “[...] cordão umbilical pelo qual a terra nutre o homem.” (Dardel, 2015DARDEL, E. O Homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2015., p. 48). Essa indissociabilidade entre homem e Terra também comum na ciência geográfica (Dardel, 2015DARDEL, E. O Homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2015.; Holzer, 2016HOLZER, W. Geografia Humanista: sua trajetória 1950-1990. Londrina: Eduel, 2016.).

Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.) advoga, então, por uma proximidade da/à Terra. Ele enseja e encoraja “[...] um sentimento de profunda fidelidade, profundo vínculo com a Terra” (Han, 2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021., p. 170). Afinal, explica o autor, tal vínculo seria parte constituinte do ser humano, que remete ao humus. Inclusive, Dardel (2015DARDEL, E. O Homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2015.) também já pontuou essa relação ao falar de uma geograficidade original, na qual o ser humano tem ligações existenciais com a Terra, como também ao esclarecer que todas as narrativas míticas a respeito do ser humano evocam o surgimento deste da terra (húmus, humanus). Assim, há, nessa perspectiva, um profundo laço, uma relação existencial entre Homem e Terra.

Além disso, essa consciência planetária, pontua Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.), também estaria ligada a uma compreensão da finitude da Terra, a não ter a arrogância de perspectivar a Terra como fonte de recursos infinitos. Noguera e Arias (2014NOGUERA, A. P.; ARIAS, D. A. B. Geografias del habitar: un habitar geopoético en la era planetária. Geograficidade, v. 4, n. 2, p. 19-31, 2014.), inclusive, também já demostraram a importância de reconhecer a finitude do planeta (Noguera; Arias, 2014NOGUERA, A. P.; ARIAS, D. A. B. Geografias del habitar: un habitar geopoético en la era planetária. Geograficidade, v. 4, n. 2, p. 19-31, 2014.). E, para isso, é necessário livrar-se de todo antropocentrismo e dar a merecida relevância à Terra; sentir-se, então, feito da mesma coisa que a Terra, perceber a finitude da Terra e do Homem, concebendo a condição humana enraizada na Terra e entendendo-a como sua morada, a única morada possível (Noguera; Arias, 2014NOGUERA, A. P.; ARIAS, D. A. B. Geografias del habitar: un habitar geopoético en la era planetária. Geograficidade, v. 4, n. 2, p. 19-31, 2014.).

Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.), por fim, evoca um termo religioso para explicar o “salvamento” da Terra e o desenvolvimento de uma consciência planetária. É o termo utilizado no título de uma de suas obras: louvor. O louvor seria, para Han (2021HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.), uma maneira de recuperar a dignidade da Terra. Na sua compreensão, a Terra despertaria um sentimento de gratidão e tal sentimento seria vital no desenvolvimento de construtos racionais sobre a própria Terra. Para além da dimensão do religioso - ainda que ela enxergue o aspecto divino da Terra, o louvor seria uma espécie de resposta diante do conhecimento sobre a Terra. Se noutro ponto o autor chamou atenção para o caráter afetivo do saber, agora ele o relaciona mais uma vez a uma experiência positiva, de bem-estar.

Considerações Finais

Com o olhar sempre voltado para as discussões atuais, Byung-Chul Han comenta que o mundo digital desmistifica, despoetiza e desromantiza a Terra. Assim, ele reivindica mais relações diretas com a Terra. Num mundo no qual há um reino das telas a mediar as nossas relações, o autor clama por mais contatos com o mundo. Somente isso pode restabelecer a dignidade da Terra, uma relação saudável com a natureza. Parece uma postura radical num tempo em que as telas passaram a ser preponderante em inúmeros contextos. Contudo, a opção dele não é a de extinguir o digital, mas priorizar a relação com a Terra e a consciência planetária. Esta última, inclusive, se mostra uma noção potente no diálogo com a ciência geográfica, posto que ter uma consciência planetária significa saber que a existência humana é espacial, acontece unicamente na Terra.

Byung-Chul Han, ainda, discute e problematiza a concepção de Terra como recurso - o que iria de encontro com a consciência planetária. Contudo, o autor não aponta saídas concretas para o perigo. A bem da verdade, essa não é sua preocupação principal. Seu livro é uma espécie de diário construído a partir de meditações filosóficas decorrentes de seu contato com a Terra - em minúscula mesmo. Daí a sua preocupação principal é promover reflexão. E isso é proporcionado pelo texto do filósofo germano-coreano. Aliás, na sua compreensão, a própria reflexão já auxilia no processo de “salvar a Terra”, pois proporciona que a essência e a dignidade da Terra sejam devolvidas. A reflexão sobre a Terra seria mais um passo rumo a concretização da relação Homem-Terra numa perspectiva amorosa ou, quiçá, geofílica. Isso porque o conhecimento não pode ser tomado como uma dominação, mas como contato afetivo.

Ainda que Han não tenha se valido de concepções e metodologias científicas propriamente geográficas, suas reflexões podem auxiliar no desenvolvimento da ciência geográfica, seja fortalecendo a necessidade de diálogo com a filosofia ou promovendo a consciência planetária. A geografia de Han de fato pode ser útil à ciência geográfica contemporânea. Assim como a filosofia de Byung-chul Han, a geografia pode reconhecer uma vocação de amor ao belo, à beleza. Ela pode, de fato, voltar às suas origens românticas, como propunha Humboldt - não para voltar ao passado somente, mas para refinar-se ao entrar em contato com suas fontes.

