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A plasticidade dos folhetos de cordel: do nomadismo das vozes à tessitura do imaginário nordestino em O Romance do Pavão Misterioso

The plasticity of cordel leaflets: from the nomadism of voices to the texture of the Northeastern imaginary in O Romance do Pavão Misterioso

Resumo

As construções do imaginário do povo nordestino fazem parte do acervo cultural da região, tornando-se relevantes fontes de pesquisas. A literatura de cordel se apresenta como produção viva no contexto sociocultural em que se insere. Tecida por vozes da tradição oral, constitui-se arte popular que entrecruza realidade e ficção em narrativas que fazem emergir imagens e símbolos arquetípicos (JUNG, 2014), intrínsecos à criação mítica. Diante disso, este estudo investiga os processos de significação narrativa e a plasticidade cultural suscitados pelo cordel O Romance do Pavão Misterioso, obra do paraibano José Camelo de Melo Rezende (1885-1964). Por meio de uma pesquisa bibliográfica e documental, de natureza qualitativa, o estudo partiu das leituras de Rodrigues (2011) e Santos (2017) sobre a literatura de cordel, bem como dos estudos culturais e de tradição oral (ZUMTHOR, 1993), por meio de um viés simbólico-antropológico (DURAND, 2002; JUNG, 2014, 2016). Observando a sincronicidade e diacronicidade dessa narrativa e o processo mitanalítico do imaginário cultural que a tece, compreende-se que a diegese impressa em seus versos dimana de uma estrutura mítico-simbólica que se deu como processo contínuo de atualização de um imaginário coletivo em contexto nordestino. Mediante o fenômeno da plasticidade cultural (RODRIGUES, 2011, 2017), o estudo constata a manutenção de vozes arquetípicas que a literatura de cordel atualiza e ressignifica no contexto de narrativas midiáticas contemporâneas.

Palavras-chave
literatura de cordel; imaginário; plasticidade cultural; pavão misterioso

Abstract

The constructions of the Northeastern people's imagination are part of the cultural heritage of the region which makes them become relevant sources of research. Cordel literature presents itself as a living production in the sociocultural context in which it operates. Woven by voices from the oral tradition, it constitutes popular art that interweaves reality and fiction in narratives that bring out archetypal images and symbols (JUNG, 2014), intrinsic to mythical creation. Given this, the study investigates the processes of narrative meaning and cultural plasticity raised by the cordel O Romance do Pavão Misterioso, a work by José Camelo de Melo Rezende (1885-1964) from Paraíba. Through a bibliographical and documentary research, of a qualitative nature, this paper started from the readings carried out in Rodrigues (2011) and Santos (2017) on cordel literature, transiting through cultural studies and oral tradition (ZUMTHOR, 1993), from a symbolic-anthropological perspective (DURAND, 2002; JUNG, 2014; 2016). Observing the synchronicity and diachronicity of this narrative and the metanalytic process of the cultural imaginary that weaves it, it is understood understands that the diegesis printed in the verses stems from a mythical-symbolic structure that occurred as a continuous process of updating a collective imaginary in a northeastern context. Through the phenomenon of cultural plasticity (RODRIGUES, 2011; 2017), the study verifies the maintenance of archetypal voices that cordel literature updates and reframes in the context of contemporary media narratives.

Keywords
cordel literature; imaginary; cultural plasticity; Pavão Misterioso

Introdução

A humanidade sempre foi atraída pelo poder sedutor das narrativas fantásticas, míticas/místicas ou lendárias. A voz, extensão performática do corpo (ZUMTHOR, 1993ZUMTHOR, P. A letra e a voz. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.), é o próprio fio condutor que tece essas histórias. Ela “tem o poder de seduzir, envolver aqueles que se encontram ao alcance de seu timbre, fazendo-os viajar nas palavras emitidas pela boca de um contador de histórias” (SANTOS, 2010SANTOS, R. A. Ao pé do fogo... Conversas sobre oralidades. In: TIERNO, G. (org.). A Arte de Contar Histórias: Abordagens poética, literária e performática. São Paulo: Ícone Editora, 2010. cap. 8, p. 107-125., p. 120). A literatura popular toma como mote essas narrativas que envolvem os dramas, os mistérios e o imaginário coletivo do povo, uma vez que elas revelam os desejos humanos mais profundos e elementares na busca pela construção de si, “apontando novas leituras, novas imagens, que ora se repetem, ora ressignificam imagens primordiais” (SANTOS, 2014SANTOS, G. M. Dos versos às cenas: o cangaço no folheto de cordel e no cinema. Campina Grande: Editora Marcone, 2014., p. 32).

É na contação e audição de histórias que compreendemos que não estamos sós no mundo. Por meio de narrativas, contadas/ouvidas, por exemplo, sentimos emoções, choramos, amamos, odiamos, nos alegramos, almejamos subir na vida, porque as temáticas dos fracassos e da ascensão do homem nas sociedades são comuns nos relatos de tradição oral. A humanidade compartilha “conteúdos coletivos, originariamente provindos do inconsciente” (JUNG, 2000JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Pinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, Brasil, 2016. p. 15-130., p. 17). Os sonhos, por exemplo, são constituídos desse imaginário do inconsciente, pois

[...] eles são, da mesma forma, diabolicamente fascinantes, pois trazem consigo chaves que abrem as portas de todo o domínio da aventura, a um só tempo desejada e temida, da descoberta do eu. Destruição do mundo que construímos [...], mas, em seguida, uma maravilhosa reconstrução”

(CAMPBELL, 2007CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Editora Cultrix/Pensamento, 2007., p. 8).

Os sonhos referenciam a magia dos mitos e dos símbolos constituindo-se matéria-prima para as produções artísticas em todas as suas manifestações. Conforme Durand (1996, p. 62)______. Campos do imaginário. Trad. Maria João Batalha Reis. Lisboa: Instituto Piaget, 1996., o conceito de mito está atrelado a “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, que sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em forma de narrativa”. Em nosso estudo, entendemos que as escrituras populares apresentam uma profunda afinidade com a estrutura mítica, uma vez que os poetas, por meio da imaginação, fazem renascer símbolos arquetípicos (JUNG, 2014______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.), que são peculiares da produção mítica. Há nessa arte popular uma gama de temáticas que rompem as fronteiras entre o oral e o escrito, o popular e o erudito, o profano e o sagrado, a tradição e a modernidade, em que elementos de uma manifestação cultural são deslocados para outra (RODRIGUES, 2011RODRIGUES, L. P. Vozes do fim dos tempos: profecias em escrituras midiáticas. 2011. 431f. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011.).