Com o filósofo germano-coreano, a geografia pode fortalecer seus modos de propor uma relação saudável com a Terra, rechaçando tanto a noção moderna de razão instrumental humana quanto a ideia de natureza algo assustador, como um poder ameaçador. Mais do que isso: pode promover uma declaração de amor à Terra e um chamado cuidadoso à humanidade para que esta zele pela Terra. Assim como a obra de Yi-Fu Tuan, a obra de Byung-Chul Han pode motivar nos geógrafos a importância de saber que o fazer científico não está dissociado do encantamento do mundo, no qual o maravilhamento, o espanto e o mistério são bem-vindos.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  • BERDOULAY, V. A Escola Francesa de Geografia: uma abordagem contextual. São Paulo: Perspectiva, 2017.
  • BOFF, L. Sustentabilidade: o que é - o que não é. Petrópolis: Vozes, 2012.
  • BUTTIMER, A. Geography, Humanism and Global Concern. Annals of the Association of American Geographers, n. 80, n. 1, p. 1-33, 1990.
  • CAPEL, H. Filosofia e ciência na Geografia contemporânea: uma introdução a Geografia. Maringá: Massoni, 2007.
  • CAUQUELIN, A. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
  • CHAUVIN, J. P. Diálogo com Byung-Chul Han. Afluente, Revista de Letras e Linguística, v. 4, n. 12, p. 242-251, 2019.
  • DARDEL, E. O Homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2015.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 2010.
  • FARINELLI, Franco. A invenção da terra. São Paulo: Editora Phoebus, 2012.
  • GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
  • GOMES, P. C. C. Geografia e Modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
  • GONÇALVES, C. W. P. Os Descaminhos do Meio Ambiente. São Paulo: Editora Contexto, 2006.
  • GRATÃO, L. H. B. Caminhando com Kenneth White pelo campo da geografia em vista de uma poética do mundo. Anais. IV Seminário de Trabalho do Grupo de Pesquisa Geografia Humanista Cultural. Niterói, 2013
  • HAN, B-C. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2016.
  • HAN, B-C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
  • HAN, B-C. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
  • HAN, B-C. Sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Vozes, 2021.
  • HAN, B-C. Louvor à terra: uma viagem ao jardim. Petrópolis: Vozes, 2022.
  • HARTSHORNE, R. Propósitos e Natureza da Geografia. São Paulo: Hucitec, 1978.
  • HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2006.
  • HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Revista Scientia Studia, v. 5, n. 3. São Paulo. 2007
  • HOLZER, W. Geografia Humanista: sua trajetória 1950-1990. Londrina: Eduel, 2016.
  • LIMA VAZ, H. C. Universo científico e visão cristã em Teilhard de Chardin. Petrópolis: Vozes, 1967.
  • MACHADO, L N. Da Afabilidade ao Inferno do Igual: uma introdução crítica à Filosofia de Byung-Chul Han. Revista Sísifo, v. 14, p. 1-29, 2021.
  • NOGUERA, A. P.; ARIAS, D. A. B. Geografias del habitar: un habitar geopoético en la era planetária. Geograficidade, v. 4, n. 2, p. 19-31, 2014.
  • RELPH, E. As Bases Fenomenológicas da Geografia. Geografia, v. 4, n. 7, p. 1-25, 1979.
  • RELPH, E. Geographical experiences and being-in-the-world: the phenomenological origins of geography. In: SEAMON, D.; MUGERAUER, R. (ed.). Dwelling, place & environment: towards a phenomenology of person and world. New York: Columbia University Press, 1985.
  • QUAINI, M. Marxismo e Geografia. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979.
  • SANTOS, M. O espaço geográfico como categoria filosófica. Terra Livre, São Paulo, n. 5. p. 9-20, 1988.
  • SANTOS, M. Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Editora Record, 2001.
  • SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica, Razão e Emoção. São Paulo: Edusp, 2006.
  • SAUER, C. A Educação de um Geógrafo. GEOgraphia. Niterói, v. 2. n. 4, p. 137-150, 2000.
  • SAQUET, M. Abordagens e concepções de território. São Paulo: Expressão popular, 2007.
  • SCHELER, M. Amor y conocimiento y otros escritos. Madrid: Palabra, 2010.
  • SPOSITO, E. S. Geografia e filosofia: contribuição para o ensino do pensamento geográfico. São Paulo: Editora da UNESP, 2004.
  • STENGERS, I. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
  • TUAN, Y.-F. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 2012.
  • TUAN, Y.-F. Geografía romântica: em busca del paisaje sublime. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015.

Editado por

Editor do artigo:

Rodrigo Ramos Hospodar Felippe Valverde

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2023
  • Aceito
    28 Set 2023
Universidade de São Paulo Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - Cidade Universitária, São Paulo , SP - Brasil. Cep: 05339-970, Tels: 3091-3769 / 3091-0297 / 3091-0296 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistageousp@usp.br