De tradição ibérica, a literatura de cordel é a forma mais autêntica de expressão da cultura popular nordestina. Esta literatura constitui-se o entre-lugar (BHABHA, 1998BHABHA, H. K. O local da cultura. Trad. de Myrian Ávila, Eliane Lourenço de L. Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: EDUFMG, 1998.) em que símbolos de diversas culturas se amalgamam com símbolos de experiências do cotidiano do povo nordestino para se atualizar e continuar a produzir efeitos de sentido no contexto sociocultural que circulam (RODRIGUES, 2017______. Por uma linguística da prática, p. 70 -90. In: Gelne 40 anos. São Paulo: Blucher, 2017.). A literatura de cordel traz em sua tessitura uma “notável efervescência mitológica” (GIRARDET, 1987GIRARDET, R. Mitos e mitologias políticas. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das letras, 1987., p. 9). Aliás, foi reconhecida recentemente pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural imaterial do povo brasileiro, evidenciando seu valor como prática cultural literária para além das fronteiras regionais. Conforme Rodrigues (2011)RODRIGUES, L. P. Vozes do fim dos tempos: profecias em escrituras midiáticas. 2011. 431f. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011., entendemos que esse tipo de arte popular é um exemplo singular de documento/monumento das vozes e escrituras, que fascina pelo seu caráter hibridizante e de movência da voz, fertilizando um terreno que explora fenômenos do imaginário coletivo local.

Para este estudo, focamos no processo de semiose imagético-figurativo (RODRIGUES, 2013______. Plasticidade das vozes e escrituras do cordel de fim dos tempos: tradição e modernidade. Revista do GELNE, Natal, v. 15, n. 1/2, p. 249-265, 2013.), presente em produções culturais que circulam na região Nordeste do Brasil, o qual atualiza as vozes da literatura de cordel. Entre as inúmeras formas de (res)significação dessas vozes, enquanto expressões poéticas materializadas na cultura popular, destacamos O Romance do Pavão Misterioso, produção artística de José Camelo de Melo Rezende (1885-1964), poeta popular do Brejo Paraibano. Com mais de 50 reedições, essa narrativa é baseada em contos populares, como os de As mil e uma noites, contados pela lendária rainha persa Sherazade. A obra tem características singulares que combinam contos maravilhosos com o imaginário popular da região. Por essa razão, atualiza signos em diversas produções multimidiáticas, tais como filmes, novelas, músicas, peças teatrais etc. Tendo em vista esse nomadismo de vozes e de escrituras, buscamos respostas para as seguintes questões: quais foram as mediações que teceram as narrativas de O Romance do Pavão Misterioso no cenário da literatura de cordel nordestina? E quais processos de retextualização narrativa contribuíram para a permanência e a circularidade dessas vozes no contexto da literatura popular brasileira?

Diante disso, nosso objetivo foi analisar o trajeto mítico-antropológico dessa narrativa com base na performance de vozes e escrituras presentes na obra, considerando a concepção simbólica da imaginação criadora, que agrega o imaginário e os símbolos primordiais aos processos de elaboração e análise dos textos das culturas populares. Para tanto, por meio de uma pesquisa bibliográfica e documental com objetos de mídia, de natureza qualitativa, baseamo-nos em pressupostos teóricos que se voltam para os estudos da significação e tradição das vozes e escrituras, próprios dos estudos culturais, mediante um olhar simbólico-antropológico para o texto de tradição oral. Assim, fundamentaram o nosso estudo os postulados teóricos de Durand (2002)DURAND. G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002., Jung (2014______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., 2016)JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Pinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, Brasil, 2016. p. 15-130., Rodrigues (2011RODRIGUES, L. P. Vozes do fim dos tempos: profecias em escrituras midiáticas. 2011. 431f. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011., 2013______. Plasticidade das vozes e escrituras do cordel de fim dos tempos: tradição e modernidade. Revista do GELNE, Natal, v. 15, n. 1/2, p. 249-265, 2013., 2014______. Tríade arquetípica do feminino no imaginário religioso cristão: Eva, Maria e Madalena. In: SILVA, A. P. D. et al. (org.). Artimanhas do desejo: ensaios de literatura, psicologia, linguagens. São Paulo: Scortecci, 2014. p. 189-208., 2017______. Por uma linguística da prática, p. 70 -90. In: Gelne 40 anos. São Paulo: Blucher, 2017., 2018)______. Memória e documento: o cordel, monumento da cultura das vozes. In: ASSUNÇÃO, L.; MELLO, B. A. A. (org.). Paul Zumthor: memória das vozes. São Paulo: Assimetria Editora, 2018. p. 221-249., Santos (2014SANTOS, G. M. Dos versos às cenas: o cangaço no folheto de cordel e no cinema. Campina Grande: Editora Marcone, 2014., 2017)______. Eco das vozes. In: ______ (org.) Cantorias, cordel e cinema: vozes do imaginário musical do cangaço. Campina Grande: EDUEPB, 2017. p. 53-64., Zumthor (1993ZUMTHOR, P. A letra e a voz. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., 1997BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997., 2000______. Performance, recepção e leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000., 2005)______. Escritura e nomadismo. Trad. de Jerusa Pires Ferreira, Sonia Queiroz. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005., entre outros.

Como expressão legitimamente popular, o cordel brasileiro instiga diversas formas de abordagem e compreensão de sua atuação linguística-literária como prática social e política na cultura em que se insere. Veremos como o poeta popular alia e mescla sua produção escrita a outros elementos que pertencem ao plano e domínio do imaginário. Esses signos/símbolos, evidenciados com expressividade na narrativa de Rezende (2011)RESENDE, J. C. M. O Romance do Pavão Misterioso. Fortaleza: ABC-Academia Brasileira de Cordel; Tupinanquim Editora, 2011., permitem a materialização/incorporação do sentido em sua tessitura e a produção do imaginário coletivo da região (RODRIGUES, 2014______. Tríade arquetípica do feminino no imaginário religioso cristão: Eva, Maria e Madalena. In: SILVA, A. P. D. et al. (org.). Artimanhas do desejo: ensaios de literatura, psicologia, linguagens. São Paulo: Scortecci, 2014. p. 189-208., p. 192). Logo, essas narrativas populares cristalizam o imaginário coletivo, e a tradição oral se perpetua por meio de sua plasticidade cultural.

Plasticidade das vozes e escrituras: o legado da tradição oral na literatura de cordel

Pelo que concerne à poesia, a escritura parece moderna; a voz, antiga. Mas a voz “moderniza-se” pouco a pouco: ela atestará um dia, em “plena sociedade do ter”, a permanência de uma “sociedade do ser”

(ZUMTHOR, 1993ZUMTHOR, P. A letra e a voz. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 26).

As narrativas míticas se ressignificam no fazer poético dos literatos contemporâneos, tornando-se imortais. Elas são capazes de mexer com a imaginação humana a ponto de se prescrutar nos mitos uma explicação plausível para a origem da humanidade e seus anseios, dos sentimentos, dos fenômenos naturais etc. Segundo Eliade (1972)ELIADE, M. Mito e realidade. Trad. Póla Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1972., em algumas sociedades, os mitos se confundem com os fatos, estabelecendo modelos de conduta humana e valorização existencial. “O mito é o sonho da sociedade” (CAMPBELL, 2007CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Editora Cultrix/Pensamento, 2007., p. 42). Contudo, ao longo da história humana, vozes oriundas dessas narrativas foram silenciadas, confinadas a reducionismos por um sistema escriturístico dominante. Nesse ínterim, algumas formas de escrituras, como a escrita ocidental abstrata, sempre batalharam por seu status e, assim, buscou-se disciplinar a performance vocal das comunidades tradicionais, bem como suas palavras de encantamento, palavras míticas e/ou alegóricas (SANTOS, 2017______. Eco das vozes. In: ______ (org.) Cantorias, cordel e cinema: vozes do imaginário musical do cangaço. Campina Grande: EDUEPB, 2017. p. 53-64.).

Em Introdução à poesia oral, Zumthor (1997, p. 28)______. Introdução à poesia oral. Trad. de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Pochat, Maria Inês Almeida. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. elenca um conjunto de ponderações em torno do reino encantado da performance oral, e discorre sobre a presença do corpo no fazer literário. Para ele, a performance é um termo antropológico que nos concede a ideia de ação/atualização. Ferreira (1997, p. 302)______. O universo conceitual de Paul Zumthor no Brasil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 45, p. 141-152, 2007. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i45p141-152>. Acesso em: 22 jul. 2022.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X....
esclarece que, ao vir ao Brasil como professor visitante da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 1977, Zumthor, dedicado ao estudo da literatura medieval, maravilhou-se da vívida riqueza cultural que aqui encontrou, principalmente ao visitar o Nordeste. Nesta região, o autor se voltou ao estudo das tradições orais, influenciado fortemente pelos textos oralizados dos poetas populares.

Para o medievalista helvético, a voz “independente daquilo que ela diz, propicia um gozo, [...], se torna corpo e comunica” (ZUMTHOR, 2005______. Escritura e nomadismo. Trad. de Jerusa Pires Ferreira, Sonia Queiroz. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005., p. 63). “É pelo corpo que nós somos tempo e lugar: a voz o proclama emanação do nosso ser [...]. A poesia não mais se liga às categorias do fazer, mas às do processo” (ZUMTHOR, 1997______. Introdução à poesia oral. Trad. de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Pochat, Maria Inês Almeida. São Paulo: Editora Hucitec, 1997., p. 157). Em sua dimensão poética, as manifestações orais se conectam às performances do corpo, na medida em que a oralidade implica as nuances de expansão deste, seja no olhar, no gesto ou em outros movimentos que se integram a essa poética.

Com as novas formas de midiatização dos textos, a voz, que estava condenada ao desuso, resiste a ações do tempo e moderniza-se. Para além de ser compreendida como sinônimo de oralidade, ela torna-se um lugar simbólico, nômade, de movência, mais fluída que a letra (ZUMTHOR, 2000______. Performance, recepção e leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000., p. 56). Atualiza-se de diferentes formas, por meio de diferentes performances, deslocamentos e transformações. Zumthor (2000)______. Performance, recepção e leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000. afirma que, a partir do século XIX, ao materializar-se entre o corpo e as palavras, a voz, em sua performance e movência, é restituída em sua autoridade. Surgem, assim, novas maneiras de dizer/falar, novos paradigmas e conceitos de performances escritas e orais, potencializadoras do imaginário, das formas de ver o mundo e da tradição popular.

Nessa mesma época, de acordo com Santos (2017)______. Eco das vozes. In: ______ (org.) Cantorias, cordel e cinema: vozes do imaginário musical do cangaço. Campina Grande: EDUEPB, 2017. p. 53-64., esse reencantamento da voz pôde ser visto, sobretudo, com a presença dos folhetos de cordel no Brasil como manifestação artística de amplitude cultural desenvolvida com expressividade também pelos alemães, holandeses, franceses e em outras partes do mundo. Ao falar sobre esse tipo de literatura popular, o autor evidencia que “antes mesmo de o texto, em forma de narrativa mítica e poética, ser lido, fora ele, possivelmente, estruturado sobre a performance da voz” (SANTOS, 2017______. Eco das vozes. In: ______ (org.) Cantorias, cordel e cinema: vozes do imaginário musical do cangaço. Campina Grande: EDUEPB, 2017. p. 53-64., p. 55). Atualmente, por influência de Raymond Cantel, pesquisador francês da cultura popular brasileira, a França detém o maior acervo de cordel do mundo, disponível em formato digital1 1 Ver: <https://cordel.edel.univ-poitiers.fr>. Acesso em: 21 jul. 2022. .

A literatura de cordel chega ao Brasil por volta do século XVIII, nas embarcações portuguesas. Por aqui, desenvolve uma literatura própria, amalgamando elementos literários e culturais peculiares. Ela popularizou-se em todo o país, incrustando-se com expressividade no interior do Nordeste, presumivelmente por fatores de formação política, econômica e social da região. Fortemente influenciadas pelas histórias tradicionais, ditas novelas de cavalaria do trovadorismo medieval, as narrativas da tradição oral sempre tiveram espaço na tessitura da literatura de cordel brasileira, servindo de inspiração para suas reedições/atualizações. A diversidade temática do cordel provém do imaginário do povo nordestino, evocando do inconsciente coletivo signos/símbolos capazes de cativar seus ouvintes/leitores, à medida que eles prescrutam nossas mais íntimas relações humanas, ligando-nos ao mundo pelo laço umbilical da experiência (RODRIGUES, 2011RODRIGUES, L. P. Vozes do fim dos tempos: profecias em escrituras midiáticas. 2011. 431f. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011.).

Nesse contexto, como boa parte da população era analfabeta, os poetas conquistavam seus ouvintes/leitores pela forma cadenciada e melodiosa de seus versos, que eram performatizados/recitados com muita empolgação por onde iam se apresentando: fazendas, feiras livres, praças, festas religiosas. Na maioria das vezes, os próprios autores eram editores, ilustradores e vendedores de suas obras. A população encontrava neles a figura de mestres e informantes socioculturais, detentores de saberes que os configuravam como líderes da opinião pública, uma espécie de intelectual orgânico (porta- voz do povo), termo cunhando pelo italiano Antônio Gramsci (1978)GRAMSCI, A. Quaderni di Cárcere. Roma: Instituto Gramsci, 1978., em Cadernos do cárcere.

O cordel teve sua efervescência no Brasil entre os anos 1920 e 1950, proeminentemente na capital pernambucana. Com o surgimento do rádio, e posteriormente da televisão, alguns críticos consideraram uma possível morte do cordel, ideia reverberada pelos discursos da época da ditadura, em que muitos artistas e escritores populares foram silenciados pela censura. Rodrigues (2013, p. 252)______. Plasticidade das vozes e escrituras do cordel de fim dos tempos: tradição e modernidade. Revista do GELNE, Natal, v. 15, n. 1/2, p. 249-265, 2013. critica categoricamente esse pensamento. Para ele, tais críticos

não se permitem enxergar que essas mídias se renovam como todas as outras, porque continuam em plena produção. Elas ainda estão na feira, mas também ‘invadiram’ outros espaços e fazem sentido a partir da configuração que é própria desse gênero textual/discursivo

(Rodrigues, 2013______. Plasticidade das vozes e escrituras do cordel de fim dos tempos: tradição e modernidade. Revista do GELNE, Natal, v. 15, n. 1/2, p. 249-265, 2013., p. 252).

Tendo em vista essa plasticidade/movência dos folhetos de cordel, Rodrigues (2017)______. Por uma linguística da prática, p. 70 -90. In: Gelne 40 anos. São Paulo: Blucher, 2017. alarga as possibilidades de uma abordagem semiótica-antropológica dos gêneros textuais, ao desenhar uma práxis semiológica e propor uma linguística da prática. Apoiado na teoria do habitus de Pierre Bourdieu, ele teoriza a área de pesquisa como um espaço de observação e análise de sujeitos e culturas híbridas, transitando pela valorização de bens simbólicos no plano sociocultural. De acordo com o autor, atualmente, o universo cibernético e o uso das ferramentas digitais contemporâneas permitiram que a literatura de cordel adentrasse novos territórios, ganhasse novos públicos e se reinventasse. Com isso, o cordel empresta seu valor de status, bem como seu suporte, à produção de outros textos, demonstrando sua plasticidade cultural, por meio de narrativas contemporâneas que discursivizam os prazeres e fazeres do ser universal.

Verificando as culturas em movimento, especificamente a produção viva da cultura popular do cordel, Rodrigues (2013, p. 253)______. Plasticidade das vozes e escrituras do cordel de fim dos tempos: tradição e modernidade. Revista do GELNE, Natal, v. 15, n. 1/2, p. 249-265, 2013. observa que “há uma plasticidade tanto cultural/ideológica quanto do próprio suporte (folheto de cordel) que atualiza as vozes e escrituras” de narrativas ficcionais e mítico-simbólicas em contextos contemporâneos, os quais aludem a significados arquetípicos do inconsciente coletivo, numa espécie de “incessantes variações re-criadoras” (ZUMTHOR, 2000______. Performance, recepção e leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000., p. 77). Pelo seu dinamismo e plasticidade cultural, o cordel absorve aspectos da cultura e do imaginário local, bem como tendências do contemporâneo, ressignificando-os. Surgem, assim, novas formas de configurações e suportes, novos objetivos de produção no aspecto espacial e temporal.

Segundo Rodrigues (2013, p. 257)______. Plasticidade das vozes e escrituras do cordel de fim dos tempos: tradição e modernidade. Revista do GELNE, Natal, v. 15, n. 1/2, p. 249-265, 2013., não é saudável ao fazer científico pensar que um gênero em plena produção ativa possa desaparecer, tendo em vista que “o cordel não é só o da tradição”, pois ele mesmo “se inventou/reinventou a partir de outras obras textuais/discursivas (foi romance, jornal etc.)”, tornando-se “uma mídia impressa que traz a voz e dá voz à sociedade e aos sujeitos que estão por trás dessas produções”. Portanto, essa forma de expressão popular torna-se um legítimo “canal de condução das vozes que arranjam a modernidade em solo da tradição” (RODRIGUES, 2013______. Plasticidade das vozes e escrituras do cordel de fim dos tempos: tradição e modernidade. Revista do GELNE, Natal, v. 15, n. 1/2, p. 249-265, 2013., p. 264). Há no cordel um encontro de vozes que religa tradição e contemporaneidade, à medida que se explora novos leitores e novas imagens, um continuum evidenciado em contextos multimidiáticos.

Os fios que tecem o imaginário simbólico da literatura de cordel

A literatura de cordel brasileira constitui-se como instrumento propagador de imagens simbólicas arquetípicas atemporais que tem suas raízes no “desvaneio contínuo da herança mítica” (DURAND, 2002DURAND. G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 20). Mediante uma visão pansemiótica e pancrônica das pesquisas linguístico-literárias (RODRIGUES, 2011RODRIGUES, L. P. Vozes do fim dos tempos: profecias em escrituras midiáticas. 2011. 431f. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011.), compreendemos que as narrativas populares agregam fundamentos à vida humana ao revelarem o inconsciente coletivo de um povo (JUNG, 2014______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.; DURAND, 2002DURAND. G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.). Por seu caráter dinâmico e híbrido, o cordel ganha contornos singulares e se torna um símbolo cultural do povo nordestino.

Segundo Batista (1977, p. 4)BATISTA, F. C. Literatura popular em verso: antologia. Rio de janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1977., essa propagação local se dá sobretudo pela “organização da sociedade patriarcal, o surgimento de bandos de cangaceiros ou bandidos, as secas periódicas provocando desequilíbrios econômicos e sociais, as lutas de famílias”, entre outros fatores sociais que impulsionaram “o surgimento de grupos de cantadores como instrumentos do pensamento coletivo, das manifestações da memória popular”. A forma como nos vemos ou nos imaginamos vem de uma tradição coletiva que é compartilhada pela história e registrada nos textos. Discípulo de Jung e Bachelard, o antropólogo Durand (2002, p. 25)DURAND. G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. interpreta o imaginário como “uma rede de todas as imagens que estruturam os modos de viver (e de sonhar) do homem em sociedade” e que compreende os indivíduos e sua cultura por meio de suas crenças, manifestações e sua forma de viver em sociedade.

Em Estruturas antropológicas do imaginário, Durand (2002)DURAND. G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. discorre sobre a investigação dos arquétipos fundamentais da imaginação humana. Para isso, apresenta, inicialmente, dois regimes de imagens. O primeiro é o regime diurno da imagem, que abrange uma estrutura heroica ou esquizomorfa, evidenciada pela verticalização humana e pelo estado permanente de vigilância do ser em relação ao medo da morte. Faz parte desse esquema imagético símbolos de ascensão, a prontidão para a luta, as armas, o desejo de subir, voar, a luz etc., imagens ressignificadas pela tradição literária por meio das inspirações de combate das novelas de cavalaria, por exemplo.

A segunda dimensão dessa abordagem teórica se volta para o regime noturno da imagem, que se apresenta subdividido em: i) estrutura mística — também conhecida como antifrásica. Ela é construída num tom de assimilação de elementos tenebrosos e aceitação do tempo e da morte. Seus símbolos evidentes são o descer, o penetrar, o acoplamento, a fecundidade feminina, o descanso, a digestão, as trevas etc.; e a ii) estrutura sintéticadramática. Esta estrutura é representada pelas duas faces do tempo, uma trágica e outra triunfante, ou seja, a descida e/ou a subida, o equilíbrio entre ambas. Pertencem a essa esfera símbolos cíclicos e messiânicos, bem como mitos de progresso, a cruz, a árvore e o ato sexual.

De acordo com Jung (2016)JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Pinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, Brasil, 2016. p. 15-130., os mitos são portadores de uma verdade psicológica universal que podem ser observados em formas atuais, concomitantemente à vida contemporânea. O imaginário popular de um povo, como o encontrado no Nordeste brasileiro, envereda pelas vias transitórias de um mundo já arquitetado, de um Nordeste que foi se construindo, inventando-se (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013.). Desse imaginário coletivo emergem as imagens arquetípicas que são compartilhadas por todas as culturas.

O conceito de archetypus só se aplica indiretamente às représentations collectives, na medida em que designa apenas aqueles conteúdos psíquicos que ainda não foram submetidos a qualquer elaboração consciente

(JUNG, 2014______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., p. 17).

Nesta situação, esses elementos, os quais Freud chamava de resíduos arcaicos, estruturam-se como “formas mentais cuja presença não encontra explicação alguma na vida do indivíduo e que parecem, antes, formas primitivas e inatas, representando uma herança do espírito humano” (JUNG, 2016JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Pinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, Brasil, 2016. p. 15-130., p. 82).

As imagens dos arquétipos podem ser identificadas de diferentes formas, como uma espécie de matriz comum em toda a humanidade: heróis, mitos, deuses etc. “O imaginário é real: uma fonte que alimenta nossa atividade imaginativa ao mesmo tempo em que dela se apropria [...]. Ultrapassa as subjetividades e compõe um universo coletivo” (KARLOS-GOMES, 2021KARLOS-GOMES, G. O imaginário no cordel “Antonio Conselheiro: o profeta do Sertão”. In: KARLOS-GOMES, G.; BRANDÃO, M. A. V; ARAÚJO, P. M; SANTOS, S. P. (orgs.) Tessitura do cordel brasileiro: múltiplos olhares. João Pessoa: Ideia, 2021. p. 209., p. 209). Por meio das narrativas arquitetadas, e com base em elementos arquetípicos/mitológicos, é possível observar como determinados símbolos são ressignificados (desconstruídos, fragmentados e reedificados) pela renovação de sentidos e exploração de novas estéticas. Conforme Jung, chamamos de símbolo

[...] um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional. [...] assim, uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato

(JUNG, 2016JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Pinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, Brasil, 2016. p. 15-130.).

Dessa forma, o mito primordial e o arquétipo do herói chegam até os nossos dias, atualizando-se, por exemplo, nas narrativas expressas nos folhetos de cordel que reconfiguram discursos da tradição nordestina na modernidade brasileira. Para Rodrigues (2014, p. 192)______. Tríade arquetípica do feminino no imaginário religioso cristão: Eva, Maria e Madalena. In: SILVA, A. P. D. et al. (org.). Artimanhas do desejo: ensaios de literatura, psicologia, linguagens. São Paulo: Scortecci, 2014. p. 189-208., essas imagens e símbolos da literatura de cordel favorecem a encarnação do sentido no texto da cultura popular e atualizam o imaginário coletivo (universal?) por intermédio da imaginação fundadora e arquetipal do povo nordestino. A seguir, veremos que os elementos arquetípicos que teceram a obra O Romance do Pavão Misterioso (REZENDE, 2011) continuam exercendo uma ação criadora de efeitos de sentido próprios de uma poiesis imaginária em torno do simbolismo do pavão, agora em narrativas contemporâneas e mídias diversas.

Movência e ressignificações no reino encantado do Pavão Misterioso

A configuração da capa de uma obra chama a atenção do leitor ao ser a porta de entrada para uma trama reveladora de sentidos. O cordel e a xilogravura caminharam juntos numa relação cultural de congruência durante um período. Analisar sua composição verbo-visual requer do leitor uma atenção para a plasticidade do gênero, ato de produção de sentidos que tende a fixar uma memória social. Tomemos o caso do folheto O Romance do Pavão Misterioso. A obra teve mais de 50 reedições, chegando ao seu centenário neste ano de 2023. Foi idealizada como narrativa em cordel, por volta do ano de 1923, pelo poeta popular, xilógrafo, carpinteiro e cantador do Brejo Paraibano, José Camelo de Melo Rezende.

Pelo estilo romancista, observamos que a narrativa fantástica de Rezende toma como mote os contos de fadas tradicionais, ao relacionar elementos fantásticos e simbólicos em uma aventura dramática. A obra tornou-se um clássico que persiste, faz-se atemporal, influenciando diversas produções artísticas e culturais desde sua publicação, tais como: filmes, teatro, pinturas, músicas, novelas. Bakhtin (1997)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. afirma que as obras clássicas

[...] rompem as fronteiras de seu tempo, vivem nos séculos, ou seja, na grande temporalidade e, assim, não é raro que essa vida (o que sempre sucede com uma grande obra) seja mais intensa e mais plena do que nos tempos de sua contemporaneidade

(BAKHTIN, 1997BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997., p. 364).

Observemos a seguir as imagens de capas do folheto em estudo, as quais evidenciam o efeito de plasticidade cultural e a movência do gênero, um meio semiótico que dá suporte para a compreensão da mensagem-síntese que o poeta esboça nas capas e que deságua nas páginas do texto.

A arte da xilogravura não é mais uma exclusividade das capas dos folhetos de cordel, como foi na tradição. Rodrigues e Silva (2022)SILVA, R. N.; RODRIGUES, L. P. Arquitetura de capa dos folhetos de cordel: tradição e modernidade. In: Revista Estudos Linguísticos, Belo Horizonte: UFMG, v.30, n.1, 2022. p.175-208. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/relin/article/view/18376>. Acesso em: 3 mar. 2023.
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esclarecem que esse olhar sobre a tradição que se move para outros suportes é visível nas galerias de arte espalhadas pelo país, ganhando a atenção especial dos pesquisadores em cultura popular e nas academias por suas possibilidades estéticas e pela criatividade. Hoje, o uso da xilogravura é justamente para demonstrar tradição, viés folclórico, uma vez que as mudanças de paradigmas reorganizam e reajustam novas práticas, recriando e replicando novos contextos de produção. Nas duas imagens de capa, observamos signos imagéticos trabalhados por meio de símbolos culturais. Destaca-se a performance do voo (figura 1), signo imagético primordial de ascensão (DURAND, 2002DURAND. G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.) e da exuberância do pavão (figura 2), uma ave mística repleta de simbolismos que atrai admiradores mediante sedução e formosura da espécie.

Figuras 1 e 2 (respectivamente)
Imagens de capa do cordel O Pavão Misterioso.

No imaginário popular, o pavão é associado à vaidade, ao orgulho e a várias divindades. É símbolo áureo da deusa Juno, na mitologia romana. Os simbolismos da ave são inúmeros, modificando-se de acordo com a cultura. Suas penas multicoloridas apresentam padrões que lembram olhos e/ou estrelas. Pelo brilho intenso da plumagem, no hinduísmo, a ave é símbolo do céu e do astro maior, o Sol, evidenciando o regime diurno/solar (estrutura heroica, de acordo com Jung [2014]); suas penas são como flechas, prontas para a batalha, assim como os raios do sol. Para os budistas, o pavão é símbolo do conhecimento, aquilo que ilumina os que seguem a doutrina de Buda. Com o passar dos anos, vindo para o Ocidente com os comerciantes indianos, o pavão chega à Pérsia e à Arábia (CARDOSO, 2021CARDOSO, M. A. Os cem olhos do pavão. Medievalista [Online], 29/2021. Disponível em: <http://journals.openedition.org/medievalista/3908>. Acesso em: 6 fev. 2023.
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).

A ave era considerada objeto valioso para os gregos. A plumagem do pavão representa Hera, filha de Kronos e Rheae, esposa e irmã de Zeus. Na Idade Média, a ave tornou-se símbolo de imortalidade, ganhando contornos místicos ligados à religiosidade cristã, numa relação entre o pavão e Jesus Cristo. Outra semelhança do pavão com Cristo é que a ave é conhecida como inimiga das cobras, uma vez que Pavarani, o pavão de montaria de Skanda-Karttikeya (figura 3), deus da guerra, também é conhecido como o matador de cobras. A cobra é símbolo do diabo, conhecido como o grande dragão, a antiga serpente (Apocalipse 12:9).

Figura 3
Skanda-Karttikeya montado em Paravani.

Em O Romance do Pavão Misterioso (REZENDE, 2011RESENDE, J. C. M. O Romance do Pavão Misterioso. Fortaleza: ABC-Academia Brasileira de Cordel; Tupinanquim Editora, 2011.), a ave é o objeto principal da ação do herói. Auxiliadora direta, ela é peça fundamental para que o projeto de Evangelista alcance êxito, salvando a donzela e casando-se com ela. O jovem decide, a todo custo, raptá-la de sua morada, no alto da torre do palácio. O enredo é repleto de heroísmo e suspense, com clímax na fuga dos amantes. Na análise do texto, percebemos um complexo entrecruzamento cultural: a narrativa acontece na Grécia e na Turquia, mas, ao mesmo tempo, permite uma aproximação com a simplicidade, a religiosidade e com traços da organização patriarcal, elementos típicos da cena/cotidiano do povo nordestino. Observamos ainda o uso da inteligência e da esperteza, virtudes do herói no confronto com o antagonista, que se beneficia de tais atributos para salvar a princesa.

A seguir, para este estudo, destacamos duas estrofes da narrativa de Rezende (2011)RESENDE, J. C. M. O Romance do Pavão Misterioso. Fortaleza: ABC-Academia Brasileira de Cordel; Tupinanquim Editora, 2011.. A primeira retrata o início do cordel, demonstrando o tom típico dos contos maravilhosos, o rito de abertura que enuncia o chamado para adentrar o universo fantástico da obra, quase um Era uma vez. Nos versos que se seguem, o leitor é instigado pelo clima de mistério e pelo desvendar dos segredos de uma invenção tecnológica enigmática nada convencional:

Eu vou contar uma história [...] O grande artista Edmundo De um pavão misterioso Desenhou nova invenção Que levantou vôo na Grécia Fazendo um aeroplano Com um rapaz corajoso De pequena dimensão Raptando uma Condessa Fabricado de alumínio Filha dum conde orgulhoso... Com importante armação.   (REZENDE, 2011).

Não há preocupação com a época em que se passa a história. Sabemos que é num tempo distante e em terras longínquas. O clássico descreve que na Turquia existia um homem muito rico, viúvo capitalista, dono de uma fábrica de tecidos. Era pai de dois filhos: João Batista e Evangelista. Após a morte do pai, João Batista resolve viajar e conhecer a Turquia. Evangelista concorda e lhe faz um pedido para que quando retornasse lhe trouxesse um objeto bonito. Indo parar na Grécia, João Batista fica sabendo que por lá mora um sultão arrogante que mantém sua filha presa no alto de um sobrado.

Tendo em vista a estrutura narrativa desse cordel, destacamos alguns aspectos apontados na obra Matizes impressas do oral: conto russo no sertão, de Jerusa Pires Ferreira (2014)FERREIRA, J. P. Matizes impressas do oral: conto russo no sertão. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2014.. Entrecruzando diferentes culturas e épocas, a autora aponta que há uma aproximação semântica, que ela chama de transmissão ou tradução cultural, entre as narrativas russas e as encontradas no sertão brasileiro, em que a matriz narrativa é preservada, bem como cenários, situações e o sistema de personagens. Contudo, no seio de um sistema de códigos universais centrais, emergem novos textos, ressignificados. Tal ideia se encontra em Morfologia do conto maravilhoso, de Vladímir Propp (1984)PROPP, V. Morfologia do conto maravilhoso. Trad. Jasna P. S. Rio de Janeiro, Forense- Universitária, 1984., ao afirmar que todos os contos maravilhosos têm a mesma estrutura. Este, por sua vez, baseia-se na coletânea Contos populares russos, concebida em meados do século XIX pelo folclorista russo Aleksandr Afanássiev (1826-1871). Nesse ínterim, Ferreira (2014)FERREIRA, J. P. Matizes impressas do oral: conto russo no sertão. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2014. evidencia que

a virtualidade é uma situação que reúne, numa espécie de hipertexto, operação de colagens sucessivas, em que os trânsitos do regional ou universal se fundem ou atualizam, em que um texto aparece quando há espaço para que ele se apresente e afirme

(Ferreira, 2014FERREIRA, J. P. Matizes impressas do oral: conto russo no sertão. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2014., p. 93).

Na narrativa de Rezende (2011)RESENDE, J. C. M. O Romance do Pavão Misterioso. Fortaleza: ABC-Academia Brasileira de Cordel; Tupinanquim Editora, 2011. há aproximações histórico-culturais universais ressignificadas em contexto nordestino. Na história, identificamos a jornada do herói atualizada em Evangelista e sua missão, isto é, um padrão mitológico universal que pode ser resumido em três atos: partida, iniciação e retorno (CAMPBELL, 2007CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Editora Cultrix/Pensamento, 2007.). Tal ideário foi otimizado pela teoria analítica junguiana ao evidenciar uma estrutura arquetípica pautada num processo de individuação, uma vez que a figura do herói, enquanto arquétipo, representa a busca plena da potencialidade de um indivíduo. De acordo com Ferreira (2014, p. 28)FERREIRA, J. P. Matizes impressas do oral: conto russo no sertão. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2014., nos folhetos nordestinos “permanece o alto grau de semioticidade das narrativas populares do gênero, no fato de o herói subverter, vencer, pôr a prova o czar, desposar a princesa, fazer justiça”.

Consideremos a representação da personagem Creuza, a moça prisioneira dona de uma beleza esplêndida. “É a moça mais bonita, que há no tempo presente” (REZENDE, 2011RESENDE, J. C. M. O Romance do Pavão Misterioso. Fortaleza: ABC-Academia Brasileira de Cordel; Tupinanquim Editora, 2011., p. 3). Inclusive, seu nome significa princesa, rainha, soberana. A escritora paraibana Clotilde Tavares se inspirou na narrativa de Rezende para escrever uma versão de O Romance do Pavão Misterioso em prosa, intitulada A botija (2006). Nessa obra, Clotilde descreve, com detalhes, como era a beleza de Creuza:

Era a Beleza, a Formosura, o Alumbramento. Possuía todos os dezoito sinais de beleza que a mulher deve ter, segundo a tradição antiga, para ser considerada formosa [...], tudo isso tinha Creuza e muito mais, pois não era somente a beleza física. Dela emanava uma graça sem par, inefável, angélica

(TAVARES, 2006TAVARES, Clotilde. A botija. São Paulo: Editora 34, 2006., p. 78).

Na performance da princesa Creuza, encontramos a figura do arquétipo da donzela (JUNG, 2014______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.). A moça é apresentada como uma jovem indefesa, revestida de traços de ingenuidade, inocência e sensibilidade, figuras provenientes de uma tradição medieval. Para Jung (2014)______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., a donzela representa a parte feminina do herói, a anima2 2 “Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem — os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, [...] o relacionamento com o inconsciente” (JUNG, 2014, p. 123). , e seu resgate performatiza-se como a libertação dos aspectos devoradores da mãe. Creuza evoca ainda a imagem das princesas dos contos de fadas, como a Branca de Neve (beleza) e a Rapunzel (vive seus dias presa numa torre). A princesa Creuza era admirada pelas pessoas apenas uma vez por ano, quando exposta pelo pai como um objeto de contemplação na sacada do palácio. O suposto conde não só é o antagonista, como também rememora uma tradição regionalista, caracterizada pela submissão das mulheres ao patriarcado. Remonta à imagem dos coronéis, comuns nas práticas políticas desde os tempos imperiais na região Nordeste. É nesse sentido que Ferreira (2014, p. 29)FERREIRA, J. P. Matizes impressas do oral: conto russo no sertão. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2014. argumenta que as versões populares podem ser pensadas como um megatexto: “no sistema secundário vão se inserindo detalhes das práticas sociais, e no próprio desenrolar da composição, elas se articulam na poética” do texto.

João Batista decide que o objeto bonito que levaria para seu irmão seria uma fotografia da moça. Ao voltar de viagem, João entrega o retrato para o irmão. Num primeiro momento, Evangelista até despreza o presente, fazendo pouco caso. No entanto, logo observa-o com esmero e, como se uma flecha transpusesse seu coração, apaixona-se loucamente, encantando-se pela jovem. No mesmo instante, ele resolve partir para o lugar onde a jovem habitava. Nele, vemos a representação típica do herói romântico medieval, por meio da paixão extrema/delirante por uma donzela que se mostra, de início, inalcançável.

Como vimos, essa imagem, que valoriza simbolicamente o arquétipo do herói, é ressignificada em Evangelista. Evidencia-se nele o que Durand (2002)DURAND. G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. chama de regime diurno/solar do imaginário, por meio do heroísmo do protagonista que se reveste dessa figura arquetípica, ao trazer em si a coragem, a honra, a força e a capacidade para resolver problemas e defender pessoas indefesas. Estes que estão sempre prontos a combater e vencer o mal são os heróis, criados pela imaginação mística, fictícia ou religiosa (JUNG, 2016JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Pinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, Brasil, 2016. p. 15-130.). O pavão é o cavalo do herói, assim como o cavalo de São Jorge, e, ainda, o cavalo do vaqueiro nordestino, que auxilia no enfrentamento dos dragões e monstros, representados também pela seca e seus conflitos no semiárido; ou ainda, como o cavalo alado Pégaso, figura emblemática da mitologia grega, como evidente no trecho “Meu cavalo anda nos ares” (REZENDE, 2011RESENDE, J. C. M. O Romance do Pavão Misterioso. Fortaleza: ABC-Academia Brasileira de Cordel; Tupinanquim Editora, 2011., p. 25). No imaginário nordestino, o vaqueiro tem na figura do cavalo o tapete voador, que o ajuda a enfrentar e vencer os conflitos próprios da sobrevivência no universo rural.

Apaixonado, Evangelista viaja para a Grécia com o desejo de encontrar sua amada. No momento da aparição dela, ficou arrebatado com tamanha beleza. Contemplava-a, hipnotizado, envolvido em um misto de sentimentos e sensações. Então, ele pensa: como alcançar esse bem supostamente inatingível? Para tanto, decide contratar os serviços de um engenheiro talentoso, Edmundo, a quem encomendou uma invenção (tecnologia) que o permitisse ter acesso ao quarto da Condessa. Depois de seis meses de trabalho árduo, foi construído o pavão mecânico/misterioso. Tendo em vista a época de criação do folheto, é interessante notar o olhar futurista do autor. O cientista Edmundo figura como arquétipo do velho sábio (JUNG, 2014______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.). Ele aparece quando o herói se encontra numa situação de conflito e sem saída, necessitado de uma ideia que o ajude na investida de salvar a donzela.

É com esse engenhoso objeto tecnológico que Evangelista sobrevoa a torre onde Creuza dormia. Um pavão misterioso, provavelmente inspirado na ideia de um tapete voador, presente na história de Aladim e a lâmpada mágica, dos contos de As mil e uma noites, da lendária rainha persa Sherazade, pois, segundo Maxado (2007, p. 20)MAXADO, F. Literatura de cordel. São Paulo: Hedra, 2007. p. 20., o Pavão Misterioso, quiçá, seja a atualização do tapete, quando Santos Dumont experimentava o balão na Europa. Depois de algumas tentativas, o herói consegue finalmente ganhar a confiança da jovem e libertá-la de sua prisão. A fuga dos amantes se dá de forma fenomenal. Juntos, retornam para a Turquia. Algum tempo depois, casados, ficam sabendo da morte do pai tirano. A convite da mãe de Creuza, eles retornam para a Grécia. A história termina, tipicamente, com um final feliz.

Dessa forma, vemos como as teorias junguianas se prolongam e ressignificam narrativas populares nordestinas que subjazem e revelam a presença de arquétipos, ideias míticas que se constituem como patrimônio coletivo da humanidade. Vários símbolos podem ser associados a um arquétipo, engendrando representações que mudam de cultura para cultura. Na estrutura narrativa de Rezende (2011), há sujeitos e elementos semióticos, como a jornada de Evangelista (o herói), que, no percurso de encontro ao seu objeto de valor (a princesa Creuza), ora é auxiliado por um adjuvante (o pavão misterioso), ora é dificultado por um oponente (o conde orgulhoso).

Tendo em vista esse universo imagético e o fenômeno da plasticidade cultural, própria da literatura de cordel, constatamos que a singularidade da narrativa de Rezende, cuja tessitura se origina nas entranhas da tradição oral, agrega valor literário e cultural a outras produções artísticas em nossos dias, como o filme O resgate do Pavão Misterioso (figura 4), lançado em Campina Grande-PB, em 2014, com direção de Silvio Toledo.

Figura 4
Longa-metragem O resgate do Pavão Misterioso (2014), de Sílvio Toledo.

Nesse ínterim, o imaginário do pavão também é protagonizado com sucesso nas narrativas contemporâneas, como nas séries produzidas pelas plataformas de streaming em que encontramos alguns episódios recheados de enigmas e simbolismos, a exemplo da série dramática Manifest: o mistério do voo 828 (figura 5). A produção americana de ficção científica foi comprada recentemente pela Netflix e traz a comovente narrativa dos passageiros de uma tripulação de um avião comercial dados como mortos, que retornaram depois de mais de cinco anos da decolagem, porém, o tempo não havia passado para eles. Alguns têm chamados especiais, uma espécie de premonição ou visão do futuro. Como símbolo da imortalidade, o pavão constantemente se revela, nesses chamados, aos protagonistas da trama.

Figura 5
Imagem de abertura da série Manifest (2018).

A narrativa fantástica de O Romance do Pavão Misterioso inspira, ainda, a produção da canção “Pavão Mysterioso”, escrita pelo compositor cearense José Ednardo Soares, em 1974, época da ditadura civil-militar no país. “Pavão misterioso, pássaro formoso, tudo é mistério, nesse teu voar”; eis o trecho de início da canção, composta em forma de ritmo mais lento (novena) para encenar um clima de lamento, uma vez que, nas entrelinhas, ela tem uma crítica implícita, denunciando o autoritarismo e a privação de liberdade na época. Descreve os anseios dos marginalizados, que muita coisa querem olhar e viver a plenitude de sua liberdade.

A canção foi interpretada por grandes nomes da música popular brasileira, como Ney Matogrosso e Elba Ramalho; fez sucesso em todo o país ao se tornar trilha sonora da novela Saramandaia (Rede Globo), escrita por Dias Gomes e exibida pela primeira vez em 1976. Na trama, uma das personagens, por nome de João Gibão, esconde em sua corcunda um par de asas. O clímax de sua participação se dá quando este, que não sabe voar, atira-se do alto da torre da igreja da então denominada cidade de Bole-Bole, zona canavieira de Pernambuco. Seu maior sonho era “Voar voar, subir, subir, ir por onde for...” (BIAFRA; PISKA; CLÁUDIO RABELLO, 1984)3 3 Álbum Existe uma ideia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Existe_Uma_Ideia>. Acesso em: 08 mar. 2023. , (Desejo de ascensão – regime diurno do imaginário [JUNG, 2014______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.]). A beleza e o encanto que relacionam a ideia de voo e ascensão na figura/performance dos pássaros criaram no imaginário das culturas o desejo pujante de alcançar os céus, de ascender.

Diante do exposto, compreendemos que O Romance do Pavão Misterioso relaciona elementos fantásticos e maravilhosos de várias épocas, frutos da imaginação criadora do poeta popular que entrelaça imaginários, imagens simbólicas universais, em prol da composição do imaginário do povo nordestino. O clássico apresenta em sua tessitura os desejos humanos mais latentes, seja por meio de uma paixão vibrante ou ainda do sonho humano de uma vida melhor, de obter a liberdade e de voar. Para Rodrigues (2014, p. 190)______. Tríade arquetípica do feminino no imaginário religioso cristão: Eva, Maria e Madalena. In: SILVA, A. P. D. et al. (org.). Artimanhas do desejo: ensaios de literatura, psicologia, linguagens. São Paulo: Scortecci, 2014. p. 189-208. “há conexões entre os valores que são veiculados e os símbolos que os representam desde o início de nossa história e que isso se repete para mostrar que também há conexão entre as diversas gerações humanas”.

Logo, constatamos que a trama arquitetada por Rezende (2011)RESENDE, J. C. M. O Romance do Pavão Misterioso. Fortaleza: ABC-Academia Brasileira de Cordel; Tupinanquim Editora, 2011. empresta seu valor cultural e performático à produção de outras narrativas, que servem a outros propósitos, seja um protesto, como na música de Ednardo, ou ainda entretenimento, como na novela Saramandaia. Na tessitura de O Romance do Pavão Misterioso há um entrelaçar intermidiático que bebe não só nas narrativas medievais, mas na própria estrutura mitológica que provém de histórias remotas, como o sonho/mito de Ícaro, e deságua em narrativas midiáticas contemporâneas. “Na canção, na gravura, no folheto, na transmissão oral, encontram-se os mais antigos caudais, garantia de eternidade” (FERREIRA, 2014FERREIRA, J. P. Matizes impressas do oral: conto russo no sertão. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2014., p. 30). De fato, há um movimento no tempo que atualiza essas narrativas, mas que também tradicionaliza elementos guardados na memória.

Algumas considerações

Toda leitura é sempre um ato de releitura. A cada interpretação pode-se alcançar um novo sentido, uma nova forma de trazer às claras sentidos possíveis e torná-los conscientes. Muitas narrativas presentes na literatura de cordel têm suas raízes nos contos maravilhosos. Encontramos nessas narrativas populares (reais e/ou fictícias) personagens, tramas, imagens e símbolos amalgamados ao imaginário do povo. Em torno desse universo imagético cultural, o cordel se mostra como fonte inesgotável de pesquisa, por meio de suas nuances temporais e espaciais que evidenciam a plasticidade tanto cultural quanto do próprio suporte (folheto de cordel), bem como sua relação plurissignificativa com outras mídias, estabelecendo uma forma singular de significar e atualizar a cultura em que se insere.

Conforme Rodrigues (2011, p. 104)RODRIGUES, L. P. Vozes do fim dos tempos: profecias em escrituras midiáticas. 2011. 431f. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011., entendemos que a literatura de cordel “comprova o poder simbólico da letra como reconstrução — memória — do invisível que é a voz”. De uma leitura dinâmica, prazerosa e espontânea, O Romance do Pavão Misterioso (REZENDE, 2011RESENDE, J. C. M. O Romance do Pavão Misterioso. Fortaleza: ABC-Academia Brasileira de Cordel; Tupinanquim Editora, 2011.) se faz memória das vozes (ZUMTHOR, 1993ZUMTHOR, P. A letra e a voz. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.), uma vez que carrega em suas entrelinhas resíduos da memória oral e símbolos do imaginário popular que emergem do fazer literário dos poetas populares e da plasticidade cultural de suas produções.

Atualmente, observa-se uma movência dos folhetos de cordel por meio de novos mecanismos de midiatização, levando em consideração a dinâmica cultural contemporânea e os novos usos tecnológicos. Por seu caráter multimidiático, o cordel é tanto suporte para outras mídias como incorpora outros gêneros; empresta status, seus valores discursivos e culturais. Assim, vimos que a história do Pavão Misterioso vai sendo recriada. Sua movência linear é adaptada para a televisão (como na novela Saramandaia), para a música (“Pavão Mysterioso”, de Ednardo), bem como para outras produções artísticas aqui não enfatizadas por questão de espaço. Também podemos associar a imagética da capa ao seu enredo fantástico, por causa do processo de atualização/ressignificação de linguagens e narrativas fantásticas diversas mediante uma abordagem simbólico-antropológica, demonstrando o valor cultural e literário da obra.

Encontramos na poética de Rezende (2011)RESENDE, J. C. M. O Romance do Pavão Misterioso. Fortaleza: ABC-Academia Brasileira de Cordel; Tupinanquim Editora, 2011. uma encarnação sígnica/simbólica de elementos do imaginário popular e universais que revelam ao homem suas raízes/identidades. Logo, concluímos que o processo de narrativização sócio-histórico e cultural que influenciou a tessitura da obra foi de ordem mítico-simbólica e se deu como processo contínuo de atualização de um imaginário universal (imagens primordiais) em contexto nordestino. Esse processo foi mediado pelo fenômeno da plasticidade cultural que, segundo Rodrigues (2011)RODRIGUES, L. P. Vozes do fim dos tempos: profecias em escrituras midiáticas. 2011. 431f. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011., permitiu a manutenção das vozes que a literatura de cordel atualiza em narrativas contemporâneas, a exemplo de O Romance do Pavão Misterioso.

  • 1
    Ver: <https://cordel.edel.univ-poitiers.fr>. Acesso em: 21 jul. 2022.
  • 2
    Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem — os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, [...] o relacionamento com o inconsciente” (JUNG, 2014______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., p. 123).
  • 3
    Álbum Existe uma ideia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Existe_Uma_Ideia>. Acesso em: 08 mar. 2023.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2023
  • Aceito
    18 Maio 2023
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